SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número1A criança e a iminência de morte do progenitor: o desafio dos pais na comunicação das más notíciasInstrumentos de avaliação de resultados em psicoterapia individual com pacientes adultos acometidos por doenças orgânicas: uma revisão sistemática índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.19 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Despersonalização nos hospitais: o estádio do espelho como operador teórico

 

Despersonalization in hospitals: the mirror stage as theoretical operator

 

 

Helena Amstalden Imanishi1,I; Lucieli Lopes da Silva2

IFaculdades Metropolinas Unidas (FMU), São Paulo, SP

 

 


RESUMO

O presente artigo visa uma articulação teórica entre a noção lacaniana sobre o estádio do espelho e o fenômeno de despersonalização em pacientes hospitalizados. Através de um ensaio teórico, pôde-se analisar a dinâmica subjacente à despersonalização em pacientes hospitalizados e a semelhança destes fenômenos ao processo de identificação e formação do eu, tal como preconizado pela teoria lacaniana. Nossas análises indicam que a despersonalização no ambiente hospitalar pode ser compreendida como o estado de alienação e assujeitamento ao Outro, descrito por Lacan no estádio do espelho.

Palavras-chave: estádio do espelho; despersonalização; hospitalização.


ABSTRACT

This article aims a theoretical link between Lacan's concept of mirror stage and the depersonalization phenomenon in hospitalized patients. Through a theoretical assay, it was possible to analyze the underlying dynamics of depersonalization in hospitalized patients and the similarity of these phenomena to the process of identification and constitution of self, as advocated by Lacan's theory. Our analyzes indicate that the depersonalization in the hospital environment can be understood as the condition of alienation and subjection to the Other, described by Lacan in the mirror stage.

Keywords: mirror stage; despersonalization; hospitalization.


 

 

Introdução

A consolidação da Psicologia Hospitalar como um campo teórico e prático da Psicologia é relativamente recente se considerarmos que apenas em 2000 foi reconhecida como especialidade da Psicologia pelo Conselho Federal de Psicologia.

A inserção dos psicólogos em hospitais no Brasil teve início na década de 50, caracterizada por exercícios isolados que, do ponto de vista teóricoprático, assemelhavam-se a reproduções da prática em consultório, desta vez, no âmbito hospitalar. Modelos clínicos, portanto, que não atendiam à complexidade e especificidade do atendimento em hospitais. Trinta anos depois, a Psicologia Hospitalar no Brasil ainda estava em fase inicial, pois, embora já houvesse o reconhecimento da necessidade do psicólogo nos serviços de saúde, do ponto de vista prático e teórico, havia todo trabalho a ser criado: preparação curricular, modelo de assistência, ensino, pesquisa e fiscalização (Romano, 1999).

Simonetti (2014) define Psicologia Hospitalar como o "campo de entendimento e tratamento dos aspectos psicológicos em torno do adoecimento" (p. 15). Dentro deste campo, o psicólogo pode atuar nos níveis psicoprofilático, psicoterapêutico e psicoeducativo.

Grande parte do trabalho do Psicólogo Hospitalar envolve, portanto, amenizar o sofrimento emocional causado pelo adoecimento e processo de hospitalização no paciente e familiares. As ferramentas teóricas, bem como os instrumentos utilizados delas decorrentes, variam tanto quanto as correntes teóricas pertencentes ao campo da Psicologia.

Deriva, do que foi exposto até agora, que a consistência e consolidação da Psicologia Hospitalar estão intrinsecamente relacionadas à fundamentação teórica que busque articular conceitos oriundos da prática clínica a fenômenos típicos do ambiente hospitalar. Propriamente, o que este ensaio teórico tem como objetivo.

A Psicanálise é uma destas importantes correntes. Segundo pesquisa realizada por Alves et al. (2011), cujo objetivo foi conhecer os discursos da psicologia da saúde em 26 periódicos nacionais de psicologia em Qualis A e B, evidenciou-se que, dentre as abordagens teóricas das representações sociais, psicanalítica e psicologia transcultural, a predominante para a interpretação de dados e compreensão do paciente foi a psicanálise.

Recorrente no processo de hospitalização, a despersonalização é um fenômeno comumente mencionado nos artigos da área, refletindo a experiência de perda de identidade, a aniquilação do ser no anonimato, desencadeada, entre outros fatores, pela própria condição de internação, na qual o paciente fica distante de toda rotina e ambiente que o identificam. Diante da fragilidade do adoecimento e hospitalização, mecanismos primários e regressivos emergem. O entendimento da dinâmica subjacente a este estado pode, e deve, encontrar subsídios teóricos para a fundamentação da clínica e orientação da prática dos psicólogos nos hospitais.

O objetivo deste trabalho é relacionar o fenômeno de despersonalização no âmbito hospitalar ao conceito teórico de Lacan, o Estádio do Espelho, promovendo a expansão dos fundamentos da psicanálise lacaniana e contribuindo na atuação do psicanalista nos hospitais.

Buscaremos analisar como a angústia evidenciada no fenômeno de despersonalização decorre da alienação do sujeito frente ao adoecimento e de um retorno à posição inaugural da constituição do eu, característica do bebê. Como afirmam Viola e Vorcaro (2009, p. 877), o estádio do espelho explicaria a "concomitância da angústia nos fenômenos de despersonalização, quando o sujeito vacila ao não reconhecer sua própria imagem especular".

 

O estádio do espelho

a) Lacan

Considerado como o grande representante da psicanálise francesa, Jacques Lacan nasceu em 1901 em Paris em uma família da alta burguesia. Após estudos secundários no Colégio Stanislas, o futuro psicanalista inicia curso de Medicina, especializando-se em Psiquiatria sob a direção de Gaetan de Clérambault. Por volta de 1923, teve seu primeiro contato com as teorias de Freud, mas era um Freud de Anna Freud, da egopsychology (a psicanálise do eu, das resistências e dos mecanismos de defesa). Assim, embora sua tese de 1932 – Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade– já fosse um texto psicanalítico, ainda era um trabalho no interior do campo psiquiátrico (Roudinesco, 2008).

O primeiro trabalho propriamente psicanalítico de Lacan (1936/1988) refere-se à formulação sobre o estádio do espelho, inserido no texto O estádio do espelho como formador da função do eu: tal como nos é revela na experiência analítica, conceito sobre o qual a presente pesquisa se serve e, que será tratado em tópico subsequente.

Em 1949, o autor retoma a temática propondo a diferenciação entre o je (sujeito do inconsciente e grafado como eu) do eu/ego e moi (lugar de ilusão e fonte de erro), objetivando reforçar a oposição à concepção da ego-psychology e dos annafreudianos. Diversas vezes, Lacan fez comentários a respeito da importância desse estádio na elaboração de seu sistema de pensamento (Roudinesco, 2008).

Como presente em todos seus conceitos, ao tratar do processo de constituição do sujeito no estádio do espelho, Lacan fará articular os três registros simbólico, imaginário e real. Muito embora, nesta fase inicial – período entre 1936 e 1950, o qual coincide com a elaboração do texto sobre o estádio do espelho – Lacan produz o que se costuma chamar de sua "teoria do imaginário" (Sales, 2003), período dedicado às questões sobre a constituição do sujeito, os processos de identificação, o papel da imagem na assunção de um "eu".

Por esta razão, o conceito do estádio do espelho mostra-se tão profícuo para a reflexão teórica sobre o fenômeno de despersonalização, em função de sua relação com a perda da identidade.

b) O estádio do espelho

As hipóteses lacanianas sobre o surgimento do eu são trabalhadas a partir da oposição entre o eu e o eu imagem. Lacan (1975/2009, p. 219) diferencia: "O que é dizer Eu? Será a mesma coisa que o ego, conceito analítico? É preciso partir daí".

Em sua tese de doutorado, Imanishi (2014) analisa as metáforas ópticas que Lacan se utiliza para elucidação do estádio do espelho e observa como os principais conceitos introduzidos com as metáforas ópticas chegam em "dose dupla" e a partir de uma relação de oposição: narcisismo primário e narcisismo secundário (imagem real e imagem virtual), ideal do eu e eu ideal (espelho plano/simbólico e imagem virtual/imaginário). A autora entende que esta forma de trabalhar mostra-se coerente com a influência de Saussure, cuja Linguística irá estruturar a teoria psicanalítica lacaniana na fase seguinte de sua obra. O valor de cada elemento da metáfora apenas pode ser compreendido a partir da oposição estabelecida entre os elementos.

Acompanhando as principais teses de Lacan (1936/1988) em O estádio do espelho como formador da função do eu, destaca-se inicialmente sua correspondência com a formação da primeira unidade do eu, esta que permitiria distinguir o interno do externo.

Lacan (1936/1988) parte dos trabalhos de Henri Wallon sobre a experiência do espelho como um rito de passagem que teria início entre os 06 e 08 meses de vida e declinaria mais ou menos aos 18 meses. Essa experiência de júbilo da criança, este "espetáculo cativante" do bebê quando vê a imagem refletida no espelho, é considerada por Wallon como um ato de inteligência.

Fages (1975) discrimina três momentos deste estádio: primeiro a criança vê sua imagem no espelho como sendo o outro real. Depois ela passa a ver a imagem não mais como um outro, mas apenas uma imagem e, no terceiro momento, reconhece a imagem com sendo a dela, dando-se a conquista de sua identidade.

Lacan (1975/2009, p. 156) explica que o estádio do espelho deve ser compreendido como o ato psíquico por meio do qual o eu se precipita em uma forma primordial:

A Urbild, que é uma unidade comparável ao eu, constitui-se num momento determinado da história do sujeito, a partir do qual o eu começa a assumir suas funções (...) A função do eu, escreve Freud, deve ter eine neue psychicheGestalt. No desenvolvimento do psiquismo, aparece algo de novo cuja função é dar forma ao narcisismo. Não será marcar a origem imaginária da função do eu?

Marca-se, portanto, neste estádio, a primeira identificação do bebê em torno do primeiro objeto, notadamente, a imagem do próprio corpo. Esta imagem seria a origem do eu ideal, futuramente projetada nas identificações posteriores. A assunção desta primeira unidade marcaria a passagem de um corpo despedaçado para a imagem unificada do corpo (Lacan, 1936/1988).

No entendimento lacaniano, essa imagem do corpo, ou seja, a constituição do eu na criança, depende, não apenas de um desenvolvimento maturacional, mas exige a implicação do outro, situado, tanto no nível imaginário, como no simbólico.

No nível imaginário, situa-se o outro "semelhante", aquele com o qual a criança se identifica. Para Lacan (1975/2009, p. 109) – e talvez neste ponto não se trate de metáfora –, o sujeito só se reconhece como corpo desde que este outro semelhante, fundamental para reconhecer nosso desejo, também tenha um corpo: "É sobre isso que insisto na minha teoria do estádio do espelho – a só vista da forma total do corpo humano dá ao sujeito um domínio imaginário do seu corpo, prematuro em relação ao seu domínio real".

Quando a criança vê sua imagem no espelho a partir de uma determinada idade, significa na realidade que ela se vê no outro, fazendo parte dele, em um processo dialético e ainda confuso sobre a distinção eu-outro. Mucida (2009, p. 46) ressalta que "o estádio do espelho não se refere, todavia, ao encontro com o espelho real, mas à relação da criança com o outro, como duplo e homólogo de si mesmo".

Baseado nos trabalhos de Charlotte Buhler sobre o transitivismo infantil, Lacan (1950/1988; 1975/2009) faz observar que crianças muito pequenas frequentemente não distinguem muito bem as próprias experiências dos outros. Por exemplo, se uma criança cai e fica chateada, a outra pode chorar; ou uma criança pode acusar de ter apanhado de um colega – e não se tratar de mentira – quando na verdade ela quem lhe aplicou o golpe. O aspecto fundamental desse fenômeno é referir uma captação da criança pela imagem do outro. É a confusão que resulta, para Lacan, de um jogo especular.

No nível simbólico, situa-se o Grande Outro (A). Imanishi (2014) refere que nas metáforas ópticas, o espelho plano situa-se no simbólico, representante da linguagem, tanto no que concerne à sua face concreta – a voz e as palavras – como representante da lei, da relação simbólica, ligada ao sistema da linguagem, cuja função transcenderia o sujeito.

Cada um se constitui como sujeito a partir de um assujeitamento ao Outro, encarnado na mãe ou cuidador, de quem recebe informações como: sentimentos, nomeações e toque. Mucida (2009, p. 45) explica:

Desde as primeiras experiências o bebê depara-se com o encontro/desencontro com aquele que ocupa um lugar de cuidador. Isto implica que antes de falar, nomear algo do desejo e poder articular qualquer desconforto ou conforto em relação às intervenções do Outro, cada um é falado, nomeado, tocado, amado ou não, e só depois poderá articular algo sobre isto.

Trata-se, portanto, da função materna, instituindo uma posição simbólica no bebê, inserindo-o no mundo dos humanos. Para Lacan (1936/1988), sem este Outro da linguagem, sem os significantes do Outro, sem este assujeitamento inicial, o sujeito não pode sequer sustentar a posição narcísica.

O fim do estádio do espelho marcaria a consolidação desta primeira identificação, projetada nas relações interpessoais complexas ulteriores.

 

Adoecimento e hospitais

Ao falar de adoecimento, o que vem à mente em primeira instância é a idéia de um corpo doente. Mas a relação do sujeito com este corpo tem como pano de fundo, entre outros fatores, o difícil confronto com a falta de controle, intensificado pela contemporaneidade. Como apontam Gomes e Próchon (2015, p. 784):

O controle excessivo – excessivo porque nega veementemente a dor e o sofrimento advindo do corpo doente que representa a impotência do ser humano diante da morte – acelera a busca da perfeição, da saúde, da beleza, incontroladamente.

O homem contemporâneo é instigado a uma busca excessiva de prolongar a vida e evitar o adoecimento, pois essa busca pelo ideal de corpo, beleza, saúde, significa a busca por uma satisfação e realização plena, além de negar a morte como parte do processo da vida. Quando o individuo nega a realidade do adoecer de seu corpo, está negando a si mesmo, afinal, não há separação entre doença e doente, ambos estão interligados, juntamente com sua subjetividade.

Gomes e Próchno (2015, p.785) sugerem:

Doente adquire significação de infelicidade e é isso que me parece mais sério, porque a busca incessante da felicidade via corpo-saúde produz um opacificamento da gravidade das patologias psíquicas e orgânicas que dizem respeito ao corpo (bulimia, anorexia, tentativas de autoextermínio, depressões graves e outros subprodutos clínico-psicopatológicos) e um distanciamento do sujeito de si mesmo.

Conforme Romano (1999), há duas classes de pessoas com problemas de saúde: os excluídos e os incluídos. Dentre os excluídos, encontram-se aqueles que não buscam um médico, desconhecem seus sintomas por falta de informação, negam sua situação real e aqueles que se adaptam ao sofrimento e a dor, adiando assim sua ida ao médico. Em contrapartida, o grupo dos incluídos compreende os sujeitos que vão ao médico, mas não sabem lidar com a dor, os hipocondríacos, os que usam a doença para manipular as pessoas, como também aqueles que esperam um ganho secundário, no que diz respeito ao aspecto financeiro como, por exemplo, a aposentadoria.

Maldonado e Canella (2003) referem dificuldades no processo de hospitalização do paciente, seja por parte dos profissionais (equipe de enfermagem, médicos e funcionários em geral) e da instituição, como por parte do paciente. Entre os profissionais no contexto hospitalar, as dificuldades se dão, em muitos casos, por baixos salários e equipe reduzida, resultando em estresse, sobrecarga, e maus atendimentos como consequência.

Outro fator problemático evidenciado por Maldonado e Canella (2003) é o autoritarismo de instituições, nas quais se produzem equipes de profissionais que atuam de forma ríspida com os pacientes, por vezes não atendendo o paciente, caso ele não se submeta ao que foi solicitado. Além disso, há o problema da equipe multidisciplinar não ser integrada, não se comunicarem, deixando um trabalho incompleto. Sendo assim, o que resulta é um clima de trabalho desarmonioso, dificultando a comunicação entre profissional-paciente, e paciente-instituição, tornando-se um atendimento fragmentado:

No atendimento fragmentado, fica difícil ver a pessoa como um todo, o que impossibilita o cuidado adequado com o principal motivo que leva o cliente aos ambulatórios: os fatores emocionais e sociais, componentes primários ou secundários de toda e qualquer doença (Maldonado & Canella, 2003, p. 217).

O paciente se vê como "um número", uma "estatística", pois o foco é a doença, esquecendo-se das influencias subjetivas, sociais, econômicas e culturais no processo do adoecimento. Como apontam Maldonado e Canella (2003, p. 217), "ainda se desvaloriza a profunda interligação entre o social, o somático e o psíquico".

Romano (1999, p. 43-44) também defende a importância da integração biopsicossocial do paciente no processo de hospitalização e adoecimento:

O biológico, no processo do adoecer, está em desequilíbrio. O psíquico é resultado, por sua vez, de outros vetores como estrutura de personalidade, interpretação e vivência de acontecimento (isto é, do imaginário e do real). O social compreende a família de onde se vem e para onde se retorna, a sociedade em seu sentido mais amplo (a comunidade, a escola e o grupo de trabalho), e deve englobar também a equipe de profissionais que se relaciona com o doente".

Simonetti (2014) esclarece algumas formas a partir das quais a subjetividade pode influenciar no processo de adoecimento. Como: a) Causa: próprio campo da psicossomática; b) Desencadeante: quando uma vivência psicológica vem precipitar o início do adoecimento; c) Agravante: quando o aspecto psicológico piora o quadro clínico já instalado; d) Manutenção: envolvendo os ganhos secundários advindos do processo de adoecimento e atuando como fator de manutenção da doença; e e) Consequência: as perdas advindas como decorrência da enfermidade.

Se os fatores "psis" atuam e influenciam no processo do adoecimento e hospitalização, cabe compreendermos do ponto de vista teórico estes aspectos psíquicos. É o que pretende a presente pesquisa.

 

Despersonalização

De acordo com o Novo dicionário da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986), despersonalização é um ato ou efeito de despersonalizar-se, ou seja, tirar ou reduzir as propriedades que formam a personalidade. No contexto hospitalar, esse fenômeno pode ocorrer em pacientes quando passam por processo de adoecimento e hospitalização.

Segundo Gomes e Próchno (2015, p. 787), o paciente tem a fantasia de que o hospital é detentor do saber e da cura e, como forma de manter sua onipotência narcísica, idealiza a instituição e se apropria dela, tendo reações de passividade e agressividade.

O corpo, portanto, coloca-se como exemplificador mais coerente de tal situação, porque o hospital, como instituição, está imerso nas questões pulsionais – de vida e de morte, de fragmentação e de reconstrução – fornecendo um espaço, um campo propício ao desnudamento do desamparo humano.

Ismael (2010) salienta que a hospitalização é um processo que pode favorecer o paciente a ficar destituído de si, uma vez que sua subjetividade é despercebida, resultando no fenômeno de despersonalização. A autora cita como contribuintes deste processo:

- Quebra da rotina e produtividade na vida do paciente, além do ambiente não familiar e desconhecido que ocasiona estranhamento, não havendo referência pessoal.

- Institucionalização do sujeito, gerando desconforto e angústia, pois o mesmo é obrigado se submeter às regras, normas e horários impostos.

- Perda da autonomia: seu corpo fica suscetível e vulnerável ao outro devido aos procedimentos invasivos que sofre.

- Tratamento não humanizado devido a equipes de saúde olharem para o paciente não como um sujeito em sua completude, mas como portador da doença "X", uma visão técnica da doença somente.

A este respeito, Gomes e Próchno (2015, p. 787) salientam: "Pode-se articular, por conseguinte, que o adoecer tratado aqui diz respeito a essa sujeição da subjetividade ao monumento, à imersão da individualidade em processos de institucionalização que implicam a destituição do sujeito como senhor de si".

Maldonado e Canella (2003) apresentam outro fator contribuinte com a despersonalização: a formação dos médicos. Estes profissionais aprenderiam a lidar com os pacientes como se estes fossem conjuntos de órgãos ou sistemas, focando na doença orgânica e não no significado do adoecer. O resultado seria um atendimento incompleto.

Perez (2010, p. 56) relata que a equipe de saúde também pode perder sua identidade, sendo colocados como representantes da instituição, entrando no anonimato assim como os pacientes. Desta forma, a relação médicopaciente se torna difícil quando este vínculo reflete problemas institucionais como condições precárias de atendimento, alta demanda para poucos funcionários, escassez de recursos. "A despersonalização gera uma gama enorme de sentimentos que vão permear a relação paciente-profissional, como: desconfiança, agressividade, sentimentos de rejeição, de desprezo".

Perez (2010, p. 56) prossegue, afirmando que estes fatores favorecem o não comprometimento dos profissionais com o sujeito hospitalizado. "(...) ambiente hostil e profissionais que, sob pressão, não têm disponibilidade interna para acolher e dar continência às angústias do paciente".

 

Articulação entre despersonalização e estágio do espelho

Na instituição hospitalar, espaço onde o desamparo humano pode aparecer das mais diversas maneiras, emergem reações diversas. O sujeito é lançado no estado inicial de desamparo, estado que pode se repetir em qualquer momento da vida. (Pinheiro, 2008, p. 27)

O estádio do espelho deve ser pensado, não apenas como um momento do desenvolvimento, mas como um modelo da relação que o sujeito estabelece com sua imagem, das relações entre o eu e o outro.

Embora a noção de despersonalização não seja expressão característica da teoria lacaniana, Lacan (1961/1988) chega a mencioná-la no texto Observação sobre o relatório de Deniel Lagache como um fenômeno típico de determinado momento da análise, e vale-se do esquema óptico para ilustrá-lo. O psicanalista sugere que a experiência de despersonalização corresponderia a uma inversão da posição do sujeito em relação à sua própria imagem. Neste processo, a "ilusão" de um eu integrado estaria fadada a enfraquecer, gerando o sentimento de angústia característico da despersonalização.

Podemos inferir, portanto, que o adoecimento e o processo de hospitalização forçam uma mudança de posição do sujeito em relação à sua própria imagem e que, no confronto com este novo corpo-doente, o paciente perde a imagem integrada que, até então, garantia uma sensação de mesmidade.

Destacamos em tópico anterior que o estádio do espelho vem como um conceito para tratar da passagem da imagem de um corpo despedaçado para um corpo unificado. Entendemos que o sujeito adulto hospitalizado, diante da crise do adoecimento e das condições da hospitalização, teria esta imagem integrada "abalada", retornando à posição regressiva de um corpo fragmentado, com decorrente angústia de aniquilamento, impotente frente à finitude da vida. Pinheiro (2008, p. 23) destaca: "(...) angústias primitivas são evocadas e mecanismos defensivos primários intensificados (sono, choro, negativismo, desinteresse), ou, então, podem ocorrer diferentes alterações da adaptação psicológica global (sequelas psicopatológicas)".

A relação com o próprio eu e com o próprio corpo, muitas vezes mutilado, disfórmico, envelhecido, coloca o sujeito em confronto com um "espelho quebrado" (Mucida, 2009), com uma imagem estranha e inquietante, diferentemente da criança, quando a identificação com sua própria imagem gera uma experiência de júbilo.

Tal como Mucida (2009) analisa no caso do paciente idoso, também o adoecimento pode ser pensado como um encontro muito difícil do eu com sua própria imagem.

A alienação fundamental sob a qual o eu se constitui, referida no estádio do espelho, também nos serve para uma compreensão teórica das reações emocionais do paciente hospitalizado.

No processo de internação do sujeito, como mencionamos, ele está submetido constantemente ao desejo e às ordens da equipe médica, às normas e regras da instituição. Gomes e Próchno (2015, p. 785) referem que, neste processo, o eu é "deixado de lado", conferindo uma posição de assujeitamento em relação Outro, tal como o assujeitamento inicial do bebê. Mas desta vez, situa-se no lugar deste Outro a equipe, o médico, a instituição, detentores do "poder", lugar de saber e de comando: o corpo-doente "denega sua própria história, seu corpo, sua subjetividade, sua especificidade".

De outro lado, as mudanças que acontecem no sujeito dentro do ambiente hospitalar provocam rupturas em sua constituição de sujeito e, desta perda de referencial, o sujeito se defende. A identificação imaginária da criança pequena com o outro como duplo de si mesma, esta "confusão imaginária" entre eu-outro, reflete-se na angústia emergente no paciente hospitalizado que, como exemplificado por Moretto (2013), escuta sobre o falecimento do paciente no leito vizinho, e passa à convicção de que também ele morrerá. Esta identificação e confusão de tratamento, diagnóstico e prognóstico próprio com o do outro podem ser analisados como reflexos de uma relação especular, marcada essencialmente pelo eixo imaginário.

O não saber quem se é causa transtorno muito intenso para o sujeito e também para a equipe de saúde, que tem contato direto com o paciente e percebe suas reações emocionais e físicas oscilantes, de agressividade e passividade, muitas vezes como forma de se opor e defender do assujeitamento, ameaça de desintegração do eu, e perda de sua identidade. Pinheiros (2008, p. 25) resume:

Por serem inesperadas, as situações relacionadas ao adoecer podem destruir o sujeito do seu "ancoradouro significante", de como ele se vê, de quem ele se denomina. Muitas vezes, nestas situações não saber exatamente quem ele é, os acontecimentos se tornam traumáticos e diante dessa incerteza, da falta de ancoradouro significante, o sujeito se vê imerso na angústia.

 

Considerações finais

O que traz a sensação de que somos unos, idênticos a nós mesmos, ainda que esta imagem de nosso eu não passe de ficção? Lacan reportará ao registro imaginário e ao processo de constituição do eu, articulados em seu conceito, o estádio do espelho. Moretto (2013) diz que carregamos uma teoria sobre nós mesmos, mas que, em certos momentos de nossa vida – uma desilusão amorosa, uma demissão, uma hospitalização – esta teoria não dá mais conta de manter estável a relação eu-imagem.

Entender o fenômeno de despersonalização em pacientes hospitalizados pela via psicanalítica lacaniana, coloca em ação um psicanalista que vê o paciente como sujeito total, com sua subjetividade, história de vida, seus traumas e temores, propiciando a forma particular de o paciente procurar a solução em si para o sofrimento.

A institucionalização causa angústia no paciente devido à perda de seu referencial, quebra de rotina e não produtividade. Por isso, entender os sintomas, o que pode ter originado, e como proceder de forma a contribuir no processo de adoecimento e hospitalização é de extrema importância. Estudar o estádio do espelho de Lacan e articulá-lo à despersonalização em pacientes hospitalizados, traz uma perspectiva de entendimento e esclarecimento aos psicanalistas que trabalham em hospitais, expandindo formas de manejos e recursos a situações futuras.

Visto a psicologia hospitalar ser um campo relativamente novo, cheio de desafios devido às mudanças serem constantes, vê-se a necessidade de novos estudos, pesquisas sobre a atuação do psicanalista no hospital, fundamentações teóricas, capacitações, quebrando paradigmas e promovendo a expansão da área.

 

Referências

Alves, R. F., Ernesto, M. V., Silva, R. P., Souza, F. M., Lima, A. G. B., & Eulálio, M. C. (2011, janeiro). Psicologia da saúde: abrangência e diversidade teórica. Mudanças – Psicologia da Saúde. Instituto Metodista de Ensino Superior On Line, 19 (1-2). Recuperado em 13 de novembro, 2015, de https://www.metodista.br/revistas/revistasims/index.php/MUD/article/viewFile/2479/2914.         [ Links ]

Fages, J. B. (1975). Para compreender Lacan. Rio de Janeiro: Editora Rio.         [ Links ]

Ferreira, A. B. H. F. (1986). Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S. A.         [ Links ]

Gomes, D. R. G., & Próchno, C. C. S. C. (2015, setembro). O corpo-doente, o hospital e a psicanálise: desdobramentos contemporâneos? Revista Saúde e Sociedade, On Line, 26(3). Recuperado em 18 de novembro, 2015, de http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v24n3/0104-1290-sausoc-24-03-00780.pdf.         [ Links ]

Imanishi, H. A. (2014). Desvendando Lacan: duas metáforas e uma teoria psicanalítica da metáfora. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Ismael, S. M. C. (2010). A inserção do psicólogo no contexto hospitalar. In S. M. C. Ismael (Org.), A prática psicológica e sua interface com as doenças (pp. 17-36). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Lacan, J. (1988). O estádio do espelho como formador da função do eu: tal como nos é revelada na experiência analítica. In: J. Lacan, Escritos (pp. 96- 103). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1936)        [ Links ]

Lacan, J. (1988). Formulações sobre a causalidade psíquica. In _______. Escritos (pp. 152-195). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1950)        [ Links ]

Lacan, J. (1988). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: "Psicanálise e estrutura da personalidade". In _______. Escritos (pp. 653-691). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1961)        [ Links ]

Lacan, J. (2009). Seminário 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1975)        [ Links ]

Maldinado, M. M. T., & Canella, P. B. (2003). Recursos de relacionamento para profissionais de saúde: A boa comunicação com clientes e seus familiares em consultórios, ambulatórios e hospitais. São Paulo: Editora Novo Conceito.         [ Links ]

Moretto, M. L. T. (2013). O que pode um analista no hospital? São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Mucida, A. (2009). Identificação e envelhecimento: do espelho que não se quebra e outros espelhos. Revista Kairós/PUC, São Paulo, 12(5), 44-53.         [ Links ]

Perez, G. H. (2010). O psicólogo na unidade de emergência. In S. M. C. Ismael (Org.), A prática psicológica e sua interface com as doenças (pp. 53-66). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Pinheiro, R. P. C. (2008). O sujeito e a Hospitalização. Monografia. Faculdade de Ciências da Educação e Saúde do Centro Universitário de Brasília, Brasília.         [ Links ]

Romano, B. W. (1999). Princípios para prática da psicologia clínica em hospitais. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Roudinesco, E. (2008). Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Sales, L. S. O. (2003) O valor epistemológico do diálogo de Jacques Lacan com o estruturalismo. Psychê, São Paulo, 7(11), 39-58.         [ Links ]

Simonetti, A. (2014). Manual de psicologia hospitalar. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Viola, D. T. D. & Vorcaro, Â. M. R. (2009, setembro). A formulação do objeto a a partir da teorização lacaniana acerca da angústia. Revista Mal Estar e Subjetividade, On Line, 9(3). Recuperado em 17 de novembro, 2015, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151861482009000300006.         [ Links ]

 

 

1 Psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, nas áreas de Psicologia do Desenvolvimento (Adolescência) e Psicanálise, Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HCFMUSP, Docente de Psicologia e Supervisora Clínica das Faculdades Metropolinas Unidas (FMU) – São Paulo – SP. E-mail: helenaimanishi@gmail.com.
2 Psicóloga pelas Faculdades Metropolinas Unidas – FMU – São Paulo – SP. E-mail: lucieli_ja@hotmail.com

 

Creative Commons License