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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.12 n.2 Rio de Janeiro dez. 2009

 

ARTIGOS

 

O tempo para os que esperam: reflexões a partir do atendimento psicológico a pacientes na Unicor de um hospital público da cidade do Rio de Janeiro1

 

Time for those who are waiting: reflections from psychological work with cardiology patients in a public hospital in Rio de Janeiro

 

 

Flávia Figueira de Andrade Porto2,I; Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt3,II

I Curso de Especialização em Psicologia da Saúde, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
II Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho contemplou a experiência do terapeuta no atendimento psicológico a pacientes internados na Unidade Coronariana de um hospital público da cidade do Rio de Janeiro. Nesta prática foi possível observar a urgência do tempo de espera dos pacientes por encaminhamentos cirúrgicos e/ou de tratamento, motivada pela expectativa de recuperação da saúde. Estava em jogo nessa espera, a reapropriação da vida relacional e ocupacional por parte do paciente, sua oportunidade de dar prosseguimento a investimentos pessoais e de retornar ao convívio familiar. O espaço físico hospitalar e suas implicações na comunicação entre os pacientes, com a equipe e familiares, o manejo do saber/poder médico e a consequente relação afetiva estabelecida entre as pessoas que fazem o cotidiano institucional foram fundamentais no processo de produção de subjetividade ou de despersonalização dos sujeitos ali internados. Este trabalho, que partiu de uma perspectiva psicanalítica de análise e de estudos sobre modelos asilares de instituições de cuidado (Goffman, 1987), trouxe à baila a importância de relações afetivas satisfatórias que considerem o paciente um ser em potencial, capaz de amenizar os impactos gerados pelo tempo de espera com sua possibilidade criativa.

Palavras-chave: Saúde; Tempo; Comunicação; Relação terapeuta-paciente; Criatividade.


ABSTRACT

This work was inspired by an experience in psychological therapy of hospitalized patients in the coronary unit of a public hospital in Rio de Janeiro. The urgency of time was observed in surgical and clinical patients, motivated by the expectation of health recovery, including relational and occupational life, personal projects and the return to family life. This study sought support in poetry to describe some feelings related to therapeutic practice. Physical space and its implications for communication between the patients, the medical team and family, the management of knowledge / power relationship and the resulting affective relationship in the staff were fundamental conditions for the quality of subjective feelings in the hospitalized subjects. This work, which started from a psychoanalytic perspective and from studies on patterns of asylum care institutions (Goffman, 1987), outlined the importance of emotional relationships in order to mitigate the impacts generated by the waiting time with creative possibilities.

Keywords: Health; Time; Communication; Terapist-client Relationship; Creativity.


 

 

Introdução

Àqueles que têm pouco tempo, a obra acabada, a plenitude. Para o tempo da pergunta à resposta, o segundo. E no tempo da privação, a imaginação, a juventude.

Àqueles que se foram, o sonho realizado, o registro. Para o tempo da lágrima ao queixo, a lembrança dos bons tempos. E no tempo do sorriso, o pausar das horas, o infinito.

Este trabalho é fruto da prática na Unicor de um hospital público do Rio de Janeiro.

A partir de dois casos clínicos, pretende-se abordar o transcurso do tempo vivenciado por pacientes em situação de internação, tendo por fios condutores as seguintes questões:

Como o tempo passa para cada paciente? Como é a adaptação dos pacientes nesse novo tempo-espaço de relações e afetos?

Quais as discussões pertinentes que se referem ao tempo psicológico em detrimento ao tempo cronológico de internação, considerando-se a morosidade que envolve os processos de saúde pública – disponibilização de leitos, burocratização na marcação de exames, longas filas de espera para a realização de cirurgias?

Este trabalho privilegia a característica multifacetária do tempo, buscando entendê-lo na articulação de suas dimensões objetiva e social e subjetiva, portanto, singular.

O foco deste estudo abrange o tempo da hospitalização em suas diversas modalidades: tempo da espera pelo leito, do atendimento médico, da visita dos familiares; o tempo da dor, da ansiedade, da insônia, da espera pelo diagnóstico; o tempo longe de casa, o pouco tempo que resta a um paciente na perspectiva da morte, ou seja, o transcurso do tempo e a relação que o sujeito estabelece com este.

Alguns pontos foram cruciais para a escrita desse trabalho, dentre eles:

• O conhecimento dos pacientes sobre a previsão de seu tempo de vida, implicando na forma como vivenciavam cada minuto ali;

• A pressa em voltar para casa ou para resolver questões pendentes fora do hospital frente à morosidade dos processos envolvendo marcação de exames e realização de cirurgias;

• O desejo de “parar o tempo” da visita e a rapidez com que percebiam sua passagem, ao contrário do tempo da angústia ou do medo que pareciam muitas vezes infindáveis;

• A espera pela data da cirurgia e a piora no quadro clínico dias antes de sua realização, prorrogando ainda mais o tempo de internação;

 

Metodologia

Esta pesquisa de natureza qualitativa se fundamentou na psicanálise e teve como corpus de análise dois relatos de casos clínicos e a experiência do terapeuta na atendimento psicólógico a pacientes em situação limite entre vida e morte.

Os pacientes tratados nesse estudo estavam internados na Unidade Coronariana de um hospital público do Rio de Janeiro em decorrência de doença cardíaca.

Os atendimentos psicológicos a estes pacientes aconteciam duas vezes por semana num período aproximado de vinte minutos, sendo que em alguns momentos foi preciso mais de um atendimento no dia, considerando a situação limite em que estes se encontravam. Os pacientes corriam risco de morte súbita em decorrência do quadro clínico cardíaco.

 

Sobre o tempo da espera e o cortar dos fios: um relato de caso

“... não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.” (LISPECTOR, 1999, p.325)

L. chegara à Unicor depois de longos dias na emergência do hospital. Talvez não fossem tantos os dias, talvez fosse o tempo do primeiro socorro médico, mas para ele, as horas naquela sala fria, com sons e pessoas desconhecidas num clima de intenso temor, aflição e dor, passavam tão lentamente que pareciam não findar.

O motivo de sua internação fora uma forte dor no peito, tendo sido L. diagnosticado como portador de Angina. A gravidade da doença poderia ser avaliada por meio do cateterismo4, cuja execução dependia da fila de espera nos hospitais públicos que realizavam tal exame e das condições fisícas do paciente.

O tempo na unidade passara a ser uma espera sem fim. Espera pela resposta sobre a marcação do cateterismo, espera pela sua realização, espera pelo encaminhamento do tratamento pós-exame. Além disso, L. precisava controlar-se, preservar-se, acalmar-se para não ter uma crise cardíaca às vésperas de qualquer procedimento cirúrgico. Caso isso ocorresse, tudo seria cancelado – ambulância para deslocamento de um hospital a outro, acompanhamento familiar, cirurgia –, ou seja, voltar-se-ia à estaca zero, dando início a um novo ciclo de esperas.

Diante do autocontrole exigido nesse tempo – coração, pressão, temperatura em níveis indicados - horas antes da realização de um exame tão esperado o organismo pareceu desligar-se do desejo, surpreendendo à equipe médica e ao próprio paciente, que fracassavam juntos sem entender as razões pelas quais o corpo se desequilibrara.

Assim, a impressão de cisão entre corpo e mente, de desapropriação de si mesmo ligada à impotência médica configurava uma dura realidade. Afinal, o corpo não escutara a mente? Ou a escutara tanto que, embriagado do desejo de concretização de um plano, engasgara-se com seu próprio ar e sua própria saliva?

No segundo caso, da paciente M, não havia obstáculo que pudesse tirá-la de sua cadência. Era uma pessoa ativa, cooperativa, “engolia sapos” (sic) para manter-se sob o controle de sua razão.

Durante um bom tempo pareceu haver um desajuste entre sua energia e o tempo de espera de uma possível cirurgia cardíaca.

A aparente resiliência da paciente – qualidade da pessoa que não desanima, não se deixa abater (BOLWBY, 1990) – não durou porem todo o tempo. Após meses de internação e indefinições sobre sua situação clínica, ela oscilava entre momentos de profunda apatia e agitação motora.

M. enredada na burocracia das marcações, fila de espera, etc, esperava a definição sobre o que seria feito a respeito de sua cardiopatia. Esperava por uma providência que, ora era atribuída a outro hospital responsável pela realização de cirurgias - ora aos médicos dali do hospital que, segundo ela, apresentavam-se passivos diante de sua situação.

É importante ressaltar que, segundo os mesmos, uma cirurgia cardíaca no caso desta paciente envolvia grande risco de morte, considerando gravidade, idade e condição física de M.

Assim, percebeu-se que além da dificuldade dos médicos em lidar com o fator morte, encurtando explicações à paciente sobre sua doença e prognóstico, existia também a impotência envolvida, pois dependiam, assim como ela, do contato do hospital cirúrgico para definição de datas e procedimentos, da disponibilização de ambulância. Criou-se um impasse: sem a cirurgia M. poderia morrer, e com a cirurgia também.

A morte em casos como este passa a assumir um lugar crucial no tempo de internação do paciente. Uma dura realidade que produz efeitos também na equipe.

Não cabe, aqui, responsabilizar o sistema público, tampouco a equipe médica por esses impasses no direcionamento do caso clínico de um paciente, mas discutir a partir de uma perspectiva psicanalítica, a morte enquanto possibilidade de vivência de aniquilamento, de não-ser, de “reencontro com as angústias impensadas”. (SAFRA, 1999) também para a equipe de saúde. A negação da morte e a resistência em definir projetos que a incluam, protegem o sujeito dessa experiência. Sobre essa negação Cassorla (2004) pontua:

“trata-se de um mecanismo psicológico em que não percebemos a realidade. (...) A negação da morte faz parte de nossa cultura atual. Por isso nos afastamos dela, ou quando nos defrontamos com ela, nossa mente faz o possível para que nada sintamos e nos esqueçamos logo do assunto. (CASSORLA, 2004)

Segundo Freud (1915) existe uma tendência “convencional e cultural” em colocarmos a morte de lado, excluí-la de nossos projetos de vida, “pois a isso só podemos dar um conteúdo negativo”.

Isso tudo para compreender que apesar da medicina ser um campo de saber no qual a morte é um fato corriqueiro, os médicos não estão isentos dessas representações negativas, pois são criados numa mesma cultura que os demais sujeitos e formados para a vida.

Ainda sobre M, era possível perceber nos olhos das pessoas da equipe certa aflição contida por, a cada passagem pelo leito, não poderem oferecer nada que acabasse com sua espera.

Para o futuro era preciso criar uma ponte que a transportasse na hora devida. Não havia como morrer antes do tempo, não concretamente, pois seu coração ainda batia em seu peito. E talvez não fosse esse o seu desejo, já que em meio a essas indefinições, a esse não saber, M. cria um sintoma.

Ainda que sua energia, sua possibilidade de controlar suas emoções, sua resistência à dor, fossem substituídos por sua extrema falta de apetite, seus gemidos na coleta de sangue e durante higiene íntima, essa mudança de estado apontava para a urgência de M.

Seu sintoma incidiu sobre a realidade produzindo efeitos: a equipe que silenciava seu caso passou a irritar-se com suas inadaptações, seus desconfortos, suas “crises” (sic). Os médicos passaram a requisitar o terapeuta, sugerindo o uso de antidepressivos ou alertando para o estado caótico de M.

Houve momentos em que M. confundiu a manta que estava em seus pés a outro objeto, relatou num dos atendimentos com o terapeuta que estava caindo, quando estava, seguramente, deitada no leito e visualizou suas mãos, tremendo, quando estavam paradas sobre seu corpo.

De fato, M. estava abrindo um espaço de comunicação, mais primitiva, mas a única possível naquele momento.

Frente ao caos apontado pelas pessoas da equipe, o terapeuta procurou chamá-las para a realidade da espera de M. por respostas e providências, esclarecendo que suas crises traduziam sua possibilidade de ação/reação no mundo.

Winnicott, nas palavras de Safra (1999), considera o sintoma da ilusão como um “fenômeno pelo qual um sentido de realidade é estabelecido: a realidade subjetiva.”

Em seu texto O sagrado e a criatividade, Safra (1999) pontua:

“o processo de cura, na situação clínica busca o estabelecimento do sentido de sagrado através da abertura da possibilidade da recuperação da capacidade criativa na transfiguração do mundo pela realidade pessoal e subjetiva.”

Portanto, o sintoma de M. traduzia sua realidade. Sob o rótulo da ilusão ou do caos nomeado pelos médicos, esta, expressava o que tinha de mais íntimo.

A sensopercepção de que podia cair a qualquer momento ou de que suas mãos tremiam demostravam uma realidade propriamente subjetiva.

M. sabia da possibilidade de morte fazendo ou não a cirurgia, percebia o clima quando os médicos tentavam traduzir o intraduzível. Percebeu tão bem a realidade que criou um sintoma tão condizente a ela.

 

Discussão

Pode-se afirmar que a percepção da passagem do tempo depende da relação do sujeito com o meio, com o objeto investido num determinado intervalo de tempo, como uma situação de internação, por exemplo.

A forma como o sujeito vivencia uma experiência será determinante na percepção da passagem desse momento, que para uma pessoa pode ocorrer de forma lenta e morosa, enquanto que para outra, não. Na Unicor, foi possível observar as variações na percepção da passagem das horas. O tempo em determinados momentos corria macio para alguns pacientes, enquanto que, para outros essa passagem causava tamanha excitação que a sensação era de que o tempo não corria a favor, parecendo pausas intransponíveis.

Assim, explica Ferraro (2003) a partir de Pomian (1993):

“as diferentes temporalidades fazem com que o tempo varie em intensidade e em extensão. Alguns períodos podem parecer mais longos, embora é sabido que, à escala do calendário, tiveram igual duração.”(p.15)

Era significativo observar-se como o momento do atendimento médico tinha um tempo próprio. Abria-se uma brecha e, este, corria veloz, já que o tempo com o médico era sempre insuficiente para a demanda do paciente.

Percebeu-se que esta era a hora do conforto, da atenção especial do médico que representava para muitos um seguro de vida. Naquele momento não se morria, se estava seguro, assim como o tempo descrito por Marcel Proust, citado por Bittencourt (2005), “aquela hora não era uma hora, era um vaso cheio de perfumes, sons, projetos e climas”.

O mesmo acontecia no horário da visita. Pacientes relatavam que “não viam a hora passar” (sic) de tão rápida. Segundo, estes, aquele momento era muito pouco para a saudade e, por mais que tentassem acelerar com os assuntos, os abraços, a falta era irreparável pelo tempo.

Quando os olhos estão voltados para a marcação dos ponteiros, na espera do amor ou do cessar de uma dor, por exemplo, a expectativa de que o tempo passe rápido rouba sua possibilidade de acontecer naturalmente.

Deste modo, acredita-se que a fixação do sujeito no tempo, exclui, muitas vezes, outros estímulos que poderiam contribuir para o atravessamento mais suave e agradável de situações como estas.

A unidade de monitoração cardíaca contínua, onde foi desenvolvido esse trabalho, dispunha de um espaço reservado que minimizava, significativamente, a relação do sujeito com o meio externo. Ou seja, no intuito de preservar os pacientes de variáveis intervenientes no processo terapêutico, este espaço era como um campo neutro. Composto por sete leitos distribuídos em formato de U, com divisória entre eles, restringindo o contato visual entre os pacientes, esta unidade apresentava, também, a finalidade de controle do meio.

Era permitido somente uma hora de visita com apenas duas pessoas diferentes por dia. Rádios, jornais de notícias, relógios, fotos de familiares nem sempre eram bem-vindos pela equipe, por receio de uma ligação excessiva com questões externas, de um desequilíbrio no estado físico-emocional do paciente. A iluminação também seguia uma lógica peculiar, não necessariamente, vinculada ao ambiente externo, ao ciclo de vinte e quatro horas.

A respeito do sistema de controle do meio, fundamentado no saber científico e efetivado pelo poder médico, pode-se acrescentar o fato dos pacientes serem identificados pela equipe através de sua numeração. A partir da definição de Goffman (1987) sobre instituição, pode-se verificar certa semelhança com as características da Unicor descritas neste trabalho:

“sistema de atividades intencionalmente coordenadas e destinadas a provocar alguns objetivos explícitos e globais. O produto esperado pode ser: artefatos materiais, serviços, decisões ou informações;” (p. 149)

Sobre o “produto esperado”, pode-se afirmar que, a alta ou a resolutividade nos processos de saúde passa a ser o produto principal, pelo qual os pacientes se referenciam. Trocando em miúdos, a saúde ou a realização de uma cirurgia tão esperada adquire um valor significativo nas relações, motivando ações de dominação e submissão entre equipe e paciente, respectivamente.

A partir dos atendimentos psicológicos a pacientes da Unicor, percebeu-se que muitos deles assumiam uma postura pouco questionadora na esperança de serem rapidamente atendidos e bem tratados numa situação de emergência. Os pacientes relatavam a necessidade de agradar enfermeiros e médicos para tê-los a seu favor, disponíveis e afetuosos.

Em se tratando da internação hospitalar, existe a representação da equipe médica como aquela que detém o poder sobre a saúde de seus pacientes. É através do saber médico que medidas são tomadas para aliviar as dores e sintomas dos pacientes enfermos.

Assim, como discordar ou desapontar a equipe quando, esta, não está sendo resolutiva ou, satisfatóriamente, atuante para o paciente? No caso de um paciente pouco informado sobre sua doença, a mercê de decisões médicas, como expressar seu descontentamento sem que isso o prejudique, já que depende do bom relacionamento com a equipe?

Observou-se nesses atendimentos o esforço de pacientes na busca por um perfil ideal que agradasse à equipe, evitando “incomodá-la” (sic) com pedidos de ajuda.

Mas, como é difícil sustentar por muito tempo uma imagem tão perfeita e agradável, ainda mais num momento em que o corpo é tomado por dor e medo intensos, estes pacientes acabavam perdendo o controle de suas emoções de uma forma enfurecedora. Nesses casos, a equipe médica chegava a questionar com o profissional de saúde mental a necessidade da utilização de medicação para conter esse estado de agitação e alteração emocional do paciente.

Partindo da idéia exposta por Jorge (1983), nas palavras de M., Benelli e Costa-Rosa (2003), existe uma tentativa de excluir e/ou silenciar o sujeito “pelo dispositivo institucional totalitário (e asilar)” pautado pelo discurso médico.

Sobre o investimento da equipe médica em causas psicopatológicas para os desajustes de M., Benelli e Costa-Rosa (2003), a partir de Goffman (1987), auxiliam no entendimento desta questão:

‘Sua emergência costuma ser apreendida no registro do desvio, (...). Seu advento (...) um obstáculo que emperra o funcionamento adequado e efetivo do processo institucional. Ora, por mais que se negue, descarte o sujeito, ele persiste teimosamente em aparecer e tumultuar o ambiente, (...): manifesta-se nas disfunções e falhas que acometem as práticas microfísicas no contexto do estabelecimento.

Pode-se pensar que esses “desvios” da paciente são tentativas de denunciar o instituído, aquilo que passa a ser cotidiano e que, por isso, acaba por naturalizar-se naquele espaço.

Passa a ser comum que pacientes fiquem internados meses até que se possa realizar sua cirurgia, e mais, passa a ser comum os profissionais de saúde conviverem com esta realidade sem muita implicação.

 

Considerações finais: o tempo para os que esperam

Este trabalho buscou evidenciar a preciosidade do tempo para os pacientes que vivem à espera numa unidade hospitalar.

Observações clínicas mostraram que o atravessamento de momentos difíceis na internação dependerá das possibilidades internas de cada paciente, que condicionam o modo de vivenciar a marcação objetiva das horas.

A desestabilização no estado clínico de L. e a criação do sintoma de M. apontaram para a necessidade do cuidado com o modo como se davam as relações naquele tempo-espaço hospitalar.

Considerando as limitações que uma internação em Unicor impõe, acredita-se que é possível, sim, atribuir dimensões ao tempo real, desde o investimento em terapias ocupacionais que atualizem as potencialidades do sujeito abrindo espaço para a criatividade, até a valorização de relações afetivas significativas entre os pacientes e também com a equipe, superando, portanto, modelos hospitalocêntricos que contribuem para a despersonalização do sujeito.

 

Referências

Bittencourt, M. I. G. F. Reflexões sobre o tempo - instrumentos para uma viagem pelo ciclo vital. Psyche, São Paulo, v. ano IX, n. vol 15, p. 93-104, 2005.         [ Links ]

Benelli, Sílvio José; ROSA, Abílio da Costa. Geografia do poder em Goffman: vigilância e resistência, dominação e produção de subjetividade no hospital psiquiátrico. Estudos de Psicologia (Campinas), Campinas, Sp, v. 20, n. 2, p. 35-49, 2003.         [ Links ]

Bowlby, J. Trilogia Apego e Perda. Volumes I e II. São Paulo. Martins Fontes, 1990.         [ Links ]

Cassorla, S. M. R. (2004) Entrevista com Dr. Roosevelt Moises Smeke Cassorla. Edição 272. 25 a 31 de outubro de 2004. Página consultada em 29 de maio. http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2004/ju272pag11.html        [ Links ]

Freud, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1915.         [ Links ]

Goffman, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1987.         [ Links ]

Jorge, M. A. C. Discurso médico e discurso psicanalítico. In: CLAVREUL, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. (Noujaim, J.G. et al.; Trad.) São Paulo: Brasiliense, 1983.         [ Links ]

Lispector, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.         [ Links ]

Safra, G. O sagrado e a criatividade. In: João Spinelli; Eunice Vaz Yoshiura; Latife Yazigi; Eduardo Yazigi. (Org). Criatividade: uma busca interdisciplinar. 1 ed São Paulo: UNESP, 1999, v. 1, p. 73-75.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Flávia Figueira de Andrade Porto
Rua dos Piquirões, 80/601, Jardim Aquárius
São José dos Campos, SP – Brasil
E-mail: flafigueira@gmail.com

Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt
Rua Marquês de São Vicente, 225, Gávea
Rio de Janeiro, RJ – Brasil.

 

 

1 Monografia aprovada no Programa de Pós-Graduação Lato Senso em Psicologia da Saúde, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob a orientação da Prof.(a) Dr.(a) Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt.
2 Aluna do curso de Especialização em Psicologia da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC – Rio.

3 Psicóloga clínica, prof.(a) doutora do Departamento de Psicologia da PUC – Rio. http://www.puc-rio.br
4 Procedimento cirúrgico com finalidade diagnóstica e terapêutica.

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