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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.16 no.2 Rio de Janeiro Dec. 2013

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre velhice e o verdadeiro self: relato de experiência

 

Reflections on old age and the true self: an experience report

 

 

Bruna Ballan Maluhy*; Fernando Genaro Junior**

I Universidade Presbiteriana Mackenzie
II Universidade Paulista e Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo consiste em um relato de experiência baseado na investigação clínica de uma paciente idosa atendida pela autora, em um Centro de Referência do Idoso, tendo como proposta compreender se o processo de envelhecimento propiciaria ou não o reposicionamento de um verdadeiro self segundo a teoria winnicottiana. Utilizou-se o método clínico do tipo compreensivo proposto por Trinca (1984/2003) para explorar os aspectos clínicos dessa experiência. Os relatos pessoais da paciente foram analisados sob o enfoque teórico da psicanálise winnicottiana e de estudiosos do tema. A análise do caso permitiu considerar que para a paciente em questão, o processo de envelhecimento propiciou o reposicionamento de um verdadeiro self, favorecido também pela experiência de alteridade.

Palavras-chave: Psicanálise, Winnicott, Envelhecimento, Verdadeiro self.


ABSTRACT

The present paper is a report of an experience based on the a clinical investigation of an elderly patient attended by the author in a Reference Centre for the Elderly, with the proposal is to understand the aging process would provide or not the repositioning of a true self according to Winnicott's theory. We used the clinical method of understanding type proposed by Trinca (1984/2003) to explore the clinical aspects of this experience. The personal accounts of patients were analyzed from the standpoint of Winnicottian psychoanalytic theoretical. The analysis allowed us to consider that the case for the patient in question, the aging process led to the repositioning of a true self, also favored by the experience of alterity.

Keywords: Psychoanalysis, Winnicott, Aging, True self.


 

 

Introdução

O presente trabalho surgiu a partir de uma experiência de estágio extracurricular realizada em um ambulatório referência na saúde do idoso em que a autora teve a oportunidade de clinicar. Assim, por meia dessa experiência pode-se observar algumas necessidades que tem levado, muitas vezes, o idoso a procurar um acompanhamento psicoterapêutico.

Em meio ao campo de estágio uma indagação surgiu: o que estavam querendo dizer, os pacientes idosos, em especial um deles, que havia “passado pela vida” sem ter a sensação de ter pertencido a ela? Como consequência desse interesse, surgi este relato de experiência de um atendimento a uma paciente idosa, tendo como objetivo buscar compreender por meio da teoria winnicottiana, se o processo de envelhecimento pode proporcionar o reposicionamento do verdadeiro self (conceito que será discutido adiante).

Alguns estudiosos do autor e do tema como Safra (1999), Genaro Junior (2012; 2013) e Brochsztain (1996), já discorrem sobre a probabilidade de idosos apresentarem crises decorrentes do processo de envelhecimento. Eis que surge um questionamento: seriam estas crises relacionadas com o próprio envelhecimento, ou consequências da percepção de uma vida que não pode ser vivida de forma autêntica e genuína?

De acordo com Genaro Junior (2012; 2013), trabalhando com as concepções de Safra e Winnicott, a chegada da velhice envolve, inevitavelmente, consciente ou inconscientemente, um “balanço existencial” na vida da pessoa idosa causado pelo advento da proximidade da morte e a maior noção do que é o tempo. Com este balanço do sentido da vida, o idoso se depara com o que pôde e não pôde ser realizado, sendo este momento propicio para uma crise decorrente da percepção do estar velho.

Para Safra (2006) e Genaro Junior (2012; 2013) o processo de envelhecimento inserido na clínica winnicottiana também apresentará, como em todas as etapas da vida, certa constituição de si mesmo. Assim sendo, o que acontece na velhice na perspectiva de que o ser humano constitui o self em relação ao meio ambiente?

Tais questionamentos serão abordados por meio da exposição de um caso clínico e de sua compreensão, em que serão discutidos alguns aspectos teóricos a partir das concepções da de D. W. Winnicott e de seus estudiosos.

 

Método

O presente relato de experiência profissional é um recorte do Trabalho de Graduação Interdisciplinar (TGI) realizado como parte dos requisitos para formação em Psicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Genaro Junior. Por meio do método psicodiagnóstico de tipo compreensivo proposto por Trinca (1984/2003), explorou-se qualitativamente os aspectos clínicos dos relatos pessoais de uma mulher idosa de sessenta e seis (66) anos. Este método, recomendável para estudos de casos clínicos de base psicanalítica, é utilizado quando a intenção do pesquisador é de investigar o que é relevante e significativo na personalidade do sujeito, buscando a compreensão deste como um todo, o que inclui sua dinâmica intrapsíquica, interpessoal e sociocultural.

Foram realizadas dezesseis sessões (16) na modalidade de psicoterapia breve individual, que ocorreram no período de três meses.

O material clínico foi extraído das evoluções dos atendimentos que estão registradas no prontuário psicológico do ambulatório do serviço de Psicologia da instituição. A referida paciente foi atendida clinicamente pela estagiária com supervisão de uma psicóloga da instituição. O local que foi utilizado como coleta de dados para a pesquisa foi o Serviço de Psicologia do Centro de Referência do Idoso (CRI), ambulatório secundário a saúde do idoso do Sistema Único de Saúde (SUS), localizado na Zona Norte da cidade de São Paulo.

A análise dos dados foi baseada na teoria psicanalítica winnicottiana sobre a constituição do self em diferentes momentos na vida com o objetivo de compreender e refletir se para a paciente atendida, o processo de envelhecimento proporcionou um reposicionamento do verdadeiro self.

 

Sra. Carmen1 e sua vida não vivida

Sra. Carmen havia sido encaminhada ao serviço de Psicologia pela médica geriatra com diagnóstico de Depressão, tendo em vista comportamento choroso e muita dificuldade para dormir.

Chegou à primeira sessão de psicoterapia dizendo que “só ia conseguir chorar” [sic]. E entre o choro compulsivo e algumas pausas conseguiu contar um pouco de sua história. Sra. Carmen tinha sessenta e seis (66) anos, era casada e mãe de dois filhos, sendo uma menina e um menino. Nasceu em uma cidade do interior de Minas Gerais onde viveu até os quatro anos com seus pais e seus dez irmãos. Desde pequena cuidava das atividades domésticas com os irmãos. “Eu era pobre, mas não me incomodava” [sic]. Contou que morava com o marido, mas que sua vida inteira “eu fui um zero a esquerda” [sic].

De sua infância tinha a lembrança de um pai muito agressivo e rígido, sua mãe uma mulher forte e trabalhadora e que não tinha demonstrações de afeto. Seu pai tinha morrido há dez anos e sua mãe há três. Sobre seu crescimento, afirmava, “nunca tive um objetivo de vida, isso me fez passar pelas coisas como se fossem fases. Eu sempre fui nula nas decisões” [sic]. Acreditava que deveria ter participado mais da educação de seus filhos, já adultos, e que “durante a gravidez não sentia esse êxtase que as mulheres grávidas sentem” [sic], porque para ela “ter filhos era algo comum” [sic].

Os relatos dos primeiros atendimentos da paciente nos faz pensar que Sra. Carmem cresceu em um ambiente pouco acolhedor e com muitos aspectos hostis, que fizeram com que se organizasse psicologicamente ao redor da opressão e do medo, submetendo-se a uma vida até então, sem sentido de existência.

Winnicott (1982/1990) vai nos assinalar que o bebê, principalmente no período de dependência absoluta, precisa de um ambiente suficientemente bom, que se adapte e atenda as suas necessidades, não permitindo nenhuma ruptura na continuidade de ser. Em suas palavras:

Com o cuidado que ele recebe da mãe cada lactente é capaz de ter uma existência pessoal, e assim começa a construir o que pode ser chamado de continuidade do ser. Na base dessa continuidade do ser o potencial herdado se desenvolve gradualmente no indivíduo lactente. Se o cuidado materno não é suficientemente bom então o lactente realmente não vem a existir, uma vez que não há a continuidade do ser; ao invés a personalidade começa a se construir baseada em reações a irritações do meio (Winnicott, 1982/1990, p.53).

Observando os relatos da paciente, percebemos que este ambiente não lhe foi ofertado. Sra. Carmen foi privada de ser vista em sua singularidade, entre tantos irmãos, um pai agressivo e uma mãe fria afetivamente, não pôde receber um olhar atento e cuidadoso, que a acolhesse e lhe desse a condição de confiar em si mesma. Sendo assim, em defesa de seu ser verdadeiro, a paciente reagiu com o surgimento de um falso self, como adaptação ao ambiente (uma vez que o ambiente não pôde fazer o contrário), que estava impedindo o desenvolvimento do gesto espontâneo, bem como da sua criatividade – de dar ao mundo real um sentido pessoal, verdadeiro.

Segundo Winnicott (1982/1990) serão os cuidados ambientais que irão promover o fortalecimento de um verdadeiro self ou de um falso self. Sobre o verdadeiro self, pode-se afirmar que no estágio inicial ele se constitui a partir do gesto espontâneo e, portanto, de uma manifestação singular de alguém – em outras palavras uma pessoalidade. Para o autor, somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real.

Com muita tristeza, dizia “me sinto sozinha, pois não tenho para quem contar as coisas. Apenas hoje olho para a minha própria mão e vejo que sou eu. Nunca vivi minha própria vida. Não sei vivenciar os momentos” [sic]. Ao perceber sua mão envelhecida, a paciente se dava conta do tempo que havia passado, o que fez com se questionasse sobre o que tinha feito com aquele corpo, e consequentemente com a sua vida, até aquele momento. Sra Carmem iniciava um “balanço existencial”. Começou a pensar em sua infância, em seu casamento, em seus filhos, no seu trabalho e sentiu que nada daquilo lhe era próprio, era “seu” e o quanto não pôde usufruir deste de uma forma pessoal e autêntica pela privação de um bom encontro (ambiente/outrem) na sua vida (Genaro Junior 2012; 2013).

O atual envolvimento do seu filho com drogas era o assunto mais recorrente nas sessões e a paciente dizia sempre com convicção “eu nunca tive que lidar com sofrimento na vida, não estou preparada para isso” [sic]. Sra. Carmen estava dizendo do núcleo da sua questão, não tinha constituído um senso unitário de self, não sabia dizer quem era si própria e o que lhe fazia bem.

A paciente sabia que o uso de drogas de seu filho não era o motivo de tanto sofrimento, mas possivelmente o símbolo de uma falência, que não se remetia apenas a falência como mãe, e sim de uma vida que até então não pôde acontecer no registro dos sentidos, a de si própria. Safra (2006) afirma que o processo de envelhecimento faz desmoronar a organização de um falso self, deixando o paciente idoso muito fragilizado diante da finitude. Como senhora envelhecendo, Sra. Carmen começou a se dar conta do que de fato havia edificado e que sentido isso fazia na sua existência.

Apresentava significativa dificuldade para dormir e, quando dormia, “era sempre com fones de ouvido, escutando o rádio em um volume baixo” [sic]. Não gostava de ficar sozinha e por isso estava sempre com o rádio ligado. Percebe-se que para a paciente o silêncio era insuportável, pois remetia sua própria solidão. Sra. Carmem não tinha desenvolvido a capacidade de estar só (Winnicott,1982/1990). A experiência de solitude não pôde ser vivenciada na presença de alguém. O silêncio era sentido como solidão medonha, desamparo, experiência de desaparecimento e não como experiência de presença. Ficar sozinha para a paciente a aproximava de uma agonia impensável – de queda sem fim, desaparecer para sempre.

De acordo com Brochsztain (2006) um dos grandes fatores que diferencia a forma de elaboração das crises do envelhecer seria:

A probabilidade de as pessoas que tiveram, na mais tenra infância, um ambiente suficientemente bom elaborarem de modo mais satisfatório as possíveis crises do envelhecer é grande, pois a confiança que adquiriram então na relação humana tende a permanecer. Aqueles que, por infelicidade, pouco tiveram holding2, ainda assim, em outros momentos da vida, podem vir a ter a chance de constituir aquilo que não foi constituído e de encontrar outras pessoas disponíveis para acolhê-los (Brochsztain, 1996, p.32).

A autora afirma que a reparação é sempre possível, pois o self não é imutável, e em qualquer fase pode ser necessário reorganizá-lo, até mesmo na velhice. No entanto, como os seres humanos só se constituem a partir da presença do outro, não há presença de si mesmo sem a presença do outro, nos deparamos com o paradoxo humano (Safra, 2006).

A partir dessa perspectiva pode-se afirmar que Sra. Carmem necessitava de holding, elemento que faltou em sua infância, e era imprescindível, para que ocorresse a retomada de seu desenvolvimento, isto é, a possibilidade do reposicionamento do verdadeiro self.

Safra (2006) a respeito da constituição e sentidos do self, diz:

É a vida do self que dá sentido à ação ou ao viver do indivíduo que pôde chegar a um desenvolvimento satisfatório e que continua a crescer da dependência e da imaturidade á independência e a capacidade de identificar-se com objetos de amor maduros sem perda da identidade individual (Safra,1999, p.3).

Sra. Carmen não tinha a capacidade de identificar-se com objetos de amor maduros, casou-se com um homem a quem dizia não amar. Referia não saber o que era amor, não tinha o registro desse afeto. Não encontrou em seu marido um parceiro em que pudesse retomar o desenvolvimento de seu ser. Não porque ele era autoritário, mas ela própria se colocava como submissa a ele.

Winnicott (1982/1990) afirma que a maturidade no desenvolvimento emocional implicaria em socialização, em identificação com a sociedade, a qual se aceita e altera, sem que haja um grande prejuízo de sua espontaneidade. Para isso, se faz necessário que a pessoa crie e recrie os objetos ao seu redor, de forma que ela possa usufruir desses pelo tempo necessário para depois poder repudiá-los. Sendo assim, uma pessoa deverá encontrar na cultura um meio de realização do self, não apenas se inserir nela de forma submissa e impessoal.

A única lembrança que trouxe de quando seu filho era menor, foi um sonho que ele teve aos dozes anos em que acordou dizendo: “mãe, até você?” [sic]. A paciente interpretou o sonho do filho da seguinte maneira: “Acho que ele sonhou que eu era uma bruxa malvada” [sic]. Percebe-se que Sra. Carmen temia a si própria, e sustentava a fantasia de que seus impulsos eram indícios de maldade, não conseguindo fazer discriminação entre ela e seu ambiente originário.

A paciente tentava solucionar a privação afetiva que sofreu com bens materiais, “eu era compulsiva por compras” [sic], mas percebeu que isso não resolvia seu mal-estar, do qual sozinha não conseguia nomear. Era a busca por sentir-se viva que ela procurava, mas para isso precisava da presença e do reconhecimento de um outro, que aceitasse sua presença, ainda que incipiente e lamentosa, e que lhe fornecesse um espaço em que pudesse sentir-se real ainda que a partir da sua dor.

Um aspecto relevante foi notado numa de nossas sessões, Sra. Carmen não tinha reconhecido a estagiária. Para ela aquilo não era possível em decorrência da sua própria falta de reconhecimento como pessoa. “Hoje eu olho para a minha mão e vejo que sou eu” [sic]. Sra. Carmen estava começando a integrar em seu self partes de seu corpo, podendo inicialmente reconhecer-se a partir da sua mão, a qual também trazia os sinais de que estava velha. Tal aspecto também foi evidenciado em uma sessão em que a paciente chegou dizendo “hoje eu comi pela primeira vez algo com prazer” [sic]. A paciente tinha comido uma torta de limão, da qual repetiu, e afirmava que era a primeira vez que comia algo com prazer e não por que tinha que se alimentar.

Sobre o processo de integração, Winnicott (1988/1990) afirma:

No estudo dos estados iniciais do desenvolvimento individual humano é necessário pensar a integração como algo a ser alcançado. Não há dúvida de que existe uma tendência biológica em direção à integração, mas os estudos psicológicos da natureza humana jamais serão satisfatórios se se basearem excessivamente nos aspectos biológicos do crescimento (Winnicott, 1988/1990, p.136).

Para o autor, a integração trata-se de um processo que depende do favorecimento do meio ambiente para acontecer, ele começa a se desenvolver pouco a pouco na criança, e pode apresentar graus diferentes em crianças da mesma idade. Quando estabelecido, à criança passa a se sentir uma unidade, no entanto, esta sensação pode ser alterada de acordo com as experiências emocionais ou afetivas. Um fator recorrente da velhice é a desintegração, que ocorre por conta das mudanças corporais que não foram integradas ao self (Winnicott 1988/1990).

No decorrer das sessões Sra. Carmen mostrou que estava procurando uma forma de reposicionar-se, buscando a vida, “estou começando a me ver como gente” [sic]. A única forma que tinha encontrado até então para se proteger de um mundo sentido como ameaçador, era se fechar para ele, não permitindo expressar-se de nenhuma forma, “eu me faço de durona” [sic], “não me identifico com nada” [sic]. Sra. Carmen estava insatisfeita, mas passou a ver a possibilidade de mudança, com a esperança de que nem tudo estaria perdido. Para Safra (2006), uma das formas de lidar com o processo de envelhecimento frente a uma vida que não pode acontecer, é começar a fazer planos para os anos que estão pela frente. No entanto, Genaro Junior (2013) acrescenta que para se abrir planos para o futuro, ainda que curto, a pessoa idosa necessita lidar com as várias facetas do perdão, de si mesma, dos outros, enfim, da vida – dito de outra forma, sem perdão só há ressentimento e paralisação da vida.

Do ponto de vista do processo psicoterapêutico, percebe-se que o setting analítico, mesmo que breve, possibilitou que a paciente começasse a ter experiência psicossomática de si mesma. Ao dizer, “hoje eu comi pela primeira vez algo com prazer” [sic], Sra. Carmen estava falando da própria presença psicossomática que começava naquele instante, pela boca. Boca para além de um buraco no rosto, agora expressava tantas coisas que começavam a ganhar sentido no encontro de mutualidade3 nas sessões. A partir do encontro com a psicoterapeuta, em que pôde ser ofertada uma presença atenta as suas questões, testemunha-se a paciente construir novas narrativas, a qual a partir da escuta, abriu-se lugar e legitimidade ao já vivido. Sra. Carmen estava começando a habitar o seu próprio corpo, integrando psique e soma, ganhando presença de si (Winnicott,1988/1990).

Ao final das sessões dizia estar mais tranquila em relação ao uso de drogas de seu filho e começou a voltar o tema dos atendimentos para ela mesma. Ao mesmo tempo começava a se aproximar da estagiária, permitindo-se escutar e dialogar. Afirmou estar se vendo de outra forma, mas que “tenho dificuldade para me ver como pessoa. Preciso encontrar algo com o que eu me identifique. Eu não tenho identidade. Preciso ter contato com pessoas direcionadas e equilibradas” [sic]. Sra. Carmen estava dizendo da necessidade que tinha do encontro com alguém que não demonstrasse ansiedade e insegurança frente a sua fragilidade. De um encontro real, que ao ser vivenciado pela paciente inicialmente como realidade subjetiva, propiciava a restauração do sentimento de realidade. De acordo com Winnicott, “é sempre um relacionamento vivo entre duas pessoas que abre espaço para o crescimento” (Winnicott, 1965/2005).

Em sua penúltima sessão, as queixas das primeiras sessões retornaram. “Se não fosse o problema de meu filho com drogas estaria bem. Eu não vivi minha vida, apenas fui passando por ela. Sempre fui um objeto. Acho que meu comportamento é reflexo da educação rígida que tive dos meus pais [sic]. No entanto, entre tantas queixas diz: “quero voltar a estudar para ver se eu encontro sentido no que faço” [sic]. Na sua última sessão, que era de devolutiva, disse: “deu para aproveitar alguma coisa, mas acho que eu tenho algum bloqueio a mudança por causa da formação que tive. É bom, estou começando a me conhecer e a me ver como gente” [sic].

Envelhecer estava propiciando a Sra. Carmen à busca urgente de uma vida que fosse percebida como verdadeira e, portanto, de sentidos próprios. Ao se deparar com uma vida esvaziada de sentidos, foi buscar na psicoterapeuta um encontro que permitisse a expressão do que ela estava vivenciando na velhice. Assim, verificou-se que por meio da experiência de mutualidade a psicoterapeuta estava legitimando o seu nascimento psíquico, no decorrer do processo. Sra. Carmen foi ganhando voz, consequentemente a boca, podendo se reconhecer, para poder existir na relação com o outro e com mundo.

 

Considerações finais

A partir da experiência vivida com a paciente, podemos reconhecer um movimento de busca por sentido por parte da Sra. Carmen diante da vida que levava, movimento próprio desse momento da vida – velhice. Assim, a experiência psicoterápica possibilitou por meio do manejo ativo da transferência, holding necessário para o inicio do surgimento do seu self verdadeiro. A partir da oferta de um lugar subjetivo e ao mesmo tempo real (mão envelhecida), foi possível realizar adaptação do setting as necessidades da paciente.

Desta forma, observamos que no caso aqui relatado, a velhice propiciou, ainda que inicialmente via sintomas, um reposicionamento do verdadeiro self, bem como da retomada do devir. Outro aspecto importante do ponto de vista clínico foi que o trabalho nos revelou a possibilidade de desenvolver um manejo clínico adequado a esse momento de vida. Bem como, além do processo natural da velhice poder propiciar um balanço sobre a vida (consciente e/ou inconscientemente), é necessário contar com um ambiente, um outrem, com quem se possa sustentar, e articular tais experiências na alteridade. A situação clínica nos aponta também para a importância de um ambiente adaptado às necessidades do paciente, como visto anteriormente em Winnicott (1988/1990), não há etapa da vida que não demande certa constituição do si mesmo, estamos sempre revendo o sentido de nós mesmos ao longo de toda a vida.

Refletindo ao final sobre as possibilidades de intervenção e manejo no atendimento realizado ao paciente idoso, podemos ver que o acolhimento da finitude se torna mais evidente na velhice. Momento em que o idoso precisaria desconstruir o self existente e fazer algo para além de si, redefinindo o seu projeto de vida, ou até, sua própria vida (Safra,2006). Vimos que no caso da Sra. Carmen esse aspecto estava impedido, uma vez que não havia o que desconstruir, tal aspecto a colocava em intensa agonia. Reconhecemos também, que a preocupação genuína da estagiária, o que surgiu como disponibilidade em atenção/escuta, para com Sra. Carmem, favoreceu um contato verdadeiro, um encontro intersubjetivo, possibilitando a experiência de mutualidade, a dimensão ética se sobrepõe a técnica. A devoção sustentada pela transferência possibilitou o inicio do gesto espontâneo de Sra. Carmen, em outras palavras, ao final do processo psicoterápico já era possível ser velha!

 

Referências

Brochsztain, C. (1996). O susto ao espelho: um estudo psicológico do envelhecer. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Genaro Junior, F. (2013). Clínica do envelhecimento: concepções e casos clínicos. São Bernardo do Campo: Todas as Musas.         [ Links ]

Genaro Junior, F. (2012). As consultas terapêuticas como modalidade de atendimento psicológico ambulatorial ao paciente idoso: reflexões de uma prática. In D.F. Gioia-Martins (Org.), Psicologia e Saúde- Formação, Pesquisa e Prática Profissional (pp.65-79). São Paulo: Vetor Editora.         [ Links ]

Safra, G. (1996). Experiência estética na constituição da transicionalidade. In I.F. Motta (Org.), D.W.Winnicott na Universidade São Paulo, o verdadeiro e o falso. São Paulo: Instituto de Psicologia USP.         [ Links ]

Safra, G. (2006). A clínica da maturidade. São Paulo: PUC-SP. Vídeo conferência.         [ Links ]

Trinca, W. (2003). Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU. (Temas Básicos de Psicologia; v.10). (Trabalho original publicado em 1984).         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1988).         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). O ambiente e os processos de Maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1982).         [ Links ]

Winnicott, D W. (2005). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1965).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Bruna Ballan Maluhy
E-mail: brunamaluhy@yahoo.com.br

 

 

* Universidade Presbiteriana Mackenzie. Email: brunamaluhy@yahoo.com.br
**Universidade Paulista e Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Email: fernado.genaro@gmail.br
1 Cabe esclarecer que Sra. Carmen trata-se de um nome fictício para ilustração clínica do caso em voga. Além disso, para essa publicação foram respeitados todos os procedimentos éticos vigentes para divulgação de pesquisas com seres humanos, bem como consentimento do próprio paciente. Essa experiência de estágio resultou no trabalho de conclusão de curso da autora, orientada pelo segundo autor. Portanto, teve autorização da comissão de ética da universidade, bem como da instituição de saúde.
2 Holding palavra da língua inglesa a qual significa sustentação, suporte, apoio. Foi muito utilizada por D.W. Winnicott (1896/1971) para se referir à função do ambiente para com seu bebê que promove integração no tempo e no espaço e que ao longo da vida ganha complexidade. Tal conceito é utilizado mundialmente como holding tendo em vista que a tradução perderia eventualmente o seu valor.
3 Experiência de mutualidade é um conceito utilizado por Winnicott (1982/1990) para discorrer sobre a comunicação vivida entre a mãe e seu bebê. Trata-se de uma comunicação que ocorre à medida que a mãe reconhece as necessidades de seu bebê por meio de sua identificação com ele. Winnicott assinala que o bebê também se identifica com sua mãe, ocorrendo assim uma comunicação a qual ele denomina de silenciosa.

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