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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.18 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

A vivência psicológica da comunicação sobre diagnóstico e tratamento por pacientes oncológicos: uma perspectiva da Psicologia Analítica

 

The psychological experience of communication about diagnosis and treatment by oncology patients: an Analytical Psychology perspective

 

 

Rebecca Holanda Arrais1, I; Sabrina Leite Cardoso dos Santos Jesuino2, II

IInstituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
II
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE

 

 


RESUMO

A pesquisa objetiva analisar a vivência psicológica do processo de comunicação acerca do diagnóstico e tratamento de pacientes oncológicos no Instituto do Câncer do Ceará a partir da perspectiva da Psicologia Analítica. Situações típicas observadas foram destacadas, organizadas como relato e analisadas mediante pesquisa teórica. Constatou-se que privar o paciente da possibilidade de falar sobre sua situação não o protege das consequências emocionais do adoecimento e pode dificultar a integração de informações sobre seu novo momento de vida. Por outro lado, a simples emissão destas pelos profissionais não garante que serão integradas pelo paciente. Experiências anteriores dos sujeitos participam de suas vivências atuais e os complexos constelados mediarão o fluxo de ideias, afetos e ações apresentados como resposta. Concluiu-se que a comunicação pode atuar como facilitador da integração de novos conteúdos, da adaptação e do enfrentamento positivo do adoecimento, porém, a revelação de notícias de forte impacto emocional de forma brusca, sem preparação ou observação da individualidade, pode ser iatrogênica. Mesmo em uma equipe qualificada para conduzir o processo de comunicação, este pode trazer a tona questões que necessitarão de intervenção do Psicólogo.

Palavras-chave: psicologia junguiana; comunicação; câncer; relação médico paciente.


ABSTRACT

The research aims to analyze cancer patient's psychological experience of the communication process about diagnosis and treatment from the perspective of Analytical Psychology. Typical situations observed were highlighted, organized as reports and analyzed by theoretical research. It was found that depriving the patient of the possibility to talk about their situation does not protect them from the emotional consequences of the illness and may hinder the integration of information about their new moment of life. On the other hand, the mere exposure of such information by professionals does not guarantee that they will be integrated by the patient. Previous experiences of the subjects participate in their current situation and activated complexes mediate the flows of ideas, emotions and actions presented in response. It was concluded that communication can act as a facilitator of integration of new content, adaptation and a positive coping with an illness, however, the abrupt revelation of news with strong emotional impact, without preparation or observation of individuality, can be iatrogenic. Even in a team qualified to lead the communication process it can still bring up issues that require intervention of the psychologist.

Keywords: junguian psychology; communication; cancer; physician-patient relationship.


 

 

Introdução e justificativa

O presente trabalho propõe-se a abordar a comunicação em saúde a partir do relato de situações típicas observadas na prática clínica e de sua análise teórica. Objetiva analisar a vivência psicológica do processo de comunicação acerca do diagnóstico e tratamento de pacientes oncológicos no Instituto do Câncer do Ceará a partir da perspectiva da Psicologia Analítica. Busca-se compreender a partir de tal teoria como ocorre o processo de integração pelo paciente de informações e vivências relativas ao adoecimento e tratamento, assim como, analisar teoricamente como os afetos participam do processo de comunicação. A partir disso intenciona-se apontar possíveis impactos provocados por diferentes formas de comunicação no processo de elaboração da condição de adoecimento.

A comunicação em saúde relaciona-se com exercício da autonomia. Reflexões contemporâneas em bioética propõem quatro princípios como fundamentos das decisões éticas, seja em pesquisa seja na prática da assistência à saúde: autonomia, justiça, beneficência e não-maleficência. Sendo assim, a autonomia constitui-se não apenas em direito do paciente, como também em princípio que deveria nortear a própria prestação de cuidados profissionais nas mais diversas áreas da saúde. No dia a dia dos serviços e procedimentos, o que muitas vezes se vê, contudo, é a redução do direito à autonomia ao preenchimento de termos de "consentimento livre e esclarecido" o que corresponderia mais ao cumprimento de um dever jurídico do que ao seguimento de um princípio ético (Muñoz & Fortes, 1998).

Simula-se a existência de uma autonomia e participação do paciente frequentemente impossibilitada pelo profundo desconhecimento deste em relação ao que a equipe de saúde lhe pode oferecer. Sem uma comunicação acerca do diagnóstico e tratamento adequada às necessidades e capacidades de cada paciente não é possível que a autonomia desenvolva-se (Bousso & Poles, 2009), pois é necessário que este seja capaz tanto de compreender as diversas possibilidades de desenvolvimento do tratamento, como de expressar suas vontades e tê-las respeitadas. É por meio da comunicação, dessa troca de informações e perspectivas, que os profissionais poderão trabalhar no sentido de manter a autonomia daquele que busca seus cuidados. Sabe-se, entretanto, que entre as principais consequências psicossociais da internação e permanência em instituição hospitalar estão a despersonalização e perda da autonomia (Angerami-Camon, Trucharte, Knijnik, & Sebastiani, 1995).

Em resposta ao exposto, observa-se internacionalmente o fortalecimento de recomendações pela adoção de comunicação aberta e adequada às necessidades de informação apresentadas por cada paciente (Baile et al., 2000; Bousso & Poles, 2009; Brown, 2012). Atendendo a critérios considerados fundamentais para algumas profissões, desenvolveram-se inclusive protocolos de comunicação (Buckman, 2001), sendo possivelmente o SPIKES (Baile et. al., 2000) o mais difundido.

A difusão desta perspectiva é, contudo, apontada por Cook (2001) e Figueiredo (2009) como mais difícil nos países latinos, com tradições assistencialistas e paternalistas, em relação aos países anglo-saxões, que culturalmente valorizam a liberdade individual. A porcentagem de profissionais que afirma falar com o paciente sobre diagnóstico de doenças graves e prognósticos desfavoráveis tem mostrado importante aumento nas últimas décadas (Baile et. al., 2000), porém a diferença nas práticas majoritárias continua existindo entre países e grupos culturais (Cohen et al., 2005; Searight & Gafford, 2005). Muitas vezes impede-se o contato do paciente com informações consideradas "ruins", "tristes" ou "dolorosas", na busca de poupá-los de dor e sofrimento. Tal variação cultural na forma de lidar com a comunicação de diagnóstico e prognóstico parte tanto da equipe de saúde como de pacientes e familiares.

Faz-se necessário especificar que todos os profissionais contribuem em suas atuações para o desenvolvimento da comunicação com o paciente e preservação da sua autonomia. Cabe, entretanto, ao profissional médico, no caso da Cancerologia, campo tratado aqui, a comunicação inicial de diagnósticos e prognósticos de doenças neoplásicas, bem como quaisquer outras que configurem-se como diagnóstico médico (Conselho Federal de Medicina, 2009). Além de uma formalidade, a realização da comunicação pelo profissional que estabelece o diagnóstico garante a este a condição de poder esclarecer as dúvidas do paciente quanto aos "porquês" de se haver chegado especificamente a esta conclusão. Desta forma, ao abordar a comunicação na saúde tratamos de tema diretamente relacionado ao trabalho médico, mas também presente no fazer de todas as demais profissões da saúde.

Reconhecendo a presença de variações culturais e a necessidade de adaptação das informações disponibilizadas a cada caso, surge a necessidade de conhecer como pacientes vivenciam o processo de comunicação em cada contexto específico. Estudos deste tipo já vem sendo desenvolvidos internacionalmente há algumas décadas (Cassileth, Zupkis, Sutton-Smith & March, 1980), abordando a vivência de pacientes a partir de suas preferências, percepções e reflexões (Brown et. al., 2012; Randall & Wearn, 2005). Nacionalmente a investigação acerca do tema já produziu algumas publicações (Neto et. al., 2013; Toralles-Pereira, Sardenberg, Mendes & Oliveira, 2004), mas ainda é incipiente.

Na prática da primeira autora deste trabalho, como psicóloga, ao longo de dois anos atuando junto a pacientes oncológicos através da Residência Integrada em Saúde (RIS), com ênfase em Cancerologia, foi observada grande quantidade de pacientes desinformados sobre seu estado de saúde. Tal situação vai desde aqueles que não tiveram seu diagnóstico comunicado – muitas vezes a partir de acordos entre profissional de referência e cuidadores – até, em maior número, os que sabem de seu diagnóstico, mas não da gravidade de seu quadro nem de seu prognóstico.

Também foi possível observar certa resistência na equipe à adoção de uma comunicação mais aberta, mesmo quando esta é uma solicitação do paciente. Ressalte-se que, conforme explicitado anteriormente, diretrizes atuais de comunicação em saúde propõem que a forma e quantidade de transmissão de informação ao paciente sejam definidas a partir de interrogação do profissional sobre a preferência daquele que está sob seus cuidados (Buckman, 2001; Baile et. al., 2000). Encontram-se, entretanto, pacientes que repetidamente reafirmam sua opção por informações mais claras e têm esta sua fala negligenciada ou sequer conseguem expressar tal desejo frente a alguns membros da equipe.

Também se observou como padrão que o profissional decida pelo paciente o que deve, ou não, ser comunicado durante as consultas. Adota-se algumas vezes, em relação à comunicação, uma postura radical de "ou se diz, ou não se diz", em detrimento de uma gradação sutil e singularizada de "o que e como vou informar a cada momento".

Como fator complicador nesta comunicação está a diferença de níveis instrucionais e o uso de vocabulários bastante distintos entre si. Somam-se a isso as diferenças de significados e afetos relacionados a determinadas palavras a partir da experiência de vida de cada sujeito. A superação de tal barreira exige que se esteja atento não somente ao que se diz, mas também ao que o outro compreendeu e como isso o impactou emocionalmente.

Ainda com base na prática da primeira autora deste trabalho e na abordagem que a fundamenta, a Psicologia Analítica, observou-se como consequência destas limitações de comunicação uma maior dificuldade para a elaboração psicológica do diagnóstico e das vivências de adoecimento pelos pacientes que não possuem informações adequadas sobre seu estado de saúde. Se a comunicação de um diagnóstico pode passar uma "má notícia" de difícil elaboração, o não acesso do paciente ao que se sabe sobre seu estado de saúde não o retira da vivência direta de transformações em seu corpo e rotina, que também terão que ser elaboradas psiquicamente.

Evitar falar sobre determinado tema não o torna menos real para o paciente, apenas pode contribuir para dificultar o acesso da consciência a ele. Desde os princípios dos estudos sobre o inconsciente sabemos que tentar impedir que se tome consciência de assuntos que carregam forte carga emocional está longe de constituir-se em recomendação terapêutica e pode estar associado ao surgimento de uma série de transtornos psicológicos (Jung, 1917/ 2011b; Freud, 1912/2006). Isto também não significa que toda informação passada ao paciente será prontamente elaborada por este ou mesmo que todos precisem saber de seu diagnóstico. A comunicação satisfatória precisa ser definida considerando as particularidades e o contexto de cada pessoa incluindo-se aí aspectos que nem sempre são conscientes para o próprio paciente.

A compreensão da vivência psicológica do paciente da comunicação sobre diagnóstico e tratamento, considerando aspectos consciente e inconsciente da psique, pode então contribuir para apontar melhoras neste processo e superar barreiras atualmente encontradas em nossa cultura para a efetivação de formas mais adequadas de comunicação que facilitem a elaboração da condição de adoecimento pelo paciente. Ao trabalhar a partir da Psicologia Analítica indicamos como relevante a possibilidade que tal abordagem aporta de considerar também a dimensão inconsciente e, a partir dela, os impactos do que não é falado.

O que foi relatado, contudo, caracteriza-se como impressões clínicas advindas de uma variedade de atendimentos, prestados nas mais diversas situações. Carecem de uniformidade e organização teórica, que ora tenta-se imprimir neste trabalho, de forma que permitam uma identificação mais clara das vivências psicológicas relacionadas à comunicação em saúde.

 

Percurso metodológico

A presente pesquisa propõe-se, com base na Psicologia Analítica, a analisar observações advindas da prática clínica – que teve por fundamento a mesma abordagem – de forma a contribuir para uma maior compreensão do processo de comunicação em saúde enquanto vivência psicológica de pacientes. Indicamos que a pesquisa alinha-se a uma perspectiva qualitativa de produção de conhecimento ocupando-se da compreensão da vivência dos pacientes. Tem-se por expediente metodológico uma abordagem exploratória e explicativa, oferecendo uma visão panorâmica da vivência do processo de comunicação no contexto estudado, bem como buscando identificar os fatores que interferem em seu desenvolvimento (Gonsalves, 2001)

A experiência adquirida durante os dois anos de residência na assistência direta a pacientes do Hospital Haroldo Juaçaba e aos seus familiares foi revisitada e algumas situações típicas, observadas durante os atendimentos e identificadas como centrais para a compreensão do processo de comunicação, foram destacadas e organizadas em forma de relato sem que fossem utilizados quaisquer dados diretos de pacientes ou que fosse feita referência a casos específicos. Registros pessoais de trabalho forneceram dados complementares ao que foi rememorado, sem que fossem utilizados, contudo, registros de prontuário. Não foram, desta forma, realizadas coletas específicas de dados empíricos para a presente pesquisa, desenvolvendo-se esta como relato de experiência e posterior investigação teórica visando possibilitar a análise e explicação das situações expostas.

Objetivando abordar o processo de comunicação a respeito do adoecimento e tratamento em oncologia, sem recorte específico de fases do tratamento ou terapêutica médica, foi levada em conta a vivência profissional de escuta psicológica nos diversos setores nos quais foi desenvolvida a residência, a saber: quimioterapia, radioterapia, unidades de internação, unidade de intercorrência, unidade de terapia intensiva e serviço de cuidados paliativos e terapia da dor. Também foram consideradas as trocas de informações e experiências com colegas nos espaços de supervisão e formação teórico-prática que compunham o percurso dos residentes, de forma a confrontar nossas observações com as de outros profissionais da mesma instituição. Buscou-se, então, elencar as questões relacionadas à comunicação diagnóstica e de tratamento trazidas por pacientes durante atendimentos para, em seguida, identificar que elementos destacaram-se como centrais pela frequência em que ocorreram e pela participação em uma diversidade de casos específicos. As situações em que tais elementos tipicamente participavam foram, desta forma, organizadas em forma de relato.

Tais situações foram analisadas com base na Psicologia Analítica mediante pesquisa teórica. Destacamos os conceitos de "integração" e "complexo" por serem aqueles que mais se relacionam à como o contato com novas vivências e informações é experienciado. Utilizamo-nos de outros conceitos, conforme necessário a cada situação abordada.

Foram tomadas como referências bibliográficas centrais as obras publicadas em português do fundador da Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung, especialmente aquelas que mais detalhadamente trabalham os conceitos já citados – O Eu e o Inconsciente (Jung, 1928/2011d) e o capítulo Interpretação e Integração do Inconsciente (Jung, 1945/2011i) para o conceito de "integração"; O Complexo de Tonalidade Afetiva e seus Efeitos Gerais Sobre a Psique (Jung, 1907/2011a) e Considerações Gerais Sobre a Teoria dos Complexos. (Jung, 1934/ 2011f) para o conceito de "complexo". Também foram considerados trechos que tratam de tais conceitos mesmo estando em obras da coletânea dedicadas primariamente a outros assuntos.

Serão, assim, relatadas e analisadas duas situações consideradas centrais para a compreensão da vivência psicológica de pacientes do processo de comunicação acerca de diagnóstico e tratamento. A primeira relaciona-se à revelação de diagnósticos e prognósticos, enquanto a segunda aprofunda as diferenças de significados que um mesmo elemento pode assumir para sujeitos diversos.

 

A vivência psicológica do processo de comunicação

Conforme citado anteriormente, modelos mais abertos de comunicação apresentam maiores dificuldades de difusão em países de culturas latinas, de tradição mais paternalista (Figueiredo, 2009; Cook, 2001). A assistência a pacientes oncológicos e suas famílias, bem como a interação com a equipe no contexto do Brasil, especialmente no Ceará, revelou costumes que vão ao encontro dessa afirmação. Foi recorrente a observação de acordos entre familiares e equipe para a não revelação do diagnóstico ou de prognósticos mais desfavoráveis ao paciente. Em todos os níveis do continuum de tratamento, que vai da investigação diagnóstica à cura ou morte, encontrou-se pacientes que dificilmente compreendiam as possibilidades de tratamento e raramente tiveram a possibilidade de escolher junto aos profissionais quais as melhores opções de cuidado para a sua vida.

Como motivação alegada para tais condutas frequentemente afirmava-se a necessidade de proteger o paciente dos impactos emocionais de tal notícia ou mesmo alegava-se incapacidade do mesmo para lidar adequadamente com aquilo que lhe seria repassado. Por vezes, inclusive, cultivava-se uma "falsa esperança" no intuito de trazer alívio e tranquilidade.

Cabe ressaltar que, não raro, estes pacientes apresentavam suspeitas sobre seu diagnóstico/prognóstico, percebiam que algo lhes estava sendo omitido, demonstravam interesse em maiores informações quando questionados ou mesmo buscavam ativamente resposta para dúvidas sobre seu estado de saúde.

Adicionalmente, a dificuldade ou mesmo impossibilidade de abordar o assunto com família e médico de referência por vezes constituía-se em significativo complicador do processo de elaboração psíquica das mudanças vividas pelo paciente. Percebeu-se assim que a proteção almejada muitas vezes não foi conseguida ou mesmo foi substituída por uma série de malefícios ao paciente. Saber por vezes deixa de ser o problema e não saber passa a sê-lo.

Para a Psicologia Analítica o complexo do eu corresponde ao conjunto da personalidade consciente de um indivíduo. Ele adquire energia própria e certa estabilidade inicial ao longo da infância – observáveis através da continuidade da memória e do sentimento da subjetividade – e segue construindo-se e reconstruindo-se continuamente ao longo da vida a partir das novas experiências que o indivíduo venha a ter (Jung, 1930/2011e).

O complexo do eu não corresponde, contudo, à totalidade da personalidade, que conta também com uma parcela possivelmente ainda maior que seria o inconsciente, aqui estando incluído tudo aquilo que no momento não está no campo da consciência e que é psíquico. Segundo Jung este é formado por:

a. Conteúdos outrora conscientes, mas agora esquecidos ou reprimidos / b. Elementos e combinações de elementos subliminares ainda não conscientes / c. Padrões instintivos hereditários, os chamados arquétipos, que determinam o comportamento humano. (Jung, 1943/2011g, p. 195).

Este terceiro grupo constitui a dimensão do psiquismo denominada por Jung de inconsciente coletivo.

No nível individual, os processos inconscientes são motivos pessoais não reconhecidos pela consciência, significados de situações cotidianas negligenciadas, afetos e críticas evitados. Sua atividade é constante, irrompendo ocasionalmente entre as resistências impostas pela consciência e expressando-se mais nitidamente quando há estados em que a última está rebaixada, tais como o sono ou quadros psicóticos (Jung, 1928/2011d).

Consciência e inconsciente não estão isolados e

[...] podemos dizer que os processos inconscientes se acham numa relação compensatória em relação à consciência. (...) se complementam mutuamente para formar uma totalidade: o si-mesmo. (Jung, 1928/2011d, p. 67, grifo nosso).

Este corresponde ao mesmo tempo à totalidade da psique e a seu centro regulador e o movimento psicológico em direção à sua realização constitui-se no processo de desenvolvimento psicológico – ou processo de individuação. Jung (1928/2011d) afirma que mantém, desta forma, um padrão compensatório em que aquilo que é sistematicamente negado pela consciência manifesta-se na vida do sujeito a partir do inconsciente. Quanto menos um conteúdo recebe espaço de expressão consciente, mais cresce sua importância na vida inconsciente. Desta forma, esclarece-se que não é necessário que se tome conhecimento de algo para que isto apresente efeitos psicológicos e "Não se liquida uma coisa declarando-a irreal" (Jung, 1948/2011l, p. 37).

No caso do adoecimento o paciente passa a ser confrontado com diversas mudanças em sua vida. O câncer, apesar de iniciar-se como doença silenciosa, em sua progressão acaba por trazer uma série de sintomas visíveis para o paciente e para quem com ele conviva. As mudança corporais, quando não são causadas pela própria doença, podem vir como consequência da quimioterapia, radioterapia ou cirurgia. O próprio tratamento e ambiente hospitalar são comumente bastante diversos da rotina vivida pelo paciente antes do adoecimento. Tudo isto se constitui em elementos mais ou menos estranhos ao eu do paciente e com intensa carga afetiva pelo papel central que passam a desempenhar em sua vida. O paciente terá então que necessariamente lidar com eles em alguma medida. A tentativa, já relatada, de negar sua realidade evitando que se fale sobre o assunto e que o paciente tome conhecimento de informações sobre sua saúde não é efetiva. A gradual integração à consciência das novas vivências e informações relacionadas ao adoecimento e tratamento coloca-se, desta maneira, como desafio.

A integração de conteúdos inconscientes pode ser compreendida como a conscientização dos mesmos (Jung, 1948/2011m; 1955/2011p; e 1955/2011q), porém cabe destacar que não se trata de processo puramente intelectual e que o conhecimento por si só não é suficiente (Jung, 1954/2011o).

Esse conhecimento é pré-requisito indispensável para qualquer integração, isto é, um conteúdo só pode ser integrado quando seu duplo aspecto se tornar consciente e o conteúdo tiver sido apreendido no plano intelectual, mas em correspondência com seu valor afetivo (Jung, 1948/2011l, p. 44, grifo nosso).

Trata-se tanto de um fenômeno do conhecimento como de um processo irracional de experiências vividas (Jung, 1945/2011i). Tal integração corresponde ao processo de individuação:

Processo de desenvolvimento que é peculiar à psique e que consiste na integração dos conteúdos capazes de se tornarem conscientes. Isto significa que o ser humano psíquico se torna um todo e este fato traz consequências notáveis para a consciência do eu (...). Quando as partes inconscientes da personalidade se tornam conscientes, produz-se não só uma assimilação delas à personalidade do eu, anteriormente existente, como sobretudo uma transformação desta última (Jung, 1946/2011k, p. 174).

A grande tarefa de tal processo é o confronto com conteúdos inconscientes que, quando bem sucedida, leva os últimos a uma perda de seu poder destrutivo (Jung, 1954/2011o). Do confronto inicial costuma esboçar-se uma tentativa de integração (Jung, 1958/2011r). Isto, porém, não ocorre sem esforço por parte do paciente e constitui tarefa de grande dificuldade (Jung, 1946/2011j). Se em alguns casos a integração ocorre espontaneamente, na maioria é necessário um esforço especial (Jung, 1945/2011i). Também a reação inicial do paciente ao contato com aquilo que antes era mantido afastado da consciência depende da situação de que se parte e pode, pelo simples falar livremente, significar um grande alívio, mas recorrentemente provoca um aumento inicial da tensão (Jung, 1943/2011h). Ainda no mesmo texto Jung afirma:

Para algumas pessoas o conhecimento mais profundo de si mesmas significa um castigo, para outras, uma benção. Em geral, toda tomada de consciência significa uma tensão dos opostos. E para evitar esta tensão, as pessoas reprimem os conflitos. Mas ao tomar consciência deles, elas entram na tensão correspondente. Esta, por sua vez, fornece o motivo determinante para a solução dos problemas que se apresentam (Jung, 1943/2011h, p. 431).

A comunicação entre profissionais, pacientes e familiares surge, neste contexto, como espaço possível para abordar mais diretamente e, assim, trazer à consciência elementos relativos à nova condição de vida do paciente. Ela pode propiciar um contato inicial que facilite o início de um processo de integração, especialmente se ocorrer a partir de um bom vínculo entre os envolvidos no processo comunicativo.

Observa-se, desta forma, a necessidade de adesão a modelos mais abertos de comunicação como estratégia da equipe de saúde visando a facilitação da elaboração psicológica do adoecimento e tratamento. Isso não significa, contudo, que a revelação de diagnósticos e prognósticos a pacientes seja sem riscos, muito menos que deva ser sempre feita em detalhes ou da mesma forma para todos os pacientes. A formulação de orientações genéricas e normas éticas de validade geral não resolve o problema aqui tratado uma vez que elas precisam também ser consideradas em seu contrário e

[...] inclusive a frase 'conscientizar é bom' só tem validade condicional, pois não é raro encontrarmos situações em que a conscientização teria as mais funestas consequências (Jung, 1949/2011n, p. 207).

O protocolo SPIKES (Baile et. al., 2000), não por acaso, recomenda: a formação de vínculo inicial entre profissional e paciente; a prévia investigação das compreensões e expectativas do último; a adequação da quantidade e complexidade das informações às necessidades e desejos apresentados por aquele que irá recebê-las, com a apresentação gradual e a possibilidade de retomada posterior da troca de informações. Tais medidas visam reduzir a intensidade dos impactos afetivos provocados, diminuindo os possíveis malefícios e buscando facilitar o processo de elaboração psíquica do paciente.

Uma situação diversas vezes observada foi a negação inicial por parte do paciente de um diagnóstico ou prognóstico que lhe tenha sido revelado de forma a causar intenso impacto afetivo e a tentativa de repressão destes conteúdos desagradáveis como forma de proteção de

[...] um consciente que por todos os motivos do mundo não quer ou não pode assimilá-los. Este reage pela repressão que toma diversas formas, a fim de livrar-se desses intrusos indesejáveis. A regra, nesse caso, é que quanto mais o consciente adota uma atitude negativa, isto é, quanto mais ele resiste, desvaloriza as exigências e experimenta angústia, mais a expressão que reveste o conteúdo psíquico dissociado se torna desagradável, agressiva e terrível (Jung, 1945/2011i, p. 367).

Outro risco advindo do contato repentino de um eu fragilizado com conteúdos de forte carga afetiva – especialmente quando o confronto ocorre sem uma atitude crítica, atenta e paciente – é a identificação do primeiro com os elementos anteriormente inconscientes (Jung, 1948/2011l). Esta situação pode ser observada naqueles pacientes que parecem abrir mão dos diversos elementos constituidores de sua história e personalidade – origens, família, trabalho, interesses – em favor de uma personalidade centrada no adoecimento, e assim excluem, ao menos temporariamente, variadas possibilidades de vida e de desenvolvimento psíquico.

Se por um lado os elementos inconscientes mal integrados podem paralisar as pessoas, sua assimilação mais plena dá "um suporte muito bem vindo e útil às convicções e decisões conscientes" (Jung, 1943/2011g, p. 195). A pessoa passa então a ter a sua disposição a energia que antes estava isolada no inconsciente. O confronto com tais elementos, constituidores do inconsciente pessoal, e sua integração leva a uma redução da quantidade de conteúdos que recobrem o inconsciente coletivo. Abre-se o caminho para que os últimos também venham a alimentar positivamente a consciência (Jung, 1928/2011d). No processo de individuação, ou desenvolvimento psicológico, geralmente começa-se por elementos pessoais e prossegue-se através dos símbolos arquetípicos (Jung, 1945/2011i). Na prática observa-se que a possibilidade para o paciente de abordar conscientemente sua situação de saúde atual muitas vezes traz à tona diversas outras questões, que, se corretamente trabalhadas, podem, além de facilitar uma adaptação momentânea, fornecer uma importante oportunidade de desenvolvimento psicológico. Ainda que na maioria das vezes o adoecimento seja o ponto de partida da escuta psicológica no hospital, o trabalho desenvolvido com o paciente pode alcançar, se esta for a demanda de seu psiquismo, resultados muito mais amplos.

Quanto à necessidade de manutenção da esperança do paciente, motivo alegado por profissionais e famílias para omitir informações daquele que estava adoecido e incentivar percepções e expectativas irreais sobre sua condição, o que nossa análise aponta é que, em se tratando de "falsa esperança", esta pode trazer mais riscos que benefícios. Sobre a sensação de insegurança provocada pelo reconhecimento dos próprios limites Jung afirma:

Inseguras são realmente as pessoas que se acham seguras. Nossa vida é insegura e por isso corresponde mais à verdade um certo sentimento de insegurança do que a ilusão e o blefe da segurança. Com o tempo triunfa o melhor adaptado e não o erroneamente autoseguro que está à mercê dos perigos de dentro e de fora (Jung, 1943/2011h, p. 433).

Não se trata de morbidamente manter o foco apenas nas más notícias e piores possibilidades, e sim de possibilitar o alcance de uma percepção sobre o estado atual do paciente – sua condição física e tratamentos disponíveis –, a preparação para o enfrentamento de dificuldades futuras e o investimento de energia em expectativas realizáveis.

Ainda que a omissão de informações aos pacientes possa ser um problema, cabe ressaltar não ter sido este o único empecilho encontrado para uma comunicação satisfatória entre profissionais e os que buscam seus cuidados. Outra situação a ser analisada por sua centralidade no processo de comunicação e seu impacto na qualidade da assistência ao paciente é a diferença de significados atribuídos a uma informação pelos diferentes sujeitos envolvidos em um diálogo – profissionais, familiares e paciente.

Ao abordar o assunto da transmissão de informações sobre diagnóstico, prognóstico e tratamentos pode-se dar a falsa impressão de que o que estaria em jogo seria simplesmente a emissão ou não de determinadas informações na presença dos pacientes. O processo de comunicação é, entretanto, bem mais complexo, tendo ocorrido por diversas vezes que pacientes demonstrassem durante atendimento psicológico compreensões sobre seu estado de saúde, e sobre propostas terapêuticas para seu caso, bastante divergentes do que seus profissionais de referência afirmavam lhes haver transmitido.

Os primeiros modelos de comunicação, na primeira metade do século XX, surgem justamente da constatação da possível divergência entre aquilo que o emissor de determinada mensagem pretende comunicar e o que efetivamente chega ao receptor. Já então são incorporadas as noções de ruído – como aquilo que pode prejudicar a boa compreensão da mensagem – e de código – no qual é enviada mensagem e que precisa ser comum ao emissor e receptor. Desde então passa-se de formulações iniciais mais lineares e exatas a concepções contemporâneas mais dialógicas e que incluem também considerações sobre mediadores do processo comunicativo, aspectos culturais e relações de poder (Araújo & Cardoso, 2007).

No contexto da saúde e, especificamente, neste caso da Oncologia, tal divergência de compreensões pode ter sua explicação a partir de diversos pontos. A diferença de níveis instrucionais entre profissionais e pacientes e o uso de linguagem técnica especializada pelos primeiros é, talvez, um dos elementos envolvidos mais facilmente identificáveis. Aquilo que para o especialista em cancerologia é um termo cotidiano, para o agricultor semi-analfabeto é tão incompreensível como se houvesse sido pronunciado em outro idioma. Observou-se, entretanto, que as diferenças de significados atribuídos a determinados termos ultrapassa a dimensão da compreensão formal de seu significado.

Aqui o conceito de complexo nos auxilia na compreensão da situação analisada. Tal conceito é um dos primeiros a ser desenvolvido por Jung ainda no início de sua carreira quando trabalhava com experimentos de associação de palavras e decidiu investigar as reações anormais antes registradas como falhas (Jung, 1934/2011f). Já então percebeu-se que a reação dos sujeitos ao que era dito não passava apenas pela compreensão formal do significado de cada palavra, como pode ser visto pelo trecho de um texto seu publicado pela primeira vez em 1907:

Na escolha das palavras-estímulo, sempre tentei utilizar o maior numero possível de palavras correntes na linguagem coloquial, de modo a evitar dificuldades de intelecção. Assim seria de esperar que uma pessoa instruída reagisse sem dificuldade ao teste. Contudo, esse não é o caso. Nas palavras mais simples surgem hesitações ou outros distúrbios que podem apenas ser explicados pelo fato de que um complexo foi acionado com a palavra estímulo (Jung, 1907/2011a, p. 55).

Ele desenvolve, então, a noção de uma unidade funcional contendo percepção sensorial, componentes intelectuais (representações, imagens de memória, juízos etc.) e tonalidade afetiva, elementos firmemente unidos que viriam a tona por ocasião da ativação de determinadas imagens na memória. Os complexos trazem, desta forma, a singularidade da vivencia de cada um e extendem-se não só ao pensamento como também à ação, que se vê impelida em determinada direção. Em obra posterior, Jung (1934/2011f, p. 43, grifo nosso) traz o conceito de complexo, já consolidado como:

A imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional (...). Esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está sujeita ao controle das disposições da consciência até um certo limite.

Ainda que desempenhe importante papel na psicopatologia, os complexos não são exclusivos deste campo, fazem parte dos fenômenos normais da vida psíquica e determinam a estrutura da psique inconsciente (Jung, 1934/2011f). Sua existência ultrapassa o experimento de associações e é demonstrável nas demais reações psíquicas, sendo este teste um simulacro da vida diária (Jung, 1907/2011a). Para o tema discutido neste artigo, a vivência de pacientes acerca do processo de comunicação, apresenta especial importância

[...] na medida em que, mais do que qualquer outro experimento de igual simplicidade, determina a situação psíquica do diálogo (...). O que acontece na experiência das associações acontece também em qualquer conversa entre duas pessoas (Jung, 1934/2011f, p. 42).

A experiência prévia de vida dos sujeitos comparece desta maneira com grande peso. Ainda que a compreensão do termo "cirurgia", por exemplo, seja a mesma para dois pacientes a forma como ele os afetará psicologicamente carrega consigo toda a história dos pacientes e do meio em que estes estão envolvidos. Exemplifico: Um paciente que tenha passado por cirurgia anterior sem maiores intercorrências ou sequelas, ou mesmo que tenha acompanhado pessoa conhecida em semelhante situação, apresenta maior facilidade em compreender tal terapêutica como algo mais simples, seguro e não tão doloroso; já aquele que tenha experiências pessoais ou conhecidas através de terceiros de cirurgias mal sucedidas, com sequelas importantes ou complicações, frequentemente apresenta maior apreensão e expectativas mais negativas frente à proposta de semelhante procedimento.

O que ocorre neste casos é a constelação de um complexo. Para a Psicologia Analítica este termo exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e atualização de determinados conteúdos. A expressão "está constelado" indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria vontade (Jung, 1934/2011f, p. 41).

Quando um complexo é constelado são retomadas, a partir de sua tendência assimiladora, as vivencias anteriores do indivíduo que relacionam-se com a situação atual que o ativou. Sua reação então é mediada pelo conjunto destas ideias e afetos e não só por aquilo que ele vive atualmente (Jung, 1921/2011c). Daquilo que é informado pela equipe algumas partes são melhor lembradas do que outras e espaços são preenchidos com expectativas de cada sujeito. A constelação de conteúdos inconscientes afeta a memória e as intenções da vontade, coloca o sujeito temporariamente em um estado de não liberdade ao modificar o fluxo da consciência (Jung, 1934/2011f).

O fato de que se fale com o paciente sobre seu estado de saúde e tratamentos possíveis para sua condição não garante, desta forma, por si só, a capacidade do mesmo de compreender e integrar tais informações, nem que sua autonomia e escolha sejam preservadas. Além da abertura por parte de todos os profissionais da equipe para a comunicação, da individualização deste processo e da atenção às respostas e compreensões do paciente, a assistência especializada de um profissional psicólogo pode vir a ser necessária no momento de elaboração do paciente de sua nova condição. A psicoterapia pode ser de grande ajuda uma vez que

[...] é um método pelo qual podem ser tratadas não só as neuroses e as psicoses funcionais, mas também toda espécie de conflitos mentais e morais das pessoas normais. Consiste principalmente na integração dos conteúdos inconscientes na consciência (Jung, 1943/2011g, p. 194-195).

Na relação psicoterapeuta-paciente é possível uma investigação aprofundada dos impactos do adoecimento e demais vivências daquele que está em tratamento e, principalmente, uma consideração das necessidades apontadas pelo movimento regulatório de sua totalidade psíquica, o si-mesmo. Ressalte-se que por citar psicoterapia não nos referimos necessariamente ao modelo ambulatorial, mas às diversas formas que esta escuta clínica aqui abordada assume no contexto da saúde. Descrever tais possibilidades de intervenção, entretanto, não está entre os objetivos deste artigo.

Complementarmente à perspectiva do paciente, é importante considerar a vivência das famílias e profissionais. No decorrer de atendimentos, constatou-se que a alegação de que o paciente seria incapaz de ouvir sobre seu estado por vezes indicava a incapacidade do familiar ou profissional de falar sobre o assunto. O acometimento por doença grave e principalmente a progressão de tal doença recorrentemente despertavam nos cuidadores sensações de impotência, culpa, tristeza e desespero com as quais os mesmos evitavam entrar em contato. A investigação desta dimensão do processo comunicativo foge, contudo, do objetivo deste texto e necessitaria de pesquisa específica para ser devidamente tratada.

 

Considerações Finais

Consideramos que aquilo que foi exposto ao longo deste texto reafirma a importância da difusão de modelos mais abertos de comunicação no contexto brasileiro e, neste caso, mais especificamente do Ceará. Tendo a afirmação do desejo de proteção ao paciente sido um dos principais empecilhos alegados para isto, parece-nos de especial relevância destacar a não efetividade de tal estratégia em alcançar seus objetivos declarados. Conforme discutido, privar o paciente da possibilidade de falar abertamente sobre sua situação de saúde não o protege das consequências emocionais do adoecimento e pode dificultar a necessária integração de informações sobre seu novo momento de vida.

A emissão de informações pelos profissionais não garante, entretanto, que estas serão adequadamente integradas pelo paciente que as receber. O processo de comunicação precisa ser gradual e continuado, atentando para os significados que cada palavra ou situação tem para os profissionais, pacientes e familiares em cada caso específico. As experiências anteriores dos sujeitos participam de suas vivências atuais e os complexos constelados mediarão o fluxo de ideias, afetos e ações que os sujeitos apresentarão como resposta.

Se a consideração dos fatores aqui apresentados durante a comunicação com o paciente por parte da equipe pode atuar como facilitador da integração de novos conteúdos e, consequentemente, da adaptação e do enfrentamento positivo da situação de adoecimento, observou-se que a comunicação de notícias de forte impacto emocional de forma brusca, sem preparação ou observação da individualidade daquele sujeito, pode ser bastante iatrogênica. Cabe destacar que mesmo em uma equipe muito qualificada para conduzir o processo de comunicação com paciente e famílias, este pode trazer a tona questões que necessitarão de intervenção especializada do Psicólogo. Muitas vezes tais questões podem ser identificadas por outros profissionais e encaminhadas para o Serviço de Psicologia, mas em outras passam despercebidas até o contato com profissional que realize avaliação mais específica, o que em alguns serviços pode não ocorrer. Recomendamos por isso que todos os pacientes possam passar por atendimento de avaliação inicial pelos serviços de Psicologia, pois, ainda que vários não venham a apresentar demanda para acompanhamento psicológico continuado ao longo do tratamento oncológico, poder-se-ia diminuir o número daqueles que se beneficiariam de atendimento psicológico e acabam por não ter essa necessidade identificada pela equipe.

Finalmente identificamos a necessidade de pesquisas futuras que aprofundem a questão do vínculo estabelecido entre pacientes e profissionais e seu impacto no processo comunicativo. A partir da perspectiva adotada no presente estudo, a Psicologia Analítica, apontamos a necessidade de dedicar-se à investigação das formas que o fenômeno da transferência assume no contexto hospitalar e na relação com as diversas profissões da saúde.

 

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1 Psicóloga com Residência em Cancerologia pelo Instituto do Câncer do Ceará e Escola de Saúde Pública do Ceará. Mestranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do Centro Humanístico de Recuperação em Oncologia e Saúde - CHRONOS. Desenvolve trabalhos e estudos nas áreas de Psicologia e Saúde Pública, especialmente nos seguintes campos: Psicologia Analítica, Psicologia da Saúde, Tanatologia e Cancerologia. E-mail: rebecca.arrais@gmail.com
2 Psicóloga Clínica e Hospitalar. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (2008) - UFC. Especialista em Psicologia e práticas de saúde, pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (2011) e mestre em Psicologia pela UFC (2013). E-mail: sabrinalcardoso@gmail.com

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