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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.18 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Corpo e envelhecimento: uma perspectiva psicanalítica

 

Body and aging: a psychoanalytical view

 

 

Kátia Cherix1

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende explorar o tema da relação entre corpo e envelhecimento sob o olhar da psicanálise. O corpo que se torna psiquismo, corpo erógeno e possibilidade de ação sobre o mundo na juventude, na crise do envelhecimento, pode se tornar estranho e limitador. Diante desta experiência, podemos encontrar dificuldade de nos reconhecermos na nova imagem que vemos refletida no espelho. Esta nova imagem aponta para o declínio físico, para impotência e para a dependência do outro. O processo de envelhecimento é um momento de luto e elaboração de perdas à procura de novas formas possíveis de satisfação. Durante este processo, o corpo chama o psiquismo a enfrentar novamente o complexo de castração e re-elaborar conteúdos edípicos em busca de um novo posicionamento subjetivo. Concluise que envelhecer é um processo totalmente subjetivo e singular, marcado pela inquietude que problematiza o encontro, dentro de cada um, da realidade externa com a realidade psíquica. Neste sentido, este processo requer um reposicionamento subjetivo importante que só pode ser feito se mudanças intrapsíquicas profundas acontecerem e encontrarem respaldo no olhar do outro.

Palavras-chave: corpo; envelhecimento; psicanálise.


ABSTRACT

This article wants to explore the subject of the body and the aging process through a psychoanalytical view. The body that becomes psyche, sexual body and possibility to act over the world while you are young, with the aging process can become strange and restraining. In front of this experience, we can find it hard to identify with the image that we see in the mirror. This new image points to the physical decline, impotence and dependency of others. The aging process is a time for mourning and dealing with losses finding new ways for satisfaction. Through this process, the body claims the psyche to deal again with the castration complex and search a new way to be in the world. We concluded that aging is a subjective and unique process, full of the disquietude that appears in the meeting of the external reality with the psychic reality. This process requires a significant subjective repositioning that can only be done if deep intrapsychic changes happen and find support in the eyes of the other.

Keywords: body; aging; psychoanalysis.


 

 

Corpo e Psicanálise

A psicanálise lança seu olhar sobre o corpo no começo do século XIX com Freud (1890/1974) e Ferenczi (1908/2011). Depois disso, alguns psicanalistas continuaram com o estudo deste tema, como Reich (1929/1981), Schilder (1950/2004), Winnicott (1949) e Balint (1969). Nos anos 50, as escolas de psicanálise privilegiaram autores que colocaram a palavra e a interioridade do mundo do pensamento ao invés do aspecto corporal e estético do encontro no setting analítico como foco do tratamento, como foi o caso de Lacan (1953/1986). A dimensão corporal voltou a ter relevância com o surgimento da Escola de Psicossomática de Paris fundada por Marty, e com a abertura do Instituto de Psicossomática (IPSO) em 1972, onde desenvolveram trabalhos no sentido de adaptar a técnica psicanalítica ortodoxa para acolher as particularidades desta nova clínica (Dominique, 2008). A psicanálise contemporânea também tem se interessado pela temática do corpo e da psicossomática psicanalítica além da comunicação entre o corpo do analisando e do analista nos casos de transferência de pacientes difíceis especialmente com os trabalhos de Anzieu (1985), McDougall (1989), Ogden (1996), Coelho Jr. (2000) e Green (2002).

Desde o início, Freud (1914/2004) dá grande importância ao tema do corpo e do biológico no desenvolvimento de sua teoria. Como os primeiros cientistas que o inspiraram, às vezes demonstra ter uma visão mecanicista do corpo quando fala deste como fonte da pulsão (Trieb) que funcionaria como um motor, criando energia para a existência e funcionamento da psique. A pulsão, que nasce no corpo, seria assim entendida como uma pressão (Drang) que, ao demandar trabalho (Bearbeitung) geraria o psíquico. A pulsão é definida como um conceito limite entre o somático e o psíquico, tendo sua origem do interior do organismo e em busca de um objeto que possa permitir satisfação. A pulsão seria um representante psíquico das excitações que vêm do corpo. Nesta visão, o corpo já é desde o início psíquico pois, frente ao desamparo e à pressão das pulsões, o psíquico surge para dar conta das intensidades e excessos (Freud, 1890/1974). Desde este psiquismo primitivo até o psiquismo estruturado que dá conta das demandas das pulsões (Id2) e das exigências do Supra Eu, o sujeito passa por um longo percurso no qual a libido que vem da fonte das pulsões ora é investida no Eu, ora nos objetos do mundo. Este Eu vai se estruturando através de processos complexos de identificações e trabalhos de luto que deixam marcas no Eu, principalmente a relação com os primeiros objetos (Freud, 1914/2004, 1917/2006, 1923/2007).

O processo de constituição do Eu foi bastante estudado pelo campo da psicanálise principalmente nos anos 60, com o trabalho de Lacan (1966/1998) que desenvolveu a metáfora do estágio do espelho para falar do momento em que a criança tem a vivência do seu corpo como totalidade. Esta experiência só é possível através do olhar da mãe que investe o corpo da criança com esperanças e expectativas. No auge deste processo, o sujeito passa a se conceber como sendo um Eu separado do outro e tendo um corpo próprio. Corpo investido e marcado pelo olhar, pelos desejos e pelas expectativas dos pais. Assim, o corpo passa a ser não só orgânico, fonte de pulsões, mas também corpo erógeno, investido libidinalmente pelo outro, fonte de desejo, prazer e dor. As sensações experimentadas pelo corpo no mundo vão deixando marcas e construindo um esquema corporal. As experiências de prazer e da relação do corpo próprio com o corpo do outro vão deixando traços na memória construindo uma história deste corpo. Cria-se uma imagem corporal inconsciente que permite um reconhecimento em vários momentos da vida como sendo o mesmo sujeito, como tendo a mesma identidade, mesmo com as modificações do corpo ao longo do tempo. Desta forma, desde os primórdios, existe uma distância entre a imagem que temos do nosso corpo e de nós mesmos e a imagem que o espelho mostra. Nossa primeira experiência frente ao espelho é nos reconhecermos numa imagem que representará o Eu ideal, ou seja, é um momento no qual a criança olha-se no espelho e se reconhece; sente-se potente, imbuída da esperança dos pais. Esta situação do espelho positivo é um ponto importante de constituição da identidade (Goldfarb, 1997).

 

Espelho e Envelhecimento

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas, e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
--- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

CECILIA MEIRELES

Para Goldfarb (1997), o sujeito toma consciência de que entrou no processo de envelhecimento e passa a ter que elaborar as perdas que dele decorrem quando passa poruma experiência intensa que aponta para a perda da funcionalidade do corpo e sua futura impotência como uma queda na rua, uma lesão física ou o diagnóstico de uma enfermidade. As mudanças do corpo que apontam para o envelhecimento como aparecimento de cabelos brancos e mudanças que se dão no trato social como oferecimento de assento para idosos em transporte público podem ser sentidas como uma violência pelo sujeito por desalojá-lo do lugar que acreditava pertencer. Neste momento, o sujeito passaria por uma fase do espelho negativo, ou seja, o reflexo de si que vê no espelho e no olhar do outro não é mais imbuído de esperança e sim de declínio físico, desvalorização social e proximidade da morte (Goldfarb, 2006).

Assim, com a chegada da velhice, o corpo se faz cada vez mais presente na vida cotidiana e psíquica do sujeito. Ao escutar idosos, é possível perceber que alguns passam muito tempo falando, queixando-se e preocupando-se com seus corpos. O corpo, algo familiar, que nos constitui e nos pertence, passa a ter outro registro, torna-se algo estranho e ameaçador. Desta forma, precisamos estar cada vez mais atentos e preocupados com suas mudanças, inconstâncias, sempre à espreita de indícios de doença e morte, dos sinais deste "outro" em mim.

Em "O estranho" Freud (1919/1974) explora o significado da palavra Unheimliche que pode ter o significado de estranho e familiar ao mesmo tempo. Descreve uma certa inquietação que sentimos quando algo que um dia foi familiar retorna como algo estranho depois de ter sido recalcado. Diante desta experiência, sentimos medo e horror. As mudanças do corpo e a crise na passagem para a velhice podem ser associadas a esta sensação do estranho. A velhice e a perda de funcionalidade do corpo são esperadas, porém quando surgem, quando se concretizam materialmente, quando se tornam evidências irrefutáveis, são sentidas como algo estranho, que vem de fora e surpreende o sujeito de forma repentina e assustadora.

Lopes (2009) usa o romance de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, para falar da imagem da velhice como algo a ser evitado, por, socialmente, a velhice ter uma conotação negativa. É comum ouvir idosos dizendo que não se sentem idosos ou velhos, fugindo destas referências sociais pelo máximo de tempo possível. Esta resistência a esta identificação é compreensível pois, pela sociedade atual ser pautada em valores ligados à juventude e poder de consumo, os idosos, como grupo, podem se sentir marginalizados e estigmatizados. A maioria das pessoas não quer se identificar com a palavra velho ou idoso pois isto implicaria em se identificarem com um lugar negativo, esvaziado de atributos positivos (Cherix, 2013). Nesta mesma linha, Goldfarb (1997) mostra a angústia da experiência do não-reconhecimento numa imagem de velho:

Quando o sujeito que envelhece diz: 'esse não sou eu', evidentemente nos diz que o rosto no qual ele poderia se reconhecer tranquilamente não é aquele. [...] tanto o adolescente quanto o sujeito que envelhece sabem perfeitamente que aquela imagem lhes pertence, mas experimentam ante ela uma certa estranheza, um susto, como se a imagem fosse de outro: há uma falta de reconhecimento como imagem, não como sujeito. Não é o rosto que lhes corresponde. Aquele ali, o velho do espelho é outro, não é a representação conhecida por ele como seu próprio rosto; a representação conhecida de sua face ficou perdida, e em alguns casos, como na demência, para sempre. (Goldfarb, 1997, p. 35)

Esta reflexão acerca da recusa de identificação com uma imagem negativa, que nos incumbiria a um certo papel social que cercearia nossas possibilidades de existência no mundo nos faz pensar que, atualmente, o corpo do velho é pouco valorizado e investido pelo social, o que acarretaria graves consequências para o processo de subjetivação. Por portar um corpo não mais valorizado, alguns idosos podem se sentir isolados; a falta de contato pode diminuir o fluxo libidinal e a preocupação de alguns idosos com doenças pode ser entendida como uma forma de conseguir um olhar investido de interesse neste corpo. O corpo doente ou dependente passa a ser novamente investido e a doença permite a criação de vínculos e contatos com outros (Goldfarb, 1997; Volich, 2009).

Já Mucida (2009), embasada nos conceitos de Lacan, ressalta a importância da libidinalização do corpo pela palavra. Para ela, o corpo poderia ser visto como um laço feito de três fitas: corpo biológico com o qual se nasce, imagens que o formam como corpo próprio e as palavras que o nomeiam. A autora chama a atenção para as marcas da palavra do outro no corpo. Desta forma, os discursos e tratamentos dados à velhice em cada época e cultura têm efeitos sobre o corpo. Hoje em dia, cultuamos a juventude e a atividade, e assim procuramos esconder as marcas da passagem do tempo. Corpos de crianças, adolescentes e adultos são olhados, admirados e tocados; já o corpo do idoso é ignorado e só tocado se manipulado para higiene ou quando doente. O idoso tem tanta vontade de sentir contato físico quanto jovens e adultos e continua expressando sua sexualidade até o fim da vida porém, para o social, o corpo envelhecido não teria mais interesse como objeto de investimento.

Messy (2007), psicanalista francês com longo percurso no estudo do envelhecimento, mostra que no final da vida pode existir uma tendência de se retirar asemanações da libido dos objetos de amor e voltar sobre o Eu a energia libidinal. Esta diminuição quantitativa favorece uma regressão a estados pré-genitais, um retorno ao narcisismo primário. Segundo o autor, do mesmo modo que o sujeito passou pela fase do espelho quando reconheceuse numa imagem, o que permitiu que ele integrasse as partes do seu Eu, o velho passaria pela fase do "Espelho Quebrado". Ao ver uma imagem de velho pouco valorizada socialmente, que não reconhece como si no espelho, antecipa o desregramento do Eu, a ideia de perda do controle de sua unidade corporal e sua morte. O que vê à sua frente e no futuro não é mais a possibilidade de ser algo melhor, de se chegar numa imagem de completude como o Ideal de Eu, e sim um "Eu Feiúra" refletido no espelho e no olhar do outro. Esta experiência seria extremamente violenta, pois quebraria a relação do Eu com as antigas imagens que o constituíram.

Ferrey & Le Gouès (2008) também trazem seu olhar para o fenômeno do envelhecimento. Para eles, diante desta modificação da imagem de simesmo, o Eu procura uma nova posição em que poderia ser amado, em conformidade com as exigências do mundo externo. Em alguns casos onde idosos se encontram mais marginalizados e excluídos, as possibilidades sociais de investimento em novos objetos podem diminuir e o circuito de troca de energia libidinal que alimenta o narcisismo pode se ver empobrecido. Por isso que, ao sentirem-se desinvestidos pelo ambiente, alguns idosos podem voltar para si a energia que lhes resta como indicado acima por Messy. Sem ser objeto de amor para si-mesmo, não é possível colocar-se como tal para os outros. A qualidade do investimento libidinal em novos objetos é afetada pela história psíquica do sujeito e pelas oportunidades que o ambiente oferece para trocas afetivas. As trocas podem ajudar a melhorar a circulação da libido do sujeito, além de permitirem que ele se imagine no futuro como um sujeito inteiro, capaz de manterprojetos de vida ao invés de paralisar-se frente à possibilidade de um esfacelamento psíquico anunciado pelo "Espelho Quebrado".

O envelhecimento, como a adolescência, é um processo que traz desestabilização para a identidade. O Eu tem que continuar a dar conta da força pulsional além de defesas que se estruturaram no Eu ao longo da vida para lidar com angústias e traumas. Sendo assim, a unidade do Eu e a sensação de identidade são apenas aparentes pois o aparelho psíquico se constitui na tensão entres as instâncias e forças em jogo. As exigências pulsionais mobilizam um incessante trabalho de síntese, coesão e elaboração. Envelhecer, dependendo da historia do sujeito, pode colocar esta capacidade de coesão do Eu à prova pois não se trata apenas de aceitar as perdas, mas mobilizar recursos criativos para que o Eu possa se apropriar destas mudanças. O corpo ocupa uma posição central neste campo em transformação pois é, cada vez mais, fonte de excitações e tensões que demandam incessante trabalho psíquico (Verdon, 2013).

 

Envelhecimento e angústia de castração

isto é violência na terceira idade. sabem por quê, porque o nosso inimigo é o corpo. porque o corpo é que nos ataca. estamos finalmente perante o mais terrível dos animais, o nosso próprio bicho, o bicho que somos. que decide que é chegado o momento de começarmos a desligar-nos os sentidos e decide como e quando devemos padecer de que tipo de dor ou loucura. pois eu que tenho cem anos e podia quase ser vosso pai quero dizer-vos que ser-se velho é viver contra o corpo. o estupor do bicho que nós somos e que já não nos suporta mais. a violência na terceira idade.

VALTER HUGO, MÃE

É comum ouvirmos idosos se queixarem de que gostariam de fazer coisas que o corpo não permite mais. Também vemos algumas famílias limitando a ação do idoso no mundo por ele ser velho ou por seu corpo estar fragilizado. Uma viagem de carro mais longa para ver um parente distante, uma ida ao cinema ou a uma exposição, a participação no aniversário de um neto podem gerar dúvidas e mal-estar. Muitas vezes ouvimos que os idosos precisam descansar ou cuidar de sua saúde ficando em casa ou no quarto, afastados do convívio social.

Por um lado, existe um preconceito e ignorância em relação ao envelhecimento, e uma certa miopia em enxergar um sujeito de desejo num corpo fragilizado. Por outro, a proximidade com um corpo fragilizado ou dependente nos mobiliza angústias primitivas relacionadas com o medo da finitude, a impotência e a dependência do outro. Além de ter de lidar com o preconceito atrelado a sua nova condição social, enfrentar perdas reais e simbólicas, o idoso tem que encontrar meios psíquicos de superar o medo e pavor diante deste corpo que perde sua funcionalidade, seu poder de ação sobre o mundo.

O corpo, que para o adulto pode ser sentido como fonte de prazer e instrumento que propicia a circulação, a ação e os relacionamentos, pode tornar-se fonte de limite, sofrimento e frustração no sentido em que certos movimentos, antes relativamente simples, tornam-se mais difíceis ou mesmo impossíveis. Rapidamente fica clara a dicotomia entre um psiquismo desejante e um corpo que não serve mais como meio de satisfação de desejo. Para poder aceitar este corpo estranho e limitador, o sujeito terá que abrir mão de ideais narcísicos e construir projetos que tragam satisfação dentro dos limites permitidos pelo corpo e pelo social. Este processo requer um reposicionamento subjetivo importante que só pode ser feito se mudanças intrapsíquicas profundas acontecerem e encontrarem respaldo no olhar do outro.

Podemos pensar que no envelhecimento pode acontecer um desencontro entre o inconsciente atemporal e o corpo temporal. Diante de um futuro desconhecido e da morte, o Eu tem que redesenhar sua história e sua imagem. Frente ao limite colocado pela finitude, pelo tempo, e pela decadência do corpo físico, o Eu se reavalia diante de seus ideais. A "envelhescência" seria o encontro com esse limite, e poderia acontecer em qualquer momento da vida. Depois da aceitação deste limite, seria possível se ver como sujeito digno e aproveitar a vida nesse novo relacionamento com o futuro e os ideais: "a envelhescência é uma recriação do Eu diante das exigências pulsionais e as novas exigências do corpo que se aproxima da morte" (Berlinck, 2008, p. 197).

Esta possibilidade de reposicionamento subjetivo estaria intimamente ligada com as experiências infantis que definiram os núcleos de personalidade de cada sujeito, seus mecanismos de defesa, constituição egóica e possibilidade de lidar com perdas e separações, aceitando a realidade e investindo em novos objetos de satisfação. A possibilidade de negociação que cada um tem com o Supra Eu, suas exigências e seus ideais.

Para Ferrey e Le Gouès (2008) a redução da funcionalidade física faz uma marca psíquica que reativa o complexo de castração. Dependendo de como o sujeito lidou com a castração durante a fase do Complexo de Édipo na infância e durante a vida, ele poderá aceitar o que está acontecendo e encontrar na passividade uma fonte de prazer, ou, numa sociedade que enaltece a juventude e a performance, sentir-se ameaçado e defender-se. Os sujeitos com traços narcísicos predominantes encontram dificuldade em fazer este reposicionamento, pois não querem abrir mão do que foram e do que ainda gostariam de ser.

Ligando o tema da angústia de castração ao do envelhecimento é possível pensar que a menopausa seja um marco importante na vida da mulher pois coloca-se como um indício sólido, difícil de ser ignorado, de que o envelhecimento chegou. Durante a menopausa, a mulher tem de se ajustar ao desequilíbrio hormonal e à reação dos outros a suas mudanças físicas e de humor. O modo como a mulher enfrentaria estas mudanças dependeria da sua historia psicológica, ou seja, como passou pelo Complexo de Édipo, como lida com suas fantasias de castração e que caminhos encontra para fazer o trabalho de sublimação (Heimann & Isaacs, 1952).

Nesta mesma linha, Laznik (2005) aponta para um terceiro tempo do Édipo na mulher; o segundo seria na adolescência e o terceiro seria na maturidade quando poderia reeditar a passagem pelo Édipo tendo o filho homem como objeto de desejo incestuoso ao invés do pai. Algumas mulheres maduras poderiam idealizar o filho da mesma forma que idealizaram o pai. Na menopausa, a mulher tem que se haver novamente com o complexo de castração no sentido de que necessita fazer o luto por não ter mais a possibilidade biológica de ter filhos. Isso pode fazer com que a mulher madura tenha dificuldade em abrir mão de um filho homem jovem adulto, principalmente se o momento da menopausa coincidir com o momento de saída dos filhos de casa. A psicanalista dá o nome para este fenômeno clínico de "complexo de Jocasta".

Laznik cita Neuter (2001) para ilustrar que o homem também tem de lidar com o fantasma da castração e impotência na meia-idade, pois a ereção se torna mais difícil. Estas mudanças biológicas no corpo podem acontecer de forma repentina e trazem fortes consequências psíquicas. Para que o homem ainda se sinta viril, pode procurar a admiração das mulheres exibindo qualidades que o liguem ao poder simbólico. Tanto a menopausa na mulher quanto a crise de meia idade no homem podem fazer com que o sujeito se defronte diretamente com a finitude. O complexo de castração pode ser reativado, pois a morte e a impotência não são mais uma abstração, tornam-se ameaças reais.

Para Verdon (2013), o processo de envelhecimento tem raízes na infância, adolescência e vida adulta. Perda, falta, frustração e renúncia, marcas da clínica do envelhecimento, são vivências que nos acompanham desde o início e fazem eco a experiências primitivas que nos mobilizam à buscar novas vias de satisfação. O sujeito pode ter facilidade para lidar com as perdas ou usar de defesas como a negação e a idealização para proteger-se da angústia. Desta forma, o trabalho psíquico que acontece no envelhecimento não diz respeito só as condições sociais da velhice, faz eco com experiências psíquicas complexas que estruturam a psique de forma nodal. Assim, segundo o autor, envelhecer é um processo totalmente subjetivo e singular, marcado pela inquietude que problematiza o encontro, dentro de cada um, da realidade externa com a realidade psíquica. Diante das marcas físicas e simbólicas da passagem do tempo, nos vemos confrontados a uma realidade nova, porém, de certo modo, uma realidade re-atualizada que não se separa, de forma alguma, dos conflitos psíquicos que conduziram a vida até aquele momento.

 

Referências

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1 Universidade de São Paulo, São Paulo – SP. E-mail: katiacherix@hotmail.com
2 Ao longo deste artigo usaremos a tradução do alemão feita por Hanns (2004) das Obras Psicólogicas de Sigmund Freud da editora Imago. Assim, usaremos os conceito de Id, Eu e Supra Eu.

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