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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.16 no.1 Rio de Janeiro June 2013

 

ARTIGOS

 

Um corpo que perde o sentido: uma leitura psicanalítica dos pacientes com paraparesia espástica tropical

 

A body that loses sense: a psychoanalytical reading of patients with tropical spastic paraparesis

 

 

Maria Rita Polo Gascón*,I; Raquel Ferreira Santos**, II; Cláudio Garcia Capitão***, III; Maria Cezira Fantine-Nogueira****, IV; Augusto César Penalva Oliveira*****, V

I Hospital das Clínicas de Medicina de São Paulo (ICHC/FMUSP)
II Coordenadoria de Controle de Doenças, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
III Universidade São Francisco
IV Universidade Federal de São Paulo
V Instituto de Infectologia Emílio Ribas

 

 


RESUMO

O presente estudo objetivou refletir sobre as alterações corporais sofridas pelos portadores de paraparesia espástica tropical (HAM/ TSP), como também levantar algumas transformações subjetivas na medida em que ocorre a evolução da doença. Participaram do estudo 63 pacientes em tratamento no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, sendo 12 homens e 51 mulheres, com idade acima de 25 anos. Para coleta de dados foram utilizados uma entrevista semiestruturada e o BDI. Os resultados apontaram que os portadores da HAM/TSP apresentam autoconceito e autoimagem negativos, assim como rejeição de si mesmos em diferentes níveis. Os aspectos psicológicos levantados pelo estudo foram considerados e analisados utilizando-se de alguns recursos teóricos da psicanálise. Conclui-se que os portadores de HAM/TSP são expostos a uma contínua elaboração de luto, por consequência de uma ferida narcísica de difícil cicatrização.

Palavras-chave: Autoimagem, Depressão, Paraparesia Espástica Tropical, HTLV.


ABSTRACT

This present study aimed at reflecting on the body changes suffered by Paraparesis Tropical Spastic (HAM/ TSP) carriers, as well as to raise some subjective transformations as the disease progresses. Sixty-three patients under treatment at Instituto de Infectologia Emílio Ribas participated in the study, from which 12 men and 51 women, aging above 25 years old. For data collection, a semi-structured interview and the BDI were used. The results indicated the HAM/TSP carriers presented negative self-concept and self-image, as well as self-rejection in different levels. The psychological aspects raised by the study were considered and assessed using some theoretical resources of psychoanalysis. It is concluded that HAM/TSP carriers are exposed to a continuous mourning elaboration, as consequence of a difficult to heal narcissistic wound.

Keywords: Self-image, Depression, Paraparesis Tropical Spastic, HTLV.


 

 

Introdução

Paraparesia espástica tropical

A paraparesia espástica tropical (HAM/TSP) é considerada uma enfermidade crônica inserida, segundo a WHO (World Health Organization, 2005), entre as doenças irreversíveis, de longa duração ou que ainda sem cura. A HAM/TSP consiste em uma enfermidade neurológica, mielopática, proveniente do vírus HTLV-1 (vírus linfotrópico de células T Humanas), sua manifestação se dá nos membros inferiores de forma lenta e progressiva e até o momento não há uma forma de reverter o quadro dos pacientes que a desenvolvem (Segurado, 2005). A doença incide, de acordo com Casseb e Penalva Oliveira (2008), geralmente na quarta década de vida e ocorre com mais frequência entre as mulheres. O Ministério da Saúde (2004) ressalta que os jovens também podem ser acometidos pela HAM/TSP e adverte ainda que nenhuma faixa etária encontra-se livre de adoecer. A mielopatia pode ocorrer após aquisição viral por quaisquer das formas de transmissão do HTLV-1, ou seja, relação sexual sem preservativo, uso de drogas injetáveis, transfusão de sangue, ciclo gestacional, parto ou aleitamento materno (Casseb & Oliveira, 2000).

O distúrbio da marcha, a fraqueza, o enrijecimento dos membros inferiores e o comprometimento do equilíbrio dinâmico constituem os principais sintomas de apresentação da doença. Todos os grupos musculares são acometidos de maneira a tornar a marcha espástica, com redução de sua velocidade e resulta em grande dispêndio energético. Por se tratar de uma doença progressiva, o paciente necessitará de auxílio na mesma proporção, que tem início normalmente com a adoção de bengalas e andadores até evoluir para o estágio final, ou seja, portabilidade em cadeira de rodas e a total dependência de cuidados alheios (Ribas & Melo, 2002).

Embora vários fatores da HAM/TSP possam desencadear doenças psicológicas como ansiedade, depressão, essa associação tem sido pouco estudada. Em 2009, Souza conduziu um estudo com 36 pacientes infectados pelo vírus HTLV-1 e observou a presença de sintomas depressivos em 10 (28%) dos pacientes, sendo 20% com paraparesia espástica tropical e 7,7% assintomáticos. Carvalho et al (2009) realizaram estudo com 50 pacientes portadores do vírus HTLV-1 (26 sintomáticos e 24 assintomáticos), quando se verificou que 21 (42%) apresentaram comorbidade psiquiátrica, 17 (34%) tiveram alteração de humor e 11 (22%) demonstraram alto nível de ansiedade.

Do ponto de vista psicológico, Gascón (2008) analisou que os pacientes com paraparesia espástica tropical podem apresentar angústia, medos, humor deprimido e ansioso, revolta, tristeza, sentimento de menos valia, comportamento de isolamento e impotência em face da progressão da doença e da perda de autonomia, e sentimentos negativos em consequência da perda de capacidade tanto para o trabalho como para o lazer. Após o surgimento dos sintomas, ocorre um dano na relação que cada paciente estabelece com seu próprio corpo. Pensar na HAM/TSP, portanto, é lembrar-se de toda agressão à imagem e ao esquema corporal devido à deficiência física decorrente da evolução da doença, isto, por sua vez, acarreta ao portador uma condição psicológica que se pode denominar de ferida narcísica (Oliveira, 2000).

 

O sentido do corpo

O corpo elabora uma imagem inconsciente desde a concepção por meio das sensações de contato com a mãe, dos contatos corporais até as trocas afetivas, linguagem simbólica guardada pelo psiquismo em forma de memórias sensoriais revertendo na imagem de seu próprio corpo, o corpo-vivido. Sabe-se que a partir dos três anos de idade, a consciência começa a se consolidar e a criança passa a perceber seu corpo de uma maneira concreta, enxerga cada membro, conhece-o exatamente como é. Descobre um corpo-visto. Essa memória, então, dominará a consciência deixando uma imagem do corpo-vivido no inconsciente criando, assim, o Eu simbólico. A representação corporal que acampa a consciência pode ser chamada de esquema corporal, quer dizer, a maneira como o indivíduo se vê e se percebe no tempo e no espaço, é a sua identidade, a tradução de si mesmo (McDougall, 2001; Nasio, 2009).

As alterações corporais e a deficiência física sempre foram vistas com estranheza e diferenciação, basta relembrar que alguns povos exterminavam os recém-nascidos com alguma deformidade enquanto outros os idolatravam, como se estes fossem dotados de poderes divinos. De qualquer modo, fica nítido que o corpo diferente representa um motivo de inquietação para a humanidade (Buscaglia, 1999). No século XVIII, sob a influência do Cristianismo, a deficiência chegou a ser considerada como castigo ou indulgência divina para os pecados de algum membro da família. Hoje, tendo em vista o desejo do corpo perfeito definido pelos padrões de beleza que permeiam a sociedade existe um preconceito, mesmo que velado, pelo corpo diferente ou incompleto (Andrade, 2008; Mello Filho, 2002).

Para um indivíduo com deficiência física adquirida, inclusive os portadores da HAM/TSP, muitos danos emocionais podem advir disso, principalmente o luto pela perda dos movimentos. Para a teoria psicanalítica, no decorrer de um processo de elaboração do luto, a pessoa pode não suportar a perda de seu objeto de amor (neste caso, o corpo) e regredir a um narcisismo descontrolado, que poderia se converter em manifestações de estados depressivos graves (Bleichmar, 1983; Capitão, 2004; Gabbard, 2007). Alguns teóricos, como Ramos (2010), Mackinnon, Michels e Buckley (2008) formulam que a depressão é uma maneira de defesa contra ameaças de morte ou de desamparo, alguns depressivos são incapazes de refletir sobre seu self e perdem a capacidade de se sentirem reais. Siqueira (2007) considera a depressão como a manifestação de um desejo irrealizável, a vivência da dor da castração que, em casos extremos, desencadeia uma “covardia moral” e o indivíduo renuncia a seus desejos, instalando-se um conflito entre o ego e as pulsões de vida do inconsciente.

O trabalho de luto consiste, segundo Freud (1917/1990), Mannoni (1995), Mello Filho (2002), Meltzer (1989) e Ogden (1996), em um desinvestimento no objeto. Entre os pacientes com paraparesia espástica tropical torna-se mais difícil o desinvestimento, pois partes importantes de si mesmo foram afetadas ou perdidas. Portanto, no presente estudo delimitou-se o corpo alterado pela HAM/TSP como objeto de avaliação e o objetivo principal da pesquisa buscou levantar as concepções subjetivas mais importantes dos pacientes sobre o corpo após a evolução da enfermidade e da frequência de depressão nos referidos pacientes.

 

Material e Métodos

Trata-se de um estudo clínico transversal em que a participação teve adesão voluntária e a amostragem foi constituída por meio de uma técnica não-probabilística (amostragem intencional por conveniência). O estudo foi realizado no Instituto de Infectologia Emílio Ribas em São Paulo e a amostra abrangeu 63 pacientes maiores de 18 anos e de ambos os sexos, com diagnóstico clínico de HAM/TSP, durante o período de maio de 2008 a julho de 2009.

A partir da aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto, planejouse a coleta de dados. Os participantes convidados para a pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. A entrevista durou em média 25 minutos e os instrumentos foram aplicados na seguinte ordem: questionário sociodemográfico, Inventário Beck de Depressão (Beck et al, 1961) e entrevista semidirigida. Foram excluídos do estudo pacientes com diagnóstico prévio de psicose ou demência, diagnóstico atual de delirium ou rebaixamento da consciência. Não foram coletadas informações referentes a medicações utilizadas pelos pacientes, incluindo os antidepressivos.

 

 

As informações coletadas nas entrevistas foram submetidas à análise estatística (frequência, média e desvio padrão) e à análise temática descrita por Minayo (2000) para categorização dos temas presentes nos discursos dos pacientes.

 

Resultados

Os participantes, predominantemente, foram do sexo feminino (81%), declararam-se brancos (41,3%), solteiros (27%), com nível de escolaridade de 0-4 anos (39,6%) e a média de idade encontrada foi de 49,9 anos (DP=11 anos).

Os resultados do Inventário de Depressão de Beck mostraram que a maioria (40,3%) dos pacientes apresentou grau moderado.

 

 

Os sintomas mais prevalentes incluíram fadiga (74,6%), preocupação com a saúde (73,8%), irritabilidade (65,3%), distúrbio do sono (63,8%), dificuldade para trabalhar (61,5%), diminuição/falta de desejo sexual (57,6%), apatia (54,7%), autocrítica (53,8%) e anedonia (53%).

A análise do conteúdo das entrevistas permitiu o conhecimento de quais eram os temas recorrentes na fala dos pacientes e revelou cinco categorias descritas abaixo. É importante enfatizar que em um discurso pode estar presente mais de uma categoria.

 

1ª - Aspectos emocionais negativos – 40 citações

O desenvolvimento e a progressão da HAM/TSP fazem emergir em seus portadores sentimentos de medo pela incerteza do futuro e de ter de depender de outras pessoas, sentimento de desvalia, fracasso, frustração, tristeza e desesperança não só pela limitação provocada pela doença, bem como pela dificuldade de se reconhecer neste corpo agora deficiente.

“Nem sei o que dizer, só que me sinto péssima, um fracasso, pois não consigo mais fazer o que fazia antes.”

“Para mim é uma bactéria, um bichinho, um vírus, sei lá. É uma coisa que tira sua capacidade de ser independente, você tem que viver dependente dos outros.”

Outros sentimentos, direcionados a si ou ao suposto transmissor do vírus, referiam-se à revolta e à culpa, especialmente no discurso manifesto de pacientes com um ou ambos os pais infectados pelo HTLV-1. De acordo com seus depoimentos, estes acreditavam estarem sendo castigados pelo erro cometido por outras pessoas.

“Nossa é muito difícil, eu tô pagando por uma coisa que eu não fiz, algo que alguém fez lá no passado.”

 

2ª - Limitação física com comprometimento de atividades laborativas, cotidianas e de lazer – 23 citações

A HAM/TSP acomete membros inferiores de forma lenta e progressiva, e ao longo de seu desenvolvimento, surgem sintomas que podem resultar em incapacidade e limitação em graus variados.

“É difícil, porque antes não tinha, era normal, andava, corria, dançava forró sem ter dificuldade para levantar e agachar.”

“Para mim é uma doença que me impede muitas vezes de ir e vir, de trabalhar, de fazer as coisas em casa, de ter uma vida normal... tenho hoje metade da vida, pois não é uma vida completa... me canso muito fácil, tenho dificuldade de sair, passear. Me sinto triste quando vejo os outros pacientes na cadeira de rodas.”

 

3ª - Formas de se relacionar com a doença – 17 citações

O diagnóstico de HAM/TSP tem implicações médicas, psicológicas e sociais significativas e, portanto, traz particularidades no modo de lidar com a doença, visto que engloba diferentes fatores, tais como: história pessoal, suporte familiar e personalidade, os quais interferem na maneira de reagir às situações adversas. Algumas pessoas buscam recursos próprios ou externos, sendo a religião e o apoio familiar os recursos predominantes para amenizar o impacto da enfermidade. Por outro lado, há os que se utilizem da negação da realidade a fim de se defender de algo tão avassalador para o seu ego.

“Não sei ainda, acho que é uma mentira.”

“Sei lá, eu acho que não é nada, eu me apego a Deus, na verdade eu nem acredito que tenho... mas como falaram que tenho... mas não penso nisso.”

“É como uma coisa natural... entre todas as doenças cada ser humano tem a sua... não penso porque comigo... se foi comigo então vamos tratar.”

“É muito ruim, me sinto inferiorizado diante de tudo, porque dependo dos outros para quase tudo. Se não fosse minha esposa, que cuida de mim, acho que (eu) nem existiria mais. Não consigo fazer nada. Minha filha me dá apoio emocional e financeiro.”

 

4ª - Sintomas físicos (dor, queimação, cansaço) – 9 citações

A presença de dor é considerada como uma das principais causas de incapacidade e pode, inclusive, prejudicar a capacidade funcional de seus portadores, além de causar um sério prejuízo na qualidade de vida. Item enfatizado no discurso dos pacientes com HAM/TSP como fator intensificador do impacto da doença.

“É ruim... não presta, é miserável, não presta, não é vida não poder andar, à noite dói, queima o corpo, parece que tem pimenta nos pés e pernas.”

“Uma doença maldita, pelo amor de Deus, nem a Aids é tão ruim assim, tem muita gente que tem Aids e anda perfeitamente. Tem gente que vem e não tem nada, se eu andasse nem vinha ao médico. Ela (HAM/TSP) me levou rápido para a cadeira de rodas. Eu tenho vontade de passear, mas eu sinto dor e meu corpo pede cama.”

 

5ª - Referência ao HIV – 7 citações

No momento não há um tratamento eficaz para a cura ou regressão da HAM/TSP e, por isso, alguns de seus portadores se sentem desesperançosos e com raiva. Não raramente, os pacientes verbalizam o desejo de terem contraído outras doenças que não esta, especialmente aquelas cujos recursos de tratamento e controle de infecção já se encontram disponíveis. Convém ressaltar que o vírus HIV recebeu maior número de citação.

“Me sinto terrível , mal, uma doença que incomoda muito, que dói demais, não sei se é pior que a Aids, mas pelo menos tem o coquetel que faz com que a pessoa leve uma vida normal.”

“Terrível, porque me prende em uma cadeira de rodas. Se fosse Aids, a pessoa tá andando, tem coquetel que vai controlando, eu tenho HTLV e estou em uma cadeira de rodas. É bem pior.”

 

Discussão

O processo de construção do conhecimento do sujeito passa essencialmente pelo corpo, uma vez que nossa existência é corporal. Este processo inicia-se a partir do nascimento, no contato do bebê com a figura materna, em que a criança passa a perceber e conceber por meio da experiência corporal o seu “Eu Simbólico”, a sua representação corporal, a sua identidade (McDougall, 2001; Mello Filho, 2002; Nasio, 2009). Porém, essa identidade pode ser abalada pelo diagnóstico de uma doença crônica, como a HAM/TSP, que acarreta uma modificação na estrutura corporal decorrente de seus sintomas clínicos, principalmente a perda de locomoção de forma lenta e progressiva, em torno da quarta década de vida (Cotrim, 2005; Casseb & Penalva de Oliveira, 2008; Ministério da Saúde, 2004), gerando sentimentos de tristeza, vergonha de si mesmo e revolta por estar em um corpo alterado de modo irreversível pela enfermidade.

A consciência da limitação corpórea provoca o luto pelo corpo real e pela autoimagem existente antes da evolução dos sintomas. Apesar do corpo anterior não correspondesse realmente ao ideal, era muito melhor do que o atual. Após o agravamento dos sintomas, surge o conflito gerado pela necessidade do desinvestimento da imagem do corpo do passado e a dificuldade de aceitação e de investimento positivo no corpo atual, percebido e sentido como doente e com inúmeras restrições. Pode-se entender que a partir daí, os aspectos da vida mental primitiva emergem com mais intensidade, devido ao próprio enfraquecimento do ego. Este, por sua vez, sofre impactos com a comparação em relação ao ego ideal (Gabbard, 2006; Mackinnon, Michels & Buckley, 2008; Mello Filho, 2002; Meltzer, 1989; Ogden, 1996). A imagem de si deixa de corresponder ao que se era, e não há (pelo menos momentaneamente para muitos pacientes) outra imagem a ser investida de forma positiva. Essa condição pode causar sentimentos depressivos capazes de afetarem diretamente a autoestima.

A autoestima é um afeto com íntima conexão com a libido narcísica. A baixa autoestima encontrada nos pacientes com HAM/TSP decorre desse desligamento, imposto pela frustração em relação à imagem do corpo ideal ou sadio, levando muitos pacientes a um quadro de melancolia. Na melancolia ocorre a identificação com o objeto perdido, que faz com que o paciente ainda mantenha uma quantidade de investimento em algo que não existe mais, ou seja, apesar das dificuldades emocionais, físicas e de tratamento, a maioria dos pacientes continuam aderentes às consultas médicas. No entanto, o ego ainda fica submetido às críticas interiores, por consequência da tensão entre as instâncias intrapsíquicas. As críticas que o melancólico dirige a si mesmo são na verdade dirigidas ao objeto, no caso específico dos pacientes do presente estudo, ao corpo do passado, que passa a ser comparado com um corpo doente e limitado (Freud, 1917/1990; Gabbard, 2006; Mackinnon, Michels & Buckley, 2008; Meltzer, 1989).

O desejo pelo objeto (corpo) perdido faz com que os pacientes se sintam segregados do meio em que vivem, por não serem detentores de um corpo sadio e completo, iguais as outras pessoas observadas no cotidiano (Andrade, 2008; Buscaglia, 1999). A imagem que o paciente passa a ter de si é a de uma pessoa deficiente, incapaz e de que se tornou um incômodo para a família e para as pessoas mais próximas. Depender de alguém até para as mais simples atividades rotineiras, gera, frequentemente, sentimentos de inutilidade, tristeza e mesmo de rejeição ao próprio corpo, de si mesmo como ser humano.

A dificuldade de elaborar o luto pela perda do corpo “saudável” faz com que os pacientes regridam a um estado de narcisismo “negativo” em que, conforme anteriormente mencionado, a manifestação da depressão torna-se uma forma de defesa contra as ameaças de morte ou desamparo (Bleichmar, 1983; Capitão, 2004; Meltzer, 1989; Ogden, 1996; Ramos, 2010; Siqueira, 2007). As manifestações de humor depressivo podem ser verificadas no presente estudo pelo Inventário Beck de Depressão, em que se pode observar graus de intensidade moderado e grave em 59.3% dos pacientes entrevistados, resultados similares aos encontrados por Carvalho et al (2009) e Souza (2009).

 

Conclusão

A presente pesquisa teve como objetivo levantar algumas das concepções relativas não só à subjetividade dos pacientes com HAM/TSP sobre o corpo, assim como a frequência de depressão relacionada. A representação que tais pacientes possuem de seus corpos é de limitação, incapacidade e inutilidade, pois, no presente, não são mais produtivos como eram antes. Os pacientes tornam-se frequentemente dependentes de seus familiares, amigos, ou de pessoas próximas, como também, passam a necessitar de objetos (bengala, andadores, cadeira de rodas) para sua locomoção, gerando sentimentos de tristeza, angústia e sofrimento, por não conseguirem realizar as atividades laborativas e de lazer como antes da enfermidade. O corpo afetado pela HAM/TSP produz uma autoimagem negativa, com a consequente rejeição de si mesmo, uma ferida psíquica aberta e de difícil cicatrização, obrigando o doente a enfrentar um processo de luto, por uma perda ainda irreparável. No caso específico dos pacientes estudados, não se trata de uma perda de outro, ou de alguém amado, mas a perda do que um dia existiu de uma maneira diferente e distante da atual: a perda de “alguém” que ele foi antes dos sintomas transformarem o corpo em algo estranho e indesejável, motivo de sofrimento físico e de angústia existencial irremediável. Em outras palavras, a paraparesia espástica tropical, assim como outras doenças graves, provoca perdas irreparáveis pelo luto não elaborado, tornando seus portadores melancólicos, com sentimentos negativos e depressivos. Parece não existir nada que afete o corpo e que não traga uma repercussão profunda na mente, o que contradiz de forma definitiva o postulado cartesiano.

A partir do relato dos pacientes foi possível observar que a HAM/TSP acarreta grande sofrimento físico e psíquico, fazendo com que muitos portadores se perguntem quem são agora, qual o sentido de seus corpos e, por extensão, qual o sentido de suas vidas. A evolução dos sintomas neurológicos suscita nos pacientes sentimentos de perda de identidade, angústia e depressão, pois estão “presos” a um corpo estranho que não reconhecem como pertencentes a si mesmos.

 

Referências

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* Doutoranda da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Psicóloga da Divisão de Psicologia do Hospital das Clínicas de Medicina de São Paulo – ICHC/FMUSP, São Paulo, Brasil.
** Mestranda da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo, Brasil.
*** Doutor pela Universidade de Campinas. Psicólogo do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Docente da Universidade São Francisco, São Paulo, Brasil.
**** Doutora pela Universidade Federal de São Paulo. Pesquisadora do Instituto de Saúde, São Paulo, Brasil.
***** Doutor pela Universidade de Campinas. Neurologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, São Paulo, Brasil.