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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.16 no.1 Rio de Janeiro jun. 2013

 

ARTIGOS

 

O método fenomenológico na condução de grupos terapêuticos

 

The phenomenological method in therapeutic group leading

 

 

Paulo Eduardo Rodrigues Alves*

Evangelista (UNIP / USP-LEFE)

 

 


RESUMO

O atendimento psicológico em grupo costuma ser menosprezado em comparação com o individual. Entretanto, mostra-se mais eficaz para vários perfis de pacientes, sendo uma modalidade de prática psicológica útil no contexto hospitalar. O presente artigo apresenta a abordagem fenomenológica como fundamentação teórica do atendimento a grupos. O que caracteriza essa abordagem é a suspensão de pressupostos que determinem previamente objetivos para o grupo, tornando-se uma metodologia de leitura dos fenômenos grupais. Ademais, esta abordagem compreende a existência como coexistência, reconhecendo a importância das interações sociais na constituição da ‘identidade' de cada um. Por isso, o atendimento em grupo aparece como modo privilegiado de acesso ao modo de ser de cada participante, possibilitando que disponha mais livremente de si.

Palavras-chave: Terapia de Grupo, Psicologia Fenomenológica, Fenomenologia- Existencial, Prática Psicológica.


ABSTRACT

Group therapy is underestimated when compared to individual therapy. However, it proves to be more effective for many patient profiles, which makes it a kind of psychological practice useful in the hospital setting. This article presents the phenomenological approach as a theoretical foundation of group therapy. This approach is characterized by the suspension of assumptions that determine beforehand goals for the group, becoming a method of understanding group phenomena. Moreover, this approach understands existence as coexistence, recognizing the importance of social interactions in the formation of each one's 'identity'. Therefore, group therapy appears as a privileged way to access to the mode of being of each participant, contributing for a freer wielding of one's self.

Keywords: Group Therapy, Phenomenological Psychology, Existential-Phenomenology, Psychological Practice.


 

 

A abordagem fenomenológica na condução de grupos

O trabalho psicológico com grupos é um procedimento que merece ser considerado na lida com a clientela hospitalar, por afetar de modos diferenciados em relação ao atendimento individual. Segundo Leszcz & Yalom (2006), pesquisam indicam que é uma modalidade de prática psicológica que traz mais benefícios do que a psicoterapia individual para reduzir recaídas de pacientes usuários de drogas e no acompanhamento de pessoas em tratamento para obesidade, com doenças médicas, a mulheres sobreviventes de abuso sexual na infância, entre outros. Esses autores indicam onze fatores terapêuticos dos grupos: instilação de esperança; universalização da experiência; compartilhamento de informações; experiência de altruísmo; recapitulação corretiva do grupo familiar primário; desenvolvimento de técnicas de socialização; comportamento imitativo; aprendizagem interpessoal; coesão grupal; catarse e apropriação de fatores existenciais. Isso significa que o foco do processo grupal não é a “cura” enquanto remissão do sofrimento psicológico, mas o crescimento pessoal enquanto liberdade para dispor mais livremente de si nos relacionamentos interpessoais. A Fenomenologia surge como um modo privilegiado de acessar a experiência singular dos pacientes, potencializando esses fatores terapêuticos. Segundo Barreto (2008), a ação clínica na perspectiva fenomenológica “rompe com o modo de contato construído numa concepção técnico/explicativa, constituindo-se numa disponibilidade para acompanhar o outro (cliente) em seu cuidar das suas possibilidades mais próprias, dispondo delas livremente e com responsabilidade.” (p.7)

A Fenomenologia é um movimento filosófico iniciado por Edmund Husserl no começo do século XX, rapidamente influenciando a psicologia. Trata-se de um esforço metódico de validação da experiência humana como fonte de conhecimento.

O método fenomenológico pode ser muito resumidamente apresentado como de suspensão de todos os pressupostos – sobretudo da crença numa realidade objetiva e numa consciência que com ela se relacionaria – para que os fenômenos apareçam na sua constituição. Por ‘fenômeno' a fenomenologia se refere àquilo que aparece na correlação intencional: realidade experienciada, percebida por alguém. Trata-se, portanto, de um modo de proceder (método), que cuida para não recorrer a teorias prévias sobre aquilo que se quer conhecer. (Husserl, 2008; Dartigues, 1992; Bello, 2006; Goto, 2008)

O grande problema epistemológico que a fenomenologia visa combater é o de que as teorias, saberes prévios e mesmo o senso comum podem encobrir o significado dos fenômenos. O termo ‘fenômeno' vem do grego phainomenon e significa literalmente ‘aparecer'. A Fenomenologia surge na filosofia como uma ciência dos fenômenos, que tem por objetivo conhecer aquilo que aparece, que se mostra, tal como se mostra, e não de acordo com o que nossas ideias previamente delimitam. É um antídoto ao leito de Procusto, ladrão mitológico que oferecia hospedagem a viajantes em sua casa, onde mantinha duas camas, uma pequena e outra grande; aos viajantes baixos, oferecia a cama grande e, prendendo-os, esticava-os até que coubessem perfeitamente, enquanto aos viajantes altos oferecia a cama pequena, cortando-lhes as extremidades.

Assim, conduzir grupos numa abordagem fenomenológica significa suspender, pelo menos temporariamente, o que já se sabe sobre grupos. Isso implica suspender todo o conhecimento psicológico desenvolvido sobre grupos até o momento, pois o grupo que temos diante de nós pode não corresponder ao que os autores já disseram que grupos são. Por isso, quem espera indicações de técnicas fenomenológicas na condução de grupos se frustra, pois a condução fenomenológica de grupos é prescritiva somente de um método, que é o método fenomenológico.

Consequentemente, o psicólogo que trabalha com grupos numa abordagem fenomenológica precisa dispor de uma compreensão sobre o que é um grupo, que não o limite ou defina previamente. Aqui cabe muito cuidado, pois quem trabalha com grupos em psicologia já compreende grupo como sinônimo de grupo operativo, grupo de trabalho, rede de múltiplas transferências, sistema, etc. Uma delimitação do que é um grupo pode ser, então: um conjunto de pessoas capazes de se reconhecerem em sua singularidade e que estão exercendo uma ação interativa. (Osório, 2003)

Assim, a abordagem fenomenológica de grupos se dirige ao que aparece na interação entre duas ou mais pessoas. Não se trata, porém, de uma atitude ‘ingênua' diante do que acontece num grupo. Frequentemente se confunde a fenomenologia com um mero descrever o que se está vendo. Assim, a fenomenologia é taxada de pouco profunda, incapaz de compreender a dinâmica por trás do que aparece. Isso está incorreto. De fato, a fenomenologia é um método descritivo. Mas o que se descreve não é apenas o aspecto sensorial que salta à vista no primeiro plano. O olhar fenomenológico atravessa o meramente aparente em direção ao sentido, cuidando para não acrescentar um saber teórico previamente determinado. Portanto, o suporte da descrição fenomenológica é a imediatidade da experiência de cada pessoa em relação e do contexto de relação no qual cada pessoa está.

Essa descrição é feita ‘de fora', por assim dizer, por aquele que ‘observa', mas também ‘de dentro'. O participante é porta-voz de como está nas interações e seu relato deve ser legitimado como um aspecto do sentido do fenômeno. Isto está em consonância com a abordagem fenomenológica, que suspende a concepção de que existe uma verdade, um conhecimento ‘objetivo' do grupo que se sobrepõe aos aspectos parciais. A fenomenologia compreende que os fenômenos se dão à compreensão sempre sob uma perspectiva. (Critelli, 1996)

O método fenomenológico compreende que todos os fenômenos aparecem a partir de uma infinidade de modos possíveis de aparecer, de modo que nunca podem ser esgotados. Por isso, numa abordagem fenomenológica de grupos é importantíssimo que se tenha vários narradores do que acontece no grupo. O condutor do grupo tem uma compreensão do que ocorre. Em situações em que há mais de um condutor, não é raro que cada um compreenda o que acontece diferentemente. Isso não é defeito do observador, nem falta de sintonia entre os condutores; é condição de mostração dos fenômenos. Quando o grupo pode dispor de observadores, eles também trazem outras versões. Os participantes do grupo têm outras compreensões do que acontece com eles nesse contexto. Assim, a compreensão do que acontece no grupo depende da costura destas várias perspectivas e da certeza de que nenhuma delas esgota o fenômeno.

Os fenômenos se mostram de múltiplas maneiras porque o mostrar-se depende sempre de um horizonte compreensivo que os acolhe. Isto é, a descrição fenomenológica não é a mera descrição dos aspectos sensoriais, mas a descrição da experiência, da vivência de alguém. Para se compreender a experiência deve-se considerar o contexto no qual este fenômeno aparece. Um comportamento aparentemente igual tem sentidos absolutamente diferentes dependendo do contexto em que acontece. Para a fenomenologia, o que o fenômeno é, é o seu sentido. Por isso a investigação do contexto é fundamental, assim como o acesso à perspectiva a partir de onde se lida com o fenômeno. Isto implica que cada contexto delimita modos específicos dos fenômenos grupais. Um grupo num hospital psiquiátrico e numa escola serão absolutamente diferentes, por mais que se assemelhem quanto ao número de participantes, frequência de encontros, e até mesmo que o coordenador seja o mesmo. Isso porque o sentido das experiências depende do contexto no qual se dão. Um psicólogo fenomenológico precisa ficar atento a tudo isto. É por isso que o caracteriza a abordagem fenomenológica de grupo não está nos procedimentos nem nos aspectos ‘materiais', como espaço, tempo, número de participantes, recursos técnicos. A fenomenologia está na leitura que se faz do que acontece no grupo. E, como já dito, a compreensão dos fenômenos deve se ater ao sentido que eles revelam, não aos sentidos que teorias sobre psicologia grupal ou que o condutor do grupo lhes impinge.

A fenomenologia é uma abordagem privilegiada na condução de grupos também por não partir de uma compreensão do ser humano isolado, como ‘indivíduo', que posteriormente entra em contato, estabelece relações com outros. Heidegger é o filósofo que ‘aplica' o método fenomenológico de Husserl para compreender livremente de pressupostos a existência humana, revelando que a existência é ontologicamente coexistência, ser-com-os-outros. (Heidegger, 1927/1998)Não há nada que alguém possa vivenciar que não envolva desde sempre os outros. Mesmo a atitude de se isolar depende e implica outros, de modo que “Eu e os outros formam uma relação diferenciável, mas indissociável, entre entes cujo modo de ser se apresenta como ser-aí, ou seja, lançado às possibilidades num mundo compartilhado.” (Camasmie & Sá, 2013, p.955)

Seguindo as indicações de Heidegger sobre a coexistência, a filósofa Critelli (2012) convoca cada existente a se tornar narrador de si mesmo. Ser narrador de si mesmo é conhecer-se, apropriando-se da biografia que brota na trama de narrativas próprias e dos outros com quem se convive. Os outros são participantes fundamentais da existência de cada um. Segundo ela,

Aos outros, a narrativa sobre nós (e não sobre eles mesmos) é favorecida pela distância que eles mantêm da ação, pois sua posição é a de expectadores dos atos e não seus agentes.

Os outros, nossos expectadores, têm a vantagem de estarem instalados num lugar de onde é possível, digamos assim, olhar o panorama, ter uma visão mais abrangente de nossas ações no contexto em que elas ocorrem. (Critelli, 2012, p.38)

Um breve conto do filósofo Michel Serres (1993), chamado Laicidade, exemplifica isto. Ele narra que o imperador Arlequim, ao regressar de uma viagem à lua, conta que lá é exatamente como aqui, não há nada de diferente. Isso causa espanto nos espectadores, que percebem sua manta, sua roupa coloridas, de diversos tecidos, desarmônicos, muito diferentes do que estão acostumados a ver, como um mapa-múndi desenhado pelas viagens de um artista. Apesar disso, o imperador insiste na afirmação de que lá é exatamente como aqui. Para parar os risos da plateia, ele resolve tirar sua túnica colorida, mas eis que aparecem outras camadas de roupa coloridas. O imperador se despe até a nudez, mas eis que sua pele também está desenhada, colorida, tatuada pelas experiências em suas viagens. Mas o imperador insiste que o lá-fora é como aqui. O conto termina com o corpo do Arlequim se transformando em luz branca, deixando a plateia atônita.

O conto aponta uma questão essencial da coexistência, que é que, olhandome a mim mesmo, raramente me estranho. As narrativas sobre mim me são familiares, me dão uma sensação de identidade. (Critelli, 2012) É no encontro com os outros que o estranhamento pode aparecer. Isso é fundamental nos grupos. Para que alguém possa descobrir seus modos de ser, depende que os outros os revelem. A ação interativa nos grupos é o que possibilita que apareçam os modos de se relacionar com outros.

O conceito de aqui-agora é outro que suscita confusões. Em geral ele é associado à abordagem fenomenológica, mas entendido como eliminação de quaisquer acontecimentos passados ou futuros ou exteriores ao que está acontecendo. Não é bem assim. Nós somos seres históricos, o que significa que existimos entre nascimento e morte. Meus modos de ser no mundo são modos constituídos historicamente. (Heidegger, 1927/1998) Exatamente por serem assim constituídos é que existe a possibilidade de descobrir novos modos de ser. Então aqui-agora significa que meus modos históricos de ser estão presentes em cada momento da minha existência, inclusive nas interações com os demais numa situação grupal. O interessante é que meus modos de estar-com aparecem na relação imediata com aqueles com quem estou. O desconhecimento de Arlequim de suas cores e tatuagens só aparece na relação com outros e é enquanto está diante dos outros que aparece. Isto é um acontecimento muito poderoso na condução de grupos, pois abre acesso ao que alguém está vivenciando no momento em que está vivenciando. O coordenador do grupo pode pedir que um participante revele como está se sentindo ou o que está pensando naquele momento, diante daquelas pessoas, e pode perguntar aos demais como se sentem e o que pensam disso que lhes foi revelado. Nessa situação estão todos diante de um mesmo fenômeno, recolhendo seus vários modos de aparecer e ser.

O que foi dito até aqui vale como diretriz para a condução de grupos em geral. Resumindo, a abordagem fenomenológica é o cuidado de permitir que os fenômenos se mostrem a partir de si mesmos, e não de pressupostos sobre eles. Esse mostrar-se depende do contexto do mostrar-se, que precisa, portanto, ser levado em conta. Ademais, tendo os fenômenos a possibilidade de se mostrarem sob múltiplos aspectos, a compreensão do sentido de um fenômeno depende que se consulte todos os envolvidos e nenhum aspecto é mais verdadeiro que os outros. No recolher o mostrar-se dos fenômenos, um modo privilegiado de cuidar para não os entulhar com pressupostos é retornando diretamente a eles. Sendo o grupo, entendido como interação com outros que reconhecem singularidade de cada qual, o fenômeno que aqui interessa, poder deter-se junto às interações e consultar os envolvidos quanto ao que está acontecendo com eles no momento em que está acontecendo é um modo de realizar o cuidado fenomenológico com o mostrar-se por si mesmo dos fenômenos.

O que caracteriza a abordagem fenomenológica de grupos não é a quididade (o que), é a qualidade (o como). Assim, o coordenador de grupos nesta abordagem precisa considerar a especificidade do contexto no qual propõe o grupo, a especificidade dos participantes, quais objetivos propõe ao grupo. Tudo isso é horizonte compreensivo. O grupo acontece num hospital? Os pacientes estão internados ou são ambulatoriais? Que idade têm? O grupo é homogêneo, isto é, organizado em função de todos os participantes compartilharem uma mesma experiência? Ou é heterogêneo? Com que frequência acontece? São os mesmos participantes que retornam a cada vez ou há rotatividade? Por quanto tempo o grupo vai se encontrar? Cada um destes aspectos prepara o terreno para o grupo acontecer, dizendo respeito à quididade do grupo. O que caracteriza a abordagem fenomenológica do que acontece nesses grupos tem a ver com como se compreende os fenômenos. Para ser um fenomenólogo na condução do grupo é necessário conhecer o contexto de acontecimento do grupo, mas estar disposto a deixar que o grupo aconteça a partir de suas possibilidades. Isto é, precisa deixar de lado as expectativas sobre o que e como o grupo deve acontecer, pois se não as deixar, o condutor tentará forçar o grupo a ser tal como deseja ou acredita que o grupo deve ser, o que muito frequentemente resulta em frustração por parte do condutor ou pelo encaixe do grupo nos padrões exigidos pelo condutor (Leito de Procusto), passando por cima dos fenômenos eles mesmos.

Considerando especificamente a psicoterapia a longo prazo de grupos heterogêneos, seu objetivo específico é a descoberta e apropriação dos meus modos de me relacionar com as demais pessoas e a possibilidade de mudança desses modos. Não quer dizer que os modos de ser e se relacionar não possam aparecer na relação psicoterapêutica individual, pois aparecem. Sobre essa diferença, Camasmie & Sá (2013) afirmam:

Na convivência em grupo, o esforço em sustentar um específico modo de ser, ou seja, uma identidade estável, diante de tantas convocações relacionais, se torna geralmente maior do que num encontro individual (...) Em um encontro psicoterapêutico individual, a possibilidade do cliente se proteger e controlar a exposição é maior, pois, parte-se, inicialmente, de temas escolhidos por ele. É mais fácil desviar ou adiar o “poder ser tocado”. No grupo, não. Ninguém sabe qual assunto será tratado, nem como cada um será afetado e corresponderá a ele. Tanto os participantes, quanto o terapeuta têm que lidar com as diversas solicitações identitárias que ocorrem, sem que haja a possibilidade de controlar o modo de corresponder a elas. No entanto, é justamente por essa diversidade que aparece e evidencia o quanto o ser-aí está em jogo no existir, que a psicoterapia grupal alcança possibilidades terapêuticas importantes. (p.958)

Os grupos fornecem uma miríade de jeitos de ser que frequentemente se assemelham aos de pessoas da convivência fora do contexto psicológico. Por isso, o grupo potencializa o poder ser apresentado aos modos de ser em relação mais do que numa psicoterapia individual. Os psicólogos existenciais Leszcz & Yalom (2006) propõem que os grupos psicoterapêuticos podem se tornar um microcosmo social, desde que conduzidos de modo a resguardar a liberdade de acontecer do grupo. Assim, no grupo há pessoas com modos de ser que suscitam em em cada participante modos de estar com elas. Por exemplo, num grupo pode haver alguém mais agressivo, que faz com que o outro se retraia diante dele. Nesse grupo, esse o retrair-se pode ser tematizado, explorado e apropriado por aquele que se retrai, assim como o agressivo, que suscita retraimento, pode ganhar clareza sobre o modo como os outros reagem a ele. Ou ainda, se uma pessoa se sente pouco à vontade com mulheres e no grupo as há, ele é confrontado pela presença delas e reage de acordo com suas possibilidades, o que, novamente, abre para que seu modo de ser em relação às mulheres possa ser considerado ali, no momento em que acontece. Grupo é o que a analítica existencial chama de ‘mundo', configurando o aí terapêutico, “o espaço de revelação do modo de ser do membro do grupo e de explicitação do sentido que permeia cada experiência relatada. (Jardim, 2012, p. 943)

Os grupos abrem a possibilidade de o paciente descobrir como as outras pessoas o enxergam, podendo, inclusive, perguntar a elas. Com tempo, é possível desvelar e se aprofundar em padrões de comportamento interativo; isto é, pode, por exemplo, descobrir o quanto a busca por admiração norteia e limita as relações, como seduz os outros ou o que dos outros o seduz, etc. Os grupos são um contexto privilegiado para isso, pois é um mundo compartilhado pelos participantes, cada qual com seus traços singulares, que mostram, no acontecer das interações, como cada um é e se relaciona. (Leszcz & Yalom, 2006)

Apesar de seu caráter terapêutico, os grupos em nossa sociedade têm sido considerados como de segunda categoria, voltados a quem não dispõe de recursos para atendimentos individuais. Outros ainda negligenciam grupos porque possibilitam o atendimento de maior número de pessoas ao mesmo tempo, o que seria seguir uma lógica produtivista de eficiência. (Camasmie, 2012) Trata-se de preconceitos, que precisam ser desfeitos. Muitas pesquisas comprovam a terapia de grupo deve ser considerada como uma opção de acompanhamento psicológico de pacientes. (Leszcz & Yalom, 2006)

Por sua constituição, os grupos diminuem o isolamento. Carl Rogers (1974) já apontava isso na década de 1970: é diretamente proporcional à crescente “desumanização do homem” a necessidade de “relações próximas e verdadeiras, onde sentimentos e emoções se possam manifestar espontaneamente, sem primeiro serem cuidadosamente censurados ou dominados; onde experiências profundas – decepções e alegrias – se possam mostrar; onde se arrisquem novas formas de comportamento e se levem até o fim...” (p.23) Mas Rogers propõe um objetivo para os grupos, que é a facilitação da expressão de sentimentos na direção da autodescoberta e autoconfiança dos participantes, cabendo ao coordenador ser o facilitador do grupo, desenvolvendo um clima de segurança através das atitudes facilitadoras básicas. Posto de antemão, esse objetivo impede o livre desenrolar do grupo, como qualquer outro pressuposto.

Na condução de grupos na abordagem fenomenológica, cabe ao coordenador zelar pelo grupo. O modo de zelar deve acompanhar o desvelamento dos fenômenos do grupo; ora pode ser delimitando o contexto, fornecendo enquadre, ora estimulando e ativando o grupo, ora cuidando para que cada participante atente para e compartilhe sua experiência, ora facilitando a expressão de sentimentos, ora informando. Isso depende de cada grupo e de cada momento de cada grupo. A coordenação do grupo é fundamental no processo de formação da coesão do grupo, que pode ser entendida como a atratividade que os membros do grupo têm entre si e pelo grupo. Yalom (2006) considera que “Os membros de um grupo coeso sentem afeto, conforto e um sentimento de pertencimento no grupo. Eles valorizam o grupo e sentem que são valorizados, aceitos e amparados pelos outros membros.” (Leszcz & Yalom, 2006, p.62) Porém, por mais importante que ela seja no grupo, a coesão também não pode ser assumida como objetivo por parte do coordenador, o que impede que o grupo se forme de acordo com o modo específico de ser de seus participantes.

O único pré-requisito para que um paciente participe de um grupo psicológico é que ele precisa ter capacidade de se perceber. É um critério amplo e a parcela de pacientes que não dispõe desta possibilidade é pequena. Mas, caso o paciente não tenha capacidade de perceber como está se sentindo na situação e de expressar isso de alguma forma, a experiência grupal não é indicada a ele. Vale lembrar que expressar o que está se passando consigo não significa falar. É possível um grupo com participantes com restrições na comunicação oral. Recursos corporais também propiciam a interação. Esses grupos são fenomenológicos, desde que coordenador não traga pronto um tema a ser desenvolvido e não estabeleça metas e objetivos para o grupo, limitando-se a acompanhar o sentido do que aparece no aí grupal. Permanece o objetivo terapêutico dos grupos psicológicos na abordagem fenomenológica: ir ao encontro dos modos de existir singulares de cada pessoa, tal como aparecem nas interações com os demais participantes do grupo. O foco do processo psicoterapêutico não é a “cura”, mas o crescimento pessoal enquanto liberdade para lidar com as variadas situações que a vida, sempre compartilhada, impõe.

As descobertas e experimentações que o grupo propicia repercutem na vida cotidiana. (Leszcz & Yalom, 2006) o caráter de microcosmo social é bidirecional, pois os modos de ser-com exteriores ao grupo se manifestam nele, e os modos desenvolvidos no grupo levam a modificações nas relações fora dele. Ainda assim, não se pode determinar que o objetivo da psicoterapia de grupo numa abordagem fenomenológica seja a mudança nos modos de ser-com. O objetivo é o desvelamento desses modos de se relacionar com outros, que possibilita mudanças. Se o coordenador assume como objetivo mudar os modos de se relacionar dos participantes do grupo, acaba por impingir seus modelos, suas expectativas, seus valores e seu ritmo, passando por cima do fenômeno.

Algumas experiências podem ilustrar estas ideias. Por quase dois anos coordenei grupos semanais num hospital psiquiátrico em São Paulo. Num dos primeiros encontros, convidei os pacientes a participarem e fomos ao espaço destinado ao grupo. Eram mais de quinze participantes. Comecei o grupo propondo um tema amplo: considerarmos juntos como nos relacionamos com os outros. E pedi que se apresentassem. Os primeiros pacientes se apresentam à luz dos quadros psiquiátricos; “tenho depressão”, “sou esquizofrênico”. Perto de onde estávamos, outro grupo estava fazendo aula de percussão. O barulho dificultava muito nossa escuta. Aí uma moça começa a falar muito baixo. Outra paciente diz que não dá para ouvir com tanto barulho e sugere que mudemos de lugar. O grupo se descobre numa situação de ter que decidir se fica no mesmo lugar ou se muda, e, neste caso, para onde. Decididos a encontrar um espaço com menos barulho, que facilite que se ouçam, o grupo segue para outro espaço aberto no hospital, que mais tarde fui descobrir era a rota de fuga mais usada pelos pacientes para fugir do hospital, o que fazia com que a equipe evitasse passar por esse caminho. Chegando ao novo espaço sem que ninguém tivesse tentado fugir, as apresentações foram retomadas e, aos poucos, foi aparecendo como temática deste grupo o estranhamento quando da chegada ao hospital, a falta de informações sobre a rotina e as regras. Isso logo se desdobrou num questionamento por parte deles sobre como poderiam ajudar os novos pacientes que chegassem. Esta experiência em grupo propiciou aos participantes a confrontação com ter que tomar uma decisão concernente a si mesmos dentro de uma instituição, cuja organização escolhe tudo por eles. Refletindo sobre esta situação, é necessário considerar o entrelaçamento com o contexto no qual estavam imersos, pois é a partir dele que os fenômenos deste grupo surgem significativamente. Os pacientes psiquiátricos são privados do cuidado consigo mesmos, o tratamento é decidido pela equipe médica, eles obedecem. Mas esse contexto asilar foi se apresentando no grupo, isto é, não foi levado de ‘fora' para ‘dentro'. A partir da proposta de olhar para como se relacionam, delinearam como tema como se relacionam entre si no ambiente asilar, assumindo autoria por um aspecto do cuidado consigo e com outros pacientes. Essa é uma experiência muito forte, pois se encontram fragilizados pela situação que os levou ao hospital, estão num ambiente desconhecido, rodeados por estranhos e submetidos a normas de funcionamento da instituição, que desconhecem. A situação de grupo possibilita que se apresentam e conheçam os demais e recuperem alguma autonomia neste contexto restritivo. (Evangelista, 2011) Assim, a terapia de grupo no contexto do hospital psiquiátrico se configura como uma prática psicológica voltada

“não apenas de pro-cura, ou seja, o humano dirigindose ao próprio cuidar de ser, mas de legitimação de ação espontânea de dizer acerca do sofrimento, vivido pelos sujeitos sociais, tanto para questões subjetivamente particulares, como enquanto atores em comunidades ou instituições". (Morato, 2008, p.8)

Também tive a oportunidade de acompanhar os atendimentos de um colega que foi chamado para coordenar grupos de supervisão com agentes redutores de danos no interior de SP. Os agentes são pessoas que vão a campo para formar vínculos com líderes comunitários com o objetivo de reaproximar as pessoas que se distanciaram do sistema de saúde. O coordenador desse grupo foi chamado para instrumentalizar os agentes comunitários para a realização de entrevistas e o fornecimento de informações. Os agentes lidam cotidianamente com pessoas que estão envergonhadas com sua situação, frequentemente vítimas de preconceito ou que não acreditam mais que podem ser ajudadas pelo sistema de saúde. São pessoas que vivenciam a exclusão e a marginalidade e para quem a precariedade e a fragilidade da vida são temas cotidianos. No contato com essas pessoas, os agentes redutores são confrontados com a precariedade do trabalho, com as próprias fragilidades. Frustram-se, sentem raiva por se esforçarem para cuidar dos outros, sem que estes aceitem os cuidados oferecidos. Sentem-se incompetentes, incapazes. Mas, cuidadosamente, o coordenador possibilita que os modos como os agentes estão sendo tocados nas experiências em campo apareçam como tema da reflexão. Com isso, os agentes redutores de danos descobrem a necessidade e passam a experienciar no grupo o poder se cuidarem e se sentirem cuidados, resgatando essa potencialidade minada pelo cotidiano. Seguindo o ritmo e o fluxo do grupo, a instrumentalização cede espaço para cuidar dos cuidadores. (Yoshimochi, 2012)

O que está sendo exposto aqui sobre grupos com adultos também vale para grupos com crianças. A única diferença a ser considerada é que a linguagem infantil é o brincar. Brincando, revelam como estão se sentindo, o que estão desejando, suas potencialidades e dificuldades nas interações. A criança experimenta a si própria, às outras crianças e ao terapeuta. Se lhes for dada liberdade, as crianças interagem com as demais no grupo tal como fora das sessões. O grupo se torna para elas um microcosmo familiar e social, que possibilita a compreensão dos seus modos de ser no mundo.

A guisa de conclusão, é possível diferenciar os grupos em duas grandes categorias: heterogêneos e homogêneos. Os grupos heterogêneos são formados por pessoas diversas, enquanto nos homogêneos os participantes compartilham algum aspecto ou tema. Nestes, os participantes unem-se mais rapidamente e têm menos conflitos, o que proporciona mais apoio imediato aos membros do grupo e alívio mais rápido, se for o caso. Nos grupos heterogêneos, as dificuldades e conflitos são bem-vindos, pois são reveladores dos modos de estar-com-os-outros, assim como as interações de apoio, suporte, aproximação. Nas situações conflituosas, cabe ao coordenador zelar pela continuidade do grupo. Mas, heterogêneos ou homogêneos, a abordagem fenomenológica que os caracteriza é a mesma, referindo-se ao como se deixa os fenômenos aparecerem e o grupo se desenrolar.

 

Referências

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* Evangelista (UNIP / USP-LEFE).