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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.18 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Sofrimento psíquico e corpo: perspectivas de trabalho multidisciplinar no tratamento de pacientes com Transtornos Somatoformes

 

Psychic suffering and body: perspectives for interdisciplinary work in the treatment of patients with Somatoform Disorders

 

 

Julia Catani1; Maria Abigail de Souza2

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo

 

 


RESUMO

Os transtornos somatoformes configuram-se como doenças não evidentes em exames laboratoriais ou que levam a um agravamento significativo de certas doenças orgânicas, em decorrência de conflito emocional. De modo geral, pacientes acometidos por estes transtornos sofreram experiências de maus tratos, abandono, violência física ou psicológica e abuso sexual. O presente artigo explora e discute a relevância de um trabalho multidisciplinar em hospital, apresentando a experiência da primeira autora em um ambulatório de Transtornos Somatoformes num hospital público de atenção terciária e as especialidades oferecidas na assistência a tais pacientes. A partir de uma revisão histórica da definição e configuração de um trabalho em equipe, discute-se as possibilidades e as limitações existentes para os profissionais no serviço. Além disso, busca-se refletir sobre as possíveis contribuições que a Psiquiatria e a Psicanálise poderiam oferecer ao tratamento desta população, considerando-se que, mesmo sem terapêuticas especificas, o vínculo entre o profissional e o paciente é fundamental na transformação dos sintomas.

Palavras-chave: estresse psicológico; transtornos somatoformes; equipe de assistência ao paciente; Psicanálise; Psiquiatria.


ABSTRACT

The somatoform disorders are characterized as diseases that are not evident in laboratory tests or that lead to a significant worsening of certain organic diseases as result of emotional conflict. In general, patients suffering from these disorders have suffered experiences of maltreatment, abandonment, physical or psychological violence and sexual abuse. This article explores and discusses the relevance of a multidisciplinary work in the hospital, presenting the first author’s experience at the Somatoform Disorders Clinic and the specialties offered for the care of such patients. From an historical review of the definition and configuration of a team work, this article discusses the possibilities and constraints for professionals working at service. In addition, it seeks to reflect on the possible contributions that psychiatry and psychoanalysis could offer to the treatment of this population, considering that even without specific therapies, the link between the professional and the patient is essential in the transformation of symptoms.

Keywords: psychological stress; Somatoform Disorders; patient care team; Psychoanalysis; Psychiatry.


 

 

Introdução

O presente artigo foi desenvolvido com base na experiência de um hospital público de atenção terciária, articulada a pesquisa realizada no mestrado acerca dos transtornos somatoformes nos manuais psiquiátricos e a histeria na psicanálise.

Apresenta-se aqui uma interação possível entre os profissionais e sua atuação nas instituições hospitalares, considerando, a título de exemplo, as atividades desenvolvidas no serviço. Este serviço foi criado em 2009, a partir de uma demanda da própria instituição para acolher pacientes que sofriam, de modo geral, por causas orgânicas inexplicáveis pelas suas condições médicas e em consequência disto passavam por diversas especialidades até que se chegasse a um determinado diagnóstico. Atualmente, o grupo que cuida destes pacientes é composto por quatro psiquiatras, um neurologista, doze psicólogos, uma fisioterapeuta, um residente em neurologia e residentes em psiquiatria.

A dificuldade em determinar os transtornos somatoformes (TS) deve-se justamente à ausência de um exame passível de identificar este sofrimento. Na prática, o que se faz é fundamentalmente excluir outras patologias até chegar a esta conclusão. Contudo, é possível apontar, de acordo com os manuais psiquiátricos, características que convergem para o esclarecimento e definição do transtorno. São elas: sintomas que produzam sofrimento ou prejuízo significativo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas da vida do sujeito, início dos sintomas subsequente a algum evento traumático, ainda que a pessoa não seja capaz de estabelecer esta relação, histórico de maus tratos, violência física ou sexual e/ou privação de afeto (Associação Psiquiátrica Americana, 2002; 2013).

Os pacientes que frequentam o ambulatório são atendidos em consultas psiquiátricas. Além dos pacientes já inscritos e em atendimento na clínica, a cada semana chega para avaliação ao menos um caso novo, encaminhado por algum grupo ambulatorial do próprio Instituto ou por algum outro grupo do hospital. Os novos casos são atendidos para se investigar se devem ser admitidos, isto é, se fecham o diagnóstico para este serviço. Caso existam dúvidas acerca do diagnóstico, sempre que necessário, os pacientes passam por uma avaliação neurológica para o esclarecimento quanto à natureza das manifestações, ou seja, se elas têm origem orgânica ou psicogênica. Por tal motivo é essencial a presença do neurologista.

De início, o serviço funcionava basicamente com o atendimento realizado por residentes com a supervisão de psiquiatras experientes, os quais permaneciam sempre os mesmos, por tratar-se de uma equipe fixa no setor. Já os alunos residentes deviam interromper os atendimentos, a cada seis meses, quando terminavam o estágio, ocasião em que se observava, quase sempre, uma regressão na condição clínica das pessoas diagnosticadas com o transtorno. As manifestações dolorosas agravavam-se, tanto nos quadros de somatização ou conversão, além de surgirem queixas frequentes dos novos residentes ou do próprio serviço. Tal rotina institucional tornava a relação médico-paciente bastante delicada, visto que a cada seis meses era evidente a piora sintomática dos pacientes e muitos deles demoravam a apresentar qualquer evolução ou a aceitar o novo médico.

Ao se constatar a necessidade desta população permanecer mais tempo com o mesmo médico, foi solicitado aos responsáveis pelo programa de residência que os alunos pudessem permanecer mais tempo no ambulatório, pelo menos por um ano. Esta mudança foi bastante importante para a equipe, bem como para os pacientes que apresentavam grande dificuldade de vinculação com o novo residente, já que o término um tanto precoce com o residente anterior fora vivido como afastamento, separação e abandono. Ainda há problema no que concerne ao vínculo, em função da troca de estagiário, mas a permanência com o mesmo psiquiatra, por um ano, produziu melhoras mais sólidas e evidentes. Além do mais, o ganho foi observável não somente com relação aos pacientes, mas com relação à equipe como um todo. É preciso lembrar que, por serem recém-formados, os residentes chegam para o estágio um pouco inseguros e os atendimentos no serviço ocorrem no primeiro ano da especialização. O fato de alguns pacientes não precisarem ser medicados traz dúvidas e desconfiança sobre o exercício de suas funções, pois não compreendem a princípio qual a função deles como profissionais, nem o que devem fazer. Vários meses são necessários para que ocorra o aprendizado e a convicção de que o vínculo com o paciente pode ser, em muitos casos, mais importante do que qualquer medicação prescrita. E a confiança na equipe também não é diferente. Paulatinamente é que se vê a sinceridade e a transparência dos alunos em compartilhar seus sentimentos e angústias relativas ao trabalho. Acreditar que toda equipe possa ter espaço e poder dividi-lo para fazer a palavra e os afetos circularem é fundamental, tanto para a experiência no ambulatório quanto para a carreira deste médico recém-formado.

Assim, ao longo da história do ambulatório, os vínculos entre profissional e paciente e entre os próprios profissionais foram sendo construídos, o que fortaleceu a equipe, favorecendo um melhor tratamento para os pacientes. Pesquisas apontam (Martinez, Rico, Hernández & Jiménez, 1997; Omalley, Jackson, Santoro, Tomkins, Balden, & Kroenk, 1999; Galucci & Marchetti, 2008; Bartorelli, Catani, Werebe, & Fraguas Jr, 2011) que as pessoas diagnosticadas com transtornos somatoformes, de maneira geral, apresentam dificuldade em desenvolver relações, falar de si mesmo e de seus sentimentos, justamente porque ao longo de sua vida, principalmente na infância, quase não receberam afeto.

Para tais pacientes ainda não há uma estratégia terapêutica específica, mas no ambulatório, intervalos de tempo menores entre os atendimentos, na maior parte das vezes quinzenais, puderam favorecer o desaparecimento dos sintomas. Ou seja, observa-se que a relação com a equipe e a possibilidade de receberem atenção contribui para a melhora do paciente. Além das consultas psiquiátricas, o ambulatório oferece psicoterapia de orientação psicanalítica às pessoas indicadas e que se dispõem a fazê-la semanalmente, podendo ser individual ou em grupo, a depender do caso.

Atualmente é oferecida psicoterapia em grupo aos acompanhantes destes pacientes, como forma complementar de tratamento no ambulatório. Isto porque, muitas vezes, quando os frequentadores do serviço começavam a melhorar, ocorria produção de sintomas nos familiares, tais como mal-estares, dores de cabeça, sensações de fraqueza, brigas e discussões que aludiam à falta de consideração quanto aos cuidados proporcionados aos pacientes. Ou ainda, constatou-se a resistência dos pacientes em melhorar, pois durante anos os familiares e/ou acompanhantes já haviam organizado a rotina de cuidados e em certos casos, abriram mão, inclusive, da própria vida para se dedicar ao paciente. O paciente sentia-se responsável por esta mudança e preocupado com o futuro do cuidador, caso não houvesse mais necessidade de sua companhia.

Embasadas nas informações acerca desta população neste contexto hospitalar, objetiva-se neste artigo: apresentar as dificuldades encontradas na clínica de pacientes com transtornos somatoformes e discutir as possibilidades e limites do trabalho na equipe multidisciplinar e em especial, o trabalho do psicólogo de orientação psicanalítica.

 

Contribuições da Psiquiatria e da Psicanálise frente às dificuldades na Clínica dos Transtornos Somatoformes

De acordo com a Classificação Internacional de Doenças - CID-10 (WHO, 1993), e Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-IV-TR (APA, 2002), os TS consistem em repetições de sintomas físicos associados à busca incessante de cuidados médicos e uma preocupação excessiva com o corpo. O emprego do termo somatoforme contempla casos físicos ou somáticos, de modo a respeitar a interferência do psicológico para o desencadeamento ou agravamento do transtorno. Os sintomas físicos não justificam sua origem, sua extensão, nem a angústia e as preocupações despertadas no paciente. Trata-se de um público bastante heterogêneo do ponto de vista psicopatológico e etiológico. Como referido neste sistema classificatório, os transtornos incluídos neste grupo são: Transtorno de Somatização, Transtorno Somatoforme indiferenciado, Transtorno Conversivo, Transtorno Doloroso, Transtorno Dismórfico Corporal e Transtorno de Somatização sem outra especificação.3

Quando um paciente chega ao médico, geralmente, vem para dizer o que sente, as suas angústias e as repercussões que este problema tem gerado em sua vida. O responsável escuta o relato do paciente e, tenta com isto oferecer um nome para o mal-estar daquele que está diante dele, a partir dos elementos coletados em entrevistas e no seu conhecimento como profissional capacitado. Pode-se dizer que o paciente dirige-se à figura do médico dizendo: "Dr. eu sinto isso..." que responde: "então você tem isso". A nomeação deste tipo de sofrimento determinará então, a doença, a evolução, o prognóstico e a cura (Catani, 2014).

A psiquiatria, a partir de seu aporte teórico e seus objetivos, visa, principalmente, tratar o(s) sintoma(s), o que significa descobrir o tipo de adoecimento e eliminar as causas ou, pelo menos, diminuir o mal-estar. Já para a psicanálise, o tratamento não significa a cura de um sintoma, mas a ajuda ao paciente para lidar com sua história de vida e com suas escolhas; descobrir os motivos pelos quais o sujeito desenvolve aquele tipo de manifestação e buscar um equilíbrio entre o seu organismo e suas exigências psíquicas. Diferentemente da psiquiatria, a psicanálise volta-se para a escuta do sofrimento psíquico, não do sintoma.

Ainda que ambos concordem que diante de um conflito vivenciado pelo paciente, este vê "desaparecer" a palavra e, não conseguindo nomear seu sofrimento, pode transformar sua angústia em sintoma corporal. Diante desta situação, a psicanálise busca traduzir os conflitos em uma linguagem verbal. Para a psiquiatria, o caminho é oferecer um nome para dizer ao paciente do que ele sofre e acalmá-lo, demonstrando que a ciência sabe como tratar seu desconforto e que, frente ao incômodo, pode existir um medicamento possível para afastar e eliminar tal sensação. Aqui se constata a dificuldade experimentada pelos psiquiatras em descobrir um tratamento eficiente para pacientes que sofrem de causas inexplicáveis pela medicina, ao ter que tratar uma doença que não se encontra no corpo e que pouco responde aos tratamentos farmacológicos existentes (Catani & Souza, 2015).

Para o psiquiatra, a terapêutica acentua a necessidade de eliminar o sintoma e acabar com a angústia, isto na maior parte das vezes é realizado pela medicação, que nestes casos mostram-se pouco eficazes. O psicanalista, por sua vez, vai pedir justamente que o sujeito fale mais, que ele próprio nomeie sua angústia e o seu sofrimento para que possa implicar-se no que está acontecendo. TS é uma nomeação diagnóstica e psiquiátrica que sublinha as questões conscientes, enquanto que os sintomas encontrados nos TS, traduzem uma nomeação psicanalítica do mal-estar que leva em consideração a noção de inconsciente (Catani & Souza, 2015).

Até o presente momento, ainda que os estudos acerca da temática sejam relativamente recentes (como mencionado), observam-se dificuldades dos profissionais em atender estes pacientes, visto que, de forma consciente ou inconsciente, eles tendem a apresentar resistência em tratar e abrir mão de seus sintomas. Entre os motivos dessa dificuldade estão o fato deles não encontrarem outra maneira de expressar as suas angústias e os seus conflitos, assim como os ganhos secundários obtidos com os sintomas. Entre eles, o auxílio doença, a atenção dos familiares e cônjuges, a diminuição do conflito familiar e outros. Como tentativa de não perder os ganhos, ainda que a população atendida não se dê conta, eles costumam queixar-se muito dos médicos, dos terapeutas, dos enfermeiros, da equipe de saúde, para evitar êxito no tratamento e na melhoria dos sintomas.

A complexidade do diagnóstico faz com que os pacientes percorram diversos hospitais, especialidades e pronto-atendimentos, em busca de algo que acalme o seu mal estar, acreditam que isto só será possível por meio de um exame mais detalhado, uma cirurgia ou qualquer outra intervenção que julguem mais eficazes. Diante deste cenário eles são encaminhados para muitas especialidades, dentre elas, as mais comuns nesta instituição são: neurologia, dermatologia, endocrinologia, fisiatria e ortopedia. Esta pluralidade de assistência oferecida, por vezes dificulta a condução do tratamento. Isto porque, mesmo sendo numa mesma instituição, nem sempre se tem acesso a todos os profissionais que assistem a um mesmo paciente. No caso do hospital, a comunicação se torna ainda mais difícil, pois inclui área total de 352 mil metros quadrados com cerca de 2.200 leitos distribuídos entre os seus seis institutos especializados, dois hospitais auxiliares, uma divisão de reabilitação e um hospital associado. Além de sua enorme extensão, os prontuários e informações dos pacientes até o momento não são totalmente digitalizados, embora o processo já tenha sido iniciado. Somado a isto, deve-se lembrar que se trata de uma instituição universitária em que a troca de residentes é frequente, o que, por vezes, pode dificultar o esclarecimento e conversas com outros profissionais.

Na tentativa de sanar alguns destes obstáculos localizados numa instituição tão grande, a equipe promove reuniões semanais para discutir mais ativamente os casos, as pendências, as angústias de cada integrante. Do mesmo modo, tem-se solicitado cada vez mais o contato com outras especialidades, responsáveis por nossos pacientes, para se entender melhor o caso, dividir opiniões e procedimentos. Esta articulação possibilitou ganhos consideráveis, como por exemplo, evitou internações desnecessárias, permitiu que o trabalho fosse conhecido (já que é um setor relativamente novo, se comparado a outros da instituição), favoreceu a adoção de condutas terapêuticas comuns, fez com que os profissionais investigassem ou solicitassem mais exames, promoveu altas necessárias e evitou que outras fossem feitas.

É preciso muito diálogo, confiança na equipe, estratégias e criatividade para novas terapêuticas ou acesso aos pacientes. Todas estas atividades demandam tempo e investimento, além do aspecto financeiro, também o psíquico. Por vezes, os pacientes nos convocam a pensar por semanas o que se passou no último atendimento.

A ausência de uma terapêutica específica torna o problema ainda mais complexo, pois os pacientes imersos em uma cultura de ação com uso de medicamentos, cirurgias e intervenções objetivas, resistem a aceitar que frequentar o hospital e falar fundamentalmente sobre sua história de vida possa resultar no desaparecimento dos sintomas (Omalley et al., 1999). Estes mesmos autores, insistem na importância e no diferencial terapêutico de um trabalho mais próximo, com menor intervalo de tempo e de preferência com a mesma equipe. Profissionais estes habituados a lidarem e suportarem a contratransferência e as resistências das pessoas diagnosticadas com transtornos somatoformes. É necessário ainda que os responsáveis pelo tratamento tenham entre si uma boa interlocução e comunicação, o que deveria ocorrer em qualquer equipe multidisciplinar, além de serem oferecidos trabalhos corporais e psicoterapia, de modo a auxiliar no alívio e prevenção dos sintomas.

Neste momento cabe retomar a hipótese acerca do motivo pelo qual, no caso do Ambulatório de Transtornos Somatoformes (SOMA), integrar o trabalho da equipe constituiu-se como um desafio. Em primeiro lugar, porque os estudos já apontam que é mesmo delicado obter bom desempenho com certos grupos, e ao que tudo indica, parece que com o tipo de funcionamento desta população de TS, a problemática se torna ainda maior. A prática do ambulatório sugere que os pacientes que mais mobilizam os profissionais responsáveis por seu tratamento, geralmente, viveram situações primitivas de desamparo, perdas ou rupturas significativas e não sabem vivenciar as relações de maneira diferente da que mobilizam no outro, isto é, com sentimentos de raiva e rejeição. Desta maneira, agem como se houvesse uma tentativa de reviver o que aconteceu no momento primordial da sua constituição como sujeito, mas este tipo de "vontade" não ocorre de maneira que o paciente tenha consciência de tal ato. Identificar o que se passa com o residente diante de cada atendimento é essencial, pois este conhecimento permite inclusive auxiliar no tipo de diagnóstico e na condução terapêutica. Assim, a percepção clara dos sentimentos promovidos no médico pode servir como norteador terapêutico (Aranha et al., 2007).

Na clínica de Transtornos Somatoformes as pessoas que frequentam o serviço pouco sabem acerca de seu adoecimento, de modo semelhante ao que ocorre com o médico e sua equipe. O diagnóstico é de cunho psicológico e, portanto, carregado de aspectos simbólicos e subjetivos. Com isto, observa-se que os próprios profissionais valem-se do mesmo modo de suas fantasias, desejos e expectativas no encontro com o seu paciente e na tentativa de lidar com o que lhe é estranho e desconhecido. Para o desenvolvimento de um trabalho efetivo, embora não seja o caso de realizar um processo analítico com o paciente ou com os responsáveis por seu cuidado, faz-se necessário analisar, refletir, colocar-se no lugar do outro, compreender o sofrimento, de modo a poder tolerar e acolher a dificuldade e a angústia de cada um dos envolvidos na assistência prestada às pessoas com transtornos somatoformes. Ao que tudo indica, o paciente quer ser ouvido, desejando que sua história e seu sofrimento, seja ele físico ou psíquico, possa ser respeitado.

 

O desenvolvimento do trabalho em equipe

No desenvolvimento de um trabalho plural, caracterizado aqui como um trabalho em equipe, são necessárias algumas condições que permitam identificar esta atuação. Segundo relembram os autores Peduzzi (2001), Arouca (2003) e Silva (2003), as condições, no que tange à área da saúde, foram construídas ao longo da história. Até os anos 50, os médicos atuavam quase que exclusivamente de modo individual, principalmente como médicos da família, mas a partir do período pós-segunda guerra e com o aparecimento de muitas doenças, os Estados Unidos – e posteriormente outros países, como o Brasil, a partir dos anos 70 – determinaram que os profissionais implementassem projetos e movimentos para uma medicina preventiva, de tal forma que os programas comunitários atingissem toda a população. Para que isto fosse possível fez-se necessária uma redefinição do papel do médico e a adoção de um novo conceito de saúde e de doença que levasse em conta, tal como preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um equilíbrio de bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade.

A integração entre diversas especialidades: medicina, enfermagem, psicologia, fisioterapia, assistência social, terapia ocupacional, entre outras, tornou-se fundamental para garantir que o homem fosse assistido de maneira mais completa desde o início de algum desequilíbrio, uma vez que os profissionais estariam atentos a qualquer alteração. O estado de saúde pode variar rapidamente em decorrência de algum contato com o meio, contato este que pode ser diversificado, assim o diálogo entre cada setor da saúde mostrou-se importante, pois é ele que auxilia na identificação do problema e no cuidado ao paciente.

O fato de ter havido uma reestruturação no entendimento e na concepção de doença faz com que as patologias não sejam mais entendidas como decorrentes de uma única causa. O desequilíbrio multifatorial, como o próprio termo aponta é biopsicossocial. Deste modo, a compreensão de saúde e doença na medicina preventiva transforma-se em multicausalidade, sendo com isto imprescindível a presença de diversos profissionais da saúde para oferecer atenção integral e reestabelecer o equilíbrio sempre que precisar. De acordo com a literatura, uma equipe multidisciplinar é um grupo composto por pessoas de diferentes áreas que trabalham de modo a alcançar um objetivo comum. Como já citado, trata-se de um trabalho de interação e integração entre médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicanalistas, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais (Peduzzi, 2001; Tonetto & Gomes, 2007).

A pluralidade de especialistas tem como função atender aos pacientes, acompanhantes e familiares, estabelecer estratégias e realizar intervenções de modo a diminuir o sofrimento provocado pelos sintomas, oferecer espaços e atendimentos individuais e/ou em grupo para compartilhar o processo de adoecimento, inclusive entre os profissionais, possibilitando trocar experiências, fazer reuniões clínicas e outras atividades. Para este tipo de trabalho num hospital faz-se necessário que cada integrante saiba as atribuições e a importância que cada um tem dentro da equipe, de modo a contribuir para o bem estar do paciente. Isto permite que as tarefas sejam divididas, que um possa contar com o outro ou encaminhar a determinada especialidade, quando necessário. De modo similar, a decisão quanto às condutas com os pacientes devem ser tomadas em conjunto, pois permite uma visão integral do paciente e uma coesão quanto ao desenvolvimento do tratamento e do prognóstico. O fato das decisões serem tomadas em conjunto, não significa dizer que todos devam ter a mesma opinião, mas é importante que exista um consenso e que seja decidido pela maioria. Ressalta-se ainda que todas as idéias e estratégias devam ser ouvidas. Nesta modalidade de trabalho, cabe compreender e respeitar a diferença, favorecendo uma atitude humanizada que considere a melhor conduta para o paciente (Pinho, 2006).

Segundo Fortuna, Mishima, Matumoto, e Pereira (2005, p. 264), a atuação de uma equipe de saúde é entendida:

[...] como uma rede de relações entre pessoas, rede de relações de poderes, saberes, afetos, interesses e desejos, onde é possível identificar processos grupais. Trabalhar em equipe equivale a se relacionar.

Para a existência de um trabalho conjunto é primordial a confiança e a colaboração entre os colegas, de modo a promover uma comunicação articulada e uma linguagem comum. Sem dúvida, estas são tarefas árduas, mas certamente se bem aproveitadas podem gerar maior conhecimento entre os integrantes, novas ideias para soluções de problemas e de terapêuticas mais favoráveis, bem como a possibilidade de compartilhamento, de maneira a produzir beneficio na qualidade de vida do paciente e da própria equipe como um todo (Tonetto & Gomes, 2007).

A propósito, não se espera que uma única linguagem seja utilizada, mas seria desejável que todos os profissionais envolvidos em cada caso pudessem partilhar este espaço comum para escutar e respeitar o conhecimento uns dos outros. As palavras de Peduzzi (2001) alertam sobre a cautela necessária para que se desenvolva um trabalho em equipe na área de saúde:

Quanto à divisão técnica do trabalho, deve-se assinalar que, por um lado, introduz o fracionamento de um mesmo processo de trabalho originário do qual outros trabalhos parcelares derivam. Por outro lado, introduz os aspectos de complementaridade e de interdependência entre os trabalhos especializados atinentes a uma mesma área de produção. Há que se considerar, simultaneamente, as dimensões técnica e social da divisão do trabalho, uma vez que toda divisão técnica reproduz em seu interior as relações políticas e ideológicas referentes às desiguais inserções sociais dos sujeitos (Peduzzi, 2001, p. 104-105).

As ponderações apresentadas acima no que tange à atuação multidisciplinar podem, em sua grande maioria, serem empregadas nos diversos tipos de clínicas, equipes e pacientes. Na equipe, o trabalho do psicanalista foi aos poucos se mostrando cada vez mais preciso, nos dois sentidos do termo. Progressivamente, puderam estabelecer-se as tarefas e os papéis a serem desempenhados pelo psicanalista, e com isto, a necessidade e os pedidos de colaboração dos residentes e dos psiquiatras, bem como os encaminhamentos tornaram-se cada vez mais frequentes e mais criteriosos. A cada ano, chegam médicos recém-formados ao programa de residência com dificuldade para compreender a sua função diante de uma pessoa com TS. Isto porque alguns pacientes que frequentam o ambulatório puderam ter a medicação suspensa, depois de anos de acompanhamento, embora a assistência ambulatorial ainda se mostre necessária. A medicação pode ser interrompida, justamente porque o vínculo, o afeto e a construção de um novo espaço foram oferecidos e sua história de vida pode ser reconstruída. Para alguns médicos residentes fica difícil compreender qual a sua função, que não a de medicar. Em parte, sentem-se inseguros acerca de seu desempenho ou julgam que seu trabalho restringe-se a preparar e encaminhar o paciente à psicoterapia. Assim sendo, por vezes, também faz parte da tarefa do psicanalista explicitar a que veio e ampliar a percepção do residente, assinalando a complementaridade da atuação dos dois profissionais para o tratamento destes pacientes.

Vale mencionar que, semanalmente, além da reunião de toda equipe, o grupo de psicanalistas reúne-se para discutir os casos atendidos, fazer supervisão ou mesmo comentar alguma situação particular. Este espaço de discussão entre os psicanalistas foi criado muitos anos depois da fundação do serviço, dada a necessidade de compartilhar algumas dificuldades, incômodos e experiências. Os médicos e residentes são sempre convidados a participar destas reuniões.

A partir da união e do contato cada vez mais próximo entre os membros, tendo como objetivo o bem estar do paciente e o fortalecimento da equipe, uma nova experiência e modelo de atendimento foi posto em prática no ambulatório. Para casos mais complexos o atendimento é realizado por uma dupla de psicoterapeutas. Esta iniciativa mostrou-se produtiva, tanto para os profissionais que podem dividir suas emoções, seus conflitos, seus anseios, suas expectativas, como para o sujeito que também não fica desamparado, por exemplo, quando um dos profissionais entra em férias ou tenha que se ausentar por algum motivo excepcional. Além disto, as transferências e a carga de afeto do paciente pode ser distribuída, tornando-se menos penosa para os terapeutas em momentos de crise ou em situações em que haja maior intensidade de afeto dirigida ao terapeuta.

O propósito é favorecer a convicção de que quanto mais as pessoas do serviço se conheçam, melhor será o nível de confiança mútua e fortalecimento, mesmo que o grupo esteja inserido em uma instituição dispersa em um grande espaço. Se surgirem empecilhos, os integrantes tentam solucionar dentro das possibilidades, minimizando o problema decorrente da extensão hospitalar.

 

Considerações finais

Os transtornos psiquiátricos e consequentemente os transtornos somatoformes, configuram-se como um processo etiológico múltiplo que sofre influência de diversos níveis de interação com o meio, de tal modo que não seria possível identificar anteriormente um nível privilegiado para desenvolver um sistema nosológico. Talvez se possa supor que o sofrimento psíquico e a produção de transtornos mentais só fazem sentido se houver um entendimento integrado das dimensões sociais e biológicas. A interação do homem com o meio o coloca a todo momento em conflito, o que pode ser verificado no sujeito a partir de sua incapacidade de lidar com as contingências da vida. O entendimento de que o processo de saúde e de adoecimento de um sujeito se dá a partir de diferentes aspectos, tal como afirmado pela OMS, biopsicossocial, evidencia a necessidade de um trabalho em equipe que possa compreender o todo e não apenas um conjunto de sintomas. Na realidade o que importa aqui não é tanto o tipo de diagnóstico, o instrumento que se prioriza, mas sim o modo como se desenvolve o trabalho, a forma de tratar e assistir aos que sofrem (Vittorio, Minard & Gonon, 2013).

Ao se apresentar os ganhos localizados em um trabalho multidisciplinar de assistência a pessoas diagnosticadas com transtornos somatoformes, reconhece-se que muito há por ser feito. O psicanalista exerce uma função importante neste espaço, ao dialogar com os médicos recém-formados, contribuindo não só com a equipe, mas também com outros funcionários que assistem estes sujeitos na instituição, no sentido de sensibilizar para o reconhecimento do mal estar destas pessoas, assim como para oferecer qualquer assistência, caso seja também necessário para outros setores. O trabalho do psicanalista pode consistir também no relato de situações que, na maioria das vezes, podem não ser observadas pelos colegas, ou quando o são, os profissionais não sabem como agir. Assim, a experiência clínica com os transtornos somatoformes evidencia que pacientes e profissionais lidam sem cessar com os próprios limites e anseios: o da escuta e o do silêncio.

 

Referências

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1 Doutoranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com o apoio da CAPES. Mestre (2014) no mesmo programa tendo sido bolsista do CNPq. Psicóloga e Psicanalista do Ambulatório de Transtornos Somatoformes (SOMA) no Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP). E-mail: juliacatani@usp.br
2 Professora Titular do Departamento de Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: abigail@usp.br
3 Ainda que de modo breve, julgou-se relevante apresentar algumas das definições que são descritas em cada um dos tipos de TS. São eles: somatização: diversas manifestações físicas, recorrentes e dinâmicas. É também encontrado na literatura como histeria ou síndrome de Briquet. Sua sintomatologia pode ser desencadeada em qualquer parte do corpo, mas as mais frequentes são sensações gastrointestinais, sensações cutâneas anormais, erupções ou manchas, assim como, interferências sexuais e menstruais. Somatoforme indiferenciado: classificado como residual para aqueles que apresentam sintomas somatoformes e não satisfazem todos os critérios para qualquer outra classificação. Ou seja, as queixas são múltiplas, persistentes e variáveis no tempo, mas não correspondem a um quadro clínico típico ou completo. Conversivo: presença de sintomas ou déficits relacionados ao funcionamento motor ou sensorial voluntário, motivo pelo qual são chamados de pseudoneurológicos. Doloroso: fatores psicológicos influenciando o início, a gravidade, a exacerbação ou a manutenção da dor. Hipocondria: preocupação excessiva com o corpo e com medo de doenças em vários órgãos. Estas apreensões, mesmo que sem fundamentos, persistem e quase se configuram como delirantes. Dismórfico Corporal: preocupação excessiva com um defeito imaginário ou pequeno na aparência. Somatização sem outra especificação: agrupam quaisquer outros critérios que não satisfaçam algum dos Transtornos Somatoformes já descritos. Exemplos: a) Pseudociese: falsa crença de gravidez, redução do fluxo menstrual ou amenorréia, sensação subjetiva de movimento fetal, aumento de mama, náuseas; b) Sintomas hipocondríacos não psicóticos com duração inferior a seis meses; c) Transtornos que envolvam queixas somáticas inexplicáveis (duração inferior a seis meses), mas que não decorram de outro transtorno mental.

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