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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.11 n.2 Rio de Janeiro dez. 2008

 

 

Atuação em rede de proteção social

 

Acting in a social protection net

 

 

Namara de Sousa1

Grupo de Pesquisa de Psicologia e Instituições da Faculdade de Ciências e Letras &– Assis da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” &– São Paulo - Brasil

 

 


RESUMO

O presente estudo teve por objetivo cartografar as práticas de atenção e cuidado para aqueles que sofrem com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas nas ações do serviço público em territórios de risco social, condição vinda de um cenário de pobreza e violência, zona de intenso tráfico de drogas ilícitas e alto consumo de álcool. Nossa proposta foi desenvolver estratégias com 40 adolescentes, suas famílias e comunidade em que vivem para buscar as ofertas que existem para além das drogas, promovendo a comunicação para a melhoria da qualidade da relação adolescente/família/escola/comunidade. Iniciamos a cartografia das ações de atenção presentes no local, delineando estratégias e táticas que resultaram em uma trama de procedimentos formadores de novas sociabilidades e sensibilidades, pelo que optamos pelo método cartográfico na busca de possibilidade de oferta, por ser um método aberto, reversível, suscetível à modificações, que envolve uma posição política e ética, do pesquisador. Com o objetivo de construir uma rede de sustentabilidade social, utilizamos como ferramentas: construção da rede (reuniões com: representantes de instituições locais, técnicos da rede de serviços, pais/familiares dos adolescentes); atividades esportivas e de lazer; acompanhamento terapêutico, envolvendo o trabalho de rua e visitas domiciliares; grupo como dispositivo.  O balanço final de nosso trabalho apontou para: deficiência dos serviços públicos, em contrapartida, significativa diminuição da evasão escolar, dos projetos sociais da rede, do consumo de drogas e da violência, do tempo de exposição aos fatores de risco; a ausência de morte no período, e o fortalecimento da função familiar.

Palavras-chave: Adolescente, Território, Práticas de atenção, Cartografia, Rede Social.


ABSTRACT

This paper aimed at mapping the attention and care practices of public service actions in risk territories to those who suffer from troubles related to alcohol and other drugs set off by poverty and violence scenarios, intense drug traffic zones and alcohol abuse. Our proposal was to develop strategies with 40 adolescents, their families and the community in which they live, in order to seek other existing possibilities beyond drug addiction, by promoting communication to improve the relation adolescent/family/school/community. We started mapping the attention actions set at the place by outlining strategies and tactics that ended up in a web of procedures to form new sociabilities and sensitivities, and converting to the mapping method due to its possibilities, since it is open, reversible and susceptible to changes, which involves a political and ethical position taken by the researcher. We used the following tools in order to put up a social supporting net: the making of the net; holding meetings with representatives of local institutions, technicians of the service net, parents/relatives of the adolescents; sports and leisure activities; therapeutic follow-up, involving field work and home visits; having the group as a device. The balance of our work points out the inefficient public services, and on the other hand that there was a significant decrease from school dropout and from social projects of the net, a decrease in drug consumption and violence, less time exposed to risk factors; no deaths in the period, and the strengthening of family function.

Keywords:  Adolescent, Territory, Attention practice, Mapping, Social net.


 

 

Introdução

Ao refletirmos sobre a atual cultura capitalista em que vivemos, fundamentada no individualismo e no consumo em massa, tendo o Estado como agenciador deste modelo numa relação direta com a sociedade, conjecturamos sobre toda a trama social formada pelas pessoas que vivenciam e compõem esses processos. Deparamo-nos, então, com comunidades bombardeadas pelos modelos e padrões socialmente aceitáveis e que carregam consigo a lógica dominante – a capitalista.  O capitalismo flexível torna o homem preso em si mesmo, distanciando-o das relações de proximidade com o outro, já que se encontra inserido numa cultura que incentiva gradativamente a competitividade, o individualismo e o egoísmo, desestruturando os referenciais de sua integridade psicológica.  O que se percebe é um autêntico processo de individualização, onde o que importa é a realização pessoal “em nome de si mesmo”, condicionando o individuo à desfiliação e à perda de referência.

Esta sociedade em que vivemos, cuja característica é uma exacerbada prática de consumo, se produz e reproduz em todas as classes sociais, onde o ser humano é tratado como objeto e como consumidor. Seu sistema se organiza de tal forma que a aquisição dos bens ou objetos é posta como extremamente necessária tal como uma promessa de saciar as necessidades socialmente criadas. A compra incessante de coisas é, em última análise, a garantia da felicidade onde a ordem é: para ser feliz é preciso ter.

Se considerarmos que o uso de drogas e seu significado social são determinados historicamente, em uma sociedade de consumo, a droga é uma mercadoria a mais no mercado consumidor. Se entendermos que o ser humano é constituído no campo social - enquanto cenário de relações que se dão entre os indivíduos e pressupõe tensão - falar de sociedade de consumo implica pensarmos uma nova configuração social em que essa tensão é o tempo todo evitada por meio de uma oferta incessante de objetos. O uso da droga adquire valor de objeto insubstituível porque sua ingestão oferece à pessoa momentos de prazer intenso e um outro modo de produção de real social. A promessa de prazer absoluto e a possibilidade de evitar o mal-estar fazem da droga um poderoso objeto de consumo.

A partir de tal compreensão é que se inseriu a proposta de problematizar as práticas de atenção e cuidado para aqueles que sofrem com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em territórios de risco social na cidade de Londrina – PR, na busca de ofertas que existem para além das drogas, para 40 adolescentes, suas famílias e comunidade em que vivem, promovendo a comunicação para a melhoria da qualidade da relação adolescente/família/escola/comunidade

Desenvolveu-se então, pesquisa em dois bairros da região Leste da cidade em um território com aproximadamente cinco mil habitantes e reconhecidos como lugar de risco social, decorrente de um cenário de pobreza e violência, zona de intenso tráfico e consumo de álcool e outras drogas.  Ao longo do percurso, desenvolveu-se estratégias e táticas2que resultaram em uma trama de procedimentos formadores, sobretudo, de novas sociabilidades e novas sensibilidades.

Todo o caminho que se pode percorrer livrando-se das dores do desconhecido não vale a alegria, a emoção de se perceber participando da criação, portanto, escolheu-se uma metodologia centrada no método cartográfico que, em nenhum momento, busca por verdades absolutas e universais ou estabelecimento de modelos prontos; antes, porém, propõe uma discussão metodológica que se atualiza na medida em que ocorrem encontros entre o pesquisador e o território onde trabalha. Nesse processo de produção, todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas, de modo a construir uma dimensão rizomática

A crença em uma ação mais transformadora e crítica, da psicologia na sociedade, após 25 anos trabalhando como psicóloga clínica em consultórios assim como nossa posição ética e política se efetivaram a partir da permanência nos territórios de risco social durante 18 meses: início em julho de 2002 e término em dezembro de 2003. Desenvolvidos na Região Leste da cidade, essa permanência teve dois momentos distintos: no período de julho a dezembro de 2002 integrando a equipe de trabalho do Projeto “O X da Questão” vinculado à Organização Não Governamental “Vir a Ser”, cujo público alvo eram jovens de quatorze a vinte e um anos, usuários de drogas e suas respectivas famílias; em um segundo momento, de março a dezembro de 2003, coordenando e executando o Projeto “Conquistando a Cidadania”, sub projeto do Programa Estadual “Adolescer é Preciso” , uma iniciativa do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA) e do Instituto de Ação Social do Paraná (IASP).

As cartografias foram construídas a partir do nosso contato e experimentação com vários planos que nos foram ofertados no decorrer do trabalho. Para cada cartografia, diferentes estratégias de acesso foram sendo erigidas: reunião com as lideranças da comunidade, com as diretoras das escolas, entrevista com as famílias, contatos com os adolescentes, leitura de textos acadêmicos, de documentos oficiais, jornais, passeios pelas ruas da cidade, filmes, conversas com profissionais de órgãos públicos, dentre os quais citamos: o representante da Companhia de Habitação de Londrina (COHAB-LD), a gerente de Saúde Mental do município, a assistente social do território de intervenção e a promotoria.

Para que esse trabalho fosse realizado foram fundamentais os recursos intelectuais e táticos adquiridos pela cartógrafa, em vinte e cinco anos de investimento em cursos, especializações, e supervisões, terapia e as intensidades no seu fazer profissional que lhe renderam reconhecimento de competência, para assumir tal proposta. Os vinte e cinco anos de trabalho não nos deram a “especialidade”, mas nos conferiram a disponibilidade do enfrentamento das forças, dos agenciamentos e paixões humanas, estabelecendo relações diversas no embate de várias forças ativas e reativas.

O que compõe a nossa mala de ferramentas é a capacidade adquirida nestes anos de suportar a solidão cuja superação depende a possibilidade de criação. A dor se transforma em encantamento, pois de repente abre-se um universo de possíveis.

Os instrumentos da cartógrafa se delinearam a partir de sua presença nos territórios e, os encontros ali produzidos, tornaram-se campos de operações e de construção de instrumentos, ou seja, suas estratégias e táticas.

As decisões sobre a forma de intervenção (estratégias) e a seleção de recursos (táticas) que se delinearam compunham a mala de ferramentas da cartógrafa: construção da rede; reuniões com representantes de instituições locais, técnicos da rede de serviços, pais/familiares dos adolescentes; atividades esportivas e de lazer; acompanhamento terapêutico, envolvendo o trabalho de rua e visitas domiciliares; grupo como dispositivo.

Todos esses itens tinham como objetivo essencial a construção de uma rede de sustentabilidade social.

 

Construção da Rede

A rede foi sendo tecida a partir dos movimentos agenciados nos territórios. A nossa presença como cartógrafa e as demandas das pessoas participantes do projeto delineavam novos pontos de intersecção que passavam pelos recursos existentes na comunidade. Os encontros com as famílias, diretoras das escolas, lideranças das igrejas, assistência social funcionavam para criar canais de conexão para fora do território: o direito à cidade buscando criar uma interação com o fora. Cada ação da cartógrafa era um nó da rede. O nosso trabalho só foi possível devido a rede que foi se configurando na comunidade desde o início do trabalho.

É fundamental considerar que os adolescentes atendidos tinham inúmeras necessidades. Essas demandas exigiram uma complexidade de agenciamentos e parcerias. Neste sentido, em muitos momentos foram acionados o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), a comunidade terapêutica Espaço Vida, a polícia, o Ministério Público e o Conselho Tutelar. Interamo-nos também de todos os projetos e entidades com os quais os jovens atendidos estavam envolvidos.

 

Reuniões

Realizaram-se reuniões semanais com o objetivo de avaliar o desenvolvimento do trabalho no sentido de refletir/pensar estratégias de abordagem, de inclusão e permanência dos adolescentes e suas famílias, bem como criar/pensar e discutir meios de abertura ao diálogo. Delas participavam todos os parceiros do projeto: diretoras das escolas dos territórios pesquisados, assistente social, representantes religiosas do bairro, mães, e, excepcionalmente, técnicos de outras áreas que se fizeram necessários. As reuniões serviam, igualmente, para fazer os encaminhamentos para a rede de serviços. Também ocorriam discussões sobre os entraves próprios da rede de recursos e serviços da cidade e quais caminhos a serem tomados.

Estabeleceu-se uma presença sem julgamento, mas também com crítica, e privilegio ao diálogo franco, formulando estratégias conjuntas que pudessem agenciar outros atores sociais.  Este foi o grande trunfo desse trabalho, pois foi o que permitiu estabelecer experiências de afeto e confiança, fundamentais na adesão desses adolescentes às atividades do projeto.

Vera Paiva (2002) observa que as ações que promovem também a cidadania estimulam as pessoas a serem agentes de sua vida integral e a refletirem e modificarem seus modos de vidas.

Várias estratégias foram utilizadas na busca de aproximação dos adolescentes e suas famílias como: visitas domiciliares com convites para encontros informais (café da manha, lanches, assistir a filmes); busca por um espaço para os adolescentes interessados em atividades esportivas e recreativas; conversas sobre assuntos pertinentes a cidadania, no momento em que os adolescentes estavam reunidos para as atividades esportivas, que ocorriam duas vezes por semana, com a participação de cerca de vinte adolescentes.

 

O Acompanhamento Terapêutico (AT) Envolvendo Trabalhos de Rua e Visitas Domiciliares

Estando atrelado a uma posição de não confinamento, de busca de alternativas para pessoas cuja existência se encontra, pelo mais diferentes motivos, marcada por alguma forma de clausura, optou-se pelo acompanhamento terapêutico envolvendo trabalhos de rua e visitas domiciliares, como estratégia de trabalho, pois pareceu a tática de abordagem menos invasiva levando-se em conta o grau de desconfiança da maioria desses indivíduos, adolescentes do Projeto Conquistando a Cidadania, muitos deles respondendo a processos judiciais.

Nesta situação, o AT deve fornecer um lugar transitório de aprendizagem, servindo como suporte para descobertas de novos campos de relação, facilitando o trânsito do acompanhado para além dos campos permitidos. Para isso, é fundamental considerar a pertença entre ele e o mundo do qual se isolou ou foi isolado.

Considerando que, para os usuários de álcool e outras drogas dos territórios de nosso trabalho, as possibilidades de circulação e apropriação de ofertas que o mundo social propõe são restritas, tomamos como proposta de intervenção este trabalho de Acompanhamento Terapêutico, com o objetivo de aumentar as possibilidades de inscrição em outras dimensões existenciais.

O cuidado inicial a ser tomado pelo acompanhante terapêutico é recuperar e reinventar as dimensões das ações que sustentam a automatização do circuito; resgatar os momentos de precipitação das ocorrências que deram forma a cada signo; cartografar os percursos, direções, sentidos e usos, recuperando, enfim, a multiplicidade de sentidos contida em cada imagem, a fim de revelar sua presença ao mundo humano.

É importante ressaltar que o termo intervenção vai se construindo e se explicitando ao longo da dissertação. Nesse sentido, utilizamos a cartografia como método de investigação por possibilitar o mapeamento de algumas situações cotidianas, ao mesmo tempo em que estas acontecem, desdobrando-se e multiplicando-se a partir de sua presença e pertença no dia a dia no território, nos diversos encontros entre o cartógrafo e seus parceiros, os adolescentes e a comunidade em que vivem.

Os acompanhamentos terapêuticos levam e são levados por modos de subjetivação errantes, acompanhando-os nas suas angústias, dificuldades e paralisações, mas, também, nas suas produções, viagens, potências e devires.

Nossos atores, moradores de favelas, acabam perdendo a condição de circulação nas diversas formas expressivas que compõe a cidade, ou melhor, circulam nos guetos e a cidade só lhes aparece à noite, onde sorrateiros, andam por entre os caminhos do roubo e da droga.

O AT, como recurso, facilitou uma possível inserção tanto nossa, nos territórios, quanto deles na cidade, em lugares nos quais não nos sentíamos com permissão para circular, acima de qualquer suspeita, como shoppings, restaurantes, lojas de brinquedos, lojas de R$1,99, o próprio centro da cidade e suas periferias.

 

Dispositivo Grupo/Grupo como Dispositivo

De acordo com Benevides (1994, p. 151) “a noção de dispositivo aponta para algo que faz funcionar, que aciona um processo de decomposição, que produz novos acontecimentos, que acentua a polivocidade dos componentes de subjetivação.” Sendo o grupo um espaço organizador de atividades, de vivências, de manifestações das diferenças, de avaliação de resultados, tanto individuais quanto coletivos, foi tomado em nosso trabalho como espaço produtor de cartografias dos modos de viver contemporâneo, pois, mais do que organização dos indivíduos, o grupo é uma configuração existencial, que intensifica o deslocamento dos indivíduos de seu mundo privado. É o desmanchar de mundos e a constituição de outros visando à manifestação de afetos contemporâneos. Na visão da cartógrafa, nos grupos os assuntos vão sendo introduzidos e o momento é de externar opiniões.

Foram realizados três grupos com horários fixos, com a participação semanal de uma média de dez adolescentes, durante oito meses, no período compreendido entre abril a novembro de 2003. Outros grupos compostos por familiares, lideranças comunitárias, profissionais da rede, ou mesmo com adolescentes aconteciam esporadicamente, em ocasiões especiais, tais como férias escolares, feriados prolongados. Nestas ocasiões organizávamos lanches matinais, sessões de cinema e discussão a respeito dos filmes exibidos.  O assunto álcool/drogas, embora não fosse imposto, aflorava das mais diferentes maneiras: às vezes, a discussão do tema vinha da morte de alguém da comunidade por drogas, por noticiários policiais, na rádio e na TV, abasteciam diariamente os adolescentes com informações sobre o assunto.

O café da manhã, os lanches e o almoço foram também utilizados como estratégia para tornar a intervenção filme x grupo uma atividade socializadora e integradora. O filme funcionava como disparador para as discussões sobre o cotidiano: o bairro, os amigos, a visão de mundo, a visão de homem, a visão das drogas, as relações amorosas. Esse embate de corpos facilita o aparecimento de fissuras nos planos identitários instituídos, tornando a intervenção mais eficaz.

A tomada do grupo como dispositivo nos leva a pensá-lo como uma máquina de produção, como espaço privilegiado para o engendramento de criação de novos espaços-tempos, de produção e novas formas de vida. Novamente, recorremos a Benevides, quando diz que o “grupo assim produzido, como dispositivo analítico, poderá servir às descristalizações de lugares e papéis que o sujeito-indivíduo constrói e reconstrói em suas histórias”. (BENEVIDES, 1994, p. 152).

Em nossa convivência com grupos, temos observado que o ‘ouvir o outro’ irradia uma forma singular de partilhar outros modos de existencialização, outros contextos de produção de subjetividade, outras linguagens para outros afetos, outros modos de experimentar. Impõe, além disso, um deslocamento de espaço de vivência das angústias, fundamentalmente experimentadas como individuais. Poder penetrar no campo dos fluxos, acompanhar seus agenciamentos, sempre coletivos, permite-nos intervir nesta ordem coletiva múltipla e não nos ‘sujeitos’, seus fantasmas e histórias privadas. Isto vai criando o contato com os outros-de-si, pré-individualidades ainda não formadas que abrem canais de contato com o coletivo que somos.

 

Observações do Viajante Cartógrafo e seu Diário de Bordo

As rotas principais e as bifurcações desse mapa aberto que constitui o método cartográfico são registradas no Diário de Bordo da pesquisadora, um rico documento dos movimentos apreendidos na tessitura da rede. Muitas das anotações dão cor a este trabalho, e são a viva expressão de afetos compartilhados e das intensidades consideradas. O Diário contém informações da construção da visão do território, a apreensão de sua história e a urdidura da sua presença no local. No diário, a pesquisadora grafou as diferentes linguagens encontradas.

 

Considerações Finais

Nossas cartografias mostraram o alijamento social, a precarização da vida, do trabalho e das condições de viver no sentido pleno da cidadania. A partir dos depoimentos e falas dos adolescentes, quando fomos conquistando a confiança e respeito deles, deparamo-nos com questões muito sérias: a desesperança dos jovens que vivem nas favelas, a sensação de que sua contribuição não é necessária para a sociedade; o destemor a que a realidade obriga e, em contraponto, a admiração que sentem por aqueles que, com ostentação e crueldade, matam, transgridem e afrontam a sociedade.

O encantamento de alguns com o mercado de drogas e o fascínio pela violência não são um problema externo ao conjunto de relações sociais e econômicas que aqui se processam, fazem parte delas. É nesse ambiente que se amplia e se torna relevante a participação dos jovens em conflito com a lei e, alguns, sob medida sócio-educativa. Esse mercado é, para eles, uma possibilidade imediata de consumo, poder, sobrevivência, e a expressão de sua rebeldia e de sua indecisa, confusa e frágil identidade social. Além disso, essa atividade necessita da participação desses jovens para se reproduzir ao contrário do mercado de trabalho formal que os expulsa. Nesse mercado, esses adolescentes são acolhidos, têm oportunidades de protagonismo, num cenário que os torna ainda mais vulneráveis. Esses meninos, na engrenagem dos mais escusos interesses, estão pagando, muitas vezes, com a vida, a doce ilusão de um prazer realizado: o de ter sido, por alguns instantes, cidadão que reza no templo do consumo ou um anti-herói.

Através de nosso percurso, pudemos cartografar como os adolescentes que compõem nosso grupo de trabalho tecem modos de existência sobre si mesmos e como estes se configuram nas relações grupais, encontros e desencontros dos seus pares, seus afetos e desafetos, do confronto entre as forças e linhas que cartografam os movimentos que enfraquecem ou potencializam a expressão da vida. A questão da violência nesta realidade cria uma visão do local como território de risco, engendrando modos de habitar constrangidos no imediato da sobrevivência uma vez que os crimes de homicídio são freqüentes e as seqüelas das agressões físicas são graves. Geralmente, isso ocorre no enfrentamento das gangues, sendo a maioria delas formada por adolescentes envolvidos com o uso e tráfico de drogas, quando não em confrontos com a polícia.

Para as pessoas que vivem ali, ainda existe uma preocupação com os rumos do mundo. As falas, a expressão através dos desenhos, demonstram que elas acreditam nas promessas da modernidade de um mundo mais justo, igualitário e fraterno. Elas têm a esperança de um mundo melhor para todos. E embora reconheçam que esta promessa lhes é devida, acreditam que ainda está por vir.

Sem sombra de dúvida pudemos apontar alguns efeitos de nosso trabalho nos territórios: houve uma adesão espontânea ao projeto, uma diminuição da evasão escolar e dos projetos sociais da rede, uma diminuição da violência e do tempo em que estas crianças ficavam expostas aos riscos da rua, a medida em que as famílias se sentiram respeitadas e cuidadas, isto se refletiu no cuidado com os filhos, e ainda a diminuição do consumo de drogas entre eles. Durante o andamento do trabalho não tivemos nenhuma morte entre os garotos, apesar de 10 deles terem sofrido ameaças anteriormente.

Consideramos que o trabalho desenvolvido por esta cartógrafa naquele território se deu por que lidou com vidas severinas, e, ao fazer isso ouviu e percebeu estas vidas e muitas outras vidas a ele relacionado. Ao longo do tempo, este trabalho produziu tanto na cartógrafa como nas pessoas nele envolvidas, o prazer de olhar para si e ao redor e ver não só coisas feias, mas coisas possíveis de serem transformadas, ou mesmo vivenciadas. Isto só foi possível pela disponibilidade e pelo envolvimento da cartógrafa, isto é, pela posição ética e profissional de desenvolver um trabalho sério. Projetos maravilhosamente descritos não acontecem na prática se o território não for considerado em todas as suas nuances, se os profissionais envolvidos não estiverem preparados para alterar rotas quando for necessário e se estes não estiverem envolvidos com o compromisso de olhar para estas vidas e vê-las narradas.

Este trabalho não pretende propor nenhuma forma de intervenção, mesmo que ele seja um relato de uma prática de intervenção. Como nós dissemos na metodologia, a matéria do cartógrafo é movida pelo desejo de viver entre os homens, de uma disposição à atualização do novo e de estar atento às linguagens que encontra para a composição de outras cartografias existenciais.

A crença num mundo possível para o homem que em muitos momentos poderia ser a energia propulsora de transformação social, em nossos territórios ela é cooptada pelas forças de Cura e Salvação, e aqui não só teológicas mas também laicas. Para refletirmos sobre estes adolescentes, o lugar onde vivem, os segredos compartilhados e as drogas em suas vidas é importante considerar os modos de ser do homem na contemporaneidade.

Compor um trabalho de intervenção com um trabalho de pesquisa científica é dar a ele um caráter de continuidade e de possibilidade de contribuição para a política de saúde pública, no que se refere aos transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas no município de Londrina, a partir da comunidade que foi o nosso espaço de intervenção.

 

Referências Bibliográficas

BENEVIDES, R. [Texto das orelhas]. In: FONSECA, T.M.G; KIRST, P.G. (Org.). Cartografias e devires: a construcao do presente. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.        [ Links ]

BENEVIDES, R. Dispositivos em ação: o grupo. Cadernos de Subjetividade. PUC, São Paulo, v. 1, n.1, p. 97-106, jun. 1996.

______. Grupo e produção. In: SAÚDE e loucura 4.  São Paulo: Hucitec, 1994. p. 144-154.

PAIVA, V. Sem mágica solução: a prevenção do HIV e a aids como um processo de “emancipação psicossocial”. In: PARKER, R.; TERO JR, V. (Org.). Anais do seminário: Prevenção a aids: limites e possibilidades na 3ª década. Rio de Janeiro: ABIA, 2002.

SALOTTI, M.R.R.; FRANÇA, S.A.M. Acompanhamento terapêutico: prática dinâmica de ocupação do espaço urbano. Vertentes, UNESP/Assis, v. 3, p. 111-118, 1997.

______. Ouvir e contar Histórias. Vertentes, UNESP/Assis, v. 5, p. 105-113, 1999.

 

 

1 Membro do Grupo de Pesquisa de Psicologia e Instituições – Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências e Letras – Assis – São Paulo - Brasil.) Endereço: Av. Bandeirantes, nº 500 – sala 503 – Vila Ipiranga – CEP: 86010-020 Londrina – Paraná E-mail: namarapsico@sercomtel.com.br
Trabalho apresentado na VII Jornada de Psicologia do Hospital Universitário/UEL – I Congresso Brasileiro  de Psicologia Aplicada à Saúde– setembro 2008 – Londrina, Paraná
2 “Estratégias: decisões sobre formas de intervenção.” “Táticas: seleção de recursos.” (SALOTTI; FRANCA, 1999, p. 107).

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