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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.12 n.1 Rio de Janeiro jun. 2009

 

 

A compreensão do mundo vivido da criança sertaneja com câncer: contribuições do livro “Dudu vai ao hospital”

 

 

Lana Veras*; Virgínia Moreira**

Universidade de Fortaleza, Ceará, Brasil

 

 


RESUMO

Neste artigo, apresentamos o livro infantil “Dudu vai ao Hospital: compartilhando vivências de crianças com câncer” como contribuição na compreensão do mundo vivido da criança nordestina com câncer, visando facilitar contatos com a pessoa e sua saúde, desde os momentos de prevenção aos de tratamento, reabilitação ou morte. Considerou-se seu uso não só na intervenção terciária, em hospitais, mas também em contextos como escola, família e comunidade. Foram abordados temas como: paradigmas em saúde, tentativa da psicologia de construir espaço e identidade profissional, contato com a realidade mundana potencializando criação de alternativas e construção de um instrumento que tenta se aproximar da nossa realidade cultural. Contexto permeado por ser: brasileiro, nordestino, imerso em desigualdade social e carência. As temáticas emergentes no texto foram: necessidade de compreender a vida da pessoa antes do diagnóstico, choques culturais, questões sociais, diagnóstico, institucionalização, tratamento, sofrimento, perdas e possibilidades. Realizou-se uma articulação do conteúdo do livro com as reflexões e produções teóricas de alguns dos principais autores relacionados com a temática.

Palavras-chave: Psicologia Hospitalar, Psico-oncologia, Nordeste.


ABSTRACT

This article is an attempt to present the children’s book “Dudu goes to the Hospital: sharing experiences of kids with cancer” as a contribution on the comprehension of the lived world of the northeast child with cancer, thus, aiming to ease the relationship between kids and their health, from the prevention throughout the treatment, rehabilitation or death. The article did not only consider the use of the book in a tertiary intervention, in hospitals, but also in schools, families and communities. Topics as: health paradigms, psychology's goalof building its own space and professional identity, and the contact with the mundane reality were discussed improving the creation of alternatives and construction of an instrument that tries to approach our cultural reality closely. The context referred to: being Brazilian, from the northeast and living in an area ofsevere social inequality. The emergent issues were: the need to understand the person's life before the diagnose, cultural shocks, social issues, diagnose, institucionalization, treatment, suffering, losses and possibilities. For that reason, the content of the book was articulated with the reflections and theories from some of the main authors in this area.

Keywords: Hospital Psychology, Psyco-oncology, Northeast.


 

 

Introdução

A ampliação do conceito de saúde que vivenciamos no final do século XX e as nossas tentativas contemporâneas de transformar o conceitual em práxis têm aproximado várias áreas de estudo que convergem sua atenção para a promoção de saúde e o bem estar das populações. O advento do paradigma biopsicosocial, em superação ao biomédico, nos fala sobre a impossibilidade da fragmentação do ser humano e de suas múltiplas dimensões em relacionamento fluido e contínuo. Essa visão de homem sugere a necessidade de o perceber e o assistir como ser inteiro em suas diversas demandas, limites e possibilidades. A Psicologia emerge nesse contexto, buscando não mais trabalhar com o psicológico do homem, mas sim com um homem que tem - também - um psicológico.

A psicologia interage com a saúde em todos os seus momentos, desde intervenções sociais, educacionais, preventivas e diagnósticas aos processos de adoecimento, tratamento, reabilitação ou cuidados paliativos e luto. A inserção do profissional psicólogo neste campo tem se dado intensamente e não sem dificuldades. Ainda há a tentativa de construir espaço e identidade profissional e definir papéis e atuações, os modelos eminentemente clínicos e com foco no indivíduo mostram não serem suficientes e a psicologia se vê em um processo de recriação de alternativas, tanto em respeito a compreensões teóricas como também em relação a intervenções no campo.

A experiência pessoal na área de psicologia da saúde nos colocou em busca de instrumentos que facilitassem as intervenções neste campo, porém a realidade mundana nos fez perceber a inexistência de caminhos demarcados e seguros e mostrou a possibilidade da criação de alternativas. Assim, muitos profissionais psicólogos que se interessam pela área têm experimentado novas compreensões e atuações e compartilhado suas experiências.

Com esse artigo gostaríamos de discutir a possibilidade de usar o livro: “CARVALHO,Lana Veras. Dudu Vai ao Hospital &– compartilhando vivências de crianças com câncer. Teresina-PI: Halley, 2006” como facilitador dos contatos com a pessoa e sua saúde, desde os momentos de prevenção aos de tratamento, reabilitação ou morte, dentro de um recorte sociocultural nordestino. Consideraremos seu uso não só na intervenção terciária, em hospitais, mas também em contextos como escola, família e comunidade.

 

O Livro Infantil, a pessoa e as possibilidades.

O nascimento da literatura infantil decorre, segundo Zilberman (2003) “... da ascensão da família burguesa, do novo status concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola”(p.33). As primeiras produções bibliográficas voltadas para o público infantil contavam com um caráter pedagógico normativo, visando repassar modelos, valores morais e condutas adaptativas aos ideais burgueses emergentes.

Já a produção contemporânea oferta possibilidades de criação e reflexão, abalando as estruturas ideológicas que buscam manter status quo. Seja com propósito literário ou com objetivos mais pragmáticos o livro infantil se torna um facilitador a mais na compreensão e expressão de vivências e sentimentos, proporcionando identificação, informação e discussões.

Durante o planejamento do livro: “Dudu Vai ao Hospital &– compartilhando vivências de crianças com câncer” cada assunto abordado foi inserido com objetivo de levantar questões específicas do processo de saúde e tratamento. Porém, a construção da leitura não é determinada somente pelo direcionamento do autor, mas em um diálogo entre o leitor e o livro. Assim os sentidos atribuídos aos conteúdos apresentados são particulares a cada pessoa e suas possibilidades em determinado momento de sua história. A obra fica, então, em contínuo se completar, se recriando a partir da interação dialógica como proposto em BUBER, 1979. A necessidade de contextualização nos é instigada em Freire (2006):

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura destas não possa prescindir de continuidade da leitura daquela.(...) A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto” (p.11).

 

Demandas e Emergências: contextualizando o instrumento.

Na tentativa de trabalhar o mais próximo possível do paradigma biopsicosocial não podemos perder de vista a premência em se aproximar do outro de uma maneira que privilegie sua singularidade. Observar as características da pessoa em suas diversas dimensões que incluem seu contexto socioeconômico, cultural, familiar e sua história de vida pode ajudar na busca do estabelecimento de uma compreensão empática, facilitando uma relação mais dialógica. Assim, percebemos que um “modelo” de atuação e a padronização de instrumentos de intervenção em psicologia devem ser vistos minimamente com ressalvas, dada a diversidade necessidades, pessoas e vivências.

Dentro da perspectiva referida acima a autora de “Dudu vai ao Hospital” entrou em contato com várias bibliografias infantis direcionadas a questões relativas ao processo de adoecimento e morte. Autores brasileiros e traduções estrangeiras têm trazido discussões e orientações muito pertinentes e que podem ser usados com êxito em intervenções com pessoas em situação de adoecimento e perda. Porém, algumas lacunas a inquietaram. Os livros em questão eram direcionados a pessoas que compartilhavam de uma realidade e de uma construção sócio-histórica diferenciada em relação à população assistida pela autora. A maioria do material obtido era produzida na região sul e sudeste do Brasil ou importada de países da Europa e América do Norte, não indo ao encontro das demandas dos pacientes imersos no Brasil Nordestino. Fez-se necessário a construção de um instrumento que tentasse se aproximar dessa realidade permeada por ser: brasileiro, nordestino, imerso em desigualdade social e carência. Percebermos, então, que o contexto não pode ser dissociado do vivido e lembramos de Guimarães Rosa(1986) quando ele insiste que: “o sertão está em toda parte ... o sertão está dentro da gente”.

Visando integrar a vida dos leitores e personagens realizou-se a escolha destes tentando regionalizar e facilitar identificações, foram criados a partir de animais, plantas e brinquedos característicos da região: Manú Tatu, Bode Zezinho, Dudu Mandacaru e Maria Baladeira. As ilustrações, realizadas pela artista plástica Meire Fernandes, foram feitas em aquarela e privilegiaram os personagens e seus contextos. Tentou-se abordar não somente questões referentes ao processo de adoecimento, mas também às questões sociais, assistência em saúde, ideologias, institucionalização, perdas, sofrimento e possibilidades.

A vocação histórica de assistência terciária que a psicologia construiu faz a maioria dos profissionais ligar o uso do livro: “Dudu vai ao Hospital” ao acompanhamento psicológico de pessoas hospitalizadas. No entanto, o trabalho com os temas de: saúde, adoecimento e perdas pode ser realizado de forma preventiva e educativa, em variados contextos como hospital, família, escola e comunidade.

 

Temáticas Emergentes em “Dudu vai ao Hospital”

O personagem Dudu Mandacaru representa a criança nordestina que vive no sertão, compartilhando com sua família e comunidade: limitações, faltas e desigualdades, mas também aspectos socioculturais que constituem seu viver como o brincar, a família extensa, a liberdade, os hábitos alimentares e sociais.

O tecnicismo, a visão atomista e fragmentada de homem, aliados às relações de poder nas instituições contribuem para que os profissionais que assistem a pessoa em processo de adoecimento a vejam através de apenas uma de suas facetas (paciente), em um recorte reducionista. Devemos perceber que o sujeito que ali se encontra não chega como a-histórico, não emerge do vazio, ele vem agregado de suas vivências, sua cultura, enfim, sua construção sócio-histórica. Desta forma, para a compreensão empática é imprescindível sabermos quem realmente é esse outro, o despojando das máscaras institucionais despersonalizantes. De onde ele vem? Como vivia antes do adoecimento? O que era importante?Como foi seu percurso até estar ali? Conhecendo um pouco mais do outro poderemos ter com ele a possibilidade de uma relação mais horizontal e humanizada, otimizando a assistência global em saúde. Convergindo com esses interesses o personagem Dudu foi apresentado ao leitor em seu contexto de origem, sua casa, escola e família. Inicialmente alguns pontos foram enfatizados como brincadeiras e escola:

“Dudu Mandacaru era o nome do menino, morava no povoado Sertão. Lá ele gostava muito de tomar banho no açude, jogar futebol com os irmãos e também ir para o seu colégio - que ficava um pouco afastado, mas Dudu nunca chegava atrasado. Isso acontecia porque na sua bicicleta ele ia. Bem..., na verdade, a bicicleta era mesmo do Seu Mundico (seu pai), mas como ele estava sempre trabalhando na roça de milho quem aproveitava a bicicleta era o Dudu.” (p.6).

Seguindo na contextualização da vida do menino o texto aborda o trabalho infantil, a agricultura familiar e as preferências alimentares:

“Além de fazer tudo isso, ele ainda ajudava seu pai e seus irmãos na colheita do milho. Aí era um tempo danado de bom!A mãe do Dudu cozinhava o milho de todo jeito: era cuscuz, pamonha, canjica, milho assado, milho cozido,angu...Huummm...” (p.7).

Nos momentos seguintes o leitor conhece a família de Dudu, caracterizada por grande número de membros, percebe as dificuldades encontradas na busca pelo acesso à saúde pública. A família encontra empecilhos ao diagnóstico precoce, deficiência na assistência básica e necessidade de buscar atendimento em outras localidades, vendendo seus poucos bens:

“Como no posto de saúde de seu povoado médico quase não passava, esperaram para ver se o menino melhorava. E nada. No posto de saúde da cidade vizinha receitaram uns remedinhos. Dudu tomou, o tempo passou e o menino não melhorou. Seu Mundico vendeu a bicicleta e Dona Mamãe foi à cidade grande com Dudu Mandacaru.” (p.9).

A ida de Dudu e sua mãeà“cidade grande” promove o encontro com uma diversidade de cultura, relações, poder... Emergência de medo, desamparo e ansiedade. Neste momento ele vivencia a experiência dos variados diagnósticos e encaminhamentos, que potencializam a sensação de insegurança e fragmentação evidenciada pelo ritmo “ping-pong” impresso ao texto:

“Lá chegando tudo continuou / e de especialista em especialista ele andou, / de lá pra cá,/ de cá pra lá. /Foi para o infectologista, / que o mandou para o neurologista,/ que mandou para o infectologista, /então foi para o malabarista, / depois para o estrategista,/ passando pelo vigarista,/ até que chegou ao hematologista (ou era o oncologista?)./ Nem sei mais!” (p.10).

O período do diagnóstico se caracteriza por fazer parte da crise que envolve o pré-diagnóstico até a definição do quadro (Lopes & Valle, 2001), nessa etapa há desestruturação e exigência de mobilizar recursos para lidar com a situação emergente. No livro, durante o momento do diagnóstico, chama atenção a subestimação em relação à criança e a conseqüente tentativa de a proteger, deixando-a a margem da situação. Tentativa essa sem êxito, pois a criança percebe o sentido de segredo e tem acesso a essas informações de outras maneiras. O que pode acarretar medo, fantasias e ruptura na relação de confiança com a família e equipe.

O respeito àcriança enquanto sujeito nos remete à importância de estarmos atentos às suas necessidades de informação e de expressão. Na narração, o personagem é apresentado ao leitor em seu comportamento e subjetividade nas situações de: diagnóstico, chegada na enfermaria e primeiros contatos com outras crianças. Dudu é descrito como: “calado e sério” p.11 “calado e triste” p.11 “calado e assustado” p.12, no entanto ao descrever Dudu sua mãe só se refere ao seu comportamento “calado e calado” p.13 demonstrando que a vivência e os sentimentos da criança não estavam sendo acessados. O estar “calado” simboliza o que Goffman (1961) percebe como “mortificação do eu”(p.24-29), processo que acontece quando somos submetidos à institucionalização. O psicólogo, dentro da equipe, pode facilitar a construção de um espaço onde essa criança possa ser ouvida e compreendida em suas demandas.

Alguns questionamentos de cunho social são lançados ao leitor no momento em que a personagem “Dona Mamãe” se recorda como o filho era diferente antes da internação e as perguntas que fazia:

“Dona Mamãe lembrou das perguntas do filho:

- Mãe, por que aqui tem seca?/ - Porque é assim mesmo, meu filho.

- Por que eu não tenho caderno para ir ao colégio? - Porque não temos dinheiro.

- Por que não temos dinheiro? - Vai brincar menino.

- Por que o filho do dono da venda tem bola de couro e eu não tenho?

- Num sei, meu filho! Deve ser coisa de Deus, se conforme!

Mas Dudu nunca se conformava...” (p.13).

Nota-se a presença das questões religiosas em conjunto com ideologias conformistas que

mantêm as relações de poder e dominação e são expressas do discurso da mãe. Segundo Sloan (2002) ideologia se define como “um sistema de práticas e representações que produzem, mantém e reproduzem relações sociais de dominação”(p.93).

O personagem Dudu somente consegue sair do seu papel de “calado” quando recebe a visita da equipe que se disponibiliza a ouvir e responder suas diversas dúvidas:

“-O que é leucemia? É água no sangue? / -O que é essa tal de quimioterapia?

- Por que tem que furar a gente toda hora?/-Por que eu? O que eu fiz de errado?

-Como vamos fazer se não temos dinheiro?

-Não vou mais poder comer cuscuz, canjica e pamonha?” (p.14).

Ao apresentar seus variados questionamentos o personagem Dudu traz à tona a imbricação dos processos culturais e históricos com os de adoecimento, suas ansiedades são permeadas pela sua construção sócio-histórica. Sobre essa relação Moreira (2002) refere que: “Baseando-me no pensamento de Merleau-Ponty, entendo a cultura como constitutiva da psicopatologia e vice-versa. Existe entre cultura e psicopatologia mais que uma relação dialética; estas se entrelaçam, compondo um mesmo tecido”(p.179).

Os profissionais da equipe de saúde tentam ajudar Dudu a compreender sua situação. Fazem isso dialogando sobre a doença, o tratamento, as intervenções dolorosas, os sentimentos de culpa, as dificuldades socioeconômicas e as mudanças impostas em face da hospitalização. As relações equipe e paciente não são sempre horizontalizadas como sugerido na história de “Dudu”, Focault (1979) observa que perceber a existência e as formas como acontecem os micro-poderes nas relações entre os atores da instituição hospitalar é representativo na compreensão dos macro-poderes existentes no aparelho de estado. Reciprocamente as questões macro sociais também se incluem na produção e manutenção dos micro-poderes.

Após o contato com a equipe, Dudu interagiu com as outras crianças da enfermaria, deparando-se com semelhanças e diferenças. Diante das experiências de cada um ele vai conhecendo aspectos da doença e do tratamento:

“-Por que o Bode Zezim não anda? / -Cadê o cabelo da Manu Tatu?

-Por que a Maria Baladeira não quer comer e às vezes vomita?

-Por que o Calango da Silva não gosta de cuscuz?

Dessa vez eles mesmos responderam:

-Eu ando sim! E para todo canto! Tive que fazer uma cirurgia de amputação, então ando com a ajuda de muletas. Vou atépara a sala de brinquedos do hospital que vocênem conhece ainda.

-Eu não tenho cabelo porque um dos remédios que eu tomei provoca a queda, mas depois nasce, viu!

-Alguns medicamentos podem provocar enjôos, vômitos e falta de apetite por alguns dias.

-Eu não gosto de cuscuz porque prefiro pão!” (p. 16-17).

Este momento do texto pretende apontar e eliciar discussões sobre efeitos colaterais dos tratamentos oncológicos. Mostra também a temática da pessoa com deficiência (Bode Zezim) e o respeito às particularidades do indivíduo (Calango da Silva). É pertinente observarmos que há formação de grupos e relacionamentos dentro das instituições hospitalares e muitas informações sobre a doença e o tratamento são mais obtidas através de pacientes e acompanhantes do que por encontros formais com os profissionais da equipe.

Mais um ponto é também abordado no livro: o caráter privado da subjetividade do outro, mostrando a intensidade do vivido e a impossibilidade de expressão explicativa, racional de algo da ordem do experiencial:

“Dudu foi ficando amigo do pessoal da enfermaria e também dos profissionais. Conversa vai conversa vem, escutava várias coisas. Escutava, via e vivia. Coisas de todo jeito: boas e alegres, ruins e tristes e até coisas mais ou menos. Quando ia em casa (nos intervalos das medicações) tentava explicar para os irmãos o que acontecia, mas nem sempre conseguia, havia coisas que só ele sentia.” (p.18)

Como forma de colocar o personagem diante das diversas possibilidades do seu processo de adoecimento a autora elegeu o contato de Dudu com as experiências do outro. Assim, através das histórias de vida de seus amigos, Dudu é tocado em suas questões pessoais. Um dos pontos abordados foi o afastamento da escola:

“-A Manu Tatu havia acabado o tratamento, soube que de vez em quando ela ia ao hospital fazer exames. Não dava tempo de visitar todos os amigos porque na escola não podia faltar, havia muito a aprender para que pudesse passar.

E Dudu lembrou-se de sua escola.” (p.19).

Durante o processo de adoecimento e tratamento poucas são as crianças que não têm a sua relação com a escola prejudicada. Esta perda se transforma em um aspecto importante, pois diz respeito tanto a questões de aprendizado cognitivo como também à socialização. Há muitas instituições que contam com “classes hospitalares” (modalidade de ensino em educação especial onde a escola funciona no próprio hospital) o que tem amenizado essas dificuldades, porém poucos hospitais estão atentos a essa necessidade se tornando mais difícil ainda quando as crianças realizam tratamento fora de domicílio. Outra alternativa seria investir no processo de re-inserção escolar, o Decreto lei nº 1044 de 21 de outubro de 1969 já dispunha sobre o tratamento de alunos portadores de afecções congênitas ou adquiridas propondo flexibilidade na avaliação da freqüência do aluno e inclusão de exercícios domiciliares com o acompanhamento da escola (Valle, 2001). A forma como o grupo receberá o aluno em tratamento oncológico é decisiva no sucesso da continuidade da escolarização, sendo pertinente o trabalho informativo com os outros alunos e professores da escola sobre temas como adoecimento, hospitalização e perdas. De maneira a tratar a criança como aluno e não somente como paciente (Valle, 2001).

A história do amigo “Calanguin da Silva” remete Dudu à saudade de casa e da família, em virtude da separação imposta pelo tratamento e situação socioeconômica: “-O tratamento do Calanguin da Silva estava no controle...então ele foi passar um mês em casa. E Dudu lembrou-se de seu pai e irmãos.” (p. 19)

O tema da dor e da morte também é abordado pela experiência do outro, o personagem é informado da morte da amiga e expressa pesar:

“-A Maria Baladeira havia piorado, sentia dores e os médicos descobriram que sua doença já estava acontecendo em diversas partes de seu corpo. Todos cuidaram muito de Maria Baladeira até o dia em que ela morreu porque não pôde mais continuar viva.

E Dudu ficou triste, com saudade e chorou.” (p. 19).

A dor éevento presente na maioria dos processos oncológicos, o conceito de “Dor Total” (p.90-91), proposto por Saunders (apud Carvalho, 2004), percebe o fenômeno da dor em suas dimensões: física, psíquica, social, espiritual, financeira, interpessoal e familiar. Carvalho(2004) cita que: “Cada dor é a dor de uma pessoa, com sua história, sua etnia, personalidade, contexto, momento”(p.88).A morte é exposta à criança de forma concreta e sem metáforas. Devemos adaptar nossa interação com a criança percebendo que o conceito de morte se constrói de forma gradativa durante o desenvolvimento infantil e paulatinamente a criança adquire os conceitos de universalidade, irreversibilidade e não funcionalidade da morte (Torres, 1999). O tema perda deve ser discutido com qualquer criança, porém as que passam por processos de adoecimento podem ter maior necessidade de obter informações e expressar sentimentos em relação às suas vivências, fantasias e medos. Elas também vivenciam as fases observadas por Kubler-Ross (1981) diante de processos de perda: negação, raiva, depressão, negociação e aceitação.

Após entrar em contato com as possibilidades de morte, cura, volta à escola e reencontro com a casa, família e amigos Dudu pensa sobre as suas próprias possibilidades e as questiona para a mãe: “Mãe, qual vai ser a minha história?E Dona Mamãe, que estudo não possuía, mas era dona de muita sabedoria, desta vez foi quem respondeu: -Ora menino, nossa história é só nossa, escrita dia após dia, só vamos saber a de hoje quando findar este dia.” p.20-21

A passagem acima citada toca em algumas questões relevantes. A primeira diz respeito à necessidade de valorização do saber experiencial, saber esse que é freqüentemente diminuído perante o saber técnico (dos profissionais) e coloca o outro em uma relação assimétrica, ocupando local de pouco poder. A autora destaca a desvinculação do nível de escolaridade com possibilidades de conhecimento. Em segundo lugar a personagem “Dona Mamãe” fala com o filho sobre a singularidade, a particularidade da experiência de cada um, aliviando suas tensões após as identificações com as histórias dos amigos. Por fim ela se refere à necessidade de vivenciarem o momento atual, pois o futuro se faz inacessível porque ainda em construção.

A finalização do livro se dáem consonância com a perspectiva apresentada por “Dona mamãe”. Ao abrir um espaço em branco para que o próprio leitor construa o final de sua história, é priorizada a peculiaridade de cada vivido e a pessoa como sujeito de seu processo, nos remetendo às questões de autonomia, autoria e criação.

 

Conclusão

Realizamos a discussão da produção de um livro infantil como contribuição no processo de construção de uma Psico-oncologia Nordestina, atendendo à demanda de pessoas que passam por processos de adoecimento e perdas. A articulação do livro com as reflexões e produções teóricas dos autores citados permite um vislumbre da abrangência desta temática. Os personagens e suas histórias de vida nos remetem a vivências e realidades: diversas, mas convergentes em relação à afirmação do viver. Removendo a imobilidade como relembra Buber (1979): “fatal mesmo é crer na fatalidade” e acreditando no potencial criador do ser humano.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Universidade de Fortaleza, CE, Brasil; lanaveras@hotmail.com
** Instituição: UNIFOR, Ce; virginiamoreira@unifor.br

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