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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.11 n.2 Rio de Janeiro dez. 2008

 

 

Relações entre o pensar e o fazer clínico: atuação ou prova terapeutica

 

Interfaces of the Psychology applied to health: performance of Psychology on Family´s Health strategy at Londrina

 

Ana Lílian M. Parrelli1

Hospital Universitário do Norte do Paraná
Universidade Estadual de Londrina

 

 


RESUMO

O presente artigo trata da experiência da autora na busca de formas de atendimento ao paciente hospitalizado, que pudessem abarcar a especificidade do contexto hospitalar sem ferir os rigores do método psicanalítico.


ABSTRACT

The present study the author’s experience in the search of hospitalized patient attendance forms, which could contain the hospital context specific topics without injuring the severities of the psychoanalysis method.


 

 

A experiência de vida nos mostra que nada do que vivemos é como
gostaríamos que fosse o que cria uma permanente fonte de insatisfação
até que possamos compreender que a frustração é conseqüente à própria
apreensão da realidade, no sentido amplo do termo: realidade interna e externa.

W. R. Bion

 

Ao iniciar meu trabalho no hospital geral, entrei pela porta da UTI. Psicóloga recém formada trazia comigo pouca ou quase nenhuma experiência clínica, apenas algumas horas de supervisão, estudos em grupo e claro, minha psicoterapia. Todo meu início clínico era pautado no não agir, ouvir muito, e pouca interferência. Trazia comigo o conceito de Acting Out2oferecido por Roudinesco:

A maneira como o sujeito passa inconscientemente ao ato, fora ou dentro do tratamento psicanalítico, ao mesmo tempo para evitar a verbalização da lembrança recalcada e para se furtar à transferência. (ROUDINESCO 1998:5)

Lembro-me como se fosse hoje de meu primeiro caso: tratava-se de um senhor de 63 anos, internado já há algum tempo na unidade. A equipe solicitou-me atendimento por ele ser asmático e, segundo a compreensão deles, com um alto nível de ansiedade que atrapalhava o desmame do respirador.

Encontrei nessa primeira tarefa algumas dificuldades (técnicas): não podia ouvir o paciente, pois este estava impedido de falar (respirando com ajuda de aparelho) e também não podia ficar na sua frente apenas observando-o. Tinha que estabelecer algum nível de comunicação/relação, que não era nada parecido com o que encontrava na minha confortável cadeira no consultório.

Devo confessar que meu encontro com ele não foi nada silencioso, muito pelo contrário, foi extremamente ruidoso... Um ruído diferente, que se originava dentro de mim. Fui tomada por um desespero, por uma aflição... Uma falta de ar... Uma enorme ansiedade. Saí atordoada e, por sorte, era dia de supervisão.  Apresentei o caso, ou melhor, o caso “jorrou” de mim...

O supervisor (homem sábio e experiente), disse-me em outras palavras: “Você está louca? O que pensa poder fazer?”. Levei um susto maior do que com o paciente. Era meu primeiro caso e não podia nada... Retomarei esse ponto mais a frente.

Após essa primeira experiência outras se seguiram de natureza não muito diferente e me via atravessada por vivências muito reais e difíceis. Estava em contato com pacientes extremamente dependentes do ponto de vista físico e psíquico que, em sua maioria, iniciavam-se através de demandas concretas: pegar um copo de água, ajudar a arrumar o travesseiro, auxiliar no horário da refeição. Essas práticas me causavam estranheza, sentia-me fora do meu lugar de psicóloga, por manter-me ativa (fazendo coisas).

Percebia mobilizações dentro de mim que ganhavam sentidos diferentes: de um lado atender às necessidades do paciente (exigência externa) e de outro aos meus desejos de afirmação profissional (exigência interna). Durante algum tempo minha mente parecia dissociar entre o estar com o paciente ou atendê-lo dentro de um molde mais analítico, dando um tom psicológico ao encontro. E assim fui caminhando.

Enquanto não sabia direito como juntar essas duas partes, resolvi a questão da seguinte forma: quando estava com o paciente, tentava me manter inteira com ele. Uma vez sozinha com meus pensamentos, defendia-me da impotência lendo muito.

Assim fui encontrando pessoas e histórias, que traziam novas experiências: um senhor com câncer de próstata em estágio final, que me ensinou muito sobre espiritismo; um paciente com câncer de pulmão, internado na UTI, que relatou um sonho no qual era enterrado vivo; uma mãe que perdeu o filho (12 anos, câncer cerebral) e, após missa de sétimo dia, me procura para acompanhá-la até a UTI a fim de certificar-se que seu filho não estava mais lá; uma paciente que teve uma perna arrancada num atropelamento e que me solicitou para acompanhá-la ao centro cirúrgico para realização de um procedimento muito doloroso (durante o qual, segurava minha mão); uma jovem paciente (internada há quatro meses, depois de ter seu útero e ovários retirados por erro diagnóstico) com quem fui comprar um brinco no bazar na frente do hospital; uma festa de aniversário no jardim do hospital, para uma paciente da pediatria com leucemia (a primeira de sua vida, mais tarde vim a saber), com direito a bolo, cachorro quente e brigadeiros fornecidos pela nutricionista.

Alguns anos se passaram, quando assisti a uma palestra da psicanalista Luciana Gentilezza, na qual associava a vivência de um paciente internado às idéias de Ferrari (1995), contidas em seu livro “Eclipse do Corpo”, através do qual formula a hipótese de objeto originário concreto (OOC) em que o primeiro objeto da mente é o corpo.

Segundo esta conferencista, durante a hospitalização (assim como na gravidez e na adolescência) o que está em evidência é o corpo, é a este que estão ligadas todas as energias do sujeito, não havendo possibilidade de investimento no mundo mental a não ser para tentar lidar com o fato concreto: alterações no corpo. Ainda citou Winnicott e seu conceito sobre a realidade, havendo situações em que se deve atender à necessidade e não ao desejo.

Tive um insight que fez com que meu pensamento, antes dissociado, se integrasse. Compreendi que durante uma modificação no corpo real, a mente precisa absorver esse impacto e, para tanto, é necessário criar um espaço mental para resolver a nova experiência física e real. Estas colocações abriram em mim possibilidades de pensar a minha ação.

“(...) a função mental começa com o primeiro registro de uma percepção sensorial, dando às operações de perceber a sensação e de registrá-la uma diversidade de significação.

Existe um sujeito, isto é, o aparelho que registra, e um objeto registrado (O.O.C), entendendo com isto quer o corpo, no sentido físico, quer um conjunto de sensações esparsas que provêm deste corpo.

Sob o impulso das percepções sensoriais violentas e marasmáticas (...) e na presença da mente materna, em sua importantíssima função de “rêverie”, o aparelho mental inicia a sua função que é, ao mesmo tempo, de registro e de contenção. O registro ocorre, presumivelmente, pela exigência de distanciar a percepção sensorial, que de outra maneira seria completamente invasiva e, simultaneamente, para dar-lhe significação. Tem início assim o eclipse do O.O.C. e, concomitantemente, começa a ganhar espaço à área mental, ou, na imagem do modelo, a sombra mental começa a se projetar sobre o O.O.C. A imagem na sombra se refere não somente ao atenuar-se da luz, mas também ao sentido de um benéfico esfriamento. Com efeito, é apenas numa situação de luz menos ofuscante, e num clima menos intenso, que é possível individuar perfis mais fino e complexos, jogos de claro-escuro, sensações mais sutis e articuladas.

“Toda a atividade mental é vista, assim, como uma resposta com funções de contenção em relação a sensações e emoções que, por sua natureza, são unicamente vivíveis”. (FERRARI, 1995: 35-36)

A partir de então percebi que o que ocorre comigo não é acting out, pois não estou revivendo, na relação com os pacientes, algo recalcado do meu inconsciente, e sim, a maneira encontrada por mim de iniciar uma relação com o paciente nessa inédita condição de vida para mim e para ele.

Entre um copo de água e uma “arrumadinha no travesseiro” o encontro sempre era coroado de intimidade e confiança. Não era fácil conter o desejo de dizer algo, mas substituí esse impulso pela minha presença e atenção às necessidades dos pacientes. Bion ao desenvolver sua teoria do pensar nos diz sobre a construção do pensamento:

O que determinará o primeiro pensamento (...) é a ausência do seio. Frente a essa emergência decisiva, o bebê tem duas alternativas: tolerar ou evitar a frustração (ausência). Se o bebê evita a frustração, transforma o seio ausente em um seio mau presente e o expulsa como um elemento beta. No entanto, quando é capaz de enfrentar a ação e tolera a frustração, reconhecendo o seio como ausente, constrói seu primeiro pensamento. (ETCHEGOYEN, 2004:403).

Assim, consegui conter a frustração de não poder utilizar os mesmos recursos técnicos da minha experiência clínica e, ao mesmo tempo, encontrava uma forma de atender ao paciente respeitando o novo enquadre: hospital geral.

Se a capacidade de tolerar a frustração é suficiente, o “não-seio” no interior torna-se um pensamento e desenvolve-se um aparelho para “pensá-los”. Isto dá início ao estado, descrito por Freud em seu artigo “Os dois princípios do funcionamento mental”, no qual a predominância do princípio da realidade é sincrônica ao desenvolvimento de uma capacidade para pensar e assim transpor o fosso de frustração entre o momento que uma necessidade é sentida e o momento em que a ação apropriada para satisfazer a necessidade culmina em sua satisfação. (BION apud BARROS 1961:186).

Assim, fiel à regra da abstinência, encontrei respaldo nos escritos de Freud: “(...) o médico deve controlar-se e guiar-se pelas capacidades do paciente em vez de seus próprios desejos” (FREUD, 1980[1912]:128).

Foi possível, dessa forma, iniciar uma comunicação entre o meu desejo e a necessidade do paciente, dando sentido às minhas intervenções, através do vínculo. Segundo Bion,

(...) em sua origem, a comunicação se faz através de identificação projetiva realista. (...) a função dos elementos de comunicação – palavras e signos – é transmitir, seja através de substantivos isolados ou de agrupamentos verbais, que certos fenômenos se conjugam constantemente nos moldes de uma relação recíproca (BION apud BARROS, 1961:192).

Hoje, após alguns anos de trabalho clínico-hospitalar dentro do referencial psicanalítico, percebo que a ação deve estar diretamente ligada com a reflexão e não a uma regra geral.

“(...) a reflexão não se reduz à simples imanência do subjetivismo idealista: ela só começa se nos lança imediatamente entre as coisas e os homens, no mundo. A única teoria do conhecimento que, atualmente, pode ser válida é a que se fundamenta nesta verdade da microfísica: o experimentador faz parte do sistema experimental”. (SARTRE,2002:37).

No hospital existem muitos profissionais de diferentes áreas, ligados a um único objetivo: cuidar do paciente o que nos faz concluir que o trabalho não é isolado, pois muitas vezes chegamos até a ele pelo pedido da equipe, que funciona como intermediária do encontro. Retomarei o caso inicial:

A equipe solicitou que eu o atendesse, apontando para um aspecto psicológico que impedia a boa evolução do seu tratamento (crise asmática-ansiedade).

Poderia ter duas saídas para não entrar em contato com a impotência que a situação me despertou: a primeira seria transpor a forma de atendimento clínico tradicional à nova situação e alegar que o estado físico do paciente não permitiria meu atendimento, já que preciso da fala para trabalhar; a segunda, entrar em contato com o paciente e sentir-me compelida a ter que “fazer” algo para resolver a situação, não atender às suas necessidades, mas à minha angústia e à da equipe, e acreditar que pudesse salvá-lo do respirador.

Qualquer uma dessas saídas seria acting out.

Optei por fazer contato com o paciente e me deixar levar pela emoção do encontro, não atuei, mas sai determinada a fazer algo. Na supervisão, compreendi que pensava de forma onipotente, o que me impediria de ir ao encontro das necessidades dele.

“Assim como há uma correlação estrita da teoria psicanalítica com a técnica e com a investigação, também se dá na psicanálise, de maneira singular, a relação entre a técnica e a ética. Pode-se até dizer que a ética é uma parte da técnica ou, de outra forma, que o que dá coerência e sentido às normas técnicas da psicanálise é sua raiz ética. A ética integra-se na teoria científica da psicanálise não como uma simples aspiração moral, e sim como uma necessidade de sua práxis”)”.(ETCHEGOYEN, 2004:23)

Na realidade o paciente estava morrendo, momento difícil para ele, para equipe e para mim. Minha lição foi saber a quem não ouvir: a minha onipotência, já que não é meu lugar fazer algo, mas ir ao encontro .

Essa compreensão me possibilitou permanecer junto ao paciente tentando aliviar seu desconforto (molhando sua boca,arrumando seu travesseiro, cobrindo-o quando com frio) . Com o treino de observação logo fui capaz de comunicar-me com ele e ajudá-lo a comunicar-se com sua família.

 

Relação entre o pensar e o fazer clínico: atuação prova terapêutica.

Faz-se necessário, para concluir meu pensamento relacionar o pensar e o fazer clínico com a prova terapêutica e diferenciá-la do acting out

Empresto o termo prova terapêutica da Medicina, o termo prova terapêutica é utilizado quando a confirmação do diagnóstico é feita através do efeito do tratamento. Como ter um diagnóstico psíquico nos moldes a que estamos habituados a fazer, dentro de uma situação adversa como do adoecimento físico ?

A realidade hospitalar é muito diferente da realidade do consultório psicológico. Citarei algumas: em primeiro lugar não é o paciente, na sua grande maioria que me procura, o que em si não significa muito, mas determina que a demanda psíquica seja criada pela minha presença; em segundo lugar, o tempo de permanência do paciente no hospital é determinado por seu tratamento e nem sempre sou avisada quando recebe alta (em função da própria dinâmica da instituição); em terceiro lugar e talvez o mais significativo deles, o paciente encontra-se ou em risco de morte ou em uma situação de vida que o faz entrar em contato com o que, de forma geral tentamos não nos lembrar: somos mortais e com situações de perdas reais (pedaços ou funções corporais).

Frente a todas estas particularidades, ao deparar-me com a realidade hospitalar, e com a baixa eficiência dos recursos técnicos da clínica tradicional, precisei criar novas formas para ir ao encontro do sofrimento psíquico do paciente.

Chamo prova terapêutica a essas formas de aproximação,pela ação, que atendem a uma demanda da necessidade do paciente e que me aproximam do seu sofrimento psíquico.

Arrumar o travesseiro ou comprar brinco no bazar em frente ao hospital foram situações que proporcionaram um ambiente de intimidade e permitiram acesso ao sofrimento do paciente respeitando sua dinâmica mental .

Diferente do acting out, a prova terapêutica pressupõe uma hipótese diagnóstica baseada no aqui-e-agora, não é uma reação onipotente, que tem por objetivo curar a dor do paciente, mas cuidar de sua dor, conhecê-la. Também não é uma descarga de angustia para que me sinta “fazendo” algo pelo paciente, por que a natureza do meu “fazer” não é concreto, mas parte do concreto.

PICHON-RIVIÈRE aborda o homem concebendo-o em uma só dimensão, a humana;mas ao mesmo tempo concebe a pessoa como uma totalidade integrada por três dimensões: a mente, o corpo e o mundo exterior, que integra dialeticamente (PICHON-RIVIÈRE , 1988: 12)

Considerando a realidade em que estou inserida (hospital), a realidade (física e mental) em que o paciente se encontra, e as teorias que auxiliam na compreensão psicodinâmica que envolve esse momento de vida do paciente, pude compreender minhas ações.

Gostaria de terminar citando Rubens Volich

O cuidar pressupõe, colocar-se ao lado do sujeito, inclinar-se diante de sua dor (...) O desconhecido e a doença revelam, ao mesmo tempo que alimenta, a fragilidade do sujeito (...) aquele que cuida é colocado diante da dificuldade de ter de lidar com processos primitivos e desorganizados de funcionamento. (...) O cuidar convoca portanto o terapeuta àquela experiência primordial de nossa história em que a superação do desamparo, da fragilidade e da desorganização depende primordialmente da presença de um outro humano. (VOLICH,  2004:82-83)

Relembrando meu início, continuo com meus estudos, minha supervisão e acima de tudo com minha psicoterapia.

 

Referências bibliográficas

BION, R. W. (1961). Uma Teoria do Pensar. In: Melanie Klein Hoje: teóricos. Rio de Janeiro: Imago.

FERRARI, A. B. (1995). O eclipse do corpo. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. (1980 [1912]). In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. v. 12.

PICHON-RIVIÈRE (1988). Teoria do Vínculo. São Paulo: Martins Fontes.

ROUDNESCO E. & PLON M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Zahar.

SARTRE, J. P. (2002) Crítica da Razão Dialética: precedido por Questões de método. Rio de Janeiro: DP&A

VOLICH, R. M. (2004) O cuidar e o sonhar. Por uma visão da ação terapêutica e do ato educativo. In: PESSINI L. E BERTACHINI L. Humanização e Cuidados Paliativos. São Paulo: Loyola.

 

 

1 Hospital Universitário do Norte do Paraná/Universidade Estadual de Londrina; analilianparelli@yahoo.com.br
Trabalho apresentado na VI Jornada de Psicología Aplicada à Saúde – I Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde– setembro 2008 – Londrina, Paraná.
2 No Brasil também se usa “atuação".

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