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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.11 n.2 Rio de Janeiro dez. 2008

 

 

O “grito” no contexto hospitalar

 

 

Ana Maria Preuss Leonarde1

Hospital Universitário, Universidade Federal do Paraná

 

 


RESUMO

Com o objetivo de trabalhar sobre a expressão freudiana “Grito”, o presente trabalho debate sobre os conceitos de narcisismo, Real, Simbólico e Imaginário. O grito expressa o primeiro desamparo, a primeira dor vivida pela criança. O desamparo causado por uma queimadura pode levar ao “grito”, a ausência de significação e para ilustrar isto dois fragmentos de casos clínicos são apresentados articulando teoria e prática.

Palavras-chave Grito, Real, Simbólico, Imaginário, Queimaduras.


ABSTRACT

With the objective of work with the Freudian expression “scream”, the present paper debates about the concepts of Narcissism, Real, Simbolic and the Imaginary. The scream express the first dispair, the first pain suffered by the children. The dispair caused by a burn can take the children to “scream”, the absence of meaning and to ilustrate this , there are two pieces of clinic cases presented here articulating theory and practice.

Keywords: Scream, Real, Simbolic, Imaginary, Burns.


 

 

INTRODUÇÃO:

No hospital, o psicólogo verifica como é direta a relação do limiar de dor com a história do indivíduo que a sente. Percebe os limiares diferentes de dor através da expressão por pequenas palavras ou grandes palavrões que são formas significantes de expressão do afeto hostil gerado pelo sofrimento. A dor carrega em seu bojo a história, as fantasias e o fantasma de cada indivíduo, por isso, a dor pode ser originada por estímulos físicos, mas nunca é somente física. Seu limiar difere de sujeito para sujeito de acordo com sua elaboração narcísica. A dor é a origem do afeto.

A dor parece ser uma companhia certa para os pacientes internados em um hospital, mas os gritos de uma maneira geral são mais difíceis de serem ouvidos.

 

O GRITO

Grito, sopro, som, letra, partícula. Grito fragmento da fala indizível.

O “Grito” é para Freud ( Projeto...) uma “ação especifica”, pois remete ao lactante que grita na busca de uma satisfação da sua necessidade. Este “Grito” que vai modificar o ambiente a sua volta, deixa de ser apenas uma descarga motora para cumprir uma função útil, com sentido definido que retorna em cada grito emitido no decorrer da vida. O grito é a primeira ação do ser falante e é este som que um dia foi significado que retorna no momento de extremo desamparo da dor.

O grito tem a função de comunicação primeva entre o bebê e a mãe, expressão da impotência do bebê ao nascer, e cada vez que esta impotência no decorrer da vida aparece, ela reaparece como grito.

A dor é um elo de passagem entre o psiquismo e seu corpo. O corpo da criança afetado pela ausência súbita do outro dói, fragmenta-se. Dói por ter sido atravessado pelo discurso do Outro. Dói por estar atravessado pelo significante. Dói por não ser mais apenas um corpo biológico. Dói por estar inserido no cenário do fantasma individual. Dói formando o si-mesmo, o próprio corpo. Mas, a dor é sucessora do grito. “A relação entre o grito e a dor alucinada é um exemplo acabado da relação fundada entre o significante e o afeto [...],todo afeto é uma repetição de um acontecimento traumático muito antigo”. (DELOUYA in BERLINCK, 1999, p.28)

A dor só existe após o inconsciente ter sido marcado por uma situação traumática, e é a “repetição” deste afeto que vem à tona cada vez que o grito se apresenta. O grito exprime uma dor presente, mas ele volta para os ouvidos do emissor para despertar a lembrança das antigas dores; e para conferir ao objeto que nos faz sofrer o seu caráter hostil.

 

O GRITO NO CONTEXTO HOSPITALAR

No atendimento a pacientes internados em um Centro para Tratamento de Queimaduras tive a possibilidade de ouvir muitos gritos. Gritos de crianças, de adolescentes, de adultos e velhos, não importam as idades ou o número de dores vividas anteriormente, a cadeia significante é formada a partir de um significante mestre, é a dor do desamparo da separação do corpo materno que emerge de forma violenta.

É a dor que evidencia o Real para o psiquismo, tornando-a a causa do recalque primário. Ou seja, é a dor que instaura o inconsciente, colocando em obra a formação do Eu e dando nascimento ao seu mais precioso instrumento: o pensamento. Pois, ao buscar a satisfação pulsional, a alucinação de sua realização esbarra na dor de frustração. Este seria o indício do real motivo para desinvestir a alucinação do desejo, ou seja, efetuar um recuo (recalque) próprio ao estabelecimento da tópica. A dor obriga então a recorrer às fontes das experiências de satisfação, buscando nos registros de sua descarga reflexa as imagens próprias de movimento, para encontrar - por meio da percepção e dos investimentos laterais -  alternativas atuais à ação específica de outrora: é este o pensamento ou a ação do pensar que amplia e expande a experiência, dando estofo ao eu nascente de cujos contornos notifica a dor. (Deloya in BERLINCK, 1999).

 

O DESAMPARO

A queimadura, como outras situações hospitalares, denuncia a vulnerabilidade, a fragilidade da vida que tentamos negar o tempo todo. Pinçado de seu mundo, de sua família e tendo sua pele arrancada, derretida, o sujeito se vê objetalizado pelos procedimentos.

Contrariando suposições de que a imagem física seja a grande questão do paciente queimado, me deparei com pessoas angustiadas com a fragilidade de suas vidas, assustadas por terem encarado a morte “olho no olho”. A expressão de seus rostos quando chegam ao hospital é muitas vezes de horror.

Olhar a morte nos olhos, se deparar com o Real, o não Simbolizado, é uma experiência violenta. A única forma de expressão possível no primeiro momento é o grito, som indefinido. Silenciadas as terminações nervosas resta ao paciente o oco, a falta. Falta esta que vai aos poucos sendo simbolizada. Como se som por som, palavra por palavra fosse sendo montada. Como um quebra cabeça, as peças vão se encaixando gradativamente na busca de uma compreensão, de uma apreensão do fato ocorrido de um afeto que o defina. Afeto este que é resultado da articulação das peças oriundas da história do indivíduo. A dor, a queimadura, gera uma quebra no narcisismo primário.

A dor causa a irrupção de grandes quantidades de excitação, que ao chocar o sistema exigem descarga. A dor faz um exterior, no caso a queimadura, se tornar um interior deixando traços. Esta grande quantidade de excitação necessita de descarga, o que gera o afeto.

A dor que deixou marca foi provocada por uma percepção externa, enquanto a dor subseqüente é despertada por uma percepção interna. A esta percepção interna podemos dar o nome de angustia. A angústia segundo Nasio (1997,p.27 e 37), é a antecipação, a ameaça da situação dolorosa e, tem como meta, lidar com o perigo oriundo do real, do mundo externo e do isso.

 

A ANGUSTIA

O tratamento da queimadura gera bastante angustia não só para o paciente como para os familiares. Gera ansiedade porque a grande maioria das pessoas desconhece a evolução das grandes queimaduras, ignora a necessidade de curativos diários e nega a possibilidade de desestabilizar o organismo como um todo. Os familiares já sentiram a dor de uma pequena queimadura e usam do imaginário para se identificar com o paciente queimado.

O paciente vai passar por períodos que podem iniciar por um coma induzido, dependendo do tamanho da queimadura e do grau. Existem outros casos onde há necessidade de amputações, algumas vezes realizadas durante o período de coma. Curativos diários, enxertos e tudo isso leva tempo que pode variar de dias a meses de internação para melhora do quadro e anos de tratamento, inclusive com reinternações, para cirurgias restauradoras.

 

A CLÍNICA

Como forma de elucidar estas questões trago dois fragmentos de atendimentos clínicos.

Logo que iniciei meu trabalho com estes pacientes fui chamada ao pronto socorro para atender uma mulher que havia, segundo a equipe, tentado suicídio. Com os olhos arregalados, o olhar perdido, o único som que se ouvia era o silêncio. Os médicos me contaram que ela havia chegado gritando de dor, uivos altos que foram substituídos pelo silêncio gradativamente. Apesar da ausência dos gritos, sua feição não havia se alterado.

O espanto com o ato cometido, a auto-agressão, não pareciam encaixar, a princípio, em sua história de vida. Após uma crise de ciúmes para chamar a atenção do companheiro ela derramou uma garrafa de álcool sobre o corpo e ameaçou com um fósforo na mão se atear fogo, era um blefe. Desafiada pelo companheiro riscou o fósforo longe do corpo e numa explosão seu corpo entrou em chamas. O que deu errado? Onde perdeu o controle da situação? Foi um acaso ou uma repetição?

A verbalização destes questionamentos e a busca de respostas propiciaram a substituição dos gritos por relatos de sua vida e das dores passadas no decorrer dela.

Em seu discurso aparecia o significante “monstro” e era assim que se sentia, não por causa das cicatrizes, mas porque este era o seu lugar na família, um monstro que era incapaz de aceitar o afeto que os outros tinham por ela e fazia de tudo para se mostrar indigna de amor.

Em outra ocasião atendi F., 22 anos. F. chega transferida de outro hospital acompanhada de sua mãe, esposo e irmão. Todos muito assustados com o acidente que ocorrera no trabalho. O médico ficou de retornar com notícias após o primeiro curativo. Fiz o primeiro atendimento à família enquanto aguardavam o médico. Era difícil de entender como havia acontecido a queimadura, não era função de F. operar aquela máquina. Teria ela cometido um erro ou seria um problema na máquina?

Muitas perguntas surgiam, a mãe da paciente demonstrou neste momento ser o centro da família, centralizando nela as informações e mostrando-se forte para a situação.

O médico chega com notícias de que F. tinha queimaduras de segundo grau nos membros superiores, rosto e vias aéreas, por isto estava em coma induzido e havia sido entubada. F. permaneceu neste estado por uma semana e durante este período a mãe foi incansável, vindo de outra cidade todos os dias e sempre solicitando a presença da psicóloga para acompanhá-la a U.T.Q. (Unidade de Terapia Intensiva de Queimaduras).

Neste período, F. que havia alisado e mudado a cor de seus cabelos que atingiam a cintura, teve a cabeça raspada. Seu corpo, por causa da queimadura, teve o tamanho duplicado. Segundo a mãe “ela estava irreconhecível”.

Após uma semana de tratamento o edema nas vias aéreas causado pela queimadura diminui e a paciente é destubada. Em seu relato diz não se lembrar de nada do período de coma. Acorda com a imagem das chamas que vai acompanhá-la durante muitos dias em pensamentos livres, na tentativa de entender o que aconteceu  em sonhos.

Relata que quando a máquina explodiu e ela se viu em chamas não tinha ninguém por perto, saiu queimando para um outro setor da fabrica onde as pessoas ficaram olhando assustadas sem fazer nada. Dirigiu-se sozinha ao pátio onde foi socorrida. A imagem das pessoas olhando para ela em chamas era várias vezes citada seguida da pergunta: por que não fizeram alguma coisa? Por que me deixaram queimando? Por que ninguém quis me ajudar?

F. ficou internada 20 dias ao todo. Após a alta passou a vir em atendimentos semanais no ambulatório de psicologia. Foi em um destes atendimentos que a imagem das pessoas olhando para ela em chamas surge como um elemento em sua cadeia significante, como uma repetição.

Quando sua mãe engravidou, seu pai teve duvidas da paternidade. Passavam por grande dificuldade financeira e ele, segundo o discurso da mãe, rejeitou esta filha. Quando nasceu, na maternidade foi diagnosticado uma doença de pele e um médico pede para adotá-la,  acreditando que a família não teria condições de tratá-la.  A mãe se ofende com a proposta, mas o pai questiona se não seria melhor e, durante sua vida toda permaneceu de longe observando a relação mãe-filha.

Estas pacientes falaram e com isto colocaram o desamparo da queimadura na cadeia significante.

 

CONCLUSÃO

O grito é o Real que se impõe na situação traumática. A queimadura vem ocupar este lugar de trauma e a forma de suportar este encontro doloroso é a simbolização. Segundo Freud (Projeto...) para superarmos a dor se faz necessário uma produção intelectual.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

DELOUYA, Daniel. In: BERLINCK, Manoel Tosta (org). Dor. São Paulo: Escuta, 1999.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira.  Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. I, VII, XI, XII, XIII, XIV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX.

GARCIA - ROZA, Luis Alfredo. Introdução à metapsicologia freudiana 3. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

LACAN, Jacques. O seminário: livro 1. Os escritos técnicos de Freud 1953 – 1954. Trad. M.D.Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

LACAN, Jacques. O seminário: livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

MOHALLEM, Léa Neves. In MOURA, Marisa Decat.  Psicanálise e hospital: a criança e sua dor. Rio de Janeiro: Revinter,1999.

NASIO,J.D.  O livro da dor e do amor.  Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

VALORE, Angela M. S. Trabalho de luto. In: XII Jornada de apresentação de trabalhos e cartéis da B.F.C. 2001.

VALORE, Angela M. S. As vicissitudes do objeto. Texto inédito. s/ d.

 

 

1 Psicóloga. Especialista em Psicanálise (Freud - Lacan) e Bioética. Atuante na Centro de Tratamento de Queimaduras do HU/UEL.  ampl@sercomtel.com.br
Trabalho apresentado na VII Jornada de Psicologia do Hospital Universitário/UEL – I Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde – setembro 2008 – Londrina, Paraná

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