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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.18 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Intervenções psicológicas em pacientes submetidos à procedimentos invasivos em um serviço de oncologia pediátrica

 

Psychological interventions in patients submited to invasive procedures in a pediatric onchology service

 

 

Renata de Toledo Petrilli1

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

 

 


RESUMO

Em Oncologia Pediátrica, são importantes os estudos que abordam efeitos manifestos ao longo do tempo, especificamente, aqueles que os procedimentos invasivos podem causar. Objetivo: demonstrar os efeitos de uma prática de intervenção psicanalítica com pacientes submetidos à procedimentos invasivos, em situação de urgência subjetiva, em uma instituição de oncologia pediátrica. Metodologia: Relato da experiência de trabalho a partir de seis recortes clínicos de atendimentos hospitalares e articulações teóricas freudianas e lacanianas. Considerações: Ficam evidentes os benefícios dos efeitos do trabalho psicanalítico com pacientes em situação de urgência psíquica. Um dos conceitos de maior importância para o analista na direção de tratamento destes casos é o de fantasia, que permite a subjetivação dos acontecimentos que causam horror, para além do sofrimento já existente no hospital.

Palavras-chave: psicologia hospitalar; psicanálise; urgência subjetiva.


ABSTRACT

In Pediatric Onchology, it is important to develop studies that aim for the mitigation of treatment effects in course of time, especially those that invasive procedures may cause. Objective: Demonstrate the effects of an psychoanalytic intervention practice with patients in subjective urgency during invasive procedures in a Pediatric Onchology Service. Methodology: Clinical extracts of six consultations with patients, and freudian and lacanian articulations. Considerations: It becomes evident the benefits from the psychoanalytical work with patients in subjective urgency. One of the major concepts to the analyst for treatment direction is the fantasy, which enables the subjectivization of the happenings that cause horror beyond the existing suffering in hospital context.

Keywords: hospital psychology; psychoanalysis; subjective urgency.


 

 

Introdução

Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA, 2008), as neoplasias malignas da infância e juventude são doenças raras quando comparadas ao câncer do adulto, correspondendo a cerca de 3% dos tumores malignos e atingindo uma a cada 600 crianças com até 15 anos. Atualmente, nos países desenvolvidos, o câncer é a segunda causa de morte em crianças de 0 a 14 anos e em países em desenvolvimento é a doença mais letal (American Cancer Society, 2013; Michalowski, 2012). Ao mesmo tempo, o índice de cura de pacientes pediátricos com câncer tem aumentado cada vez mais podendo alcançar 80% (INCA, 2008).

O tratamento das neoplasias infantis geralmente é composto por quimioterapia, cirurgia e, dependendo do diagnóstico, radioterapia. Punções venosas e lombares, implantação de diversos tipos de catéteres e tratamentos de suporte também fazem parte da rotina no hospital. Em todos os casos, na tentativa de cura, pressupõe-se um tratamento invasivo que impõe um alto grau de sofrimento físico e psíquico. Além disso, o tratamento é longo e, mesmo priorizando o seguimento ambulatorial, as internações são necessárias.

Existe um grande número de trabalhos na literatura que estudam aspectos da subjetividade do paciente curado e/ ou de seu familiar. Em especial, aparecem trabalhos preocupados em avaliar os efeitos psicológicos tardios em pacientes sobreviventes através do conceito de estresse pós-traumático (Bruce, 2006; Hudson, 2003; Litzelman, Catrine, Gangnon & Witt, 2011; Nightingale, 2011). Quanto às impressões dos pacientes curados sobre esse período, Yalug, Tufan, Doksat & Yalug, K. (2011) exploram em sua pesquisa que as crianças podem experienciar os procedimentos médicos como traumáticos e perceber os cuidadores e profissionais da saúde como os responsáveis por tal invasão.

Em outra perspectiva, Medín (2009) estuda as marcas que o tratamento oncológico pode deixar nos sobreviventes a partir do referencial da psicanálise e retoma o conceito freudiano de trauma, que "se refere ao não elaborado, ao não simbolizado" (Medín, 2009, p. 430), dizendo que algumas marcas do tratamento podem ser traumáticas. Para a autora, as diferentes maneiras de elaborar o que foi o tratamento de câncer relacionam-se diretamente com a forma como os pais puderam, eles mesmos, experienciar esse período e transmitir tal vivência aos filhos, de maneira que o possível efeito traumático no paciente pode ser modulado a partir da função protetora que os pais desempenham durante e após o tratamento.

Partindo desse pressuposto, justificam-se pesquisas na área da saúde, que objetivam desenvolver estratégias de cuidado durante o período de tratamento com o intuito de suavizar os efeitos manifestos ao longo do tempo, especificamente, os efeitos que os procedimentos invasivos podem causar em pacientes e familiares.

Existem na literatura vários estudos que propõem diferentes técnicas e manejos da terapia cognitiva comportamental para o trabalho de preparação de crianças para procedimentos invasivos, tais como a distração, relaxamento, técnicas respiratórias, etc. (Crepaldi & Hackbarth, 2002; Cohen, Bernard, Grecco & Mcclellan, 2002; Le Roy, Elixson, O'brien, Tong, Turpin & Uzark, 2003; Magalhães, 2010; Soares & Bomtempo, 2004). Contudo, a análise dos repertórios comportamentais precisa levar em conta estímulos desconhecidos e familiares que podem contribuir para a resposta comportamental, para além da circunstância em si (Zannon citado por Soares & Bomtempo, 2004).

Durante os procedimentos invasivos, é frequente observarmos uma reação exacerbada da parte do paciente, que evoca a interferência de estímulos que não estão dados objetivamente, mas que determinam os comportamentos. A partir da Psicanálise, podemos definir urgência subjetiva como uma impossibilidade que o sujeito vive de articular sua cadeia simbólica aos acontecimentos estressores; nesse caso, a doença, a dor, a morte, entre outros. Como pontua Rodriguez (1998, p. 135, tradução livre):

A urgência não é do dramatismo da situação se não do sujeito... Um real irrompe. E aí, nunca se está 'preparado' de todo... Em todo caso, pode-se estar em melhores ou piores condições para suportar.

Diversas são as situações dentro de um hospital caracterizadas como urgências subjetivas e, portanto, potencialmente traumáticas, no sentido freudiano, de uma sobrecarga de estímulos no aparelho psíquico. Trata-se de momentos em que o sujeito é inundado pela angústia vinda de seu encontro com o inesperado, onde não há possibilidades de enfrentamento, sucumbindo em desamparo (Moura, 2003). Nestes momentos de urgência, o psicólogo deve trabalhar para que o sujeito volte novamente a falar sobre aquilo que o afeta, retomando sua cadeia associativa e possibilitando a elaboração do acontecido.

A cadeia associativa nos remete à constituição subjetiva e o que Lacan nos apresenta como o conceito de Simbólico. Diferente dos outros animais, o homem não tem um saber instintual e é inserido no mundo através da linguagem. Antes mesmo do seu nascimento, a criança é imersa em uma rede de linguagem que irá determinar a sua existência, através de significantes, conferindo-lhe atribuições e nomeações pelos pais, que lhe darão um lugar subjetivo para ocupar no mundo. Assim, a criança existe no discurso de um Outro Primordial, que lhe oferta significantes da história da família. Essa herança simbólica funda o funcionamento do psiquismo humano regido principalmente pela fantasia (Jorge, 2010). Trata-se de uma teoria recalcada sobre sua própria existência tecida com as experiências infantis e essas nomeações recebidas, e que irá reverberar em experiências posteriores.

A fantasia é uma das respostas possíveis à castração, construída a partir do processo de separação da criança de seus pais e se dá na medida em que ela se vê na árdua tarefa de elaborar uma significação para seu lugar no mundo e se situar em relação ao desejo do Outro. O que o Outro quer de mim é, então, a pergunta que o sujeito mantém para si, após todo esse processo (Quinet, 2004).

O presente estudo articula o conceito de fantasia com o conceito de urgência subjetiva na direção de tratamento, "A fantasia é o quadro que o sujeito pinta para responder ao enigma do desejo do Outro; é sua forma de tapar cenicamente o furo no Outro que lhe retorna como castração". (Quinet, 2004, p. 170).

A fantasia faz a articulação da pulsão e o inconsciente. Para Lacan (1964/1985) a partir da leitura que fez do texto de Freud (1920/1996), Mais além do princípio do prazer, toda pulsão é pulsão de morte. Em casos de urgência, encontramos um mau funcionamento da fantasia como recurso vital havendo, portanto, um aumento da pulsão de morte. Jorge (2006, p. 3) explica que a fantasia é um recurso para lidarmos com o gozo que é o alvo da pulsão de morte. "Esta, por sua vez, fará com que aquilo que era empuxo-ao-gozo, como diz Lacan - pulsão de morte, empuxo na direção da morte -, seja freado e passe a ser uma região na qual a pulsão de morte é sexualizada". Isto faz com que a pulsão tenha outro alvo, esteja direcionada a outro objeto, que não o próprio corpo.

O trabalho psicológico com pacientes submetidos à procedimentos invasivos em um hospital de Oncologia Pediátrica tem uma vertente humanizadora que deve propor ações visando à diversificação e flexibilização de condutas no trabalho multiprofissional, uma vertente clínica que dá maior ênfase aos conteúdos inconscientes que se manifestam no contexto dos procedimentos invasivos, demandando investigação, escuta e atuação na situação de urgência subjetiva.

 

Objetivo

Este artigo tem como objetivo demonstrar os efeitos de uma prática clínica de intervenção psicanalítica com pacientes submetidos à procedimentos invasivos, em situação de urgência subjetiva, em uma instituição de oncologia pediátrica.

 

Metodologia

Relato da experiência de trabalho da equipe de Psicologia e Psicanálise de um hospital de Oncologia Pediátrica, em Atendimento Psicológico para procedimentos invasivos com pacientes em tratamento.

Foram utilizados seis recortes clínicos de atendimentos a familiares e pacientes que tiveram intercorrências em situações de procedimento invasivo, e articulações teóricas que dão sustentação à metodologia de trabalho proposta. Os nomes utilizados são fictícios.

 

Resultados e discussão

O desencadeamento de quadros de angústia que crianças, adolescentes e cuidadores desenvolvem durante o tratamento é frequente e pode ser notado de diferentes formas. São comportamentos fóbicos, de evitação, ao seu extremo, pânico, embotamento afetivo, depressão e sintomas diversos, como inapetência, insônia, dor ou desencadeamento de surtos psicóticos.

Essa diversa sintomatologia encontrada está referenciada à história de vida, às agressões constantes no corpo, mas, sobretudo, à proximidade com a morte e o silêncio, provindo da impossibilidade de se traduzir tamanho impacto em palavras.

Nas vinhetas clínicas a seguir aparecem diferentes possibilidades de trabalho do analista a partir do conceito de fantasia, a fim de auxiliar em uma reconstrução simbólica que proteja a criança das invasões corporais nos momentos de urgência subjetiva.

Pedro, uma criança de dois anos com diagnóstico de meduloblastoma, na ocasião internado, apresentou sintomatologia que resultou no chamado da psicóloga. Estava muito emagrecido e havia indicação de sonda nasogástrica, procedimento ao qual se recusava de forma inflexível, apesar de pouca idade. Quando a psicóloga chegou ao leito, a criança disse: "tô bavo" (sic), e não queria falar, diferente de seu comportamento usual. A mãe não sabia por que a criança estava brava e recusava a sonda, mas a criança respondeu: "Sonda é feio". Questionada sobre esta fala, a mãe seguiu dizendo: "Com sonda parece que ele está doente". Como efeito da sequência do acolhimento, a mãe olha para o filho, e complementa seu pensamento: "É..., mas assim também não está bom". Pedro, imediatamente, sentou-se no leito e mudou sua postura convocando a mãe e a psicóloga para entrarem em uma brincadeira.

As representações maternas associadas à sonda nasogástrica, embora de forma consciente estivessem vinculadas a uma solução para o aspecto nutricional, puderam ser trabalhadas em seu aspecto inconsciente e velado que associava a sonda à morte. Essas representações eram uma condensação de idéias inconscientes da mãe, desconhecida até então, silenciosa a ponto de deixar como única possibilidade a recusa da criança à intervenção médica. O pensamento inconsciente da mãe em relação ao procedimento era reduzido para a criança como morte: a escuta do analista faz com que o "É feio" da dimensão imaginária da mãe fosse elevado ao estatuto de um significante, permitindo a elaboração de uma cadeia associativa vinculada ao procedimento em questão, para ela, a sonda estaria vinculada à aparência de alguém na eminência de morte. No silêncio da mãe, a criança carente de conteúdo simbólico resiste à sonda, procedimento crucial para que pudesse dar seguimento ao tratamento oncológico devido a seu alto grau de desnutrição. O menino pôde se submeter ao procedimento de forma amena revelada por suas brincadeiras durante o período de internação. Dentro do processo de constituição subjetiva, espera-se que uma criança responda às fantasias maternas, uma vez que a alienação ao Outro é a primeira operação que todo sujeito passa para se humanizar. É por essa razão que o analista se interessa pela construção lógica da criança: sonda - feio, e supõe que ela adveio do Outro do sujeito, nesse caso, a mãe. Nesse momento, a criança pode sair da situação de urgência, uma vez que tem acesso à fantasia materna que foi elucidada e flexibilizada. A noção de realidade, principalmente articulada à gravidade da doença e procedimento invasivo, é relativizada e submetida à realidade psíquica, à interpretação do paciente e de seus familiares. É necessário que o adulto faça uma camuflagem simbólica, toda vez que a nuvem da morte se aproximar, como medida profilática de instalação de cena traumática.

Em condições similares, se deu o trabalho com Bruno, de dez anos. Ele recebeu diagnóstico de craniofaringeoma, sendo indicado radioterapia para conclusão do tratamento. Já no momento da avaliação para o procedimento, o menino começou a apresentar crises de choro e desespero precisando de contenção física. A mãe não conseguia acompanhá-lo e, em atendimento psicológico, ela disse sobre o procedimento: "Quando vi aquela máscara cheia de parafusos, eu não aguentei". O menino silenciou e buscou o olhar materno, que reforçava: "Você não viu? Um monte de parafusos?". O menino respondeu: "Não, ela que viu! Eu não vi nada!". E deu risada. Essa risada foi o sinal de que uma mensagem inconsciente foi recebida, um chiste, e operou como uma separação da fantasia inconsciente materna à qual o menino respondia apavorado com a radioterapia.

Paulo Roberto, de doze anos, com diagnóstico de linfoma de Hodking tinha indicação de colocação de um cateter totalmente implantável. Após essa indicação, o menino passou a negar a realização do procedimento e começou a apresentar crises de angústia com sintomas corporais. Em um momento dos atendimentos, ele disse: "Eu vou poder tirar isso depois?". Essa pergunta leva a uma associação com um evento do passado, que sua tia materna lhe contou. Ela, a tia, quando era pequena, fez uma cirurgia na perna e precisou colocar oito pinos. Após o tempo de recuperação, a mãe dela (avó do menino) não a levou para retirar esses pinos conforme indicação médica, acarretando em uma marcha claudicante. Partindo desse relato, a mãe do menino disse: "Ô... meu filho... eu acho que você precisa confiar mais em mim". A cirurgia do cateter remetia às relações mãe e filho marcadas por uma repetição que envolvia três gerações.

O lugar primeiro de puro objeto do sujeito em relação ao Outro é recoberto por uma rede simbólica cuja matéria prima é composta pelas significações da história das gerações passadas, ou seja, das experiências mais marcantes que os ancestrais viveram. Os medos, os acidentes, as mortes, as doenças, inscrevem-se no psiquismo articulados à fantasia e são transmitidos com a repetição inconsciente que o sujeito reproduz e não sabe o motivo. Esse é o conteúdo que particulariza cada história e é utilizado por todo ser humano na atividade do pensamento.

Ana, de dezessete anos, em tratamento de leucemia, estava internada na Unidade de Terapia Intensiva, entre outras intercorrências, por uma tiflite com perfurações no intestino que implicava em jejum absoluto. Ela tinha um gemido ininterrupto, angustiante para ela e para os profissionais da unidade, que não sabiam mais como agir. Ela se recusava a conversar e dizia para psicóloga: "Você vai me dar comida? Se não vai, não pode me ajudar". Todas as tentativas de convocá-la a falar eram sem resultado e ela continuava a gemer, até que uma fez efeito: "Ana, talvez você realmente esteja no pior momento de sua vida, isso vai passar, mas ainda assim, nessa situação, você pode me dizer qual é a pior parte?". Ao invés de repetir as mesmas palavras, ela respondeu: "É ter que ficar mendigando aos médicos até por um gole de água". Esse novo enunciado permitiu a interpretação de uma posição subjetiva que interessou a paciente: "Por que você mendiga algo que coloca sua vida em risco?". Neste momento, a paciente trocou os gemidos, pela fala, que lhe assegurava um lugar na fantasia e evidenciava um caminho a seguir. Ela modificou seu comportamento e evoluiu em seu processo de recuperação. Isso aconteceu, pois houve uma espécie de despertar do sujeito à medida que sua queixa foi ressignificada e desbastada em seu excesso.

Carlos, de oito anos, com diagnóstico de osteossarcoma na perna, foi submetido a quimioterapia e cirurgia de ressecção tumoral sem intercorrências. No pós-operatório na enfermaria, o menino apresentava uma dor exacerbada sem melhora com medicação, além de insônia, crises de angústia em que não falava nada, apresentando movimentos involuntários como se estivesse levando susto o tempo todo. Na alta hospitalar, houve o ápice da angústia: era necessária a troca do curativo, porém ele não podia olhar para sua cicatriz e não permitia que ninguém tocasse em sua perna, passando a gritar intensamente. Aos poucos, entre os gritos, dizia: "Me fura! Vou morrer de dor!", contorcendo-se e revirando os olhos. A mãe, convocada pela analista a falar sobre a reação do filho, passou do estado de um absoluto não saber a uma contextualização do momento de agravamento da situação. "A gente já estava indo embora, foi quando alguém disse que a ambulância tinha chegado que a gritaria começou". A investigação prossegue sobre o significado da palavra "ambulância" e a mãe se lembra de outra cena. No momento do diagnóstico, eles escutaram do médico: "Pode ter que amputar a perna". Recorda-se que nesse dia, a criança foi para casa e brincando fraturou a perna, sendo levada de volta ao hospital de ambulância. Nesse momento, a mãe refere que foi um trajeto de muita angústia, pois o menino sentia muita dor. Por um ano, o paciente ficou com sua perna engessada e o tipo de intervenção cirúrgica (amputação ou colocação de prótese) ficou em suspenso, a ser definido pelo efeito da quimioterapia. Por fim, a cirurgia conservadora foi feita e tudo ocorreu bem. Contudo, a mãe localiza que a gritaria começou quando ela falou para o filho: "A ambulância chegou". Assim, o significante "ambulância" atualizou o pensamento recalcado relacionado a uma fantasia inconsciente na hora da fratura: "Vão amputar a minha perna", o que desencadeou todo o quadro de angústia. Depois de longo tempo de atendimento na urgência, entre um grito e outro, o menino pediu à mãe que lhe massageasse a perna e, mais adiante, com interpretações da analista sobre o conteúdo latente que a mãe assustada se esforçava em elaborar, ele finalizou o atendimento dizendo mais calmo: "Agora já chega, você pode ir embora... quero ver esse desenho...".

As primeiras manifestações corporais do garoto no pós operatório eram sugestivas de um excesso de tensão proveniente do horror da cirurgia, do real da mutilação, do impossível de se dizer.

Visto que o eu, como havíamos explicado, é incapaz de se livrar da sobrecarga através de um escoamento libertador, ele a desloca, isto é, converte-a. Como? A sobrecarga continua excessiva, mas muda de estado: deixa de investir a representação irreconciliável (estado primário) e passa a investir uma parte do corpo (estado secundário), assim produzindo um sintoma somático conversivo (Nasio, 1991, p. 56).

Nessa criança, pode-se perceber duas manifestações psíquicas distintas provenientes da grande quantidade de tensão vivenciada. Inicialmente observou-se um horror à ferida cirúrgica, uma repulsa e recusa a perceber o corpo como carne manipulada; e em seguida um ataque histérico conversivo com manifestações de conteúdo sexualizado.

A conversão constitui uma resposta à repulsa e ao susto. Com efeito, se a repulsa aparece como uma defesa, um recuo do sujeito diante da presentificação da função orgânica do corpo, manifestando o fracasso do sexual diante do orgânico, a conversão por sua vez exprime, ao contrário, a réplica pela qual o sexual se afirma às expensas do orgânico (André, 1998, p. 107).

Pode-se concluir que a sintomatologia conversiva do garoto era uma tentativa de tratamento subjetivo do horror que ele vivia pela ativação dos pensamentos inconscientes que envolviam a perda da perna, entre outros, pelo efeito da palavra "ambulância". A conversão, contudo, já é uma via possível de tratamento psíquico para tais conteúdos, sendo que a ação do psicólogo neste momento foi crucial para uma organização psíquica que o sujeito reconhece e agradece.

Lucas, uma criança de sete anos, fazia tratamento de craniofaringeoma, que envolvia a punção periódica de um cateter em sistema nervoso central para administração de medicamento. A criança gritava e se descontrolava sempre que realizava este procedimento. A tia paterna, que era a cuidadora principal, então contou que a mãe da criança havia morrido durante o parto de causa não esclarecida, de modo que o pai tinha muita dificuldade de se aproximar do filho por atribuir a ele a causa da morte da esposa. Durante um dos atendimentos, a criança fala: "Porque a minha mãe morreu de infecção, eu tenho que morrer também?". Essa frase só pôde ser compreendida através do histórico familiar trazido pela tia e que, diante de tal colocação da criança, decidiu investir na construção da relação do pai com o filho. Isso se deu, pela emoção que sentiu ao perceber a identificação culpabilizada da criança com a mãe morta, uma vez que a referência simbólica dessa criança proveniente do pai e da tia ofertou a ela essa interpretação na transferência que anteriormente se manifestava em angústia, gritos e outras manifestações corporais nos momentos de procedimento. A aproximação afetiva da criança com o pai traz a possibilidade de transformação da nomeação da função paterna a seu respeito; antes filho causa da morte da mulher, passa a ser reconhecido como herança da mulher que um dia amou. "Esse pai, capaz de ter e de dar, esse pai que deu suas provas abre um futuro para a criança. Ele é promissor: poderá dar o falo, transmiti-lo a criança e cessar de privá-la." (Julien, 2003, p. 70). O pai real instaura a diferença entre as gerações e lança o filho em direção ao futuro quando poderá assumir uma posição viril e de desejo.

 

Considerações finais

A partir dos recortes clínicos aqui apresentados e da experiência em um hospital pediátrico ficam evidentes os benefícios do trabalho psicanalítico com pacientes em situação de urgência psíquica desencadeada pela eminência de procedimentos invasivos. Um dos conceitos de maior importância para o analista na direção do tratamento é o da fantasia, que permite a subjetivação dos acontecimentos que causam horror, para além do sofrimento já existente no hospital.

O hospital é um lugar propício para a vivência do desamparo humano, já que o adoecimento e o excesso de invasões no corpo remetem às questões veladas do organismo e colocam o sujeito frente à morte. Diante de tal experiência, percebemos que alguns vivenciam uma espécie de colapso em que se tem a ausência da palavra e a valorização do corpo somente como organismo. Lacan (1955-1956/2002) enfatiza aos analistas quanto à condução do tratamento pela via do significante e o perigo vivido em situações de crise, alertando que "Nem o sol, nem a morte, possam ser olhados de frente". (p. 361). A partir dessa colocação, evidencia-se que a urgência é tratada pela restauração do simbólico, "Nada há de criado que não apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na fala" (Lacan, 1953/1998, p.242).

Nos casos apresentados, encontrou-se um elemento desencadeador específico de cada sujeito durante o procedimento invasivo que o remeteu à própria castração e o deixou desamparado, desestabilizados de uma organização subjetiva que vinha funcionando até então. São reações exacerbadas desencadeadas, grosso modo, pela manipulação do corpo da criança que desarranjam o sintoma e desvelam a fantasia que perde, assim, sua função protetora. O sujeito fica, então, paralisado e sem saída, causando as variadas reações aversivas ao procedimento necessário. Assim, o trabalho do analista, a espreita de qualquer elemento de linguagem próprio ao sujeito, em tais situações de urgência, pode restabelecer a cadeia simbólica do sujeito, restaurando o acesso à palavra e protegendo-o do excesso de angústia.

 

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1 Renata de Toledo Petrilli -Psicóloga e Psicanalista, especialista em Psicanálise e Linguagem pelo Cogeae, Coordenadora do serviço de Psicologia e Psicanálise do Graacc, Vice- Coordenadora do Programa de Residência Multiprofissional em Oncologia Pediátrica da Unifesp, Mestranda pelo departamento de psiquiatria da Unifesp. E-mail: renatapetrilli@graacc.org.br.

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