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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.12 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2009

 

ARTIGOS

 

Reprodução assistida. Um pouco de história

 

Assisted reproduction. A little history

 

 

Marisa Decat de Moura1,I; Maria do Carmo Borges de Souza2,II; Bruno Brum Scheffer3,I

I Instituto Brasileiro de Reprodução Assistida – IBRRA
II G&O - Reprodução Humana - Barra,RJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Reprodução Assistida é um campo do conhecimento pertinente para pensar mudanças e progressos no qual os avanços da ciência e da tecnologia oferecem recursos inúmeros para o tratamento da infertilidade humana. Diante do novo que nos surpreende sempre, podemos citar mitos, escritos religiosos e acontecimentos na história da humanidade, que já tentavam dizer sobre o mistério e a busca da revelação do desconhecido, no campo indizível da origem do ser humano, em sua fertilidade e/ou infertilidade. Testemunhamos situações delicadas que demandam respostas éticas, para legislar questões que “escapam” do objetivável do discurso e avanço da ciência. Posição delicada: com a evolução do conhecimento e as técnicas disponíveis para os tratamentos em geral, precisamos considerar também o caso absolutamente singular “daquele sujeito e sua história”. Com a palavra, também, a sociedade.

Palavras-chave: Reprodução assistida; História; Ciência; Tecnologia; Modernidade.


ABSTRACT

Assisted reproduction is a field of knowledge relevant to consider changes and progress in which the progress of science and technology offer many resources for the treatment of human infertility. Considering that the new surprise us when we can cite myths, religious writings and events in the history of mankind, which have tried to say about the mystery and search for the revelation of the unknown, in the origin of human beings, their fertility and / or infertility. We witness situations that require delicate ethical responses to issues that lawmaking fail to follow face the sciences advances. Delicate position: with the development of knowledge and techniques available for treatments in general, we should consider also the single case of "one subject and his history". Let us also hear to Society.

Keywords: Assisted reproduction; History; Science; Technology; Modernity.


RESUMEN

Reproducción Asistida es un campo de conocimiento relevante para considerar los cambios y el progreso en el que el progreso de la ciencia y la tecnología ofrecen muchos recursos para el tratamiento de la infertilidad. Considerando que el nuevo nos sorprende, podemos citar mitos, escritos religiosos y eventos en la historia de la humanidad que han tratado de decir sobre el misterio y la búsqueda de la revelación de lo desconocido en el origen de los seres humanos. En su fertilidad y/o infertilidad, hay situaciones que requieren respuestas, delicadas cuestiones éticas que desafian el discurso y el avance de la ciencia. Posición también delicada: con el desarrollo de los conocimientos y técnicas disponibles par los tratamientos en general, consideramos el caso muy especial” de uno y su historia”. Con la palabra, también, la sociedad.

Palabras clave: Reproducción asistida; Historia; Ciencia; Tecnología; Modernidad.


 

 

A literatura médica ressalta hoje repetidamente a importância de trabalhos de pesquisas sobre homens e mulheres que procuram tratamento para infertilidade, localizando a porcentagem da população mundial, que continua aumentando à razão de 1,2%/ano, o que equivale a um adicional de 80 milhões de pessoas/ano. Segundo Souza et al. (2008):

“Nos últimos 75 anos o mundo presenciou reduções sem precedentes em taxas de mortalidade e crescimento populacional, seguidas de inusitadas reduções nas taxas de fecundidade (que representa o número médio de filhos que uma mulher tem durante a sua vida). Nos próximos 75 anos, estima-se a redução nas taxas de fecundidade, junto a um persistente crescimento da população mundial, com subsequente envelhecimento populacional. Do ponto de vista demográfico é complexa a interpretação, tratando ao mesmo tempo de dados de países em desenvolvimento, desenvolvidos, populações em migração, urbanização, desigualdades, pobreza, fome. Os demógrafos, portanto, fazem suposições técnicas e projeções numéricas para as populações, que por sua vez vão guiar definições de programas internacionais e nacionais de saúde e economia, políticas públicas baseadas nas modificações esperadas dos tamanhos populacionais” (SOUZA et al., 2008:1).

A experiência da infertilidade pode ser vivenciada como dano, isolamento social, alienação, medo, perda de status social e, até mesmo, de situações de violência (SOUZA, 2008). Num discurso sobre falsas premissas de superpopulação, questiona-se, com frequência, se a assistência pública de saúde deveria contemplar esta parcela “não-prioritária” das populações, o que certamente exacerba os danos sociais. Ao atribuir a esses indivíduos as mazelas de uma superpopulação, sem a divisão da responsabilidade social como nos países em desenvolvimento, ao mesmo tempo, nega-se a eles a autonomia de decidir sobre sua própria reprodução (FATHALLA et al., 2006).

Testemunham-se avanços fantásticos no campo da reprodução chamada assistida. A partir de 1978, com o nascimento de Louise Brown, ou após a rápida disseminação da técnica da injeção intracitoplasmática de espermatozóides pelo mundo desde 1992, o potencial da reprodução assistida tem se mostrado aparentemente ilimitado. Isso remete a questões inéditas, ou mesmo fundamentais, relacionadas à estrutura celular, à genética, à manipulação dos gametas e embriões, ao diagnóstico genético pré-implantação, à seleção de embriões, ao estudo genético das células-tronco embrionárias, à clonagem terapêutica. E acrescentam-se as questões relativas às mudanças/efeito dessas práticas médicas nas práticas sociais.

Souza et al. (2008) observam que estas mudanças e as maiores possibilidades de tratamento nitidamente interferem na percepção social dessas técnicas, como um todo, no macrocosmo (pelas informações divulgadas amplamente pela mídia escrita, eletrônica ou de imagens) ou no universo individual, da forma como é entendido por quem busca. Segundo as autoras:

Um dos grandes desafios neste século 21, em nossa ótica, é tornar estas técnicas acessíveis àqueles que delas possam se beneficiar, sem perder de vista as diversidades culturais e pessoais, assim como as questões éticas que tais avanços impõem. Na América Latina os principais centros (56 do Brasil) ligados à Rede Latinoamericana de Reprodução Assistida (REDLARA) reportaram em 2006 o número de 29763 ciclos com aspirações, resultando em 8662 gestações e 8462 bebês nascidos. Este registro mostra uma ponta do iceberg, daqueles que conseguiram chegar ao processo. (SOUZA et al., 2008:2)

Pensar essas e outras questões ligadas a essas técnicas se torna imperativo para o debate sobre o campo social e sua relação com a subjetividade (DECAT DE MOURA, 2008).

Esses fatos citados demonstram uma acelerada mudança com relação aos aspectos essenciais da vida do ser humano, como sexo, nascimento e morte. Percebem-se estas mudanças por meio dos fenômenos atuais desse final do século XX e início do século XXI, revelados pela globalização e pela economia do neoliberalismo4. Mudanças que exigem uma leitura sem nostalgia por “equilíbrios antigos”, o que seria, no mínimo, ingenuidade.

As diversas formas de conhecimento tentam explicar o que é o ser humano: “de onde ele veio” e “para onde vai”, isto é, a origem e a finitude humanas. Cita-se, entre outras, a mitologia, a religião e a ciência. São tentativas de encontrar respostas para o que é desconhecido para o ser humano, tentativa de explicar e dar sentido ao non sense (OLIVIERI, 2008).

Os mitos buscam explicar os mistérios por meio de entidades, na tentativa de alcançar o conhecimento do que é desconhecido do homem – seu próprio mundo. As entidades são tanto forças, energias, quanto podem ser criaturas e personagens, as quais transcendem o mundo natural, isto é, são sobrenaturais.

Olivieri (2008) cita como exemplo o mito pelo qual os antigos gregos explicavam o nascimento, a origem do mundo:

No princípio era o Caos, o Vazio primordial, vasto abismo insondável, como um imenso mar, denso e profundo, onde nada podia existir. Dessa oca imensidão sem onde nem quando, de um modo inexplicável e incompreensível, emergiram a Noite negra e a Morte impenetrável. Da muda união desses dois entes tenebrosos, no leito infinito do vácuo, nasceu uma entidade de natureza oposta à deles, o Amor, que surgiu cintilando dentro de um ovo incandescente. Ao ser posto no regaço do Caos, sua casca resfriou e se partiu em duas metades que se transformaram no Céu e na Terra, casal que jazia no espaço, espiando-se em deslumbramento mútuo, empapuçados de amor. Então, o Céu cobriu e fecundou a Terra, fazendo-a gerar muitos filhos que passaram a habitar o vasto corpo da própria mãe, aconchegante e hospitaleiro. (OLIVIERI, 2008, p. 1)

As religiões também apresentam uma explicação para o mundo. A fé, os ritos, os sacramentos e as orações também oferecem ao homem uma explicação para aquilo que ele desconhece e não encontra respostas.

A filosofia enquanto uso do saber em proveito do homem, segundo Platão5, implica a posse ou a aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido e o mais amplo possível. Ela se propõe a debater ou especular sobre problemas que ainda não estão acessíveis aos outros saberes, como o bem e o mal, o belo e o feio, a ordem e a liberdade, a vida e a morte.

A ciência, ao procurar saber como a natureza “funciona”, considera, principalmente, as relações de causa e efeito. Assim, busca o conhecimento objetivo, o qual se baseia nas características do objeto, com interferência mínima do sujeito. Pode-se considerar como exemplo a seguinte descrição científica:

A FIV é um processo de quatro etapas. Na primeira delas, o hormônio foliculoestimulante (FSH) é utilizado para estimular o crescimento do maior número de óvulos possível. [...] Na segunda etapa, o HCG é usado para estimular a liberação dos óvulos maduros, que são coletados dos ovários, por via vaginal [...] Na terceira etapa, os óvulos são transferidos para uma placa no laboratório, na qual são colocados juntamente com os espermatozoides para que ocorra a fertilização. Na etapa final, alguns óvulos fertilizados ou embriões são transferidos para o interior do útero (DICIONÁRIO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA, 2004)

A mínima interferência do sujeito significa aceitar que uma proposição é válida independentemente de quem a formulou. Uma das consequências desta forma de busca do conhecimento é o grande desenvolvimento da tecnologia, parceira desse funcionamento quase sem sujeito.

Mas o senso comum vai ser um aspecto interessante e revelador dessa busca de compreensão do mundo, já que vai falar por intermédio da “voz do povo”. Para alguns filósofos, o senso comum designa as crenças tradicionais do gênero humano, aquilo em que a maioria dos homens acredita ou deve acreditar.

Os ditados populares são um exemplo da linguagem do senso comum e sua tentativa de explicação do mundo. Pode-se tomar como exemplo alguns que se referem à origem, ao homem e à mulher diante do enigma da diferença, do tempo e do limite humano: “Parir é dor, criar é amor”, “Gravidez na idade da loba”, “O homem agora é mãe”, “Atrás de todo homem de sucesso tem sempre uma grande mulher”, “Sejamos realistas, exijamos o impossível”, “O fruto proibido é o mais apetecido”, “Cem homens podem formar um acampamento, mas é preciso uma mulher para se formar um lar”, “Mudam-se os tempos, mudam-se os contratos”.

 

O homem e a infertilidade na época dos deuses: “maravilhas e demônios da reprodução assistida”6

Na história das ciências e das técnicas, pode-se constatar que, nesse campo, o que é misterioso, mágico ou considerado sem explicação, porque ainda não provado pela ciência, entra no debate do espírito crítico científico, que se encarrega de eliminá-lo.

No entanto, os mitos, as convicções religiosas e os títulos na mídia surgem para dizer do campo “desnaturalizado” e “proibido de ser falado” pela ciência, o que abre espaço para que medos e preconceitos tomem um caráter frequentemente assustador e apresentem uma realidade complexa e “pouco científica”.

Uma citação na literatura pode exemplificar essa complexidade: “A fecundação sem coito, milagre do Fecundador Científico, colocou o mundo às avessas. Mas, fazer um verdadeiro bebê, fabricar sem fazer o amor, a criança de sorriso tão doce... Loucura, pura loucura! Somente os Deuses!” (LUNEL, 2004: 10).

O campo do conhecimento - RA é pertinente para pensar mudanças e progressos nos quais os avanços da ciência e da tecnologia oferecem recursos inúmeros para o tratamento da infertilidade humana. Diante do novo que surpreende sempre, podem-se citar mitos, escritos religiosos e acontecimentos na história da humanidade que já tentavam dizer sobre o mistério e a busca da revelação do desconhecido, no campo indizível da origem do ser humano, em sua fertilidade e/ou infertilidade.

 

A reprodução assistida nos mitos e nos escritos religiosos

A mitologia greco-romana, conjunto de mitos e lendas das tradições gregas e romanas da Antiguidade, os quais se fundiram com a conquista da Grécia pelo Império Romano, fala em alguns relatos - como os de Pugliese (2003) e Bulfinch (2001) – sobre a reprodução assistida dos deuses.

Podemos tomar como exemplo Minerva, símbolo da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, nova encarnação da sabedoria divina que, em uma de suas versões, nasceu da cabeça de Zeus. Métis fora a primeira esposa de Júpiter. Foi ela que deu ao velho Saturno uma beberagem para obrigá-lo a devolver os jovens deuses que ele havia engolido. Estando grávida, predisse a Júpiter que teria em primeiro lugar uma filha e, em seguida, um filho, que se tornaria senhor do céu. O rei dos deuses, espantado com tal profecia, engoliu Métis. Algum tempo depois, foi acometido de violentíssima dor de cabeça e rogou a Vulcano que lhe fendesse a cabeça com o machado.

Mal recebeu o golpe de machado de Vulcano, saiu-lhe do cérebro a filha Minerva, encarnação da sabedoria divina. Essa narração mítica está representada num espelho etrusco7 em que Ilítia, a deusa dos partos, assistindo o rei dos deuses, tira-lhe da cabeça Minerva, que sai armada de capacete e de lança. No outro lado está Vênus, que também parece acorrer em auxílio a Júpiter, e atrás dela vê-se, empoleirada numa árvore, a pomba que lhe é consagrada. Tais divindades trazem os seus nomes no espelho em língua etrusca.

Três deusas gregas, Juno, Minerva e Diana, são conhecidas como deusas de origem partenogenética. Juno teve muitos filhos, e Minerva, a virgem por excelência, também teve vários filhos.

Marte, deus da guerra, segundo Hesíodo8, era filho de Júpiter e de Juno, que, invejosa por ter Júpiter tirado Minerva de seu cérebro, quis imitar a façanha e produzir um filho sem o concurso de seu esposo ou de qualquer outro homem. Resolveu encontrar os meios propícios a tal realização; sentou-se ao pé do templo da deusa Flora, que lhe perguntou a causa da sua busca. A deusa, ouvindo seu desejo, mostrou-lhe uma flor maravilhosa que pelo simples toque a engravidou, e assim nasceu Marte.

Na Bíblia9, também se encontra uma riqueza de relatos sobre o nascimento de homens e mulheres inférteis, infertilidades que foram milagrosamente curadas por Deus, e de mulheres que engravidaram extemporaneamente. Deus, atendendo aos seus desejos, transformou-as de estéreis em mães de filhos, conforme diz o Salmo 113:9 – “Faz que a mulher estéril viva em família e seja alegre mãe de filhos”. O exemplo mais conhecido é o de Sara, que engravidou aos 90 anos. (GÊNESIS, 17:17, 21:2).

 

A família na Bíblia: o lugar do homem e da infertilidade

O lugar do homem é destacado desde o início na ordem da criação, sendo Adão aquele que dá início à humanidade (GÊNESIS, 5). E, acompanhando este destaque, Deus reafirma seu plano criador, escolhendo Noé como um pai sobre o qual volta a descer a bênção divina numa família humana e por meio dela estende a toda a criação (RAMOS, 2004).

O livro da genealogia de Adão (GÊNESIS, 5:1-2) relata que, no dia em que Deus criou Adão, Ele o fez semelhante a si mesmo, criou-o macho e fêmea, abençoou-os e os chamou com o nome de homens no dia em que foram criados.

Abraão é o pai da família dos crentes e o mediador das bênçãos de Deus para com seu povo. Deus chama Abraão e deposita nele a bênção de unir numa única família sua descendência, sinal da graça divina.

Essas tradições, que transmitem a vida por meio dos patriarcas, trazem costumes que implicam necessariamente a questão da fertilidade/infertilidade.

Atesta-se a importância dada à infertilidade desde esses tempos bíblicos. Abraão vive como um dos chefes de clã no seu período. Diante da esterilidade de Sara, esta o aconselha a se unir a Agar em benefício do clã, cuja procriação é um dos bens máximos que devem ser garantidos. Jacó, cujo nome devia qualificar toda a casa do povo de Deus, também teve duas mulheres que, por sua vez, deram-lhe suas escravas como concubinas. As tradições se referem aos fatos que mostram a prioridade da procriação: Então Sara disse a Abraão: “Javé me impediu de dar à luz. Une-te, te peço, à minha escrava. Talvez dela eu possa ter filhos” (GÊNESIS, 16:2). Vendo que não conseguia dar filhos a Jacó, Raquel ficou com ciúmes da irmã e disse a Jacó: “Dá-me filhos, senão eu morro!” Jacó irritou-se com Raquel e lhe disse: “Por acaso estou no lugar de Deus que te fez estéril?”. Ela respondeu: “Aí tens minha escrava Bala. Une-te a ela para dar à luz sobre meus joelhos. Assim terei filhos eu também por meio dela”. Deu-lhe, pois, a escrava Bala por mulher, e Jacó se uniu a ela. Bala concebeu, e deu a Jacó um filho (GÊNESIS, 30:1-5).

A importância e o valor da mulher no quadro da família estão localizados principalmente na sua maternidade, naquela que, com seus sofrimentos, assegura a continuidade da família e do clã, tornando-se, assim, a medianeira das Bênçãos divinas. Nos cultos, Israel celebra a felicidade do homem justo que tem uma mulher fecunda e numerosos filhos. Também na sociedade patriarcal, que se caracteriza pelo primado da virilidade, a mulher fecunda adquire uma importância que a torna especial para o marido. Apesar de casos em que a mulher pode ser amada independentemente da sua capacidade de procriar, a ênfase é dada à importância da fertilidade na família e da localização da infertilidade na mulher.

Do mesmo modo, o pai é valorizado pelo número de filhos que tem, os quais deverão ser responsáveis por sua continuidade. O mistério da continuidade e a vitalidade da estirpe celebra-se num diálogo de gerações, cujos filhos fazem reviver o pai e o pai dá sentido aos filhos.

Os casos mais típicos da intervenção de Deus no quadro das famílias são aqueles da fecundidade milagrosa, quando a natureza não oferece solução, Deus torna fecunda a esterilidade. O tempo do aparecimento de Jesus é permeado de situações que revelam a excepcionalidade dos nascimentos. Cita o nascimento “impossível” de um filho de Zacarias e Isabel, um casal estéril e idoso. “Ambos eram justos diante de Deus e observavam, de maneira irrepreensível, todos os preceitos e mandamentos do Senhor. Porém não tinham filhos, pois Isabel era estéril e ambos idosos” (LUCAS, 1:6-7). Mas o Anjo lhe disse: “Zacarias, não temas, pois foi ouvida a tua oração e tua mulher, Isabel, dará à luz um filho ao qual chamarás com o nome de João” (LUCAS, 1:13).

O nascimento de Jesus Cristo também revela esta excepcionalidade. Maria estava prometida em casamento a José e antes de passarem a conviver, ela encontrou-se grávida pela ação do Espírito Santo. ‘José, seu esposo, sendo justo’ e não querendo denunciá-la publicamente, pensou em despedi-la em segredo. Mas depois que lhe veio esse pensamento, apareceu-lhe em sonho um anjo do Senhor, que lhe disse: ‘José, Filho de Davi, não tenhas receio de receber Maria, tua esposa; o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe porás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o teu povo dos seus pecados’. Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: ‘Eis que a virgem ficará grávida e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus-conosco’. (MATHEUS 1:18-24).

Nos relatos bíblicos, a mulher não deve somente estar submissa ao marido, mas tem um papel específico no lar e se esperam dela atitudes particulares. É seu dever governar a casa, tornando-a acolhedora e hospitaleira e, em conjunto com o esposo, preparar o futuro dos filhos. A figura do pai, ou dono da casa, não tem meramente uma dignidade e uma autoridade, mas deve ser sinal vivo daquela paternidade da qual tudo toma nome e sentido.

 

A relação da nobreza com a paternidade e a infertilidade

A importância da fertilidade se torna evidente na vida de Henrique VIII Tudor (1491-1547), Rei de Inglaterra desde 1509 até a sua morte. Foi-lhe concedido o título de Rei da Irlanda pelo Parlamento Irlandês em 1541, tendo obtido anteriormente o título de Senhor da Irlanda. Uma dispensa do Papa Júlio II era necessária para autorizá-lo a casar com a cunhada, Catarina de Aragão, viúva de seu irmão. A autorização foi obtida tendo como argumento a não consumação do anterior; o casamento foi celebrado em 1509, e ambos tiveram apenas uma filha, a futura Maria I de Inglaterra.

A história testemunha as consequências do desejo de Henrique VIII de ter um filho herdeiro, bem como a sua relação amorosa com Ana Bolena, que o levou a procurar a dissolução do casamento com Catarina junto ao Vaticano. Suas tentativas não encontraram sucesso porque o Papa Clemente VII estava sob pressão do sobrinho de Catarina, o imperador Carlos V. Frustrado com o fracasso das negociações, Henrique VIII ignorou a lei canônica que o impedia de se unir a outra mulher e casou com Ana em 1533. Esta atitude de afronta sem precedentes à Igreja Católica valeu-lhe a excomunhão, declarada por Clemente VII nesse mesmo ano. No seguimento da excomunhão, Henrique VIII decidiu pelo rompimento com a Igreja Católica Romana e declarou a dissolução dos mosteiros, apropriando-se dos bens da Igreja. Fundou a Igreja Anglicana (Church of England), da qual se declarou líder10.

Também com Henrique IV da França (1553-1610) vê-se a importância da fertilidade, mesmo fora do casamento, e sua relação com a nobreza. Soberano francês nascido em Pau, no sul da França, conhecido como o fundador da dinastia de Bourbon, filho de Antonio de Bourbon, duque de Vendôme, e de Joana III de Albret, rainha de Navarra, o rei foi assassinado nas ruas de Paris por um fanático chamado François Ravaillac. Maria de Médicis, princesa da Toscana e sua segunda esposa (1600), encarregou-se da regência em função da menoridade do príncipe herdeiro e seu filho primogênito, o futuro Luís XIII. Apesar de não ter tido filhos com a primeira esposa, com a princesa Maria de Médicis, o rei teve seis crianças, e com a amante, Gabrielle d'Estrées, mais quatro11.

Não se pode deixar de concluir que as contingências socioculturais com relação à infertilidade levam à busca de respostas para colocar novamente em ordem a desarmonia estabelecida pelo novo. Se, em um determinado momento histórico, por exemplo, a infertilidade, impedindo que houvesse descendentes, não assegurava mão de obra para o trabalho, nem garantia a continuidade do poder e da fortuna, como pensá-la hoje, com a ciência oferecendo respostas, e estando ela também em processo de mutação?

 

Reprodução assistida: continuando a história com a ciência

Na história da RA, a primeira inseminação artificial de que se tem registro foi realizada pelos árabes em 1332, em equinos. Porém a primeira inseminação registrada pelo saber científico foi realizada em 1779, quando um italiano chamado Lázaro Spalanzani colheu o sêmen de um cachorro e o aplicou em uma cadela em cio, a qual pariu três filhotes12.

No final do século XVIII, um médico inglês, Hunter, obteve os primeiros resultados em seres humanos com inseminação de sêmen no útero. Nos anos 1970 do século passado, esta técnica foi bastante utilizada de forma não muito precisa, gerando baixo índice de sucesso. Com os avanços da ciência e da tecnologia na fertilização in vitro – FIV nos anos 1980, a técnica da Inseminação Artificial – IA – foi temporariamente abandonada e considerada bastante arcaica. Entretanto, nos dias de hoje, encontra novamente espaço no tratamento de casal infértil.

Nos anos 1980, Heape transferiu, com sucesso, embriões entre coelhos. Coletou dois embriões obtidos de ovidutos depois da cruza entre uma coelha angorá doadora e um macho da mesma raça. Então, transferiu esses embriões para o oviduto de uma fêmea da raça belga que tinha cruzado algumas horas antes. No devido tempo, seis coelhos nasceram, dois dos quais angorás. Ele havia demonstrado a possibilidade fisiológica de recuperar um estágio embrionário de pré-implantação de uma fêmea por meio de lavagem do oviduto e então transferir o embrião para outra fêmea sem prejudicar o seu desenvolvimento.

Os primeiros sucessos da FIV são disputados: em 1959, evidências claras da FIV foram obtidas por Chang em experimentos em coelhos. Os fundamentos do sucesso de Heape e de Chang foram utilizados por vários pesquisadores nas áreas de anatomia, embriologia e microscopia, cujos trabalhos se estenderam por muitos anos. O crescimento rápido dessas técnicas demonstrou o grande potencial de tratamento de uma infinidade de condições de infertilidade e tem requerido muita defesa e suporte ao seu favor. A FIV e a transferência de embrião TE têm confiado seus desenvolvimentos a um campo social e científico favorável para sua continuação.

Consequentemente ao trabalho de Heape, os cientistas se interessaram pela possibilidade de cultura de embriões no laboratório, possibilitando, então, o estudo do princípio de desenvolvimento embrionário. A maior parte dos meios estava baseada em plasma sanguíneo, soro e fluidos biológicos não definidos. Em 1949, Hammond Jr. desenvolveu um meio complexo que permitiu que embriões de camundongo se desenvolvessem até blastócitos. Whitten demonstrou que um meio quimicamente definido, mais simples, poderia fazer o mesmo trabalho. Logo depois, McLaren e Biggers combinaram o fluido de Whitten com as técnicas de transferências de Heape e conseguiram blastócitos, transferidos com sucesso para outra fêmea, na qual se desenvolveram normalmente.

 

Desenvolvimento da fertilização in vitro e da transferência de embrião em humanos

A partir de Chang, os cientistas dos anos 1960 trabalhavam com animais de laboratório em vários procedimentos. Desde a coleta e capacitação de espermatozoides, a obtenção de óvulos maduros de ovidutos, a fertilização in vitro, a cultura do embrião resultante e a transferência do embrião para a mãe genética ou para uma substituta, todas se tornaram práticas em pesquisa animal.

Durante os anos 1960 e 1970, os clínicos sofreram um aumento da pressão para encontrar novos métodos para resolver problemas de infertilidade tubária. Concomitantemente, adicionava-se à dificuldade de adoção de bebês ou de crianças em muitos países do Ocidente, por causa da liberação das leis de aborto e do aumento do apoio social às mães solteiras, também, o reconhecimento pelos especialistas de que o sucesso nas cirurgias de reparação de tubas uterinas danificadas ou fechadas era limitado.

Verificou-se que uma possível barreira para a FIV e TE em humanos era a coleta de óvulos que não estavam suficientemente maduros para serem fertilizados no laboratório.

Demonstrou-se então que a maturação dos óvulos em mulheres que receberam gonadotrofina coriônica humana – HCG era similar à do processo natural. No final dos anos 1960, a laparoscopia já havia sido adotada para visualização dos órgãos reprodutivos. Steptoe (1969) foi um pioneiro na aplicação da técnica de laparoscopia e, pelo final do ano de 1968, já executara mais de 1300 procedimentos. A técnica se provou ideal, na época, para recuperar óvulos maduros.

Outra mudança técnica foi a possibilidade da superovulação. Primeiramente usada em animais nos anos 1920, em poucas décadas foi considerada uma ferramenta de valor inestimável para a indústria de criação animal. Em mulheres, foi primeiramente descrita no final dos anos 1960, quando o hormônio folículo estimulante – FSH foi administrado para aumentar a produção de óvulos em pacientes com possíveis problemas citogenéticos. Steptoe e Edwards introduziram uma técnica similar em 1970, usando gonadotrofina humana de menopausa – HMG, de alta atividade no FSH. Entretanto, logo abandonaram esta abordagem. O grupo de pesquisa de Melbourne advogou a ovulação induzida por citrato de clomifeno – CC, seguido de HCG, estabelecendo intervalo de tempo para que coincidisse a coleta de óvulos com o curso normal das operações ginecológicas do Serviço. O uso de drogas indutoras da fertilidade também apresentava a vantagem de promover a maturação de vários óvulos, que poderiam ser obtidos via laparoscopia. Logo se demonstrou que tal procedimento aumentava as chances de uma gravidez porque levava ao aumento do número de embriões.

Durante o desenvolvimento da FIV e da TE em humanos, numerosas modificações nas técnicas em animais foram necessárias: refinamento da fertilização e dos meios de cultura embrionários; transferência adiantada de embrião; redução no número de espermatozoides usados na fertilização em placa ou em tubo; e melhorias no equipamento possibilitando, por exemplo, coleta de óvulos e transferências de embrião mais suaves.

Além de possibilitar tratamento para uma proporção significativa de casais inférteis, o aumento de potencial da RA já é reconhecido em outras áreas. Em seu relatório para o Grupo de Aconselhamento Ético, Short (1976) descreveu aplicações das técnicas para a pesquisa contraceptiva, estudos de câncer e exploração das origens da evolução humana. Também promoveu um interesse na pesquisa em definir as causas e incidência da perda de embriões humanos e na exploração de fatores reguladores da maturação dos óvulos. Enquanto os desenvolvimentos da pesquisa científica e clínica continuavam, o debate com as comunidades leigas e científicas também aumentava de forma surpreendente. As discussões se concentravam em aspectos morais e legais dos procedimentos, com diferenças de opiniões evidentes dentro de grupos, inclusive religiosos.

Outro aspecto problemático da FIV, compartilhado nos tratamentos de infertilidade, era o estresse experimentado pelos casais participantes. Tanto os usuários quanto os membros das equipes profissionais, ao se darem conta desse fato, chamaram a atenção para a importância dos grupos de apoio e serviços de aconselhamento.

Paralelamente ao aumento do número de clínicas de RA, diminuíram os medos de malformação, assim como as possíveis consequências do procedimento. Hoje nascem mais de 200 mil bebês/ano por estas técnicas em todo o mundo, sem dados que mostrem, com evidências, um aumento do risco da malformação congênita.

Depois do relato de desenvolvimento de múltiplos folículos pela FIV, usando-se CC e de HCG, um grande número de regimes de estimulação tem sido descrito. Estes incluem CC, gonadotrofinas hipofisárias (FSH, LH – hormônio luteinizante), GH (hormônio de crescimento) e análogos agonistas ou antagonistas dos hormônios de liberação de gonadotrofina-GnRH. Com a utilização dos Análogos de GnRH, aumentaram-se as taxas de gravidez, reduziram-se as coletas de sangue e preveniu-se a descarga ovulatória natural. As desvantagens destes ciclos de estimulação incluem um risco maior de gravidez múltipla, de hiperestimulação e de mudanças de comportamento devido aos efeitos das drogas usadas.

A coleta de oócitos humanos para FIV com o uso de ultrassonografia transvaginal, com punção percutânea folicular, veio por Lenz e Lauritzen (1982). Foi um seguimento natural, baseado no conhecimento prévio de punções guiadas por ultrassonografia de outros órgãos abdominais.

 

Inauguração da geração proveta: Louise, na Inglaterra, e Anna Paula, no Brasil

A inglesa Louise Brown nasceu no Hospital Geral de Oldham, perto de Manchester no dia de 25 de julho de 1978. O que parecia ficção científica acabava de se tornar realidade: nascia o primeiro bebê de proveta do mundo. Com um bloqueio nas tubas uterinas, sua mãe, Leslie Brown, só conseguiu engravidar quando encontrou o embriologista Robert Edwards e o ginecologista Patrick Steptoe.

“Desejados por pais aflitos, bebês são produzidos em laboratórios, pressionando os limites da ciência” é o título de um artigo da Revista Época, edição 09 (20/07/98). Louise encarnou o símbolo de uma nova era na reprodução humana. Desde então, continua a reportagem, mais de 3,5 milhões de bebês nasceram por meio de tratamentos que testemunham uma verdadeira revolução tecnológica.

Quando Louise nasceu, as chances de se "fabricar" um bebê fora dos padrões não passavam de 5% do total das tentativas. Hoje o número é até seis vezes maior. São tantas as técnicas em RA que mulheres e homens inférteis – cada vez mais numerosos (o que é muito significativo) - e também parceiros do mesmo sexo demandam ter um filho biológica e geneticamente seu.

Dados da Sociedade Americana de Fertilidade mostram que, até os anos de 1960, o índice de infertilidade no mundo variava entre 10% e 15% da população. Hoje, os patamares oscilam entre 25% e 30%. A explicação desse fenômeno está ligada à vida moderna. Entre as razões mais conhecidas, reina a procura tardia pela gravidez e suas consequências.

No dia 7 de outubro de 1984, nascia no Brasil Anna Paula Caldeira. Sua mãe, Ilza Maria, tinha quatro filhos e não podia mais engravidar. Ao casar pela segunda vez, ela e o marido decidiram ter outro filho. Procuraram então o ginecologista Milton Nakamura, pioneiro da fertilização in vitro no Brasil. Anna Paula é considerada também símbolo da esperança de ter filhos, para as mulheres que não conseguem engravidar.

A jornalista pernambucana Patrícia Calazans, 30 anos, no artigo da Época, admite que o desejo de ter um filho foi o verdadeiro motivo de seu casamento, há seis anos. “Não foi pela paixão, mas pelo projeto do bebê”, diz. Patrícia lutou dos 16 aos 24 anos contra os cistos que se formaram nos ovários. Mas não abriu mão do sonho. “Eu só fazia chorar. Pensava que se até as bactérias se reproduzem, por que não eu?” Fez uma primeira fertilização in vitro, sem sucesso. Seguiu para São Paulo. Um renomado médico paulista implantou oito embriões em seu útero. Quando soube que estava grávida de um bebê, Patrícia, estranhamente, não ficou feliz. “Achei que perderia o bebê. Não quis comprar o enxoval, parei de trabalhar e me tranquei em casa”, diz. Depois de dar à luz, contratou 22 enfermeiras para cuidar da pequenina Amanda ao longo de seu primeiro ano de vida. Foi mais longe: dava banho de água mineral na criança e resfriava o ar quente de Recife a 15 graus para “confortar o bebê”. Com o tempo, tomou para si a tarefa de cuidar da filha. Há um ano e oito meses, teve naturalmente outro filho, Daniel, o que chama atenção na clínica: por que a dificuldade para engravidar em um primeiro momento e depois engravidar “naturalmente?” Animada, Patrícia quer um terceiro filho. Esse relato chama a atenção para as vicissitudes das demandas singulares de se ter um filho, e que colocam nos consultórios de RA a presença dos dizeres além dos ditos13, dos homens e mulheres que buscam tratamento.

A face mais visível da RA está na quantidade – cada vez maior – de gêmeos que vemos em locais públicos das grandes cidades. Como os médicos costumam implantar vários embriões na tentativa de êxito no tratamento, gestações múltiplas proliferam. Um dos maiores desafios dos tratamentos é controlar o número de embriões. O Conselho Federal de Medicina estipula em quatro o número máximo de embriões a serem implantados numa mulher. Com isso, tentam-se evitar os problemas como nascimentos prematuros e bebês com sequelas neurológicas.

 

Cronologia: resumindo

Entende-se por Reprodução Assistida todos os tipos de tratamento que incluem a manipulação in vitro (no laboratório), em alguma fase do processo, de gametas masculinos (espermatozoides), femininos (oócitos) ou embriões, com o objetivo de se estabelecer uma gravidez.

Os procedimentos podem ser reunidos em dois grupos: rubrica de Baixa ou Alta Complexidade. A baixa complexidade está representada pela inseminação artificial – IA, na qual espermatozoides são preparados (capacitados) para adquirir maior e melhor motilidade e a seguir ser introduzidos, por um catéter adequado, diretamente no fundo uterino e na cavidade tubária. O encontro dos gametas, assim como a fertilização esperada, irá ocorrer de forma espontânea nas tubas uterinas, e a fecundação se dá dentro do corpo da mulher.

A tecnologia da reprodução assistida de alta complexidade - que inclui, mas não se limita à FIV com TE - emprega a FIV e a injeção intracitoplasmática de espermatozoides – ICSI, assim como a criopreservação de gametas e embriões, a doação de gametas e embriões, as técnicas de diagnóstico genético, pré-implantação e a cessão temporária de útero. Outros procedimentos, como a transferência intratubária de gametas – GIFT, de zigotos ou embriões recém-fertilizados - ZIF, ou mesmo embriões mais desenvolvidos, têm sua prática bastante diminuída nos dias atuais. Nessas técnicas, a fecundação se dá fora do corpo da mulher.

Numa sequência cronológica, selecionada de informações veiculadas pela mídia e artigos publicados, pode-se acompanhar, com mais clareza, os avanços na RA e observar o que é próprio da ciência: a sua característica de ilimitabilidade: 1790 - primeiro relato de nascimento por inseminação artificial com sêmen de marido britânico; 1890 - primeiro relato de nascimento por inseminação artificial com sêmen doado nos EUA; 1878 - primeiro relato de tentativas de fertilização de ovos de mamíferos fora do corpo; 1940 - o biólogo francês Jean Rostand descobre que o esperma animal pode ser conservado a frio; 1952 – na Escócia, o médico inglês Robert Edwards faz experiências em fertilização com ratos; 1953 - nos EUA, tenta-se a primeira inseminação artificial com sêmen congelado; 1959 - primeiro sucesso em camundongos, nos Estados Unidos; 1959 - primeiro sucesso em coelhos nos EUA; Início dos anos 1960 - introdução da laparoscopia na Grã-Bretanha e EUA; março de 1968 – Robert Edwards e Barry Bavister fertilizam o primeiro ovo humano in vitro; abril de 1968 – Steptoe e Edwards formam um grupo para trabalhar com FIV; 1971 – Edwards, em colaboração com Steptoe, tenta implantar embriões em mulheres, sem sucesso; 1975 – a dupla Edwards e Steptoe consegue a primeira gravidez, mas ela é tubária; 1978 – nasce Louise Brown, o primeiro bebê de proveta do mundo, na Inglaterra; 1979 – o médico Robert Graham monta o The Repository for Germinal Choice, na Califórnia, a clínica que só utilizava sêmen de superdotados; maio de 1979 – Departamento de Saúde dos EUA aprova FIV e, em princípio, pesquisa com embrião; junho de 1980 – primeiro bebê de FIV na Austrália e terceiro do mundo, Candice Reed, nasce em Melbourne; o médico Rafael Tejada, dos EUA, desenvolve uma máquina chamada “Baby”, que detectaria o sexo dos embriões; dezembro de 1981 – primeiro bebê de FIV, Elizabeth Carr, nasce em Norfolk, Virgínia; maio de 1982 - governo de Victoria estabelece o Comitê Walker; 1984 - nasce o primeiro bebê de proveta brasileiro, Anna Paula Caldeira; janeiro de 1984 - primeiro nascimento de cessão temporária de útero, na Califórnia; janeiro de 1984 - nasce primeiro bebê por doação de embrião, em Melbourne; março de 1984 - primeiro nascimento pós-transferência de embrião congelado, Zoe Leyland, em Melbourne; junho 1984 - casal assassinado deixa dois embriões órfãos em Melbourne; junho de 1984 - publicado o terceiro relato do Comitê Warnock, na Inglaterra, sobre as técnicas reprodutivas; 1990 - nasce em Canoas, Rio Grande do Sul, o menino Thiago, filho de Ademir Rodrigues da Silva e Denise Correa da Silva. Loiro e de olhos verdes, Thiago provoca uma crise em família: seus pais, negros, fizeram IA porque Silva era estéril. Antes, pediram que o esperma utilizado fosse de um homem negro e na discussão judicial que se seguiu com o laboratório, Silva tentou o suicídio e Denise foi parar na UTI, com hipertensão; 1992 – relato da primeira gravidez em humanos por ICSI, na Bélgica; o médico americano Cecil Jacobson é condenado por usar o próprio esperma na inseminação de 70 mulheres; uma siciliana de 62 anos é criticada pelo Vaticano por ter feito inseminação artificial com o esperma do marido morto; 1993 – nascem em São Bernardo, na Grande São Paulo, as gêmeas Ana Cláudia e Heloísa Perroni, e Samiris e Thamiris Martins, primeiros casos de transporte de embriões, após FIV; 1994 - a enfermeira Neile Gomes Papazian, 52 anos, dá à luz Vivian, no Rio de Janeiro, o primeiro bebê de proveta brasileiro gerado na menopausa; 1996 – chega ao Brasil técnica do amadurecimento de óvulos em laboratório, desenvolvida na Austrália; 1996 – o médico argentino radicado nos EUA, Ricardo Asch, é acusado por 134 casais de ter trocado óvulos durante o tratamento. Ele teria promovido as trocas para substituir óvulos com poucas chances de fertilização, em que filhos nascem sem características maternas; 1996 – a inglesa Edith Jones, 51, gera seu próprio neto. O embrião é formado pelos óvulos da filha Suzanne, 21, estéril, e pelo sêmen do genro, Chris Langston; 1997 – o casal americano Kenny e Bobbi McCaughey, por razões religiosas, leva adiante uma gravidez de séptuplos fertilizados em laboratório; 1998 – após batalha judicial, a inglesa Diana Blood engravida do marido Stephen Blood, falecido em 1995. Horas antes da morte dele, Diana determinou a coleta do esperma. A Justiça inglesa proíbe a inseminação, que é feita na Bélgica; 1998 – duas mulheres homoafetivas de Winchester, Inglaterra, desejosas de ter um filho, compram sêmen pela Internet por US$ 450. A mais nova, com 27 anos, fará a inseminação.

 

RA: Últimos avanços... por enquanto, como determina a ciência

Trabalhos apresentados no 23º Encontro Anual da European Society of Human Reproduction and Embryology – ESHRE, realizado de 1º a 4 de julho de 2007 em Lyon-França, passaram a enfatizar a criopreservação de gônadas, procedimento que representava uma esperança promissora de se obter gestação em mulheres que tivessem, por exemplo, mosaico da síndrome de Turner. Também em 2007, foi realizada a clonagem bem-sucedida com macacos, “cada vez mais próxima dos humanos”.

No XII Congresso Brasileiro de Reprodução Assistida – em agosto de 2008, em São Paulo –, os mais recentes resultados em pesquisa foram apresentados à comunidade científica. Alterações cromossômicas em embriões, fragmentação do deoxyribonucleic acid – DNA no esperma e maturação de óvulos in vitro, entre outras novas tecnologias, foram debatidas14.

Uma das principais novidades apresentadas foi In Vitro Maturation – IVM, técnica que consiste na maturação dos óvulos em laboratório para a realização de FIV. Os primeiros resultados brasileiros de sucesso aconteceram em 2007, quando duas pacientes conseguiram engravidar (FRANTZ et al., 2008). Foram apresentados os avanços sobre o diagnóstico pré-implantacional – PGD, que busca a determinação de alterações numéricas ou estruturais dos cromossomas, assim como a pesquisa de alterações gênicas específicas, causadora de doenças. É importante ressaltar os questionamentos e debates mobilizados pela tensão decorrente deste tema, que envolve a detecção de alteração nos embriões, antes de sua transferência para o útero.

Os tratamentos para infertilidade masculina também foram avaliados. Em todo o mundo, cerca de 40% do total de casais inférteis enfrentam problemas relacionados ao homem. Entre as causas mais comuns da infertilidade masculina estão as doenças genéticas, herdadas, e a varicocele, adquirida. Fatores como estresse, obesidade, diabetes e qualidade de vida também podem interferir na produção do esperma e também foram abordados no evento.

Cada vez mais, questões complexas e paradoxais são levantadas e relacionadas aos tratamentos de RA. A imprensa brasileira sucessivamente publica, em 2009, denúncias contra conhecido especialista brasileiro da área de RA que, aproveitando-se de seu grande “poder” em “conceder” a gestação às mulheres, se vê acusado ao mesmo tempo de assédio sexual, manipulação de gametas, seleção de sexo de bebês e outras práticas.

Uma reportagem publicou recentemente na mídia a notícia de uma mulher que, já tendo seis filhos, engravida de mais oito por FIV e justifica esta decisão pelo fato de ser filha única e ter tido vontade de ter irmãos. Estando desempregada, sem parceiro, abriu um programa na internet visando arrecadar fundos para criar os bebês, pois tem, agora, catorze filhos15. Estas e outras situações delicadas testemunham a demanda de respostas dos comitês de ética para legislar sobre questões que “escapam” do objetivável no discurso e nos avanços da ciência.

Para explicar o inexplicável, pode-se recorrer, como vimos, ao mito, à religião e à ciência na tentativa de encontrar respostas para perguntas sem respostas. Sigmund Freud (1996) recorreu ao mito como tentativa de explicar a origem do sujeito e da cultura, e Lacan concebeu o mito como uma narrativa construída para dar conta do real que funciona como causa (LACAN, 1975). Já a religião sustenta que as sociedades recebem suas leis de Deus e não dos homens. Como a modernidade é correlativa à existência da ciência enquanto saber conquistado pela razão humana e produtor de um novo laço social, este, passando a priorizar a razão em vez da fé, desalojou a autoridade religiosa de seu lugar de poder, estendendo seus efeitos no campo da subjetividade. A ciência assumiu assim o poder e a responsabilidade de oferecer as respostas para as demandas clínicas.

A necessidade de certezas e a constatação de que as verdades são historicamente construídas suscitam questões que, apesar de não serem novas, precisam de respostas que incluam os avanços no conhecimento humano. E é fundamental ressaltar que se trata de respostas para o sofrimento humano que a clínica se encarrega de revelar.

E na RA observam-se os efeitos do discurso da ciência, que entendemos aqui como o laço social por ela instaurado, no qual ela pretende que o outro seja igual a todos, e que seu agente detenha o saber sobre o bem do outro. Consideramos essa posição delicada na medida em que os profissionais, detentores que são do conhecimento e das técnicas de tratamentos que devem ser “para todos”, precisam considerar também o caso singular “daquele sujeito e sua história”. Com a palavra, também, a sociedade, e o que ela tem a nos dizer.

Declaração: Os autores trabalharam juntos em todas as etapas da elaboração do manuscrito. A primeira autora é psicanalista, aluna do Doutorado orientada pela segunda autora, médica, especialista em Reprodução Humana. O terceiro autor é também médico, especialista em Reprodução Humana e conduziu os procedimentos de RA nos casais cujos homens foram entrevistados pela primeira autora para a pesquisa central da tese.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Marisa Decat de Moura
E-mail: marisadecatm@uol.com.br
Maria do Carmo Borges de Souza
E-mail: mariadocarmo@cmb.com.br
Bruno Brum Scheffer
E-mail: bruno.scheffer@ibrra.com.br>

 

 

1 Função Paterna e o lugar do Pai nos tratamentos. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Medicina, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. Clínica de Psicologia e Psicanálise do Hospital Mater Dei - Instituto Brasileiro de Reprodução Assistida – IBRRA.
2 G&O Barra- RJ- Reprodução Humana.
3 Instituto Brasileiro de Reprodução Assistida, IBRRA.
4 Entende-se por neoliberalismo a prática político-econômica baseada nas ideias dos pensadores monetaristas que defendiam uma redução da ação do Estado na economia.
5 Filósofo grego que, por sua obra, buscava o conhecimento das verdades essenciais que determinam a realidade para poder estabelecer os princípios éticos que devem nortear a realidade social.
6 Referência ao título do livro: Un bébé s’il vous plaît! Démons et merveilles de la procréation assistée, Pierre Lunel, Editions Anne Carrière, Paris, 2004.
7 Segundo o sábio grego Teofrasto, os espelhos etruscos em bronze mostravam demônios femininos afrodisíacos cuja função era proteger as mulheres em trabalho de parto.
8 Hesíodo, poeta grego, entrelaça e enriquece a história dos mitos, traçando uma genealogia sistemática das divindades.
9 A palavra Bíblia deriva do grego bíblos, no plural, ou bíblion (ß?ß????) que significa "rolo" ou "livro". Bíblion, no caso nominativo plural, assume a forma bíblia, significando "livros". No latim medieval, biblìa é usado como uma palavra singular – uma coleção de livros ou "a Bíblia". Foi São Jerônimo, tradutor da Vulgata Latina, que chamou pela primeira vez ao conjunto dos livros do Antigo Testamento e Novo Testamento de "Biblioteca Divina". A Bíblia é uma coleção de livros catalogados, considerados divinamente inspirados pelas três grandes religiões dos filhos de Abraão, que são o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo, e por isso são conhecidas como as religiões do Livro. É sinônimo de “Escrituras Sagradas" e “Palavra de Deus".
10 Extraído do Jornal Electrónico de História, edição de janeiro de 2007, Henrique VIII. Disponível em: http://jehistoria.blogsome.com/category/edicao-de-janeiro-de-2007. Acesso em: 08/09/2008.
11 Extraído de “Henrique de Navarra ou de Bourbon, Henrique IV da França”. Disponível em: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/RFHenr04.html. Acesso em: 08/09/2008.
12 Fonte: Networked Writing Environment at the University of Florida. Disponível em: http://web.nwe.ufl.edu/~jdouglas/lit_rev_wildlife.pdf. Acesso em: 10/10/2008.
13 O sujeito não é o autor de seu dizer, é efeito do dito, formulado por Jacques Lacan em seu estudo sobre os discursos.
14 Jornal Brasileiro de Reprodução Assistida, Suplemento, 2008.
15 Disponível em: http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/mundo/conteudo.phtml?tl=1&id=852663&tit= Mae-de-octuplos-ja-tinha-seis-filhos. Acesso em: 30/01/2009.

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