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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.14 no.2 Rio de Janeiro dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Espiritualidade, religião e o fazer PSI: reflexões das experiências vivenciadas no hospital de clínicas de Uberlândia*

 

Spirituality, religion and do PSI: reflections from experiences in hospital clinics Uberlandia

 

 

Carolina Cardoso Junqueira de Freitas**, I; Cristianne Spirandelli Marques***, II

I Pitágoras, Uberlândia, MG
II Centro Universitário de Patos de Minas

 

 


RESUMO

O tema desse artigo partiu da inquietação e da curiosidade da autora, sobre a escuta do discurso dos pacientes no hospital. Aos poucos essa inquietação delineou que não se tratava de um discurso qualquer, mas daquele que dizia respeito à presença da espiritualidade e da religião no dito produzido tanto pelos pacientes, quanto pela instituição de saúde pública em que a autora se encontrava. Por meio de uma reflexão histórica e psicanalítica sobre a produção do discurso humano realizou-se uma discussão sobre a condição de relação paciente-psicólogo, no contexto hospitalar - questionando as possibilidades do fazer psi.

Palavras-chave: Discurso, Psicanálise, Hospital, Psicólogo, Religiosidade.


ABSTRACT

The theme of this article started from the unrest and the curiosity of the author, on hearing the speech of patients in the hospital. Gradually this concern outlined that it was not any one speech, but that it was the presence of spirituality and religion in that both produced by patients, as the institution of public health in which the author was. Through a historical and psychoanalytic reflection on the production of human speech there was a discussion about the condition of psychologist-patient relationship in hospital context - questioning the possibilities of doing psi.

Keywords: Discourse, Psychoanalysis, Hospital, Psychologist, Religiousness.


 

 

Introdução

Contando um pouco das primeiras histórias da autora com o tema

Como disse certa vez Morais (1997) que escrever sobre um tema nos remete a idealizações e elaborações que nos estimulam, ao mesmo tempo em que nos desafiam, decidi considerar nesta escrita o que me inquietou. Primeiramente fui remetida ao sexto período de graduação, enquanto aprendiz, quando me deparei com a disciplina de Psicopatologia II e com “um tanto” de conceitos peculiares sobre a “psique”. Lembro-me da professora, sempre nos chamando para um jeito diferente de escutar: “no que tange a condição humana, devemos estar sempre disponíveis a ouvir esse sujeito que nos chega, de aproximarmo-nos dele”1*; sendo que a psicanálise realiza seu diagnóstico “separando o que é próprio do paciente, do que é universal, descobrindo o típico do seu desejo...” 1 Nossa! Nesta época entender tudo o que era enunciado e provocado nessas aulas não foi fácil, até que então chegou à entrada num estágio, - na enfermaria de psiquiatria -, e um filme se passou na minha mente do que havia sido aprendido. A proposta de me colocar ao lado dos pacientes, e deixar emergir o que havia ressonado, me faziam pensar: será que essa escuta faz sentido? Tudo aquilo mesmo, que foi provocado pela professora nas aulas, realmente acontece? E será como disse Herrman (1999) que de tanto desenharmos como é a posição do paciente com relação a nós, ou a rigor em relação aos múltiplos significados que o paciente nos empresta, surgirá a forma que seu desejo adquire em relação a qualquer outra figura, como acontece no fenômeno transferencial? E assim fui... Fui percebendo que adentrar nos mais variados mundos psíquicos do paciente era necessário, assim como era necessário não rotular, não impor uma teoria, um molde, mas lidar com o subjetivo, com aquela dor única. Constatei então, que não havia mais jeito, pois eu estava afetada apaixonadamente pela condição humana nesse espaço (o hospital), em que as mudanças físicas e emocionais são tão vulneráveis.

Dessa forma, o nascimento deste tema partiu da inquietação e da curiosidade da autora, sobre a escuta do discurso dos pacientes no hospital e aos poucos também percebi das minhas inquietações, que não se tratava de um discurso qualquer, mas daquele que dizia respeito à presença da espiritualidade, e da religião no dito produzido tanto pelos pacientes, quanto pela instituição de saúde pública em que eu me encontrava. Estes discursos permeavam a relação paciente-psicólogo, no contexto hospitalar – o qual eu fazia parte como estagiária de psicologia e nesta experiência recebia os pacientes que nos chegavam com suas crenças e valores pessoais.

Creio caro leitor, que estás a querer me perguntar: mas o que te levou a essa curiosidade, a essa fecundação? Convido-o, então a mergulhar comigo neste texto e a fazermos uma viagem pelas representações que foram ganhando resignificações, nos levando assim à reflexão desse tema.

A gestação não foi fácil, pois senti que houve certos desconfortos iniciais, como o receio da perda - de não conseguir deter-me no assunto, de tratá-lo como algo geral e repetitivo uma vez que me depararei com a angústia da “gestante”: qual nome dar a esse “ser”, mediante as tantas possibilidades? Com as idas a orientação deste trabalho, a escuta sobre os questionamentos da orientadora, a angústia inicial triplicou e eu pensava: “Meu Deus, o que estou fazendo”? Sentia-me totalmente desamparada ao deixar a sala do aconchego, pois estava chegando à hora de nascer esse filho tão almejado.

Assim, a angústia transformou-se em dor, ganhou nome, quando percebemos que o que estava a inquietar era algo relativo á função do psicólogo dentro do hospital, assim como a presença constante de pessoas com atitudes e discursos religiosos, que circundavam o momento de sofrimento do paciente.

Neste percurso, estagiando no ambulatório de oncologia surgiu uma situação, que creio, foi desencadeadora da indagação que também se seguiu: primeiro me vi diante de um paciente que trouxe a seguinte fala: “procurei ajuda e falei da minha crença religiosa ao psicólogo e o mesmo disse que desse assunto eles (o paciente e o psicólogo) não falariam”.

A queixa dirigida a mim causou e fez emergir a questão: Como nós psicólogos podemos nos instrumentalizar, por assim dizer para não sucumbirmos á tentação de imposição via intervenção do nosso conjunto de crenças e valores pessoais? Neste sentido me foi necessário contextualizar: 1) Outros exemplos de inquietações vividas no campo hospitalar, frente ao discurso humano; 2) Traçar algumas considerações feitas pelo discurso científico, sobre o papel do psicólogo no campo da saúde hoje; 3) Esclarecer como se dá a produção do discurso humano e referenciando teoricamente na Psicanálise.

Por fim, mediante esta vasta possibilidade de pesquisas, uma nova “fecundação” então se fez: O que é que um psicólogo faz? Qual a sua postura profissional? Qual a sua relação com a questão dos mais variados discursos (pacientes, profissionais, famílias) presentes no contexto hospitalar?

Assim, o presente texto fundamenta-se, na analise do discurso, ora emergidos através da fala dos pacientes ora da própria indagação do fazer profissional. Por meio do método psicanalítico como instrumento de analise no sentido da construção desses discursos.

 

O local das inquietudes e da produção: O HOSPITAL

A curiosidade, no que se refere ao fazer do psicólogo no hospital, originou-se da própria entrada no estágio em Psicologia Hospitalar no ano de 2004. Esta atividade realizada no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia me levou a pensar no momento em que eu andava pelos corredores e meus ouvidos se lançavam as aos mais variados ditos, falas, as mais variadas escutas. Eu me perguntava como o adoecer muda às percepções, os sentidos e a fala. Isto ocorria ao perceber nos pacientes a luta pela vida encravada na fala, na forma de apego ao divino, para suportar esse momento.

Ao mesmo tempo em que o discurso dos pacientes me chamava à atenção outros discursos também surgiam como o de outros profissionais da área de saúde, voluntários, agentes religiosos. Estes “ouviam” os pacientes, sendo na maioria das vezes um momento terapêutico, pois buscavam alguma forma de ‘cura’, e ainda assim reverberava a pergunta o que faz um psicólogo no hospital? Mediante a tantos “ouvidos”, eu escutava um discurso: o de apoio, de suporte, sendo na maioria das vezes os discursos, regados pela questão da crença.

Assim, comecei a andar pelos corredores, leitos, a ouvir, e algo estava latente em mim: a curiosidade sobre as falas dos pacientes quanto à crença em algo sobrenatural - A RELIGIOSIDADE e sua relação com o processo de adoecimento. Surgiu outra inquietação: havia um lugar dentro do hospital - a Capela, para acolher essa dor. E verificando na historia do nascimento do hospital, me deparei com Foucault que me contou o seguinte:

[...] o personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o ultimo sacramento. Esta é a função essencial do hospital. Dizia-se correntemente, nesta época que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas conseguir sua própria salvação. Era um pessoal caritivo-religioso ou leigo – que estava no hospital para fazer uma obra de caridade que lhe assegurasse a salvação eterna. Assegurava-se, portanto, a salvação da alma do pobre no momento da morte e a salvação do pessoal hospitalar que cuidava dos pobres [...] (Foucault, 1991, p101-102)

Mas e hoje, será porque que mantêm esse lugar? Lembro-me de me indagar se esses primeiros religiosos ouviam os pacientes assim como os psicólogos hoje? Novamente me deparava com minha angústia, como se mostra o nosso fazer?

Passo a passo, fui adentrando aos mais variados mundos psíquicos – dos pacientes, colegas de profissão e de trabalho no hospital - e assim a pergunta inicial começava a ganhar um contorno: O nosso lugar seria o lugar da busca de sentido no discurso do paciente hospitalizado? Lidar com as crenças do paciente, mas dando assim sentido ao discurso: interpretando.

No que diz respeito ao contexto hospitalar, o psicólogo está inserido em um ambiente, onde os profissionais envolvidos tiveram diferentes formações, com diferentes olhares para o mesmo foco, “o paciente”, isto implica em uma rede de relações de alta complexidade. Porém, a qualidade desse vínculo, será de vital importância para o bom desenvolvimento do trabalho do psicólogo hospitalar, seja com o paciente ou com a equipe. No ambiente hospitalar principalmente, o aspecto espiritual é bastante relevante, na medida em que o paciente encontra-se frágil diante de suas outras dimensões (biopsico), fazendo-se necessária a atenção dos psicólogos durante seus atendimentos. (Bonneterre, 2008,p--).

Considerando a complexidade proposta pelo autor em que eu estava envolvida, assim como, a necessária reflexão sobre a natureza dos vínculos nessa rede de relações, eu procurei trabalhar com o que eu tinha: com o que era enunciado pelo paciente, que passou a ter significação para mim quanto à futura profissional. A mim perpassou a compreensão da condição humana, enquanto um ser - faltante, incompleto, finito, com seus conflitos emocionais ao adentrar o ambiente hospitalar em que é preciso lidar com: o diagnostico o adoecer e as mudanças a partir daí.

A mim enunciaram-se os ditos possíveis em atendimento de grupo em distintas sessões. A temática - a religião, a religiosidade sempre retornava. Sendo que as facilitadoras cuidavam da forma como um todo sobre o pensar, buscavam ressonâncias no grupo, para dividir as perguntas dirigidas tais como as enunciadas abaixo:

“E como fica a dor da alma?

“A religião me ajuda, a suportá-la” (sic);

“A religião me sustenta, me dá suporte” (sic);

“E a ciência como vê a religião?” (sic)

“Cada pessoa tem a sua crença, no que acreditar” (sic)

 

Discursos, Sentidos: nos meandros da mente...

O corpo e a mente têm biografias separadas, cada um sua memória própria, seu próprio jogo de charadas. Meu corpo tem lembranças - cheiros, tiques, andanças - que a mente não registrou e o corpo não tem as marcas de metade do que a mente passou. (Pior que uma mente insana num corpo sem muito assunto é um corpo que já foi ao Nirvana sem que a mente tenha ido junto). Cada um tem um passado do qual o outro não tem pista (como um bilhete amassado) e nem o Mahabharata explica uma mente anarquista num corpo social democrata. Compartilham bioplasmas e o gosto por certas atrizes, mas não temos mesmos fantasmas nem as mesmas cicatrizes. Das duas, uma, gente: ou toda mente é de outro corpo - ou todo corpo mente. (Luis Fernando Veríssimo, Poesia numa hora dessas?! 2002 p23 e24)

Acompanhada, pelo poeta, neste processo de gestação da ainda desconhecida especificidade do fazer “Psi”, deu-se um lugar comum pelo menos ao corpo e a mente, a saber, o lugar da produção própria de jogos de charadas. Se bem diz o poeta, o corpo se deixa ver pelas lembranças, enquanto a mente por uma espécie de marcas, que haverá de ser desconhecida ao corpo. De que mente fala o poeta? Quando associada ao corpo ela não parece dele, pode não se reconhecer nele/dele, em sua natureza corpórea, lugar de suas origens, mas que, no entanto, por vezes, a ela, à mente, em sua forma também charadista, deixa ao corpo o lugar da mentira, da necessidade que vira algo mais. Mente que mente?

A mentira, própria ao ato de mentir, de contar lorota, potoca, e assim por diante, é coisa de mente humana, numa dessas condições nossas de cada dia de criar sentidos, contando histórias. Mas como e porque fazemos isto?

Desde o início de sua formação, a mente humana traz a expectativa do encontro com o outro – num primeiro momento, com aquele que desempenha a função materna, responsável pelos cuidados iniciais com o bebê, por sua sobrevivência e por lhe apresentar a cultura. O bebê é capaz de imitar o semelhante; o corpo se orienta para buscar a mãe, o choro apela a ela, os reflexos denotam prontidão para agarrar. Até sua aparência parece ter sido esculpida ao longo da evolução para atrair não apenas a atenção da mãe, mas dos adultos em geral. (Fonseca, 2007, p 01)

O autor evidencia a condição necessariamente dependente própria ao ser humano, que ao contrário da maioria dos animais possui uma vida gestacional razoavelmente reduzida, acarretando um despreparo para a vida logo ao nascer. Segundo Hermann (2001) prisioneira de um cerco de coisas materiais, ou seja, da necessidade fisiológica e das coisas que a podem satisfazer, o bebê encontra, no entanto, de golpe, uma porta de acesso à outra condição.

Herrmann nos introduzirá no conceito de Mentira Original em que:

No espaço entre mãe e o bebê, sucede o pequeno milagre da abertura de um novo psiquismo. Sendo capaz de produzir efeitos sobre a mãe, o bebê acaba por descobrir que se pode comunicar e principalmente, que pode indicar um estado de necessidade imaterial - não só da barriguinha vazia ou pele queimando de urina, mas própria da fantasia de satisfação possível. A necessidade fisiológica bruta começa a ser modificada e a se transformar numa coisa mais diferenciada - a fome vira apetite, desejo de comer desejo de ser acariciado, desejo amoroso, etc. (Herrmann, 1999, p.101).

Ao experimentar os efeitos altamente satisfatórios da relação com o outro, com a mãe em particular, segundo Hermann (1999) ao bebê é possível que chegue a pensar conscientemente, sendo que os produtos da lógica de concepção começarão a se organizar em direção à linguagem, ao desejo e ao pensamento consciente, sendo uma espécie de segundo nascimento, de acordo com o autor, em que se no primeiro nascimento surge a criançinha com potencialidades humanas, no entanto é no segundo que se cria o ser da psique.

O ser da psique fundado na linguagem tem como origem um corpo que - recordando o poeta - produz lembranças insuspeitadas a mente que haverá de conhecê-las, numa outra lógica, segundo o poeta, a lógica das marcas constituintes, que como vimos com Herrmann, surge da condição de necessidade e comunicação do bebê com sua mãe produzindo biografia, singularidade, por assim dizer.

A partir dessas reflexões, os mais variados discursos ouvidos, passam a ganhar um sentido diferente: trata-se de um dito único, próprio de cada ser humano que adentra ao hospital e passa a vivenciar uma dor. Ao nos depararmos com a questão, dos rompimentos primordiais para a constituição psíquica em sua formação inconsciente, ou seja, por meio de charadas/crenças em socorro ao adoecer do corpo que a linguagem tão bem nos evidencia, somos remetidos às lembranças reprimidas, possibilidades de eventos traumáticos. Na linguagem, portanto, temos a chance de que as representações dos afetos, dos medos, da angustia em sua possibilidade de manifestação por meio do apego a algo sobrenatural, tenha algo mais a revelar, que precisa ser ouvido: a angústia em lidar com o desconhecido, com o que vem depois da morte.

 

A busca do auxílio divino: o discurso religioso

“Às vezes no silêncio das palavras ou na melodia das mesmas, outros sons podemos registrar com ouvidos de psi (canalistas)...”
Spessoto, B, l.Aquem e além da linguagem.

Para compreender os discursos emergidos, fez-se necessário entender a questão da formação da mente, como também conhecer sobre a história da religião e como podemos nos instrumentalizar com esse tema, para interpretar e ver surgir às produções de sentidos.

E assim, fui percebendo o discurso de um corpo adoecido, que transporta os sentidos da alma para um discurso religioso, nos revelando que tanto o corpo quanto a mente têm seus jogos próprios de charadas de produção de sentido.

 

I – Um breve panorama da historia da religião

A religião é uma das mais antigas manifestações do homem e para muitas pessoas, o mais importante componente de referência pessoal. Estudiosos e pesquisadores de antropologia cultural relatam que expressões religiosas existem praticamente em todos os níveis de civilização.

Assim a religião procedeu do próprio homem pré-histórico. (Künh, 1958 apud Rosa, 1979) diz que:

A princípio a religião se expressava em magias, bruxarias, danças, encantamentos, cânticos sagrados, etc. Mais tarde, o homem começou a desenvolver formas coerentes de pensamentos, conceitos subjetivos e concepções mágicas do universo. Finalmente, em fase evoluída, ele passou a elaborar explicações mais racionais do universo, dando, assim, origem á filosofia e ás formas das chamadas religiões superiores. (Rosa, 1979, p.44).

Mesmo o humano querendo racionalizar a questão da religiosidade, ela permanece “mágica,” como se o homem pudesse controlar os poderes sobrenaturais. Percebo assim e antecipo que a questão da religião, vem antes da psicologia: um fenômeno que passa do ruído e ganha significado.

Pensando se assim a vida em sociedade só é possível com o estabelecimento de regras, o que necessariamente causará confrontos com os desejos individuais, Freud nos convida a pensar em seu texto “O futuro de uma ilusão” (1927) apontando que os homens, desde a mais tenra idade, enfrentam uma luta contra a natureza (canibalismo, incesto), isto é, tentam negá-la. Além disso, desenvolvem internamente valores morais. Dentre esses valores morais, afirmam-se as idéias religiosas. Sendo que dentre as idéias religiosas apontadas por Freud, temos a questão do desamparo infantil, a idéia do pai como fundamento religioso.

...Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as conseqüências de sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer — reação que é, exatamente, a formação da religião... (Freud, 1927, p 36).

Assim a importância em trabalhar o que era enunciado pelo paciente, propiciando um senso de significado e de entendimento ao indivíduo, foi ganhando dimensão enquanto vivenciava o estágio no hospital de clínicas, tendo como nitidez um fazer psi que adquire cada vez mais no hospital a compreensão da condição humana e os conflitos que a perpassam.

 

II- Há diferenciações nos discursos: Religião? Religiosidade? Espiritualidade?

Será que espiritualidade, religiosidade e religião possuem o mesmo significado e /ou sentido? Na literatura podemos encontrar uma multiplicidade de definições para cada uma dessas palavras.

Assim, espiritualidade nos remete a capacidade da pessoa maravilhar-se, sentir ligada ao todo/ integrada, busca de sentido de vida, transcendência. (Freire, 2003, p--)

E de acordo com Harris (1973) transcendência significa: “uma experiência daquilo que é mais do que eu, de uma realidade fora de mim, daquilo que foi chamado de O Outro, O Tudo, ou Deus”. (p.270)

Miller and Thorensen (2003) ainda nos acrescenta que “espiritualidade se refere aos aspectos não materiais da vida, àqueles que não são comumente percebidos pelos sentidos. A espiritualidade é entendida como um princípio ou qualidade vital que dá vida ou energia aos constituintes materiais do homem.” (Roehe, 2004, p.401)

Já religiosidade de acordo com Mobeg (1970), é definida como “crenças, valores pessoais e atividades pertinentes àquilo que é sobrenatural misterioso e reverenciado, que transcende a situação imediata e que diz respeito ás razões e objetivos finais do homem no universo.” (Goldstein, 1993,p.83).

Goldstein (1993) ainda enuncia que: “a religiosidade está ligada a vida do homem independente de raça, cultura, ou tempo histórico.” (p.83).

Quanto à religião, esta vem do latim religio, cognato de religare, atar, ligar para trás e segundo Clark (1958) religião “é a experiência íntima do indivíduo, quando ele sente um transcendente, e que se expressa em seu comportamento, quando ele ativamente procura harmonizar sua vida com esse transcendente”. ( Rosa, 1979,p.44).

E ainda para Durkheim (1915) “religião é um sistema unificado de crenças e práticas relativas a coisas sagradas e proibidas – crenças e práticas que unem numa comunidade moral chamada igreja, todos aqueles que a aderem.” ( Rosa ,1979,p.42).

A religião parte do pressuposto de uma relação pessoal com uma realidade transcendente. O que seja essa realidade e como é percebida pode variar de indivíduo a indivíduo e de grupo para grupo. Mas o fato é que, para qualificar-se como religião, é necessário que tenha referencia especifica a uma realidade transcendental. [...] (Rosa, 1979, p.240).

Diante disso, a religião nos parecer ser o invisível mais visível nas questões existenciais quando o paciente nos chega ao hospital. Seria a produção de sentido para as dificuldades em lidar com o sofrimento, a derrota, a perda, o fracasso, a dor, a morte? Ou até uma volta ao desconforto do primeiro nascimento, onde o psiquismo estaria buscando recuperar a condição necessária de amparo?

[...] a psicoterapia, se quiser ter foros de ciência, não pode pronunciar-se a respeito da existência ou da não existência de Deus. Enquanto o homem, o psicoterapeuta pode ter suas convicções pessoais a respeito de Deus, da realidade do espírito ou de valores eternos. Enquanto psicoterapeuta, porem, não deve pronunciar-se sobre assuntos metafísicos porque esses transcendem a sua área de especialização e competência. O bom e hábil psicoterapeuta, no entanto, pode servir se da crença do indivíduo para ajudá-lo na reconstrução de seu mundo interior, visto que, como já dissemos várias vezes, no processo psicoterapêutico, os valores que contam, em última análise, são os do próprio indivíduo, e não necessariamente os do clínico. (Rosa, 1979, p.240).

Destaco uma vivência que tive enquanto estagiaria na enfermaria de oncologia e a questão do discurso religioso: chegou uma solicitação ao setor de psicologia para o atendimento de uma adolescente que estava internada há alguns dias, com um câncer no pescoço, com a possibilidade de um prognóstico fechado (não cura). Nesse dia estava eu como estagiaria e uma psicóloga que na época, era minha supervisora. Nosso trabalho consistia numa verificação da condição do paciente de suportar emocionalmente, a possibilidade de em breve receberem (paciente, família) uma má noticia, pelo médico. Nesse sentido realizamos uma escuta inicial que propiciaria a verificação. Assim, fomos ao leito da paciente, onde, estava a adolescente calada, com o olhar longe e tristonho, e a mãe uma mulher simples, com um rosto sofrido, e um sorriso acolhedor. Estava eu a ouvir a mãe quando minha supervisora me chamou, perguntando se poderia trazer naquela tarde um Cd que contivesse músicas religiosas para a adolescente, pois a mesma havia pedido para ouvir. Eu disse a ela que traria. Durante a tarde esse Cd tocou e eu ouvi ao longe as canções.

Minha indagação se manteve: estaria aí (no de levar o cd, escolher as musicas) à especificidade do meu fazer? Ou estaria eu, como sugeriu Foucault (1991) imersa na condição de acolher espiritualmente alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o ultimo sacramento? Fui percebendo que me fugia, diante de tanta dor, as possibilidades de pensar com o paciente este momento, tanto que aceitei e trouxe o Cd, sem pensar. Acontece que mesmo tendo sido acalentadas - a paciente, a ala todo daquele hospital e inclusive eu, essas lembranças não me abandonaram, e o incômodo exigiu reflexão, quando por fim, nesta caminhada, ele ressurgiu numa vivencia mais recente, numa visita em grupo ao HC, na companhia de uma facilitadora da área de psicologia. Fomos ter um dia de aula prática. A experiência foi fantástica e a riqueza do conteúdo manifesto pelo grupo no que tange ao que temos proposto para a escrita do artigo também: o discurso, a fala de quem sofre e o suporte oferecido, a condição de crença, a religião. Eu, agora não mais como estagiária, mas como uma profissional, adentrei novamente ao espaço outrora emergente sobre o fazer profissional. Lembro que fomos para UTI pediátrica, para fazermos um grupo com os pais ali presentes. Reunimo-nos na sala de espera e os pais que estavam ali participaram da atividade. Neste sentido, quanto sofrimento, lágrimas quando os pais falavam sobre o diagnóstico e prognóstico dos filhos, a morte próxima, os conflitos, a culpa, tudo isso emergiu no grupo e foi sendo considerado pela facilitadora. Num dado momento de escuta acontece a seguinte situação: uma mãe fala sobre a questão de estar sendo punida por Deus, por ter castigado seu filho, diz que iria trancá-lo no quarto se não parasse de fazer bagunça. A mãe se vê diante da/desta culpa pelo filho preso na cama. A facilitadora deixa a mãe falar sobre esses sentimentos, e a mãe conta toda a trajetória do acontecimento com o filho: tombos, internações, erro médico. A facilitadora então pergunta: qual é a sua religião? E a mãe responde. A facilitadora então pergunta na sala quem tem a mesma religião da mãe e que poderia falar algo para ela. Levantei a mão e disse que poderia dizer algo. A facilitadora me solicita não falar como psicóloga, mas como uma pessoa que partilhasse da mesma crença. Neste momento, sem entender a colocação, o que me veio à mente foi: e o fazer profissional? O que dizer àquela mulher? Vale ao meu leitor acentuar que seguindo a solicitação da minha facilitadora, falei à paciente na linguagem religiosa sobre o amor de um Deus que não necessariamente a condenaria e que acima de tudo Ele a amava. Ao final do encontro uma colega se aproxima e me diz: “Carol, pensei que você fosse falar de bíblia, expor versículos, mas não, você foi diferente, você falou o essencial e no final da oração dela percebi que a fala havia mudado”. Percebi que o fato da mudança do discurso da culpa, dessa mãe, de não mais considerar-se culpada, não sentir-se miseravelmente sozinha, ganhou sentido a partir do momento em que se deu a oportunidade da escuta, naquele momento de grupo.

Mas... Quanto pode ser feito nestes contextos? O que mudou segundo minha colega na fala da paciente? Ainda assim, o que estaríamos buscando fazer, nós psis, no contexto hospitalar?

 

Considerações finais

Hoje escrevendo esse artigo, entendo que essa experiência/vivência foi mais no plano de contenção da prática psi. Um fazer Psi que não se limitou a ser simplesmente mais um profissional psicólogo, mas escutar diferente, uma psi, que se angustiou com o papel e permitiu ouvir com outros ouvidos os de um Psi (CANALISTA).

Uma prática que possibilitou um espaço de escuta para os ruídos de dor expostos num corpo adoecido, que clama por amparo, lançando ao outro um apelo para o alivio do seu sofrimento, muitas vezes indizível. Assim, ressaltamos que tanto em um como em outro caso algo demandado pelo paciente foi atendido. No primeiro caso uma forma de aliviar ou acalentar a todos das dores dos limites/da queda/ do abismo – música. No segundo um perdão após a confissão. O campo da religiosidade estrutura as relações.

Dessa forma uma escuta que possibilita a nossa instrumentalização, pois o paciente nos revela o seu modo de ser, suas crenças e o modo de estar aqui e agora, nos direcionando para reesignificar os sentidos produzidos pelo seu psiquismo, possibilitando assim, o encontro de novos sentidos a sua subjetividade.

Segundo Herrmann (1999) a aplicação do método psicanalítico é que indicam as posturas de deixar surgir do paciente, os assuntos, os sentidos que quando produzidos merecerão ser tomados em consideração. No meu caso os assuntos se dirigiram a mim num primeiro momento, e em outro eu me permiti ser lugar de transferência para o depoimento de uma mãe.

Re-conhecendo que o ser humano é um ser transcendental, criativo, inteligente, foi possível reconhecer também que o desconhecido, o medo, a insegurança, a culpa e a dúvida nos acompanharão em nossa existência, pois somos seres finitos, incompletos.

Esta forma humana - considerando a vivência anteriormente relatada – fez ressonar aqui o dito que também inspirou esta busca, logo no início do texto: “separando o que é próprio do paciente, do que é universal, descobrindo o típico do seu desejo...” um momento de consideração - de escuta do trânsito dos discursos, se deu pela escrita, em que foi conferido um certo valor transferido: da mãe para os psis, da facilitadora psi para seus alunos, de nós para os pais, fazendo surgir um exercício de reflexão da escuta vivida - a mãe que inicia seu depoimento falando do castigo de Deus, também fala do castigo – ao filho e a ela, como forma de lidar com a bagunça (expressão da mãe), fala da bagunça do filho e de tombos, internações e erro médico – todo mundo vira criança bagunceira... A facilitadora/interlocutora invoca a religião, cabendo aqui a hipótese: acreditá-la-ia também ser a religião a origem/ordem de toda bagunça? Somos tomadas pela ambivalência do dito, que permanece quando a facilitadora solicita que uma psicóloga fale como uma religiosa, tendo esta uma crença em comum com a da paciente. Ao pedido da facilitadora, vale lembrar, que a psicóloga (eu) desejou algo dizer... Mesmo tomada em seguida pela forma encenante proposta pela facilitadora de dizer como religiosa e não como psicóloga, foi como psicólogo-religiosa, que eu disse algo a paciente. Algo que pudesse acalmar á paciente: Deus seria dotado também de amor, enquanto ela só via ódio. Refletindo... Teria sido assim que me senti ao ouví-la? Presa á desesperança e naufragada na culpa? Meu Deus, o que fazer? Socorre-me também aqui. Ou seja, presa a á tábua de salvação para não se naufragar que para se salvar agarra á ancora. Parece que pude contar à paciente que poderia haver outro jeito de ver as coisas.

E a minha colega? Talvez temente de que eu naufragasse na total transcendentalidade, quem sabe mudasse de vez o assunto psíquico em questão - a “bagunça” – instalada naquelas vidas, aqui, no entanto fez-me refletir sobre a angústia que sentimos nos atendimentos que podem nos levar a conter, palavrinha mágica e constante, em tempos de muita dor, mas também de ficarmos contidas, como diria o poeta: cheias das lembranças que o corpo haveria de encenar e das marcas acontecidas na vida, pelas quais a mente houve por “bem” de passar.

No entanto se cada um (corpo/mente) tem um passado do qual o outro não tem pista, mas “compartilham bioplasmas e o gosto por certas atrizes”, vale lembrar que algo mais já conhecemos dos corpos que mentem...

Portanto, perpassamos por temas que trouxeram inquietações a autora e que se salva de sua con(tensão) á tábua com (tensão)2, e assim nasceu o bebê com certeza outros virão, pois como disse no começo do texto, o assunto nos propicia uma vasta possibilidade de pesquisa, pois me deparei com uma multiplicidade de respostas que agora se fazem perguntas e me dão rumo para novos escritos.

 

Referências

Bonneterre, A. http://psiclinicaehospitalar.blogspot.com/2008/02/psicologia-e-espiritualidade-no.html, 27 de agosto de 2008.         [ Links ]

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* Artigo Apresentado como conclusão do curso de Especialização em Psicologia Hospitalar da Saúde, pela União Educacional de Minas Gerais – UNIMINAS Atual Pitágoras, Uberlândia-MG. Psicóloga Clinica.
** Psicóloga graduada pela UFU (Universidade Federal de Uberlândia). Pós-graduada em Psicologia da Saúde e Hospitalar pela União Educacional de Minas Gerais – UNIMINAS, atual Pitágoras; Psicóloga Clinica.
*** Especialista em Clinica Psicanalítica pela Universidade Federal de Uberlândia. Mestre em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de Psicologia do Centro Universitário de Patos de Minas – UNIPAM. Membro do Grupo Vórtice: Estudos Psicanalíticos da Teoria dos Campos em Uberlândia; Psicóloga Clínica; orientadora do artigo.
1 Falas da professora de psicopatologia, durante a aula, anotadas pela aluna em seu caderno de estudos.
2 Grifos da própria autora.

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