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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.13 no.2 Rio de Janeiro dez. 2010

 

ARTIGOS

 

A somatização no campo da psicopatologia não-neurótica1

 

Psichosomatics in the field of non-neurotic psychopathology

 

 

Flávio Carvalho Ferraz*

Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho trata do estatuto do corpo em psicanálise, partindo do conceito de neurose atual, e procurando analisar as razões pelas quais Freud o foi deixando de lado. A seguir, partindo das idéias de autores pós-freudianos ligados à escola francesa de psicossomática, são propostas articulações entre as neuroses atuais e os conceitos freudianos de trauma e pulsão de morte. Por fim, examina-se o aproveitamento clínico desta empreitada. Grosso modo, defende-se a idéia de que o corpo, em psicanálise, trata-se essencialmente de um "resto", e que tal "resto" é simultaneamente resto da teoria - aquilo que foi, num determinado momento, abandonado como objeto psicanalítico - e "resto" do sujeito psíquico em sua ontogênese, ou seja, o seu patrimônio genético herdado, que fica aquém da formação de um sujeito psíquico fundado na linguagem (e, portanto, marcado pela simbolização), e cujo funcionamento obedece aos esquemas filogenéticos ainda não singularizados. Retoma-se, assim, a distinção entre corpo somático e corpo erógeno, marcada pela ação do apoio (Anlehnung), ou da subversão libidinal, conforme terminologia de C. Dejours.

Palavras-chave: Corpo, Neuroses Atuais, Psicossomática.


ABSTRACT

The paper is about the status of the body in psychoanalysis, starting with the concept of actual neurosis and trying to assess the reasons as to why Freud ignored it. Next, based on the ideas of the post-Freudian authors connected to the French school of Psychosomatics, connections are proposed between actual neurosis and the Freudian concepts of trauma and Death Instinct. Lastly, the clinical progress of this undertaking is assessed. Simply put, the idea put forward is that in psychoanalysis the body is means essentially what is the "remainder" and that this "remainder" is at one and the same time the remainder of the theory – that which was abandoned, at a specific moment, as a psychoanalytic object – as well as the "remainder" of the psychic subject in his ontogenesis, in other words, his inherited genetic patrimony, which does not quite achieve the constitution of a psychic subject based on language (and therefore, characterized by symbolization) and which functions in accordance with the phylogenetic schemes that have not yet been categorized. This denotes a resumption of the distinction between somatic body and erogenous body characterized by the action of support (Anlehnung), or of libidinal subversion, as coined by C. Dejours.

Keywords: Body, Actual neurosis, Psychosomatics.


 

 

As mais diversas manifestações do corpo têm sido objeto de muitas publicações psicanalíticas contemporâneas. O corpo somático se fez presente nos primeiros trabalhos de Freud e depois, paulatinamente, foi deixando de ser objeto de interesse da psicopatologia psicanalítica, com as exceções de sempre, que confirmam a regra. Mas eis que, na contemporaneidade, o tema voltou ao campo psicanalítico com uma grande força. Vejamos um pouco o trajeto que se deu entre seu apagamento e seu ressurgimento.

Sem dúvida, foram Pierre Marty, juntamente com Ch. David, M. de M'Uzan e M. Fain, os grandes impulsionadores do tema na psicanálise pós-freudiana. Foram os criadores da chamada "escola psicossomática de Paris". Como conta Kamieniecki (1994), no seu primoroso livro sobre a história da psicossomática, este fato ocorreu em 1962, logo após o XXII Congresso de Psicanalistas de Línguas Romanas, no qual Marty e M'Uzan apresentaram uma comunicação intitulada O pensamento operatório, que já se anunciava como um dos textos seminais da psicossomática psicanalítica. Nele, os autores traçavam um perfil psíquico bastante preciso do sujeito potencialmente somatizador. Neste mesmo congresso, outra comunicação da maior importância para a inauguração desta escola de pensamento foi feita por C. David e M. Fain, sob o título Aspectos funcionais da vida onírica. Três anos mais tarde, consolidando a psicossomática como uma disciplina que se afirmava diante da medicina e da psicanálise, vinha à luz o livro A investigação psicossomática, de David, Marty e M'Uzan.

Kamieniecki (1994), fazendo uma síntese das características que os autores da escola de Paris atribuíam ao sujeito que tende a somatizar, enumera as seguintes:

– trata-se de uma pessoa bem adaptada socialmente, ou até mesmo sobre-adaptada para seus padrões culturais;

– quando em contato com o investigador, não deixa transparecer nenhuma manifestação afetiva;

– julga que tudo vai bem em sua vida, apesar de suas dificuldades ou dos dramas que sua história revela;

– apresenta uma vida onírica pobre, que traduz o bloqueio da atividade fantasmática;

– sua vida mental consciente, qualquer que seja seu nível intelectual ou cultural, parece separada das fontes vivas do inconsciente, reduzida ao factual e ao atual, como um pensamento pragmático (pensamento operatório);

– revela uma pobreza da expressão verbal;

– tem a necessidade de ver no outro um duplo de si mesmo (mecanismo de reduplicação projetiva).

Estas características, tomadas em seu conjunto, traduzem um bloqueio dos investimentos libidinais e agressivos que limita o valor funcional da atividade mental. Elas levaram os autores da escola de Paris a afirmar que o sintoma somático não tem nenhum sentido2: ele é a marca de um fracasso do trabalho elaborativo do ego em um sujeito que nega a sua própria originalidade. Este tratamento teórico, como se vê, privilegia os aspectos econômicos do funcionamento mental: seu centro explicativo está no bloqueio da capacidade egóica em representar as demandas instintivas que o corpo dirige à mente.

Marty (1996) detectou, em numerosos doentes orgânicos de todos os tipos, um modo de funcionamento mental que lhe pareceu, de fato, estruturalmente diferente daquele dos neuróticos estudados por Freud e pela psicanálise até então. Estes pacientes tinham características muito mais próximas às das neuroses atuais do que às da histeria, valendo-nos do vocabulário da nosografia freudiana inicial. Tratar-se-ia, de acordo com a terminologia de Marty, de sujeitos mal-mentalizados.

O conceito de mentalização, junto ao de pensamento operatório, foi um dos pilares teóricos fundamentais à argumentação dos psicossomaticistas franceses. A mentalização diz respeito à quantidade e à qualidade das representações, inconscientes e pré-conscientes, em um dado sujeito. Marty (1996) define as representações, no sentido freudiano, como "uma evocação de percepções que foram inscritas, deixando traços mnêmicos". Acrescenta que "a inscrição das percepções e sua evocação posterior são, na maioria das vezes, acompanhadas de tonalidades afetivas agradáveis ou desagradáveis" (p.15). A riqueza de representações, assim, foi denominada boa mentalização, sendo peculiar à neurose ou psiconeurose da psicanálise; a má-mentalização, por seu turno, correlata ao pensamento operatório, é peculiar ao somatizador.

Partindo do conceito freudiano de "neurose atual" (Freud, 1894), e seguindo por trilhas abertas por autores contemporâneos, proporei outras articulações entre as neuroses atuais com conceitos da própria lavra freudiana, tais como o de trauma e o de pulsão de morte. Por fim, examinarei o aproveitamento clínico desta empreitada. Apenas para antecipar sucintamente este percurso, ficaremos aqui com as seguintes afirmativas, feitas de modo extremamente sucinto, mas cujos desdobramentos veremos a seguir:

1. O corpo, em psicanálise, trata-se essencialmente de um "resto";

2. Este resto é simultaneamente resto da teoria - aquilo que foi, num determinado momento, abandonado como objeto psicanalítico - e "resto" do próprio sujeito psíquico em sua ontogênese, ou seja, o seu patrimônio genético herdado, que remanesce aquém da formação de um sujeito psíquico fundado na linguagem, e, portanto, marcado pela simbolização, e cujo funcionamento obedece aos esquemas filogenéticos ainda não singularizados.

3. O fato de ser "resto" na teoria decorre exatamente do fato de ser o "resto" da ontogênese psíquica, ou seja, aquilo que permaneceu, como um remanescente do corpo somático, fora da área de ação do apoio (Anlehnung); permaneceu, portanto, como corpo somático propriamente dito, sem se "converter" em corpo erógeno. Dejours (1991) dirá: sem sofrer o processo de subversão libidinal.

Freud fazia uma distinção entre as psiconeuroses e as neuroses atuais, como sabemos, as primeiras apresentando sintomas psíquicos e as outras, sintomas somáticos. Entretanto, o que se verificou no desenvolvimento ulterior da psicanálise foi um progressivo abandono desta nosografia, devido à ênfase que se deu sobre o papel do recalque e da sexualidade infantil na constituição do campo propriamente psicanalítico. A idéia de neurose atual, sobre a qual dispendera tantos esforços, foi, silenciosamente, perdendo sua importância e caindo em desuso. Contudo, não se pode dizer que ele chegou abandonar explicitamente tal categoria. Pelo contrário, ela ainda surgiria intacta em outros momentos de sua obra (Freud, 1908, 1914 e 1917).

Como explicar este crepúsculo das neuroses atuais na teoria psicanalítica? Por que Freud as teria deixado de lado? Parece que este foi o preço para que se desenvolvesse toda uma teoria das psiconeuroses, que se confundiu, até certo ponto, com a teoria psicanalítica em si mesma (Ferraz, 1997). Em suma: quando o corpo erógeno, este conceito genialmente descoberto a partir do estudo da histeria, ganhou a cena como local em que se processavam os sintomas psiconeuróticos, o corpo somático sofreu um apagão no pensamento psicanalítico. É assim que as funções remanescentes do corpo –aquelas ligadas ao domínio do somático ou ao registro da necessidade – foram deixadas de lado.

Dejours (1988) procura dar uma explicação histórica para este fato. Para ele, Freud se afasta progressivamente da neurofisiologia e, quando passa a falar em angústia psíquica, fala de uma outra angústia que talvez não seja a mesma da qual falava antes, isto é, a angústia somática (aquela das neuroses atuais). "É provável que já não fale mais dos mesmos doentes. Pois seu centro de interesse deslocou-se para os neuróticos" (p.31), afirma.

Na conferência O estado neurótico comum, o próprio Freud (1917) dá testemunho desse processo, demonstrando o seu profundo interesse pelo processo complexo pelo qual o psiconeurótico exclui suas atividades sexuais de qualquer consideração, enquanto nas neuroses atuais "a significação etiológica da vida sexual é um fato indisfarçado que salta aos olhos do observador" (p.449). Diz ele que chegara até mesmo a "sacrificar sua popularidade" junto a certos pacientes para provar sua tese sobre a participação da sexualidade na formação das neuroses, quando, nas neuroses atuais, bastara "apenas um breve esforço para que pudesse declarar que, se a vita sexualis é normal, não pode haver neurose" (p.450).

Pois bem, visto que a consideração às neuroses atuais, ao menos dentro dessa terminologia, foi cessando na obra de Freud, o que dizer sobre a continuidade de seu trabalho inicial, quando genialmente intuíra a divisão estrutural entre duas formas distintas de formação de sintomas e, dito de outra forma, de processamento da angústia?

Penso que uma resposta a nossa indagação pode ser buscada em seu trabalho Além do princípio do prazer, de 1920, que muitos vêem como uma verdadeira inflexão em seu pensamento. Entretanto, é perfeitamente plausível pensar que se tratou de uma retomada daquela intuição clínica inicial que dera origem ao conceito de neurose atual. Pois se trata exatamente de uma psicologia do traumático, ou seja, do não representável. Nesse sentido, gostaria de priorizar, entre os diversos elementos contidos na complexa e controversa idéia de pulsão de morte, aquele que a define fundamentalmente como um dispositivo anti-representacional. Nesse sentido, o retorno ao estado originário (Freud diz: ao inorgânico) poderia ser visto mais como retorno ao pré-representacional, que remete diretamente ao corpo biológico primordial.

Ora, esse corpo anátomo-fisiológico é aquele que ficou aquém da ação da linha do apoio (Anlehnung), preso, portanto, ao domínio da necessidade, isto é, não convertido à sexualidade psíquica. Dejours (2001) foi o autor que levou às últimas conseqüências a teoria freudiana do apoio, propondo um fenômeno ao qual chamou de subversão libidinal. Nesta operação, que funda o corpo erógeno por sobre o corpo somático, a criança procura mostrar aos pais que seu corpo não se presta unicamente à satisfação das necessidades vitais. A boca, por exemplo, não serve mais apenas para a função de nutrição, mas também para o sugar sensual, para o morder, para o beijo e assim por diante. O processo pode até radicalizar-se quando, para tentar afirmar que a boca nem sequer serve mais ao propósito da nutrição, o sujeito recusa os alimentos, ingressando em uma anorexia. É nesse sentido que o apoio pode se definir como uma verdadeira subversão.

Por meio dessa subversão o sujeito liberta-se parcialmente do domínio das "funções fisiológicas, dos instintos, dos seus comportamentos automáticos e reflexos, e até mesmo de seus ritmos biológicos" (p.16). A ontogênese do sujeito psíquico marca também o nascimento de um novo corpo, colonizado pela libido; o domínio da pura necessidade cede lugar aos jogos mais elaborados que pertencem ao domínio propriamente do desejo. Mas a subversão será sempre um processo inacabado, sendo possível, sob certas condições, um movimento regressivo na linha do apoio, quando a função somática, então, impor-se-á sob o domínio psíquico. Contudo, o corpo somático, após o movimento da subversão, já não será mais o mesmo, visto que uma parte da energia inerente aos programas comportamentais filogenéticos foi derivada para fins eróticos, o que retira o sujeito da determinação biológica. Instaura-se um modo de funcionamento deste corpo que agora não serve mais apenas à ordem fisiológica, mas desdobra-se em expressão de um sentido. Trata-se do que Dejours (1991) chama de agir expressivo, que contém uma dimensão de intencionalidade e de direcionamento ao outro.

E como se processa a subversão libidinal? Ela se dá basicamente graças à relação que se estabelece entre a criança e seus pais. O corpo erógeno surge como resultado de um "diálogo" em torno do corpo e de suas funções, que tem como ponto de apoio justamente os cuidados corporais fornecidos pelos pais. Assim, seu resultado dependerá fundamentalmente do inconsciente parental, da história dos pais, de sua sexualidade, suas inibições e suas neuroses. Aquilo que os pais comunicam à criança é captado por esta como um enigma, mas é fundamentalmente enigma também para eles, visto que pertence ao domínio do inconsciente. Trata-se daquilo que Laplanche (1992) chamou, com muita propriedade, de significante enigmático.

Dito de outro modo, e recorrendo a Freud, podemos pensar que este corpo erógeno que se cria a partir do apoio ou da subversão libidinal é um corpo representado, ou mesmo o corpo da representação. Esquematicamente, poderíamos afirmar: enquanto o processo de conversão, na histeria, opera sobre o corpo representado, a somatização recai sobre o corpo biológico ou somático; recai exatamente sobre a função não subvertida, portanto, não representada. E aqui nos encontramos com o papel definitivo da pulsão de morte na eclosão das patologias não-neuróticas, ligadas ao registro do corpo real. Na função sobre a qual a mãe não puder "brincar", não incidirá uma subversão, permanecendo ela, então, mais suscetível às respostas menos elaboradas psiquicamente ou, o que é o mesmo, expostas às respostas estereotipadas e impessoais herdadas da filogênese. Tais respostas passarão principalmente pelo acting, em detrimento do pensamento, e, em vez de se expressarem como sintoma que lança mão da linguagem para se constituir, recorrerão à motricidade automática ou à descarga sobre o soma.

Nas doenças psicossomáticas reconhecidas como tal, que são doenças orgânicas, verifica-se um processo de somatização incidindo sobre uma determinada função que escapou da plena subversão libidinal. Poderia ser aqui a digestão, a respiração ou a função ligada à pele, por exemplo. O próprio sono, como mostra Ganhito (2001), é uma função biológica a ser erogeneizada, graças à riqueza dos rituais de adormecimento que mãe proporciona ao seu bebê. A insônia, assim, poderia ser encarada como uma espécie de somatização. Quando não ocorre a subversão libidinal, a função permanece exposta ao funcionamento fisiológico, o que Dejours (1991) chama de forclusão da função:

"Uma função do corpo que não pôde se beneficiar de uma subversão libidinal em benefício da economia erótica durante a infância, em razão dos impasses psiconeuróticos do pais, é condenada a manter-se expulsa do jogo ou de todo o comércio erótico. De qualquer forma, essa função é a forclusão da troca intersubjetiva" (p.30).

Também a psicose pode ocorrer por uma falha no processo de subversão libidial, quando limitações parentais se colocam sobre o campo do pensamento associativo. A psicossomática interessou-se principalmente pelas doenças viscerais - mais claramente ligadas ao soma - mas esqueceu-se de que o sistema nervoso central e o encéfalo fazem parte do corpo somático. Assim, justifica-se que a psicossomática reivindique para si o terreno das doenças mentais (esquizofrenia, paranóia e psicose maníaco-depressiva) e também neurológicas (mal de Alzheimer e doença de Parkinson, por exemplo). Ademais, considerar as doenças mentais como doenças do corpo seria coerente com as recentes descobertas das neurociências. A psicose, assim, seria uma somatização que, em vez de atingir as vísceras, atinge o cérebro, que significa que as falhas na subversão libidinal ou o "desapoio da função" ocasionaram estragos no sistema nervoso central.

A postulação da pulsão de morte por Freud foi, sem dúvida, um retorno da temática psicopatológica presente em 1894 nas neuroses atuais. Tanto é que trouxe de volta o aspecto econômico da metapsicologia, que ficara ofuscado, por uma longa temporada, pelo aspecto dinâmico. Assim, a pulsão de morte responde pelo que veio a se chamar de "fator atual", presente nas formas de adoecimento não-neuróticas, mas também presente como um fundo - resíduo ou precipitado - não elaborável ou não representável que subjaz a toda psiconeurose. Dejours (1988) afirma que Freud só pôde evocar a "angústia automática" e o "estado de aflição" (Hilflosigkeit) em sua última teoria da angústia porque havia, pouco antes, introduzido o conceito de pulsão de morte e falado em "neurose traumática", que, para ele, "são inegavelmente o ressurgimento das neuroses atuais de 1895", quando a preocupação com o biológico volta à cena, "ao mesmo tempo em que são evocadas as doenças somáticas e a morte biológica que quase tinham desaparecido da teoria psicanalítica" (p.33).

Ora, Freud já deixara marcado, na conferência de 1917, o fato de que um "fator atual" subjaz a toda psiconeurose. Seria algo como o limite do representável, ou, dizendo de modo livre, uma espécie de "umbigo" de todo sintoma simbólico que marca o substrato somático sobre o qual o funcionamento psíquico se assenta. Em uma metáfora do próprio Freud (1917), as influências somáticas desempenhariam o papel de um "grão de areia que o molusco cobre de camadas de madrepérola", quando se produzem os sintomas histéricos. Diz Freud ainda que "uma notável relação entre os sintomas das neuroses atuais e os das psiconeuroses oferece mais uma importante contribuição ao nosso conhecimento da formação dos sintomas nestas últimas. Pois um sintoma de uma neurose atual é freqüentemente o núcleo e o primeiro estádio de um sintoma psiconeurótico" (p.455).

A pulsão de morte atuaria como um dispositivo contra a representação; nesse sentido, pode conduzir ao desapoio da função. Corresponde à força que leva ao que Marty (1998) chamou de "má mentalização", ou seja, um déficit representacional que torna empobrecidos os sistemas inconsciente e pré-consciente, fazendo-se sentir sobretudo pelo discurso concreto e objetivo e pela carência de atividade onírica.

A angústia, neste caso, seria sempre a angústia automática da qual Freud (1926) veio a falar em Inibições, sintomas e angústia, e que retoma, de certo modo, aquela angústia definida como descarga em 1985 no caso das neuroses atuais. Trata-se de uma modalidade de angústia que é sobretudo somática, numa contrapartida da angústia-sinal, essencialmente psíquica. A angústia automática é aquela que marca uma falha do ego diante do perigo, quando este, não tendo tido condições de examinar os processos da realidade, deixa-se tomar de surpresa. É claro que estamos falando aqui do trauma, ou seja, do irrepresentável que se articula exatamente à pulsão de morte. Grosso modo, o sujeito da neurose atual funciona no registro da neurose traumática; responde automaticamente, passando ao largo dos processos propriamente psíquicos na sua montagem sintomática. Age segundo os modelos herdados da filogênese ou aprendidos intelectualmente, mas sem a singularidade e a criatividade inerentes às formações simbólicas, essencialmente idiopáticas. Desconhece o agir expressivo: age sem metaforizar sua experiência na produção de uma resposta; responde, quando muito, lançando mão de uma produção metonímica.

Michel de M'Uzan (2003) retoma o problema do "fator atual" que jaz no fundo de toda psiconeurose, e que se encontra na própria superfície das neuroses atuais, para afirmar que ele constitui o fundo inanalisável do neurótico. Os traumas verdadeiros, sendo inelaboráveis, não são passíveis de se representarem; convertem-se em força degradante da energia de autoconservação. Assim, para ele, a articulação entre pulsão de morte e compulsão à repetição não é indispensável. A incidência letal da compulsão à repetição não necessita de uma referência necessária à atividade de um instinto ou de uma pulsão especial: explica-se pela degradação da energia atual, em essência um fator quantitativo que coincide com a força de autoconservação, e que passa a funcionar de modo pervertido diante do trauma verdadeiro, irrepresentável. Seria isso a que a psicanálise chamou de "pulsão de morte".

Marilia Aisenstein & Claude Smadja (2003), que, a exemplo de M’Uzan, pertencem à Escola Psicossomática de Paris, também se preocuparam com esta questão do "fator atual". Lembram que a obra de Pierre Marty é indispensável por ter definido uma "ordem psicossomática", que organizou o pensamento dos psicossomatistas da primeira geração da escola de Paris. Marty, de fato, deu particular atenção para o aspecto econômico e para a textura e a variabilidade do funcionamento mental. Foi assim que localizou e definiu o "pensamento operatório", presente em uma organização psíquica em que "os delegados pulsionais, que são as representações efetivamente investidas, parecem estar ausentes" (p.410).

"Isto que, no pensamento de Marty, aparece como carência - déficit do funcionamento mental - pode ser compreendido e explicitado no âmbito geral da teoria freudiana por meio da noção de pulsão de morte, que dá conta da destruição dos processos de pensamento verificados nos estados operatórios e em patologias comportamentais, que podem então ser compreendidos como resultados de um verdadeiro "dispositivo anti-pensamento" (Aisenstein & Smadja, 2003, p.412).

Concluo, com estes autores, propondo a idéia de que, após a segunda teoria pulsional, de 1920,

"as neuroses atuais saem de sua latência teórica e são repensadas por Freud numa perspectiva econômica e se integram conceitualmente a uma introdução além do princípio do prazer" (...). Hoje não há mais dúvida de que a neurose atual contém, na sua organização, uma dimensão traumática e que a destrutividade interna é obra dos mecanismos interruptivos que privam o tecido mental de uma parte e suas pulsões eróticas" (p.413).

E a clínica psicanalítica, o que nela se transforma com isso? Freud (1917) parecia descrente sobre a potência da psicanálise diante das neuroses atuais, deixando-as para o domínio da medicina. Chegou a afirmar que "os problemas das neuroses atuais, cujos sintomas provavelmente são gerados por uma lesão tóxica direta, não oferecem à psicanálise qualquer ponto de ataque". E que esta "pouco pode fazer para esclarecê-los e deve deixar a tarefa para a pesquisa biológico-médica" (p.453).

Ora, o que a clínica psicossomática fez foi restituir à psicanálise uma problemática – o corpo – que, apenas por um equívoco, ficou-lhe alheia por tantos anos. Grosso modo, esta exclusão deveu-se à idéia de que aquilo que se expressa no corpo somático não tem sentido, tal como se compreende "sentido" no sintoma neurótico. Até mesmo para Marty (1993), um dos grandes responsáveis por este retorno do corpo, corroborava esta impressão, propondo ao doente somático uma psicoterapia não interpretativa, situada mais no plano do pára-excitação do que propriamente nos remanejamentos dinâmicos; seria uma psicoterapia centrada no aspecto econômico, por assim dizer.

A abordagem lacaniana não deixa de ir nesta mesma linha quando recusa à formação psicossomática o estatuto de sintoma – este reservado à neurose – para falar em fenômeno psicossomático. Este estaria privado de um caráter fundamental ao sintoma que é a sua intencionalidade - no sentido husserliano3 -, que se traduz pela proposição de que tal "fenômeno" não estaria endereçado ao outro.

Mas seria mesmo impossível pensar que a manifestação sintomática no corpo não pode conter um outro sentido, que não seja mais um "sentido" na acepção em que empregamos o termo para as psiconeuroses?

É aqui que vislumbramos a importância da noção dejouriana de trabalho do sintoma. Vejamos do que se trata. Quando um sintoma surge no corpo, ele é o resultado de uma simbolização que foi abortada, que não se fez. Mas não podemos negar-lhe o caráter de rudimento. Isso é evidente, por exemplo, no transtorno do pânico, que fica aquém da fobia por não encontrar um objeto. Se tal sintoma é tratado apenas no plano somático, isto é, medicalizado, ele pode cessar temporariamente sem desenvolver-se em direção ao um possível sentido a que daria início se para tal fosse potente.

Mas quando este sintoma é "escutado", pode se tornar possível, sob transferência, fantasmatizá-lo nem que seja por meio de uma elaboração secundária, que não restituiria seu sentido "causal" ou "verdadeiro" – se ainda fôssemos positivistas! – mas oferecer-lhe-ia uma oportunidade de ingressar na categoria de formação do inconsciente. Dejours (1991) define esta tarefa da seguinte maneira:

"A partir do seu surgimento, o sintoma pode conhecer dois destinos: ou bem a intencionalidade se detém no sintoma, ou bem ela se prolonga no movimento de realização de seu sentido. (..) Se a escolha do sujeito é deter as coisas, o sintoma não tem sentido. O cenário vai de uma intencionalidade sem significação a um tratamento médico convencional, em regra, nos dias de hoje. Se a escolha é concluir o trabalho do sintoma, então talvez o sentido possa ter lugar. Com a condição, todavia, de que sua vontade encontre a do outro, e isso quer dizer, no presente caso, um analista disposto a oficializar esta intencionalidade" (p.36).

Portanto, renuncia-se aqui à exigência de que o sentido do sintoma coincida com sua causa ou origem. Quando se mantém o foco em sua intencionalidade, o sentido pode ser encarado como contingente, produto do encontro analítico. Sua validação não obedece ao caráter anamnésico de uma verdade enfim descoberta, mas vai no sentido que lhe emprestou William James4 e, depois, a pragmática da linguagem5: o sentido está na mudança psíquica que marca sua reapropriação pelo sujeito, indo de encontro à forclusão da função e estabelecendo – ou restabelecendo – o agir expressivo (algo próximo à gestualidade de que falava Winnicott6) e, não raro, levando à dasaparição ou à estabilização de uma doença psicossomática, de um transtorno do pânico ou de um uso patológico da motricidade, como se verifica na hiperatividade infantil ou na incontinência motora de certos pacientes borderlines.

 

Referências

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Winnicott, D.W. (1978) Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no setting psicanalítico. In Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves (Trabalho original publicado em 1954).         [ Links ]

_______ (1990) O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Flávio Carvalho Ferraz
Rua João Moura, 647 - conj. 121 – Pinheiros
05412-911 - São Paulo – SP.
E-mail: ferrazfc@uol.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado na VIII Jornada de Psicologia do HU/UEL e 2° Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde , realizados em Londrina, 27-28-29 outubro de 2010
* Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Este postulado da escola de Paris, que gerou uma grande polêmica na psicossomática psicanalítica, tem sido alvo de constantes discussões e contestações, como por exemplo, nos trabalhos de Joyce McDougall e Christophe Dejours.
3 Husserl (1901) define a estrutura da consciência como intencionalidade. Intencionalidade, nesta acepção, significa "dirigir-se para", "visar alguma coisa". Para ele, a consciência não é uma substância (alma), mas uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, volição, especulação, paixão, etc.), com os quais visa algo.
4 William James (1909) subverteu a noção corrente de verdade, à medida que incluiu, entre as condições para sua verificabilidade, a sua funcionalidade. Assim, a verdade, para ele, não mais se definia como adequação entre a mente e a realidade exterior ou como coerência das idéias entre si. De acordo com o pragmatismo que professou, a verdade não mais era compreendida como algo dado ou já feito, para ser, então, algo que se encontra em constante processo de fazer-se. Tal concepção estendeu-se para além do domínio da ciência, adentrando os campos da moral e da religião: para William James, a crença religiosa poderia também ter seu valor de verdade. Contrapondo-se à tradição racional, ele sustentou que a verdade é tudo aquilo que pode satisfazer o desejo de compreensão global das coisas e que, ao mesmo tempo, pode constituir-se em um bem vital para um determinado indivíduo.
5 No texto "Como nos espelhos, em enigmas", introdução do seu livro A ética e o espelho da cultura, Jurandir Freire Costa (1994) explicita a visão da pragmática da linguagem sobre o problema da validação de uma verdade, retomando, entre outros autores, Davidson, para quem a verdade seria um "puro termo de aprovação ou de advertência, e não uma relação de correspondência ou adequação entre teoria e realidade" (p.28). Esta asserção se presta como justificativa do valor da elaboração secundária na clínica psicanalítica do sintoma somático de que estamos tratando.
6 Sobre o gesto nesta acepção, ver o livro O gesto espontâneo, de Winnicott (1990); ver também a extensa discussão feita por Decio Gurfinkel (1994) sobre a gestualidade, numa concepção da mesma que, apesar da diferença do referencial teórico, aproxima-se da idéia de agir expressivo de Dejours.

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