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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.12 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2009

 

ARTIGOS

 

Histerectomia e simbolismo do útero: possíveis repercussões na sexualidade feminina

 

Hysterectomy and uterus symbolism: potential impact on female exuality

 

 

Mônica Cristina Batista de Melo1; Érika Neves de Barros2

Hospital de Câncer de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Histerectomia atualmente representa a segunda cirurgia mais realizada entre mulheres em idade fértil, no Brasil. Consiste na extração cirúrgica do útero, órgão feminino comumente investido de grande carga afetiva e vinculado à fertilidade e sexualidade, sendo considerado importante representante da feminilidade. Como tratamento cirúrgico, pode desencadear fortes mudanças refletidas no corpo, no psiquismo e no social. O presente trabalho teve como objetivo investigar se o evento da histerectomia, devido ao valor simbólico do útero, pode comprometer a sexualidade da mulher. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa com amostra definida obedecendo ao critério de saturação de dados, os dados obtidos através de entrevistas foram analisados seguindo a técnica de análise de conteúdo. A maioria das entrevistadas associou o útero à reprodução, apontou repercussões negativas na sexualidade após a cirurgia, como falta de desejo e prazer sexual, porém, recomendou a cirurgia como tratamento para doenças do útero. A pesquisa contribui para um maior conhecimento sobre os valores atribuídos ao útero e as repercussões da histerectomia na sexualidade feminina. Como conclusão, percebe-se a relevância de uma abordagem à saúde da mulher que envolva aspectos biológicos, psíquicos e culturais.

Palavras-chave: Histerectomia; Útero; Sexualidade; Mulher.


ABSTRACT

Hysterectomy today represents the second most performed surgery in women at fertile age in Brazil. It consists of the surgical removal of the uterus, female organ commonly associated with affection, fertility and sexuality. It is considered, therefore, an important symbol of femininity. As surgical treatment, it can trigger considerable changes in the body, mind and social. This paper aims to investigate if hysterectomy, due to the symbolism of the uterus, can compromise the woman’s sexuality. It’s a study of qualitative approach with a defined sample, following the data saturation criteria. The data was obtained through interview and analyzed according to the content analysis technique. The majority of the interviewed woman associated the uterus to reproduction and pointed negative repercussions in their sexuality after the surgery, such as lack of sexual desire and pleasure. However, they recommended the surgery as treatment for uterus diseases. The research contributed to enrich the knowledge about the values attributed to the uterus and the repercussions of hysterectomy in female sexuality. As a conclusion, it is perceived that an approach to women’s health that involves biological, psychological and cultural aspects is relevant.

Keywords: Hysterectomy; Uterus; Sexuality; Woman.


 

 

Introdução

Por definição, histerectomia é a remoção do útero através de intervenção cirúrgica (Bare e Smeltzer, 2002; Kusnetzoff, 1998; Lemgruber e Lemgruber, 2001; Rezende, 2002; Segal, 1994).

Embora se perceba uma crescente preocupação quanto a um maior rigor na avaliação de sua indicação, esta ainda é realizada como medida preventiva de câncer ou como forma de esterilização, especialmente em casos de mulheres com prole numerosa ou que não demonstrem desejo de engravidar e em mulheres com idade acima de 40 anos ou após a menopausa (Kusnetzoff, 1998; Lemgruber e Lemgruber, 2001; Pinho Neto e Pinho Sales, 2002; Rezende, 2002; Riviori, Reis, Monego, Apell e Capp, 2003).

Atualmente, a prevalência de histerectomias é alta. Lemgruber e Lemgruber (2001) declaram que nos Estados Unidos esta seria a segunda cirurgia mais realizada, atrás apenas da cesariana. No Brasil, de acordo com Araújo e Aquino (2003), a histerectomia também seria a segunda cirurgia mais freqüente entre as mulheres em idade fértil. Segundo Sória et. al. (2007), estima-se que 107.000 histerectomias tenham sido realizadas no país, através do Sistema Único de Saúde (SUS), no ano de 2005. Neste mesmo ano, dados do DATASUS (2007) apontam para a ocorrência de 6.976 dessas cirurgias em Pernambuco.

O útero (palavra originária do grego hystera) é um órgão feminino, musculoso, oco e elástico no qual se processa o desenvolvimento embrionário, tem seu formato semelhante ao de uma pêra invertida. Também chamado de “matriz”, aparece investido como sede da feminilidade na medicina antiga (Castro, 1985; Swain, 1986). Aristóteles, citado em Lemgruber e Lemgruber (2001), acreditava que o útero seria o ponto central da feminilidade, representando o espírito da mulher.

Desde a Antiguidade o mistério e o tabu cercam o corpo da mulher. Ainda na atualidade, a anatomia dos órgãos sexuais e reprodutivos femininos é desconhecida por muitas mulheres. Nomear o corpo feminino é também afirmar sua existência, sua complexidade, e não conhecer o próprio corpo pode implicar em não reconhecer o seu funcionamento e a sua sexualidade. Embora a sexualidade não se restrinja apenas aos órgãos sexuais, ela perpassa por todo o corpo e está intimamente ligada à subjetividade, o conhecimento dos órgãos contribui para desmistificar e quebrar os tabus que envolvem o corpo da mulher e sua relação com o sexo.

Serapião (2002) aborda a confusão existente entre a função sexual e a função reprodutora dos órgãos femininos. Salienta que apesar dos avanços ocorridos no estudo da sexualidade e da morfofisiologia, ainda se percebe certos preconceitos referentes ao tema no meio científico. Exemplo disso está na tendência dominante durante muito tempo de se estudar apenas as respostas sexuais masculinas, negando ou omitindo o prazer feminino.

A visão do corpo feminino voltado apenas para servir a finalidade reprodutiva, excluindo o prazer, era bastante forte especialmente antes da emancipação feminina e do avanço dos métodos contraceptivos, interferindo na forma como a mulher vivenciava sua sexualidade (Montgomery, Berenstein e Marcolini, 2002). A influência da religião também reforçaria essa ligação entre sexualidade e reprodução. Em culturas influenciadas pela religião cristã, por exemplo, a sexualidade freqüentemente é vista com uma conotação de pecado. A busca pelo prazer sem fins reprodutivos é comumente recriminada, sendo o sexo legitimado dentro do casamento, com o objetivo maior de constituir uma família. Nessas culturas, prazer e culpa muitas vezes estão associados (Caridade, 1997; Catonné, 1994).

Eizirik (2001) fala sobre a exaltação da fertilidade como atributo máximo da mulher e como prova de sua feminilidade, sendo a maternidade vista como inseparável à condição feminina. De acordo com este autor, a gestação traria latente uma sensação de plenitude e de poder, a maternidade traria ainda gratificações desde ganhos na auto-estima, devido à capacidade geradora, a um reconhecimento e atenção especiais proporcionados pela família e sociedade. Neste sentido, a fertilidade seria vista como uma virtude e a esterilidade como uma punição ou um fracasso.

Além disso, Haynal e Pasini (1983) apontam para o fato de a gravidez significar, em certo aspecto, a garantia de uma sexualidade não egoísta, o que seria legitimado em nossa cultura que sofre fortes influências religiosas, onde o ato sexual com finalidade única de prazer pode trazer arraigada a idéia de pecado.

Maldonado (1985) citando Kniebiehler e Fouquet, que utilizaram as figuras de Eva e Maria, analisa a separação entre sexualidade e maternidade: Eva simboliza a sexualidade da mulher, o seu lado erótico, mas, também o pecado, a maldade e apesar de ser considerada a primeira mulher do mundo e, portanto, mãe de todos os homens, sua imagem não representa a maternidade. Maria traz vinculada a si a representação da maternidade, sendo associada à pureza e distanciada da sexualidade, é reconhecida como a grande mãe, porém, ao mesmo tempo é pura e virgem.

Kusnetzoff (1988) enfatiza a importância de uma boa educação sexual baseada no conhecimento da anatomia e funcionamento dos órgãos para diminuir mitos e tabus. De acordo com este autor, a mulher teria biologicamente condições de vivenciar prazerosamente sua sexualidade, porém, uma educação sexual falha aliada a fatores sociais poderia interferir negativamente no prazer feminino.

Helman (2003) afirma que em qualquer sociedade a representação do corpo não se limita meramente ao conjunto de órgãos que alterna períodos de saúde e de doença. Destaca que o corpo humano representa ainda uma série de crenças envolvendo seus significados sociais, psicológicos e o significado de sua estrutura e função. Nesta perspectiva, o modo como o sujeito percebe o seu corpo, consciente ou inconscientemente, seria a imagem corporal. A estruturação dessa imagem ocorreria através da interação do sujeito com o seu meio familiar, cultural e social.

Um tratamento cirúrgico pode desencadear fortes mudanças causando reflexos no corpo, no psiquismo e no social. Mesmo após uma cirurgia planejada, com um conhecimento prévio sobre a necessidade do procedimento, a intervenção para retirada de um órgão pode proporcionar a vivência de uma falta, exigindo um trabalho de resignificação corporal. Essas mudanças podem gerar sérias angústias, relacionadas aos riscos à sua saúde física, mobilizando o uso de mecanismos de defesas na tentativa de controle das mesmas (Haynal, 2001; Helman, 2003; Montgomery, Berenstein e Marcolini, 2002; Sinvadon, 1988).

O interior do corpo geralmente é envolvido de mistério e de certa curiosidade, sendo mais sujeito a fantasias e crendices, podendo interferir na percepção do sujeito e nas suas reações aos tratamentos médicos (Capisano, 1990; Helman, 2003).

A realização de uma histerectomia pode desencadear fortes reações emocionais. Ansiedades relacionadas à perda do útero e o próprio desconhecimento do corpo feminino e da função dos órgãos envolvidos na excitação e no prazer sexual podem interferir de forma desfavorável na obtenção de satisfação em ambos os parceiros. O medo de sentir dor também pode estar presente na mulher, provocando uma atitude esquiva em relação ao sexo (Segal, 1994).

Bare e Smeltzer (2002) salientam a importância de explicações e informações claras sobre o procedimento cirúrgico e suas possíveis conseqüências a fim de aliviar a ansiedade e melhorar a imagem corporal, bem como esclarecimentos quanto à função do útero e o reasseguramento de que a mulher ainda conta com a vagina, sendo o clitóris e não o útero, importante para a satisfação sexual e o orgasmo.

Para Helman (2003), fatores individuais, mas, também sócio-culturais influenciam nas conseqüências de tratamentos médicos e cirúrgicos. Dessa forma, a histerectomia pode ocasionar em algumas mulheres prejuízos na sua identidade feminina. Rezende (2002) acrescenta que a interrupção definitiva dos períodos menstruais e da capacidade reprodutiva traz conseqüências desagradáveis para a mulher, sua família e o médico.

Em algumas regiões do país o útero e a menstruação estão culturalmente vinculados ao prazer sexual podendo haver uma rejeição masculina à mulher após a cirurgia, por uma associação entre a remoção do órgão e frigidez (Montgomery, Berenstein e Marcolini, 2002). Lemgruber e Lemgruber (2001) relatam que em suas práticas clínicas é comum a constatação de que em classes sociais menos favorecidas é freqüente um afastamento sexual do parceiro após a histerectomia.

Segundo Kusntzoff (1988), assim como nos seios, a mulher faz um grande investimento sobre seu útero. Certas mulheres, por acreditarem que o útero constitui simbolicamente a sede da sua feminilidade, perdem, com sua extração, o seu desejo sexual.

Assim, o útero aparece investido de valores vinculados à sexualidade e ao prazer feminino, sendo considerado um dos mais significativos órgãos da mulher e importante representante de sua feminilidade. Por esta razão, é legítimo investigar se o evento da histerectomia, devido ao valor simbólico atribuído ao útero, pode ser vivenciado como equivalente à remoção do desejo feminino e comprometer a sexualidade dessas mulheres.

 

Método

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa sobre as possíveis repercussões da histerectomia na sexualidade da mulher, realizado no Centro de Atenção à Mulher do Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira, localizado na cidade do Recife, Pernambuco.

Esta pesquisa atendeu aos critérios éticos descritos na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que contempla as Diretrizes e Normas Regulamentares de Pesquisa envolvendo seres humanos. O projeto de pesquisa foi previamente apreciado e aprovado pela chefia do Centro de Atenção à Mulher e pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira.

 

Procedimentos

A coleta de dados ocorreu entre os meses de junho a setembro de 2006. Para a mesma utilizou-se uma ficha de caracterização abrangendo aspectos sócio-demográficos e um roteiro para entrevista contendo pontos voltados para os objetivos da pesquisa. A amostra foi definida obedecendo ao critério de saturação de dados (Polit, Beck e Hungler, 2004). O registro dos dados foi feito através de ficha escrita (aspectos sócio-demográficos) e da utilização de gravador (entrevista). As falas foram transcritas em sua totalidade, sendo depois conferidas e comparadas com as gravações. Os dados obtidos foram analisados seguindo o método de análise de conteúdo, respeitando-se suas três etapas: pré-análise; exploração do material; tratamento dos dados obtidos. (Minayo, 2006).

 

Resultados

Participaram desta pesquisa dezesseis mulheres residentes na zona urbana, em sua maioria da Região Metropolitana do Recife, submetidas à histerectomia em decorrência de patologia benigna, sendo o diagnóstico mais freqüente de miomatose uterina, com cirurgia realizada predominantemente no ano de 2005. A idade média dessas mulheres é de 45,8 anos, a maior parte do grupo declara ser casada, tendo em média três filhos, com escolaridade de ensino médio incompleto, renda familiar mensal de dois salários mínimos e com prevalência da religião católica.

Nas entrevistas, foi comum o relato de dificuldades enfrentadas ao longo da vida. A maioria das participantes afirmou não ter recebido educação sexual no meio familiar. As opiniões sobre sexo foram diversas, algumas mulheres consideraram como algo bom, gostoso, outras afirmaram não gostar e algumas não se expressaram a respeito. A maior parte das mulheres, apesar de ter recebido informações sobre o diagnóstico que as levou a histerectomia, demonstrou desconhecimento quanto ao significado do mesmo. A função do útero mais citada foi a reprodutiva. A maioria das mulheres queixou-se de repercussões negativas na sexualidade após a histerectomia, no entanto, a principal recomendação que fizeram às mulheres com problemas no útero foi a remoção do órgão. Um grande número de entrevistadas recomendou melhorias na relação entre profissionais de saúde e pacientes

 

Discussão

Aspectos sócio-demográficos

Na amostra estudada 100% das participantes residiam na zona urbana, onze delas (68,75%) na Região Metropolitana do Recife e cinco (31,25%) em cidades do interior de Pernambuco. Dentre as indicações para a cirurgia, observou-se um predomínio de miomatose uterina (68,75%), sendo que do total, oito mulheres (50%) tinham somente este diagnóstico e três participantes (18,75%) o apresentavam associado à outra causa. Esse achado coincide com os dados encontrados por Sória et. al.. (2007).

Segundo Aquino e Araújo (2003), o diagnóstico de miomatose uterina corresponde a uma proporção que varia entre 30 a 60% nas indicações de histerectomia na Europa e Estados Unidos da América. De acordo com Lemgruber, Lemgruber e Teixeira Costa (2002), o mioma uterino é a mais freqüente patologia tumoral da pelve da mulher, sendo responsável por 95% dos tumores benignos do aparelho genital feminino.

A idade média das participantes assemelha-se ao grupo investigado por Aquino e Barreto de Araújo em 2003, onde a maior incidência de histerectomia também foi observada na faixa etária entre 45 e 49 anos, estas autoras chamam a atenção para a relativa juventude das histerectomizadas.

No grupo, cinco mulheres (31,25%) tinham de um a dois filhos; oito (50%) tinham entre três a quatro filhos e três (18,75%) tinham de cinco a seis filhos. Apesar dos dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2002) apontarem uma tendência à redução do tamanho das famílias, sendo que em 2000 a média nacional para cada família era de 3,5 pessoas, com pequeno aumento nas regiões Norte e Nordeste (respectivamente 4,0 e 3,8), na população estudada esta média mostrou-se mais elevada, com maior taxa no grupo com 5 a 6 pessoas.

Quanto à escolaridade nove entrevistadas (56,25%) declararam não ter concluído o ensino fundamental, uma (6,25%) disse ter concluído esse grau de ensino, quatro (25%) das participantes afirmaram ter o ensino médio incompleto e duas (12,50%) relataram ter concluído o ensino médio. A renda familiar mensal declarada por sete mulheres (43,75%) ficou em torno de dois salários mínimos, quatro participantes (25%) afirmaram ter renda familiar aproximada de um salário mínimo, outras quatro entrevistadas (25%) disseram ser esta renda em torno de três salários mínimos. Uma participante (6,25%) contou viver com a família sem uma renda fixa, sua renda familiar, segundo a mesma, seria menos de um salário mínimo. Podemos observar que estes dados refletem a realidade brasileira atual onde metade da população tem rendimento médio mensal entre ½ a 2 salários mínimos, sendo que no Nordeste, 60% das pessoas têm esse rendimento. No país, as famílias com filhos têm as mais baixas médias de rendimento familiar per capta, as que são chefiadas por homem têm rendimento médio de R$ 295,80. (IBGE, 2002).

Entre as mulheres que tinham o maior número de filhos (18,75%), todas possuíam quanto à escolaridade apenas o ensino fundamental incompleto e renda entre um e três salários mínimos. No grupo com três ou quatro filhos (50%), cinco mulheres tinham o ensino fundamental incompleto e duas o ensino médio completo. A renda de quatro delas era de dois salários mínimos, duas tinham renda de apenas um salário mínimo, uma tinha como renda três salários e uma declarou ter renda inferior a um salário. Uma dessas mulheres teve cinco gestações, porém, na época da entrevista apenas três filhos eram vivos. Entre as participantes que tiveram de um a dois filhos (31,25%), encontram-se as duas com maior escolaridade, ensino médio completo, duas tinham o ensino fundamental incompleto e uma o ensino fundamental completo. Em relação à renda, duas declararam ser esta em torno de um salário mínimo, duas afirmaram ser de dois e uma disse ser de três salários. Esses achados assemelham-se aos dados do IBGE (2002) que aponta para o fato de que mulheres com maior escolaridade apresentarem menor número de filhos, ocorrendo o inverso com as que contam com menor tempo de estudo, ou seja, o IBGE (2002) observa que há uma influência da escolaridade na taxa de fecundidade em todas as regiões do país. Treze entrevistadas (75%) declararam pertencer à religião católica.

 

Entrevistas

Sobre a vida

Nos relatos das entrevistas, dez mulheres (62,50%) declararam ter enfrentado algum tipo de sofrimento ou dificuldade ao longo da vida. Entre elas, o trabalho se fez presente em oito relatos, sendo que três mulheres afirmaram ter iniciado a trabalhar desde a infância e outras três na adolescência. Em geral, esse trabalho começou na roça, ajudando os pais, e depois passou a ser fora do ambiente familiar, como empregada doméstica. “Na realidade, infância eu não tenho muita coisa pra falar porque minha infância foi toda de trabalho.”

Carvalho e Almeida (2003) afirmam a importância da família para garantir a sobrevivência, a proteção e a socialização de seus membros, bem como para a transmissão entre as gerações de valores afetivos e sócio-culturais, assegurando ainda a atenção às necessidades básicas do sujeito, e citam diversos estudos que apontam a importância da família no enfrentamento da crise brasileira. De acordo com estes autores, esses estudos mostram que diante de dificuldades econômicas a família desenvolve estratégias, inserindo no mercado de trabalho cônjuge e filhos, utilizando-se desse trabalho adicional para complementar a renda do provedor e garantir a sobrevivência de seus membros. Sobre o trabalho infantil, Campos e Alverga (2001), Ferreira (2001), Minayo-Gomes e Meirelles (1997) e Nobre (2003) denunciam a existência de certa ideologia, presente em sociedades capitalistas, justificadora e reforçadora da ocorrência desse tipo de trabalho que, apesar dos danos que causa, é freqüentemente percebido como uma medida disciplinar e uma forma de preparo para a vida, principalmente para as classes economicamente menos favorecidas. Minayo-Gomes e Meirelles (1997) apontam o trabalho infantil como uma das formas mais antigas e ainda vigentes de violência. Estes autores enumeram vários danos decorrentes dessa atividade, entre eles: prejuízo no desempenho escolar, o que reduz diretamente as possibilidades futuras de atingir um melhor padrão sócio-econômico; estresse emocional diante da grande carga de trabalho e responsabilidade exigida; prejuízo nos momentos de lazer e nas relações afetivas por causa da redução de tempo reservado para estas atividades; e seqüelas físicas. No grupo estudado, as mulheres que apresentaram relato de trabalho na infância e/ou adolescência, em sua maioria, apresentam poucos anos de estudo e baixa renda familiar, trabalhando atualmente como donas de casa ou como empregadas domésticas, o que revela certa semelhança com o estudo de Minayo-Gomes e Meirelles (1997). Nos relatos fica a idéia da sensação de encurtamento deste período de vida, onde o brincar cedeu espaço para a responsabilidade. O trabalho também parece ter provocado certo distanciamento da família de base, uma vez que algumas dessas mulheres saíram da casa de seus pais para trabalhar e morar no local de trabalho quando eram meninas.

 

A família

Quatorze entrevistadas (87,50%) afirmaram não terem recebido no meio familiar orientações quanto à sexualidade. Entre estas, cinco (31,25%) disseram ter descoberto o sexo através da experiência pessoal; quatro participantes (25%) relataram que as primeiras informações sobre o assunto surgiram através de conversas com amigas. Outras fontes de informação lembradas foram: revistas, livros, meios de comunicação como rádio e televisão, escola. “Nenhuma! (...) Quando eu casei com meu marido eu não sabia de nada! As mãe num dizia nada pros filho, né? A conta de antigamente num era a conta de hoje.”

De acordo com Caridade (1997), o ambiente familiar é o cenário inicial onde a sexualidade feminina se molda, sofrendo influências da cultura e da sociedade. Esta autora destaca a importância da linguagem na constituição da sexualidade, acrescentando ser papel do adulto, em particular da mãe, fornecer as informações adequadas para que a criança cresça e construa sua identidade de forma saudável, pois, a aprendizagem da sexualidade tem início na infância e vai sendo constituída a partir da interação com as pessoas e com o mundo em sua volta. Também Seixas (1998) salienta a fundamental importância da educação sexual proporcionada pela família para a conscientização da diferença anatômica entre os sexos e para a concepção de gênero. Porém, Lerner (1990) afirma que comumente a descoberta do corpo pela menina não é acompanhada de uma correta nomeação dos órgãos genitais por parte de seus pais, o que favoreceria a vivência de dificuldades sexuais quando se atinge a idade adulta. Altmann (2003), em sua pesquisa sobre orientação sexual realizada com adolescentes em escolas, observou que alguns entrevistados nunca tinham conversado sobre sexo com seus pais, e entre aqueles que afirmaram ter conversado, apenas uma pequena parcela teria se referido a essas conversas de forma positiva, considerando ter aprendido mais sobre sexo no meio familiar do que em outros espaços. Dias e Gomes (1999) constataram, em entrevistas a pais de adolescentes grávidas, dificuldades na comunicação familiar sobre o tema, evidenciando-se que os pais repetiam com as filhas a mesma experiência comunicativa vivenciada na adolescência com seus próprios pais. Assim, percebe-se que a dificuldade em se conversar sobre sexualidade parece ser reproduzida na família, sendo repassada através de gerações e interferindo na forma de expressão da sexualidade, fato que remete ao conceito de transgeneracionalidade, apresentado por Zimerman (2000), segundo o qual cada um dos pais de uma criança traz em si arraigado os valores, estereótipos e conflitos de suas respectivas famílias originais reproduzindo-os, por sua vez, nas relações com seus filhos. Os relatos das entrevistadas refletem o silêncio que ronda o corpo feminino e acompanha sua relação com o sexo, o que pode repercutir no não reconhecimento da sexualidade da mulher, contribuindo para a dificuldade que a mulher tem para lidar com este tema.

 

Sexo

Quanto ao que pensam sobre sexo, seis mulheres (37,50%) consideraram algo bom ou muito bom; quatro mulheres (25%) afirmaram não gostar de sexo ou não sentir prazer; duas mulheres (12,50%) disseram que não pensam nada sobre o assunto, percebendo-o como algo normal. “Sexo é... bom!”

Del Priore (2001) comenta sobre as mudanças ocorridas na sexualidade ao longo da história: o surgimento da pílula anticoncepcional teria promovido um prolongamento da vida sexual e contribuído para que o sexo passasse a ser mais freqüentemente associado ao prazer, permitindo uma prática mais ativa, porém, ainda persistiria certa resistência quanto a reconhecer o desejo sexual feminino, como se este necessitasse ser legitimado pela afetividade. Caridade (1997) argumenta que mesmo após o advento dos anticoncepcionais que promoveram uma maior emancipação sexual feminina, a noção por muito tempo dominante do corpo da mulher voltado para a finalidade unicamente procriativa ainda deixa marcas e repercute de forma negativa na sexualidade feminina, na relação que a mulher estabelece com o sexo, o que se reflete no desconhecimento pelo próprio corpo e suas respostas sexuais e no desinteresse pelo sexo e prazer sexual. No grupo estudado, observa-se um maior número de mulheres que consideram sexo como algo bom, embora ele apareça nas falas, intimamente vinculado à afetividade e ao casamento, ou seja, parecendo necessitar ser legitimado pela relação conjugal. Todas as participantes do estudo afirmam ter vida sexual ativa, mesmo aquelas que admitem não gostar de sexo, o que parece denunciar a existência no grupo da noção de sexo como obrigação de casada, retirando dessa prática o prazer que poderia proporcionar.

 

Diagnóstico

Nove entrevistadas (56,25%) apesar de terem recebido informações sobre seus diagnósticos médicos, não conheciam o que eles significavam. Três participantes (18,75%) afirmaram total desconhecimento sobre o diagnóstico. Duas (12,25%) mulheres conheciam o diagnóstico médico e demonstraram certa compreensão sobre o mesmo. Apesar de todas as participantes deste estudo terem se submetido à histerectomia em decorrência de patologia benigna, entre as mulheres que demonstraram desconhecimento sobre o significado do diagnóstico médico recebido, percebeu-se, em três delas, a presença de fantasias relacionadas ao mioma e em quatro, fantasias que envolvem o medo do câncer.

“(...) Eu sabia que era (o mioma) um caroço, né? Um bicho assim, sei lá! O povo dizia que era um bicho que tinha perna, que tem, tem um bocado de raiz, assim.(...) Um bolo de carne, assim. Mas eu não quis ver não. Pedi pra ver não. Sei que era um bicho muito feio, muito terrível ele. (...) Eu via falar que diz que ele come, se a pessoa tiver grávida, que ele come o bebê e ele come você, dentro da pessoa (...) Diz que se não tirar, aí ele, ele coisa o útero. Ele come o útero da pessoa. Aí, depois a pessoa fica com problema de, dá câncer, né? Na pessoa. Ele come aquilo. Eu acho que ele sai comendo as coisa da mulher por dentro. É horrível!”

O estigma envolvendo o câncer é discutido em Linard et al. (2002), que afirmam ser esta doença constantemente relacionada à morte e capaz de favorecer uma rejeição social, sendo a pessoa com câncer comumente vítima de preconceitos. A relação médico-paciente é de extrema importância para garantir acolhimento e fornecer esclarecimentos prevenindo e enfrentando possíveis conflitos vinculados ao diagnóstico, evitando ou diminuindo a mobilização de ansiedades (FEBRASGO, 2004). Segundo Capisano (1990) e Helman (2003) o interior do corpo é objeto constante de curiosidade e lugar de mistérios, sendo mais passível de fantasias e crendices devido ao desconhecimento que o cerca. A falta de esclarecimentos quanto ao diagnóstico que levou à indicação de uma cirurgia pode desencadear intensa angústia diante do medo de câncer e do estereótipo que esta doença carrega em nossa sociedade, freqüentemente associada ao sofrimento e morte. Percebe-se nas falas o medo aliado ao desconhecimento do significado de um diagnóstico de tumor benigno, favorecendo um aumento de ansiedades relacionadas ao próprio corpo. Nos relatos percebe-se a confusão entre mioma e câncer e, neste sentido, a histerectomia passa a ser vista como a retirada do tumor maligno enraizado no órgão feminino e por vezes confundindo-se com ele.

 

Função do útero

A função do útero mais citada pelas entrevistadas foi a reprodutiva, lembrada por quatorze (87,50%) delas. Para sete entrevistadas (43,75%) o útero é um órgão que serve para causar doenças. Três mulheres (18,75%) afirmaram que após gerar os filhos o útero perde a sua função e três (18,75%) acreditam que se ele não serve mais, deve ser retirado. “Sobre o útero não sei não. Sei que ele serve somente pra, pra fazer menino e criar doença, só sei disso. Ele serve pra outra coisa?”

Estes achados coincidem com os encontrados por Sbroggio, Osis e Bedone (2005), em um estudo realizado sobre os mitos em relação à retirada do útero, em mulheres no período pré-operatório de histerectomia, onde a função mais atribuída ao órgão foi a reprodutiva, sendo que o útero apareceu vinculado a valores positivos apenas enquanto cumpria esta função. A fecundidade como papel feminino importante e socialmente valorizado ao longo da história é também lembrada em FEBRASGO (2004) e Del Priore (2001). Neste sentido, a histerectomia poderia ser vivenciada como uma perda da função social da mulher, facilitando a introjeção do mito da mulher oca, pois, a histerectomizada estaria oca de sua função social (Sbroggio, Osis, Bedone, 2005). Del Priori (1999) faz uma interessante apresentação dos valores atribuídos ao útero na medicina antiga, onde o corpo feminino era intimamente vinculado à idéia de pecado e mistério. O útero é cercado por mitos, crenças e valores construídos em sociedade e que são internalizados pelas mulheres, culturalmente este órgão estaria vinculado à noção de fecundidade, criatividade e renovação, representando a promoção da vida, e poderia simbolicamente também representar o processo de transformação e recriação pessoal (FEBRASGO, 2004). Lemgruber e Lemgruber (2001) afirmam ser comum ouvir no meio médico a declaração de que o útero seria o lugar de nenês e de câncer, devendo ser retirado após a mulher ter os filhos, crença que parece ser compartilhada pelas mulheres entrevistadas. Os autores enfatizam o poder que esta declaração teria sobre as mulheres por essas estarem em um momento de maior fragilidade devido à doença e por virem da figura do médico e fazem uma crítica comparando que não se sugere aos homens acima de 40 anos retirarem a próstata a fim de evitar o câncer. Barrozo e Lasman (2004) defendem que não se deve dizer a uma mulher com filhos e sem desejo de aumentar a prole, porém, que queira conservar seu útero, que este órgão só teria por finalidade gerar filhos e doença. Nas mulheres participantes deste estudo, o útero passa a ser visto como ameaçador e até indesejável quando não mais desempenha sua finalidade reprodutiva. Ou seja, a principal função social do corpo da mulher seria a reprodutiva, logo, quando o útero adoece e não pode mais cumprir esta função deve ser retirado.

 

Repercussões da histerectomia

Cinco mulheres (31,25%) referem repercussões positivas na vida social e quatro entrevistadas (25%) na vida afetiva após a histerectomia, devido ao alívio nos sintomas presentes antes da cirurgia. Os relatos incluem diminuição da ansiedade e melhoras no humor, o que propicia sensação de tranqüilidade e favorece as relações interpessoais.

Kusnetzoff (1998) observa que logo após a histerectomia há a interrupção dos sintomas físicos, o que remete a uma sensação de bem-estar. Bare e Smeltzer (2002) também relatam melhorias na saúde física e mental, após o desaparecimento dos sintomas. Minayo (2006) ressalta a contribuição de sociólogos e antropólogos no entendimento às noções de saúde, doença e morte. Esta autora afirma que a forma como se vivencia esses fenômenos está intimamente atrelada à cultura e sociedade na qual se está inserido, portanto, a compreensão dessas vivências não se daria sem o entendimento dos fatos vividos em sociedade. Socialmente, o papel de doente traz repercussões no equilíbrio psíquico, social e orgânico, podendo ocasionar sentimentos de vergonha e fracasso (Montgomery, Berenstein e Marcolini, 2001). O estar doente é, pois, muitas vezes vinculado às idéias de fraqueza, inferioridade e maldade, o que contribui para a percepção da doença como punição ou castigo.

Doze mulheres (75%) queixaram-se de repercussões negativas na sexualidade após a histerectomia: seis mulheres (37,50%) citaram a falta de desejo sexual; seis mulheres (37,50%) queixaram-se de diminuição do prazer sexual; quatro entrevistadas (25%) relataram dor durante o ato sexual e quatro (25%) queixaram-se de ressecamento ou queimor vaginal; uma participante (6,25%) relatou sentir-se como uma virgem após a cirurgia o que remete a uma vivência de medo durante a relação sexual, prejudicando, portanto, a sua sexualidade.

“...Porque depois da cirurgia fica, assim, retocado, né? Aí a gente num tem um sexo à vontade, tranqüilo, entendeu? Porque dói. É como, é como eu falei pra você, né? É como se a gente voltasse a ser virgem. Fica aquele medo...”

Bare e Smeltzer (2002); Haynal e Pasini (1983); Kusnetzoff (1998); Lemgruber e Lemgruber (2001); Montgomery, Berenstein e Marcolini (2002); Rezende (2002) chamam a atenção para o surgimento de possíveis seqüelas emocionais desencadeadas após a remoção do útero que repercutiriam na vida familiar, na afetividade e na sexualidade da mulher. Kusnetzoff (1998) afirma que teoricamente não haveria nenhum empecilho para a satisfação sexual feminina após a histerectomia, porém isto dependeria de aspectos individuais e das informações e esclarecimentos recebidos no pré-operatório. Cada mulher vivencia a histerectomia de uma forma particular, mas, cirurgias que envolvem órgãos ou partes do corpo com grande investimento simbólico repercutem na auto-estima e auto-imagem da mulher devido aos mitos, valores e crenças depositados pela sociedade (FEBRASGO, 2004). Helman (2003) salienta que os tratamentos cirúrgicos podem ter uma importante repercussão sobre a imagem corporal, a histerectomia poderia ser vivenciada como perda da identidade feminina. Montgomery, Berenstein e Marcolini (2001) declaram que o grande valor psicológico desse órgão pode ser melhor compreendido a partir das noções, conscientes ou inconscientes, que as mulheres formaram sobre a anatomia e fisiologia dos seus órgão genitais e que interferem para a existência de medos, reais ou não, vivenciados com a retirada do útero.

Lemgruber e Lemgruber (2001) afirmam que o útero é geralmente reconhecido pelas mulheres como sendo seu mais importante órgão sexual, o que encontra respaldo em certos meios sociais, principalmente em classes economicamente menos favorecidas e em algumas regiões do país, sendo sua perda considerada como equivalente à perda da feminilidade. De Lorenzi e Saciloto (2006) observam que muitas mulheres vivenciam a menopausa, ou a perda das menstruações, como equivalente à perda do principal objetivo do sexo, a reprodução, o que provocaria prejuízo na sexualidade, pois os impulsos sexuais acarretariam sentimento de culpa. Del Priori (1999) explica que na medicina antiga o corpo feminino era visto apenas em sua finalidade reprodutiva, sendo a maternidade um modo de redimir a mulher de seus pecados, o que encontrava respaldo religioso na necessidade de resgatar o pecado de Eva, a infertilidade era percebida como grande enfermidade. Porém, segundo Cavalcanti (1995), a função sexual é bem mais ampla que a reprodutiva, sendo o sexo não só uma necessidade biológica, mas também psicológica e fortemente influenciada pelo contexto sócio-cultural.

De acordo com De Lorenzi e Saciloto (2006), atualmente haveria um reconhecimento sobre a importância da sexualidade para a qualidade de vida das pessoas. Para esses autores, a sexualidade seria multidimensional, recebendo influências, além dos fatores anatômicos e fisiológicos, de fatores psicossociais, culturais e ainda de relacionamentos interpessoais e experiências de vida. No grupo estudado, a histerectomia repercute de forma significativa na sexualidade, o que parece encontrar reforço no desconhecimento sobre a anatomia feminina e suas respostas sexuais, bem como no medo de explorar e conhecer o próprio corpo, em mitos, crenças e valores atribuídos em sociedade ao órgão e ao comportamento sexual. O silêncio que envolve o corpo e a sexualidade feminina, e com o qual as mulheres convivem desde a infância, aliado às angústias que podem ser mobilizadas durante o adoecimento e tratamento cirúrgico podem prejudicar a vivência da sexualidade e conseqüentemente, a qualidade de vida das entrevistadas.

 

Recomendações às mulheres

Quanto às recomendações que fariam às mulheres que têm problemas no útero, doze entrevistadas (75%) aconselharam a retirada do órgão. Duas mulheres (12,50%) recomendaram que procurassem tratamento para não retirar o útero, porém, salientaram que se não houvesse outra alternativa aceitassem a histerectomia. Cinco entre as doze mulheres que recomendaram retirar o útero justificaram que isto deveria ser feito para evitar doença mais grave.

“Eu mesmo acho, em primeiro lugar, se num... num vai ter mais filho... Mesmo que tivesse nova e já tivesse seus filho e não precisasse mais, eu acho que... A solução é tirar mesmo. Se não tem nenhuma utilidade mesmo, vai ficar ali só pra prejudicar depois? Porque, no futuro, a tendência é prejudicar sempre. Então tira logo pra no futuro não prejudicar mais, né? ”

Observou-se que a preocupação em remover do corpo a ameaça de doença pareceu motivar o aconselhamento para que outras mulheres retirassem o útero, visto que nas falas foi comum o relato de morte devido ao câncer uterino e a justificativa de que se deveria prevenir "doença pior" (sic). O desconhecimento sobre o significado do diagnóstico e sobre o próprio corpo parece novamente contribuir para que o útero seja visto como uma ameaça que deve ser extirpada. No entanto, autores como Barrozo e Lasman (2004) Lemgruber e Lemgruber (2001); Montgomery, Berenstein e Marcolini (2001) defendem um maior rigor na indicação da histerectomia como tratamento de patologias benignas da pelve, propondo métodos conservadores.

Sobre as recomendações aos serviços de saúde, oito participantes (50%) solicitam melhoras na relação entre os profissionais de saúde e pacientes, sendo que quatro pedem maiores explicações sobre a cirurgia, uma destas enfatizando que os médicos deveriam utilizar uma linguagem clara, sem muitos termos técnicos.

“Que converse mais com elas, tenha mais atenção. Que às vezes a gente, assim, num, num, nem entende muito das coisas. Como agora mesmo, um tempinho atrás, eu num consegui nem responder sobre o útero. Às vezes a pessoa tá tão... num tá muito a par das coisas, num sabe direito. Que converse mais com ela, dê atenção, explique o que é, como é a cirurgia, como tirar o útero, isso tudinho. Que explicasse isso pra ela, pra elas ficar... pra nós mulheres ficar mais... sei não... você sabe... mas, a gente num... num fala muito, né? Aí, o corpo da gente, a gente num, nem conhece direito, né?”

Em um estudo realizado a partir de uma revisão sistemática da literatura científica sobre a histerectomia e a vivência da sexualidade, Ferraz (2003), após analisar 31 artigos, afirma a ênfase existente nessas publicações sobre a importância de se esclarecer de forma tranqüila as mulheres que se submeterão à cirurgia sobre a necessidade da mesma, sendo dever do profissional estar apto a ouvir e fornecer informações sobre o procedimento visando desfazer possíveis dúvidas, bem como procurar obter uma compreensão dentro da perspectiva da paciente quanto ao significado atribuído por esta à cirurgia e ainda complementa que a assistência a essas pacientes deve abranger explicações relacionadas aos aspectos anátomo-fisiológicos da histerectomia e sexualidade humana. Segundo a autora, estas seriam as maiores demandas dessas mulheres de acordo com as publicações analisadas, o que remeteria a uma necessidade de atenção sobre esses aspectos por parte dos profissionais envolvidos com os cuidados à mulher histerectomizada. A necessidade de maiores esclarecimentos sobre diagnóstico e procedimentos médicos, proporcionando acolhimento e trabalhando as ansiedades da paciente também é reconhecida em FEBRASGO (2004), Kusnetzoff (1988), Lemgruber e Lemgruber (2001) e Montgomery, Berenstein e Marcolini (2001). Gozzo et al. (2000) ressalta a importância de profissionais da saúde considerarem a sexualidade na assistência prestada. As falas das mulheres entrevistadas assemelham-se aos achados dos estudos citados anteriormente, ficando claro a necessidade de maiores explicações que contribuiriam para um melhor conhecimento do corpo e da sexualidade, amenizando ansiedades relacionadas à histerectomia.

Assim, os resultados deste estudo revelam, no grupo estudado, a existência de um desconhecimento sobre corpo e sexualidade feminina, bem como dúvidas quanto ao significado do diagnóstico e ao procedimento cirúrgico realizado. Os achados da pesquisa reforçam a relevância de esclarecimentos por parte dos profissionais de saúde para prevenir e desfazer possíveis dúvidas relacionadas aos temas anteriormente citados, contribuindo para amenizar ansiedades nos períodos pré e pós-operatório, o que exige uma atenção integral à saúde dessas mulheres que necessitam de uma assistência que as considere em seus aspectos biológicos, psíquicos e sócio-culturais.

Por tratar-se de um estudo qualitativo, as conclusões aqui apresentadas limitam-se à amostra estudada, não podendo ser extrapoladas para outra população.

No entanto, a pesquisa contribui para um maior conhecimento sobre os valores atribuídos ao útero em nossa sociedade e as repercussões da histerectomia na sexualidade feminina.

 

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Endereço para correspondência
Mônica Cristina Batista de Melo
E-mail: monicacbmelo@gmail.com

Érika Neves de Barros
E-mail: erika_nbarros@yahoo.com.br

 

 

1 Psicóloga, Doutoranda e Mestre em Saúde Materno Infantil. Psicóloga no Hospital de Câncer de Pernambuco.
2 Psicóloga, Especialista em Saúde Coletiva. Psicóloga do Hospital de Câncer de Pernambuco.

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