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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.13 no.2 Rio de Janeiro dez. 2010

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e o desenvolvimento de dispositivos clínico-institucionais no atendimento integral a saúde1

 

Psychoanalysis and the development of devices clinical-institutional in integral health care

 

 

Clovis Eduardo Zanetti*

Instituto Filadélfia - Unifil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do artigo é discutir as possibilidades abertas pela pratica clínica da psicanálise no hospital dentro de uma proposta de atenção integral a saúde. Bem como avaliar a contribuição que a psicanálise pode oferecer no desenvolvimento de projetos e ações coletivas através do estudo de três diferentes experiências, numa mesma instituição, envolvendo a integração multiprofissional em torno dos problemas clínicos advindos da destituição subjetiva promovida pelo adoecimento e a hospitalização.

Palavras-chave: Obsessão, Feminilidade, Ativo, Passivo, Metapsicologia freudiana.


ABSTRACT

The objective of the article is to argue the possibilities opened for inside practises clinic of the psychoanalysis in the hospital of a proposal of integral attention the health. As well as evaluating the contribution that the psychoanalysis can offer in the development of projects and class actions through the study of three different experiences, in one same institution, involving the multiprofessional integration around the happened clinical problems of the subjective destitution promoted by the sicken and hospitalization.

Keywords: Psychoanalysis, Clinic, institution, Subjective destitution, Integration.


 

 

Introdução

Diferente do atendimento realizado em consultórios, a prática clínica no hospital se depara com situações que envolvem os processos doença-internação-tratamento numa relação complexa e delicada entre paciente, família e equipe. Trata-se de um contexto em que a multiplicidade de situações e agentes envolvidos exige um constante questionamento ético e metodológico. O artigo tem como objetivo discutir as possibilidades abertas por esta nova modalidade de atendimento clínico dentro de uma proposta de atenção integral a saúde. Dentre os princípios e diretrizes da atenção integral, o trabalho destaca a responsabilização das equipes pelo acolhimento e desenvolvimento de ações capazes de

"superar as tradicionais ações fragmentárias voltadas exclusivamente para órgãos e sistemas do corpo -, o acesso à atenção para toda a demanda expressa ou reprimida - desenvolvendo ações coletivas a partir de situações individuais e vice-versa". (Relatório da 10ª Conferência Nacional de Saúde).

O adoecimento e a hospitalização trazem problemas e urgências que ultrapassam em complexidade a questão objetiva do órgão doente e o tratamento médico possível, isso tanto do ponto de vista do paciente e sua família, quanto da instituição e suas equipes. O artigo irá examinar a contribuição que a psicanálise pode oferecer no desenvolvimento destas ações, através do estudo de três dispositivos clínico-institucionais envolvendo equipes multidisciplinares numa mesma instituição hospitalar, são eles:

• Abordagens coletivas de recepção e acolhimento em situações limite;

• A psicanálise no pré e pós-operatório de cirurgia cardíaca;

• A clínica da depressão e a inapetência no internamento prolongado.

Através dos instrumentos de leitura oferecidos pela psicanálise partimos do entendimento de que a instituição hospitalar é regida e organizada pela lógica de um discurso: o discurso da medicina. (Clauvrel, 1983; Moretto, 2006). Por situar-se e assentar seus fundamentos no discurso da ciência, o discurso médico adota um pressuposto metodológico comum as ciências naturais que é a exclusão da subjetividade, como um meio de assegurar a objetividade e a eficácia de suas ações. Para segurança do processo deve-se seguir o protocolo e não as inclinações pessoais e subjetivas de cada um, o que se aplica tanto ao médico quanto ao paciente. A objetividade da rotina dá segurança aos procedimentos.

No entanto, essa exclusão da subjetividade necessária à manutenção da racionalidade tecnocientífica e eficácia dos procedimentos e do hospital como instituição de saúde – com suas regras, prescrições, e normas de segurança – se por um lado protege e organiza, por outro pode acarretar, como efeito iatrogênico, a emergência da angústia e suas manifestações. No paciente submetido a procedimentos hospitalares, a emergência desse estado afetivo sinaliza o momento em que é destituído de sua posição de sujeito, e reduzido a um corpo a ser manipulado objetivamente como organismo. Algo absolutamente salutar e imprescindível do ponto de vista médico-institucional, não se trata de uma crítica, que neste contexto seria algo ingênuo e irresponsável, e sim do reconhecimento de um problema fecundo que abre espaço para a presença da psicanálise no hospital, justamente por se ocupar do que a ciência exclui para poder existir: a subjetividade. (Zanetti, 2010).

A situação torna-se ainda mais crítica pelo fato desta destituição metodológica se aplicar a um grupo familiar que já se encontra destituído pela própria doença. Contudo, é importante sublinhar que a doença destitui o sujeito de modo selvagem, arrasa seus sonhos, fantasias onipotentes, projetos de vida; enquanto a admissão hospitalar põe em processo uma destituição programada, uma vez que prescreve ao sujeito o lugar de objeto como condição de diagnóstico e tratamento. (Soler, 2002). Portanto, uma operação discursiva cujo saldo é sim o corpo como objeto a ser manipulado, porém, com finalidades terapêuticas. O que não impede a emergência da angústia, pois é uma tentativa de reverter à primeira, cuja presença atormentadora põe o sujeito em desamparo diante da morte. A angústia é o afeto inerente à destituição da subjetividade, seja ela programada ou não. (Soler, 2002). É correlata à queda dos referenciais simbólicos e imaginários que sustentam o sujeito em seu discurso e identidade. Desta queda dos ideais subjetivos com o adoecimento decorre um efeito de desorientação psíquica que pode ser experimentado em uma série que vai da insegurança ao medo passando pelo pânico até o franco desespero.

 

Da destituição a instituição subjetiva

De acordo com Soler (2002) o oposto de destituir é nomear, instituir. De forma preliminar, somos instituídos como sujeito pelo discurso cada vez que nossa opinião tem voz e é levada em conta. Instituir uma pessoa no lugar de sujeito é uma intervenção no discurso que acontece a "cada vez que o outro, meu ouvinte, me busca na palavra, e não na minha imagem ou no real do meu corpo. Quando ele me busca no que eu posso dizer".(p. 12). Há nesta operação discursiva um corte:

"corte, por exemplo, em relação à imagem, aquilo que se vê quando se abre a porta para atender um novo paciente. O que se vê é um corpo com sua imagem. Então, aqui se trata de um corte que vai privilegiar aquilo que é ouvido (...). Uma operação do discurso que consiste em regrar, focalizar, uma incógnita, ou uma questão, (...) a partir de um sofrimento bem experimentado, reconhecido." (Soler, 2002, p. 12)

Segundo Moura (2003) o que caracteriza essas urgências subjetivas como situações críticas "é a falha da função da ordem simbólica, é quando a pessoa não encontra lugar no Outro para sua palavra". Portanto, diante de alguém destituído de seu lugar de falante, desorientado e impossibilitado de nomear e compreender seu sofrimento, trata-se de oferecer:

"um espaço organizador, terapêutico, para que o ‘sujeito por vir’ possa se situar no mundo em que vive e lhe revelou, de maneira abrupta, a sua falta-a-ser. Organizando as funções de percepção – memória – raciocínio, o psicanalista portador de um discurso que oferece a alienação como um tempo lógico da operação de separação, constrói, também, a via de acesso para o advir do sujeito."(Moura, 2003, prefácio).

 

Abordagens de recepção e acolhimento em situações limite.

No trabalho em questão, após um tempo preliminar de observação e escuta, a prática clínica foi sendo direcionada e organizada em lugares que foram identificados como estratégicos do ponto de vista do sofrimento subjetivo. As portas que dão acesso a UTI, ao pronto socorro, a recepção, mostraram-se lugares privilegiados por concentrarem grande parte das situações tensas, com suas emergências médicas e a agilidade das ações. O trabalho clínico mostrou que, para muitos, a admissão hospitalar é vivida de maneira ambígua: buscam socorro médico urgente ao mesmo tempo em que encaram o internamento como um perigo, uma ameaça. Um verdadeiro conflito que revela a estrutura elementar da crise no ato da admissão.

As portas de acesso são lugares estratégicos por marcarem um limite entre o dentro e o fora. Se por um lado a porta acolhe, por outro ela separa. No caso da necessidade de um atendimento de alta complexidade em UTI, por exemplo, o paciente encontra-se debilitado, muitas vezes com dor e perdas funcionais importantes, em um estado de fragilidade e vulnerabilidade psicológica, restrito ao leito, precisando de cuidados intensivos 24 horas, num enfrentamento silencioso com o medo da morte. Além disso, ao entrar na unidade ficam de fora: suas roupas (incluindo peças íntimas), sua família, seus objetos de valor, seu trabalho, seus costumes, seus hábitos alimentares, sua privacidade, sua liberdade de ir e vir, em alguns momentos seu próprio nome, e tudo o mais que sustenta sua identidade. Em torno disso, que identificamos como um problema fecundo, é que foi se articulando um estilo de abordagem de recepção e acolhimento dirigida para esses sujeitos que se encontram destituídos, face a face com o limite, muitas vezes tênue, entre a vida e morte.

"A família se vê no total desamparo, na porta de entrada para o encontro com um Real que muitas vezes não quer encontrar. É nessas horas que se instala um verdadeiro caos. As certezas do sujeito estão em xeque, não há respostas que sustentem suas dúvidas". (Duarte, 2006, p. 238).

A comunicação e o diálogo nestas condições se encontram prejudicados, pois angustiadas as pessoas se encontram temporariamente incapazes de escutar, raciocinar e compreender. Muitos não conseguem se inserir na dinâmica institucional, com suas normas e restrições, tão pouco usufruir de sua proposta terapêutica. (Giannini, 2007). É preciso um trabalho preliminar de acolhimento e integração. A própria dinâmica da equipe precisa estar sensível ao discurso, e escutar o que sustenta a particularidade de cada caso, o que o torna singular em relação aos outros, aquilo que o representa enquanto sujeito: seus significantes.

A recepção nos horários de visitas é um trabalho coletivo que envolve várias equipes, tais como: serviço social, enfermagem, psicologia, plantão médico, e vai muito além do mero controle de entrada e saída. Do ponto de vista clínico implica em acolher o familiar no momento de sua presença junto ao paciente. (Duarte, 2006). No caso da psicanálise as demandas são respondidas com uma oferta, a da própria presença e escuta, abrindo um espaço para que o sujeito se apresente, "para que coloque sua angústia a respeito do que o espera lá dentro ou do que sentiu ao sair: "Como ele está"? Está acordado? Teve febre hoje? Nossa, ela está tão inchada, isso é normal? Ele estava dormindo". (p. 239). Mais ainda:

"A entrada no CTI pode ser, para muitos, o primeiro contato com os limites da vida, o primeiro espaço para a expressão de sua dor e de seu desejo, o primeiro momento de reconciliações e compreensões. (...) Dizemos que o sujeito surge diante da falta, de um acidente no percurso ou no discurso. Portanto, para muitos, a internação ou a doença (própria ou de familiares) podem se tornar uma possibilidade de o sujeito despertar." (Duarte, 2006, p.240).

O trabalho de transmissão deste entendimento clínico de base junto às equipes envolvidas no acolhimento possibilitou a articulação de um dispositivo clínico-institucional integrado apto a recepcionar e por em andamento as questões subjetivas emergentes, ao invés de descartá-las como discurso sem valor. Diminuindo significativamente a incidência do retorno estrondoso do recalcado na cena hospitalar. Pautado no estudo caso a caso, tais equipes operam articuladas em rede, criando uma dinâmica apta a trabalhar com a particularidade de cada situação. Movidas pela noção de que recepcionar, acolher e integrar a subjetividade nos atendimentos dá sustentação e qualidade ao tratamento hospitalar, faz parte de uma proposta de atenção integral à saúde.

 

Psicanálise e o pré e pós-operatório de cirurgia cardíaca.

Esse dispositivo clínico integrado de recepção e acolhimento tem um desdobramento seqüencial importante no trabalho ofertado à pacientes e famílias em pré e pós-operatório de cirurgia cardíaca. Nesses casos os sujeitos, além de passar por todas as rotinas de admissão, se vêem em estado de saúde grave, diante de uma decisão terapêutica extrema que é a cirurgia cardíaca. No trabalho com pacientes cirúrgicos, antes de tudo, deve-se levar em conta a diferença entre o que do ponto de vista subjetivo se entende por corpo, e aquilo que a medicina concebe enquanto organismo. (Moretto, 2006; Zanetti, 2010). É muito importante para a clínica na instituição entender que as cirurgias e demais procedimentos médicos intervém, a rigor, sobre o organismo, seus órgãos, tecidos e sistemas. No entanto, o sujeito vive essas intervenções diretamente sobre seu ego, pois como observa Freud, o ego é antes de tudo um ego-corporal.

O atendimento com sua oferta de escuta re-instala o paciente na posição de sujeito, introduz uma pausa no processo proporcionando um tempo para compreender e se re-encontrar em meio aos efeitos desorientadores do adoecimento e da hospitalização. Muitas vezes, o tormento subjetivo experimentado antes da cirurgia são sintomas de uma questão subjetiva que se mantém latente, encoberta pelo medo, que é a questão do enfrentamento com a morte. Contudo, de acordo com a lógica que rege o tempo subjetivo, é somente a posteriori que essa questão pode tornar-se clara e manifesta; somente no depois que se pode compreender e concluir algo do que se viveu durante o momento do trauma. No transcorrer das entrevistas de pré-operatório, por exemplo, os pacientes recordam, e pela primeira vez tem a chance de dar palavras ao que viveram em silêncio no momento do diagnóstico e da indicação cirúrgica. As frases a seguir tornam evidente a destituição do mundo subjetivo diante do encontro traumático com os limites da vida no momento do diagnóstico:

"Meu mundo caiu, me senti anestesiada" (Mulher, 51 anos).

"Para mim foi um choque, adiei a decisão" (Mulher, 72 anos).

"Foi uma bomba na minha cabeça, fiquei apavorado" (Homem 64 anos).

"Nunca imaginava, entrei em pânico" (Mulher, 66 anos).

"Decidi fazer a cirurgia por medo de morrer como meu pai" (Homem, 69a).

"Para mim foi um soco" (Mulher, 72 anos).

"Tive medo de dormir e não acordar" (Homem, 56 anos).

"Por mim não faria, já vivi o suficiente" (Mulher, 85 anos).

"Era cara ou coroa, ou fazia ou ficava lá derramado por aqueles cantos" (Homem, 69a).

"Era fazer ou morrer. O mundo caiu na minha cabeça, falar dói, tocar no assunto é desesperador" (Mãe 23 anos , paciente bebê, 8 meses).

Nessas situações, quando se confere valor as palavras do sujeito, pode-se observar que a queda do mundo subjetivo é correlativa ao abalo de uma atitude convencional diante da morte. De fato, no fundo ninguém crê em sua própria morte. (Freud, 1915/1976). Essa atitude cultural que se expressa numa tendência inegável para por a morte de lado, para eliminá-la da vida, entra em colapso diante do diagnóstico e a eminência de uma cirurgia cardíaca. Diante do colapso dessa atitude e de nossas ilusões, somos forçados a não mais negar a morte e dar a ela um lugar em nossos pensamentos. Acolhida, nomeada e suportada pelo discurso analítico, a questão com a morte própria tem a chance de se transformar, de motivo de pânico e desespero, em agente causa de uma verdadeira transformação subjetiva. Pois, ao contrário do que se julga, dar um lugar para a morte em nossos pensamentos pode causar o que Freud (1915/1976) chama de um efeito surpreendente, também constatado em nossas entrevistas: é que a vida, a partir de então, para muitos, torna-se interessante novamente, recupera seu pleno conteúdo. Como é o caso do testemunho deste paciente em pós-operatório cardíaco, próximo a alta hospitalar:

"Reconheço que o responsável pelo que estou passando hoje, sou eu mesmo, vivi alienado, fui um homem perfeccionista, impaciente, exigente ao extremo. Trabalhava excessivamente, fazia absurdos com o tempo, tinha uma alimentação desregrada. Passar por tudo isso foi um choque; entendi a gravidade, quase morri, e tenho muito amor a minha vida. Não sou, e não preciso ser mais o que eu era antes. Tinha uma visão errada da vida."

Esta é a aposta que a psicanálise põe em jogo em qualquer tratamento, que as palavras ditas sob transferência tenham conseqüências, tornem o sujeito responsável por sua vida e seu desejo. Conseqüências éticas como estas são possíveis com a condição de que o clínico, amparado por sua analise pessoal, se abstenha de dar respostas a partir de suas fantasias e suporte ocupar o lugar vazio de agente causa de um discurso apto a relançar a elaboração do sujeito em prol de suas próprias questões.

 

A clínica da depressão e a inapetência no internamento prolongado.

O dia a dia das unidades de terapia intensiva oferece várias outras oportunidades para um trabalho integrado capaz de superar a fragmentação e alienação dos serviços. O trabalho da psicanálise na interface com a nutrição e enfermagem é um exemplo claro de integração multiprofissional no atendimento integral a saúde. O ponto a partir do qual foi se instituindo esta prática foi o acompanhamento de pacientes em internamentos prolongados em UTI. Alguns apresentam quadros de inapetência importantes, evoluindo para uma alimentação por sonda sem que haja diagnóstico médico ou nutricional que justifique a recusa alimentar. Com outros, a inapetência é compatível, porém resistente ao tratamento e acentuada por sintomas de desanimo e tristeza. Ambos os casos, após entrevistas com os envolvidos, sugerem um estado depressivo, agravados ou não por antecedentes clínicos e familiares.

Rene Sptiz (1979), num estudo clássico com 123 crianças institucionalizadas, observou que, a partir da segunda metade do 1º ano de vida, 34 delas apresentaram uma síndrome depressiva importante. Todas as crianças que desenvolveram esta síndrome tinham uma experiência comum: embora tivessem cuidados adequados todas elas ficaram privadas da mãe por um período de três meses. Esta separação ocorreu devido a inevitáveis razões administrativas. Segue uma descrição média do quadro sindrômico apresentado: 1º mês: Tornam-se chorosas, exigentes e tendem a apegar-se ao observador quando este consegue estabelecer contanto com elas. 2º mês: Choro freqüente transforma-se em gemido, apresenta perda de peso e um distúrbio sério de alimentação (dificuldades para comer e para conservar o alimento). 3º mês: Recusam o contato, permanecem de bruços, começa a insônia, a perda de peso continua. Há uma tendência a contrair moléstias; atraso motor torna-se generalizado. Início da rigidez facial. Após 3º mês: Choro e atraso motor cessam e são substituídos por letargia. Spitz sublinha que a sintomatologia, a expressão facial dessas crianças é muito semelhante aquilo que se verifica em adultos deprimidos. O principal fator etiológico encontrado foi o que denominou de privação afetiva parcial. No caso de uma privação afetiva total, o quadro evolui para uma síndrome denominada de hospitalismo, com alto índice de mortalidade.

Também pudemos observar traços similares dessa síndrome em pacientes adultos de longa permanência em UTI. Contudo, a leitura que fazemos desses fenômenos é de que essa privação afetiva se insere numa série de destituições subjetivas anteriores relativas ao adoecimento. Após um primeiro tempo de internação, a angústia vivida no ato da admissão na UTI pode ser substituída, pouco a pouco, por estados de apatia, inapetência e depressão. Segundo a psicanálise, o estado de luto fornece um modelo para compreender a depressão. O luto é a reação que se põe em marcha desde uma perda, seja de um ente querido, da condição de saudável, de um ideal. Não se trata de uma condição patológica, cabendo ao atendimento clínico acompanhar o trabalho subjetivo intenso que o luto realiza. Quando esse se conclui, o sujeito se encontra outra vez livre e desinibido. É no transcorrer desse penoso processo que muitas vezes se observa a inapetência sob a forma da perda do prazer em se alimentar.

Pensando no resgate do prazer de comer, vale lembrar que a antropologia e a psicanálise nos ensinam que cada cultura, cada família elege seu gosto particular. Os enquadres simbólicos, culturais, configuram princípios normativos e rituais alimentares próprios que nos singularizam. Somos também aquilo que comemos, nossa culinária sustenta nossa identidade. Nosso sabor e comportamentos alimentares constituem uma linguagem que é transmitida pelas gerações. Não se come e bebe de uma maneira qualquer; existem ritos alimentares inscritos num código cultural que prescrevem o quê, quando e como comer.

"Há alimentos especiais para cada ocasião. (...) Há maneiras especiais de prepará-los, de servi-los e de comê-los. (...) É comum uma pessoa não conseguir comer ao lado de outra que observa práticas diferentes, sobretudo se se colocam em evidencia os distanciamentos sociais e as regras de higiene. Nessas horas, como em todas, o estomago se submete ao intelecto." (Rodrigues, p.66, 1980).

Esse conjunto de fatores clínicos, institucionais e culturais nos dá uma medida do impacto e da particularidade em que se encontra o ato de se alimentar quando é transposto de seu contexto cotidiano e familiar para dentro de uma UTI. É nesta multiplicidade de fatores que o fenômeno da tristeza e da inapetência deve ser apreendido. Um tipo de problema que, por se instalar no contexto de um tratamento de alta complexidade, envolve muitos profissionais. O trabalho com a psicanálise, com sua aptidão em por em movimento e fazer circular os discursos, nos permitiu enquanto equipe re-equacionar o problema incluindo a subjetividade e a particularidade de cada caso na reavaliação de rotinas e suas finalidades terapêuticas. A reformulação de rotinas numa instituição hospitalar implica um trabalho integrado, difícil e complexo. No caso da rotina alimentar em UTI, envolve equipes de nutrição, médicos, enfermagem, cozinha, psicólogos, serviço social (recepção) num trabalho articulado. Um meio de amenizar o impacto da hospitalização sobre o estado nutricional dos pacientes foi, mediante avaliação interdisciplinar, propor as famílias e paciente uma participação ativa no processo (Zenoni, 2003; Gianinni, 2007) que inclui:

(1) Troca de horários de visitas pela presença do familiar nos horários de refeições;

(2) A escolha do cardápio pelo paciente e o preparo e tempero do alimento em casa pelo familiar;

(3) A disponibilidade e as condições psicológicas do familiar para permanecer na UTI e oferecer a refeição preparada por ele mesmo, ou por outrem.

Segue alguns exemplos dos pratos escolhidos e preparados pelos familiares oferecidos a pacientes de longa permanência:

• Paciente 50 anos, diagnóstico: politrauma, broncopneumonia e pós-operatório de traqueostomia. Escolha: Mandioca com leite quente e sal ou açúcar.

• Paciente 70 anos, diagnóstico: pós-operatório cardíaco de troca de válvula mitral. Escolha: Pastel de bacalhau, torta de camarão, batata doce com leite.

• Paciente 72 anos, diagnóstico: miocardiopatia dilatada, insuficiência cardíaca congestiva, implante de marca passo, traqueostomia. Escolha: Peixe ao molho.

• Paciente 61 anos: pós-operatório cardíaco de re-troca de válvula aórtica. Escolha: Viu o vizinho de leito comendo e pediu para filha fazer: Angu de fubá com couve.

A experiência nos mostrou que ser alimentado pela família e escolher o que deseja comer pode surtir efeitos importantes no resgate do prazer de se alimentar, do gosto de viver. A escolha do cardápio não deixa dúvidas sobre os efeitos dessa re-instituição da função subjetiva no tratamento, cada prato traz uma história e de cada história advém um sujeito.

 

Considerações finais

Os três dispositivos clínico-institucionais estudados nos dão exemplos da contribuição ética e conceitual que a psicanálise pode oferecer no desenvolvimento de ações propostas pelo atendimento integral a saúde. Tais ações foram desenvolvidas sob uma dinâmica institucional pré-existente, coube a clínica na instituição integrar e acolher esta dinâmica lhe dando uma forma conceitual própria, respeitando a organização de suas equipes e propostas de atendimento. Nas três abordagens, os problemas tratados são característicos do contexto hospitalar, são sintomas clínico-institucionais que exigem ações integradas que vão mais além da atenção dirigida exclusivamente para órgãos e sistemas. (Moretto, 2006). Contudo, a existência de equipes multiprofissionais por si só não garante a qualidade dos serviços, foi à sensibilização quanto à singularidade de cada caso e a opção de inserir a subjetividade no tratamento que viabilizou um projeto integrado, sujeito a avanços e retrocessos conforme resistências individuais e coletivas. Concluímos que não há atendimento integral sem que haja trabalho integrado, e a prática interdisciplinar não é uma orientação que vem de fora e sim uma construção que se produz a partir da própria experiência das equipes. Pressupõe um amadurecimento prático, ético e conceitual, pois implica que cada especialista seja capaz de transcender as fronteiras de sua área, abandonando a segurança e o conforto de sua especialidade e se por a escutar outros discursos. Uma atitude capaz de superar a fragmentação e a baixa resolutividade dos serviços articulando práticas específicas numa direção compartilhada.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Clovis Eduardo Zanetti
E-mail: zttceduardo@yahoo.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado na VIII Jornada de Psicologia do HU/UEL e 2° Congresso Brasileiro de Psicologia Aplicada à Saúde, realizados em Londrina, 27-28-29 outubro de 2010.
* Psicólogo, mestre em epistemologia da psicologia e da psicanálise e filosofia da mente pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, especialista em clínica psicanalítica, coordenador do serviço de psicologia e psicanálise do Hospital do Coração de Londrina, professor da graduação em psicologia do Instituto Filadélfia - Unifil e da pós-graduação em psicanálise de Freud a Lacan da Faculdade Pitágoras. Hospital do Coração de Londrina. E-mail: zttceduardo@yahoo.com.br

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