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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.20 no.1 Rio de Janeiro June 2017

 

ARTIGOS

 

Pânico e desamparo em pacientes com cardioversor desfibrilador implantável

 

Panic and abandonment in patients with implantable cardioverter defibrillator

 

 

Patrick Vieira Ronick1; Elisa Maria Parahyba Campos2

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

A cardiologia moderna apresenta soluções tecnológicas para os problemas encontrados em sua prática que podem, por sua vez, gerar consequências de outra ordem, vividas pelo sujeito adoecido como algo possivelmente traumático. Fazendo uso de três vinhetas clínicas de pacientes com o implante cirúrgico de Cardioversor Desfibrilador Implantável que apresentam vivências de pânico e desamparo, propõe-se um diálogo entre os saberes da medicina e da psicossomática psicanalítica, teorizando com isto a importância de um espaço de escuta psicológica aos pacientes concomitante ao tratamento médico em si. No presente artigo, pretende-se demonstrar, a partir das vinhetas apresentadas, que o pânico descrito por estes pacientes pode ser decorrência de dificuldades na capacidade de simbolizar o que o dispositivo e os choques vivenciados representam. Concluímos que neste ponto a psicanálise traz à cena hospitalar novas possibilidades de compreensão e assistência.

Palavras-chave: psicologia hospitalar; desorganização psicossomática; pânico; cardiologia.


ABSTRACT

Modern cardiology presents technological solutions for problems encountered in it's practice which may have consequences on their own, experienced by the patients as something possibly traumatic. Making use of three clinical illustrations of patients with surgical patch of Implantable Cardioverter Defibrillator and experiences of panic and abandonment, is proposed a dialogue between the knowledges of medicine and psychoanalytic psychosomatic, theorizing with it the importance of a listening space for patient's psychological issues, concomitant to medical treatment itself. In this article, we intend to demonstrate, from the clinical illustrations presented, that the panic described by these patients may be due to difficulties in the ability to symbolize what the device and experienced shocks represent. We conclude that at this point psychoanalysis brings to hospital scene possibilities for understanding and assistance.

Keywords: hospital psychology; psychosomatic disorganization; panic; cardiology.


 

 

Para o leigo, o coração é um órgão carregado de poesia e simbologia sobre a vida (e a morte), acredita-se que ali está a sede das emoções.

Para o médico, o coração é um órgão de tecido muscular oco, do tamanho aproximado de um punho fechado de um adulto; do qual seus movimentos pulsantes de sístoles e diástoles fazem o sangue circular pelo labirinto de veias e vasos. O ininterrupto contrair e dilatar mecanicamente cumpre sua função de alimentar o organismo com o vital oxigênio. A ausculta cardíaca é importante para a identificação dos focos, bulhas, ritmo e frequência. Dessa forma, o médico será capaz, se necessário, de pedir os exames adequados para confirmar ou descartar uma provável doença.

Um ponto de contato, de outro registro de "escuta", identificado pelo psicanalista, diz respeito aos aspectos psicossomáticos envolvidos no adoecimento e funcionamento normal do "órgão sede da vida". Não há quem não sinta o coração acelerar, apertar, sofrer diante de certas reações emocionais; entretanto, os caminhos e modos através dos quais as emoções repercutem na função cardíaca e no tratamento de pacientes com disfunções no funcionamento do órgão permanecem discutíveis. O conceito que logo surge ao se debruçar sobre esta interface é a angústia, não podendo ser separado do conceito freudiano de pulsão, situado no limite entre o psíquico e o somático (Monteiro, 2007).

Freud (1915b/1969c) explica que:

Uma pulsão (Trieb) nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo (p. 142).

As interfaces entre estes conceitos, bem como possíveis relações com a sintomatologia da clínica cardiológica e a psicossomática psicanalítica serão a base para a discussão no presente trabalho. A título de ilustração, serão expostas três vinhetas clínicas de pacientes acompanhados em psicoterapia durante suas internações em um hospital público de cardiologia, eminentemente cirúrgico, com diferentes diagnósticos médicos, condições clínicas e tendo como semelhança serem portadores de CDI – Cardioversor Desfibrilador Implantável. A fim de respeitar a privacidade dos pacientes, os dados de identificação são fictícios.

Este artigo pretende convidar o leitor a uma reflexão e um diálogo entre os saberes da medicina e da psicossomática psicanalítica, da Escola de Psicossomática de Paris, teorizando com isto a importância de um espaço de escuta psicológica aos pacientes concomitante ao tratamento médico em si.

O CDI é um aparelho implantado cirurgicamente (junto à cavidade e músculo cardíaco) que emite descargas elétricas no reconhecimento automático de alguma arritmia possivelmente fatal, com risco de morte súbita ou parada cardíaca. É considerado como um dos maiores avanços tecnológicos desta área da medicina (Souza & David, 2010), mas com importantes consequências e desafios para os pacientes.

 

Tempestades

E. é um paciente de 35 anos, portador de CDI, atendido por solicitação da equipe médica. Reinternado depois de um período de 3 anos do implante do aparelho sem nenhuma hospitalização ou intercorrência, após uma "tempestade elétrica". O nome de "tempestade elétrica" é dado a um evento que se caracteriza por disparos consecutivos do dispositivo, sendo estes apropriados ou inapropriados (por mal funcionamento do CDI); trata-se de um evento grave que tem como consequência a necessidade de internação hospitalar em Unidade de Terapia Intensiva (Galvão Filho, 2011).

E. relatou sua história de adoecimento de maneira bastante descritiva e objetiva. Dirigia seu carro por uma avenida movimentada da cidade, quando começou a sentir-se mal, teve uma arritmia maligna que o levou a um choque cardiogênico e uma parada cardíaca. Sobre suas próprias vivências mais subjetivas, dores e angústias, E. parecia não ter muito o que relatar, como se ele próprio não estivesse lá. Mas sabia dos helicópteros, dos bombeiros e paramédicos, inclusive o nome e patente daquele que fizera suas manobras de ressuscitação. Sabia que sua condição clínica fora uma incógnita que atiçou a curiosidade de todos os médicos da equipe e que fora encarado como um caso especial. Sabia sobre a quilometragem do congestionamento de carros que se formou na avenida em que estavam, com impactos em rodovias importantes. Sabia que todos os envolvidos, da equipe médica aos paramédicos, seus familiares e ele próprio, foram entrevistados por um programa sensacionalista de televisão, cujo título da reportagem enaltecia o "homem que havia voltado à vida". E. falou de todo o entorno de seu adoecimento, sobre como virou notícia, falou do que aconteceu através dos olhos dos outros, mas parecia não "saber falar" do que ele próprio viveu ao longo de tudo isso.

Diagnosticado com uma arritmia cardíaca atípica, E. fora implantado com o CDI e passara a viver aparentemente adaptado com o aparelho inserido em seu peito que teria a mágica promessa de lhe devolver a vida, caso algo lhe acontecesse. Chegou a vivenciar dois disparos elétricos do aparelho, ambos sendo constatados pelos médicos como "inapropriados", ou seja, algo nos eletrodos ou na comunicação elétrica entre aparelho e bateria não funcionou corretamente. Portanto, em seu entendimento, E. estava bem, apenas o aparelho que, segundo seu relato, "não estava funcionando direito" (sic).

Mas houveram complicações. E. estava trabalhando quando lhe veio outro choque. Caiu ao chão, ainda consciente. Outros sete choques após este primeiro ocorreram consecutivamente. Estava caracterizada a "Tempestade elétrica", evento que é encarado como um dos mais dramáticos quadros clínicos da cardiologia moderna. Após esta experiência, E. começou a sentir-se muito inseguro. Durante o tempo de hospitalização demonstrou-se abatido, pouco comunicativo, diferente de como fora conhecido pela equipe e por seus familiares. Naquele momento, E. ainda permanecia com sua angústia em um terreno passível de mentalizações: com um misto de espanto e curiosidade, refletia acerca do significado dos choques, os quais antes foram "inapropriados" e agora foram "apropriados", ou seja, "era para eu ter morrido de fato, mas não morri!" (sic).

Ao retornar para casa, E. começou a demonstrar os primeiros sinais de desestruturação psíquica, não conseguia voltar a trabalhar, somente o fato de entrar no comércio da família – local dos últimos choques – fazia com que ele se sentisse mal organicamente. Tinha terrores noturnos e demonstrava-se deprimido durante os dias, mas prosseguia com seu dia-a-dia tentando esquecer-se do ocorrido, buscando descobrir um meio de tocar sua vida após os choques. Meses após esta experiência de disparo do aparelho, E. caiu vítima de outro choque.

Recebi uma solicitação para atendimento psicológico da equipe de enfermagem e encontrei E. prostrado em sua cama. Suas primeiras palavras foram para me dizer que não estava bem. Contou que tivera uma nova experiência de choque apropriado, ou seja, outra arritmia grave a qual fora controlada com o disparo elétrico do aparelho implantado. E. referia temores terríveis de novos choques, falava que não sentia vontade de voltar para casa, que estava mais seguro sendo monitorado no hospital. Ao longo dos dias E. vivenciou verdadeiras experiências de pânico durante a internação, em alguns momentos não conseguia ficar sozinho, pedia que alguma enfermeira ou o psicólogo o acompanhasse. Fomos, então, convidados a assistir (em ambos os sentidos: testemunhar e assessorar) seu medo, seus gritos, seus tremores, suas sudoreses, suas lágrimas. Em seu discurso, havia apenas o concreto da situação, a certeza de um novo choque iminente.

A doença e o implante do CDI que antes lhe davam a impressão de ser "imortal", fora totalmente destituída deste algo "especial" após as vivências reais dos choques. Aquilo que anteriormente lhe concedia certa peculiaridade, que lhe dava "superpoderes", agora lhe destruía. E. passou alguns dias neste estado de pânico, referiu que mesmo antes dos choques vinha apresentando alguns sintomas atípicos e não relacionados ao seu quadro cardíaco de base, tais como labirintite, insônia, dores pelo corpo, enxaquecas e uma astenia muito relacionada a um possível quadro depressivo, segundo a equipe médica.

E. passou as semanas seguintes oscilando entre três estados: pânico total (sensação de morte, sufocamento, angústia extrema, sintomas orgânicos e psíquicos o acometiam da mesma maneira repentina e violenta que uma "tempestade elétrica", sua própria "tempestade psicossomática"); regressão e necessidade de cuidados muito primitivos (tranquilizava-se, por exemplo, quando sentia-se cuidado pela equipe hospitalar); e enquanto não encontrava-se no desamparo ou no "colo" de seus cuidadores, permanecia angustiado e inseguro quanto ao seu prognóstico e retomada de sua vida.

Revisitando o conceito de pulsão na teoria freudiana, temos que a pulsão se caracteriza por uma força constante que exige trabalho, em busca de satisfação. O circuito de circulação pulsional no indivíduo é um modelo que transita do corpo para a psique e da psique de volta ao corpo (Menezes, 2006). Entretanto, para Freud (1915a/1969b), a pulsão só se presentifica no psiquismo através de seus representantes, sendo estes ideias ou afetos. Como conceito base para a metapsicologia freudiana e compreensão posterior de uma primeira teoria da angústia tem-se que "se a pulsão não se prendeu a uma ideia ou não se manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ela" (Freud, 1915a/1969b, p. 203).

Volich (2010) destaca que a pulsão seria a verdadeira força motriz do comportamento humano. O modelo metapsicológico freudiano traz novas compreensões sobre as origens do fenômeno psíquico e somático – normal ou patológico, em uma perspectiva que os situa desde as suas fontes corporais até a sua descrição tópica (localização), dinâmica (circulação dentro do aparelho psíquico) e econômica (os investimentos libidinais – pulsionais – em instâncias, representações e objetos), constituindo o que o autor chama de enredo pulsional:

A dimensão econômica, energética, possui uma importância particular para o entendimento da formação do sintoma, do adoecer e da normalidade. Em última instância, diante do paciente, é fundamental poder compreender os destinos de seus afetos, da energia libidinal. Estão eles investidos de forma narcísica (no próprio sujeito) ou orientados para outros sujeitos, objetos, para o mundo? A excitação consegue encontrar vias simbólicas ou mentais de manifestação, ou apenas descargas automáticas por meio de comportamentos ou reações corporais? ... essas questões são essenciais para a compreensão do funcionamento psicossomático." (Volich, 2010, p. 96)

Em "Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada 'neurose de angústia'" (Freud, 1894/1969a), texto paradigmático para as bases de uma teoria psicossomática advinda da tese freudiana, Freud explica a Neurose de Angústia como um quantum de excitação (pulsional) de conteúdos não passíveis de elaboração psíquica, o qual acaba por "emergir" ou "extrapolar" em sintomas orgânicos descritos de maneira muito semelhante com o que hoje é entendido como Síndrome do Pânico.

Retomaremos a compreensão da etiologia da Neurose de Angústia posteriormente, para neste momento nos atermos à sintomatologia do quadro. Freud (1894/1969a)observa os ataques de angústia acompanhados de uma série de sintomas eminentemente orgânicos, a citar: irritabilidade geral, expectativa ansiosa, ansiedade desconhecida de conteúdo vago (medo da morte, ameaça de loucura) ou ligada a um mal estar somático/sensorial; distúrbios da atividade cardíaca; distúrbios respiratórios, tais como dispnéia nervosa, sensação de sufocamento, asma e similares; acessos de suor, vertigem, fraquezas, parestesias ou mal-estar; distúrbios de ordem gastrointestinal, como náuseas e alternância entre diarréias e constipação.

A título de comparação, o V Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Associação Americana de Psiquiatria, 2014) descreve a Síndrome do Pânico como caracterizada pela presença de, pelo menos, quatro dos seguintes sintomas:

Palpitações, coração acelerado, taquicardia; sudorese; tremores ou abalos; sensações de falta de ar ou sufocamento; sensações de asfixia; dor ou desconforto torácico; náusea ou desconforto abdominal; sensação de tontura, instabilidade, vertigem ou desmaio; calafrios ou ondas de calor; parestesias; desrealização ou despersonalização; medo de perder o controle ou "enlouquecer"; medo de morrer. (p. 208)

A Neurose de Angústia fora incluída na nosografia inicial freudiana como uma Neurose Atual, a qual tem sua etiologia distinta das psiconeuroses (relação com os conflitos sexuais infantis, com caráter simbólico). Freud (1894/1969a) postula que estamos diante de manifestações sintomáticas orgânicas reativas à estase libidinal; ou seja, perante um acúmulo de excitações "atuais" (do presente) impossibilitadas de satisfação, a descarga se daria de maneira essencialmente somática.

Faz-se necessária certa cautela ao se utilizar simplista e diretamente o postulado clínico e o entendimento da Neurose de Angústia elaborados por Freud em 1894 para compreensão do pânico na atualidade, uma vez que estamos diante de outras configurações subjetivas daquelas dos sujeitos exemplificados por Freud, como a abstinência sexual e o coito interrompido. Entretanto, aqui reside na obra freudiana uma base para a exploração e desenvolvimento posterior por autores da Escola Francesa de Psicossomática, como Pierre Marty, de uma teoria dos fenômenos psicossomáticos. Ainda que a nosografia de Neurose Atual tenha sofrido uma perda de importância em sua obra, a temporalidade ("atual") do sintoma psicossomático entrevista por Freud como algo não constituído no retorno do recalcado (como nos casos de psiconeurose, da sexualidade infantil recalcada) continua sendo seu principal legado para o campo de compreensão da Escola Francesa de Psicossomática.

Para além da nosografia atual psiquiátrica, o termo "pânico" utilizado ao longo deste texto não é empregado como diagnóstico, mas sim como um fenômeno. Como um construto histórico-cultural recente, a "síndrome, transtorno ou episódio de pânico" parte da visão de um diagnóstico no campo médico, como uma enfermidade então tida como biológica, ainda que na delicada fronteira entre a Psicanálise, a Psicologia e as Ciências Sociais (Santos, 2009).

O uso do CDI, cujo primeiro implante humano bem-sucedido foi realizado em 1980, nos coloca diante de um novo fenômeno clínico ainda pouco estudado, mas constatado em linhas gerais pela literatura médica e prática clínica como extremamente desorganizador para os pacientes. A tensão em receber um choque repentino ou o medo do dispositivo não funcionar corretamente são os principais fatores descritos como geradores de ansiedade. Diversos estudos apontam que sintomas de ansiedade ocorrem em 32% a 97% dos pacientes portadores de CDI, sendo que 13% a 35% são, de fato, clinicamente diagnosticados psiquiatricamente com ataque/transtorno de pânico, transtorno de estresse pós-traumático ou transtorno de ajustamento (Gorayeb, Almeida, Camillo & Nakao, 2013; Luyster, Hughes, Waechter & Josephson, 2006).

Diante de que fenômeno estamos? Pacientes com a promessa de uma melhor qualidade de vida após implante acabam desenvolvendo comorbidades importantes, muitas vezes apenas medicadas (pelos próprios cardiologistas) com psicotrópicos e com pouco ou nenhum seguimento psicoterápico ou possibilidade de falar sobre o que lhes ocorre. Independente do diagnóstico, encarado como ansiedade, pânico ou estresse pós-traumático; de que sofrem estes pacientes e como a psicanálise pode ajudar a entender estas consequências?

 

Vidas interrompidas

M., paciente com 37 anos, trabalha como administrador e ocupa grande parte de seu tempo com atividades de esportes e atletismo. É atendido pelo psicólogo hospitalar na enfermaria do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo por solicitação da equipe médica e do próprio paciente. O paciente queixa-se de sentir muito medo depois do diagnóstico e adoecimento cardíaco, a equipe médica questiona-se diante do quadro clínico de ansiedade, taquicardias, tremores e mal-estar generalizado não compatível com a doença do paciente.

M. demonstrou-se bastante disponível para o contato, relatou, com entusiasmo, sua vida anterior ao adoecimento:

Eu tenho uma vida ótima. Moro confortavelmente em uma casa que eu mesmo construí, recentemente comecei um relacionamento com alguém que me é muito especial, moro em uma cidade litorânea, trabalho na cidade vizinha com algo que não me é estressante ou desmotivador e sim desafiador, mas minha vida realmente é outra: sou triatleta amador, mas levo o hobbie muito a sério, treino todos os dias, controlo minha alimentação, viajo bastante a lazer e a trabalho, aos finais de semana vou à praia surfar, jogar futebol ou fazer outro esporte com os amigos, durante a semana os treinos e trabalho que me tomam muito tempo mas vou a jantares e cinemas esporádicos com a namorada, minha familia mora em outro estado mas sempre nos falamos ou visitamos. Eu tinha uma vida ótima! Eu não sei no que você pode me ajudar, mas toda ajuda é bem-vinda! (sic)

M. descobrira em sua cidade natal ter desenvolvido uma arritmia grave, chegando a desmaiar algumas vezes durante seus treinos, realizou o implante de CDI em sua própria cidade. Mas após algumas semanas, inquieto, optou por investigar sua doença mais a fundo e fazer um procedimento de ablação com equipe mais especializada. M. chegou ao hospital calado, assustado, sendo estranhado pela família e namorada. Após o procedimento realizado para evitar novas arritmias, M. foi conseguindo aos poucos retomar contato com seus familiares e equipe, entretanto foi informado que o procedimento não obteve o resultado desejado. M. entrou, então, numa condição de profundo desespero, saiu do embotamento anterior para um estado de desesperança e estranhamento total de si mesmo, de sua vida e do seu CDI.

Após alguns atendimentos psicológicos, M. conseguiu elaborar para si uma dúvida: "é possível viver daqui em diante?" (sic). Relatou que nunca, até então, havia pensado com propriedade sobre o implante do aparelho, e que naquele momento a simples ideia do choque o deixava apavorado, assim como a ideia de abandonar suas atividades físicas, de restringir sua vida. Revoltava-se por não poder participar de um "Iron Man" ("Homem de Ferro", maratona anual de triathlon) para o qual havia se preparando há meses.

Um dia, M. contou sobre sua irmã, cantora com uma carreira em ascensão, descrita por ele como sendo uma pessoa "apaixonante e apaixonada" (sic), trouxe detalhes sobre suas apresentações musicais, sobre seu talento, das vezes em que ele atravessara horas viajando para assisti-la. Sua irmã fora diagnosticada com um câncer de laringe, tendo sua carreira interrompida por vários anos, para tratamento, adaptação da prótese utilizada e só então poder retomar aos poucos a paixão pelo canto, ainda que bastante prejudicada. Apesar de entristecido, se identificando com esta irmã, brutalmente retirada de sua vida (cantar). M. começou, a partir deste ponto, a brincar ao redor deste assunto: "Eu não queria tanto ser um Iron Man? Aqui ó! (apontando no peito, no local do implante do aparelho)" (sic). Utilizou-se de sua religiosidade espírita para buscar explicações próprias sobre o que ele chamou de "maldição da sua família", e também fazia piadas sobre o assunto: "Precisamos cuidar bem do braço do meu irmão violinista, acho que vou ligar avisando ele disso" (sic). Após estes atendimentos, M. tomou a iniciativa de perguntar para sua médica: "Ok, eu não posso mais ter a dedicação total que tinha aos esportes, mas me ajude a procurar o meu limite, o que eu posso fazer?" (sic).

Mesmo que em um período breve (três semanas) e relatado resumidamente aqui, pode-se perceber um movimento saudável em direção à construção simbólica, mentalizada e representada, vivido psiquicamente pelo paciente. Harmonicamente, pode-se perceber etapas no sentido desta elaboração psíquica:

1. Embotamento, distanciamento afetivo e emocional. Poucas palavras sobre o sofrimento. Vivências de pânico, descargas somáticas. Queixas de tensões e dores musculares, enxaquecas e inapetência. Mal-estar generalizado, visto pela equipe médica como incongruente com situação clínica vivida.

2. Aproximação do conteúdo conflituoso: queixas sobre o implante, arrependimento, revolta e raiva. Melhora dos sintomas orgânicos, em contrapartida às vivências psíquicas e emocionais mais evidentes: ataques de raiva, momentos de tristeza e desesperança.

3. Identificação com a irmã, elaboração à nível da fantasia ("a maldição familiar"), possibilidade de utilizar-se de recursos de enfrentamento psíquicos (humor e espiritualidade). Em um nível de maior complexidade representativa, paciente ainda se depara com o conteúdo aflitivo, angustia-se, mas organizando-se mentalmente, não tão somaticamente como nos episódios de pânico.

Ao problematizar a função do aparelho psíquico, para além das formações neuróticas, Pierre Marty (1990) retoma que o organismo humano se confronta a todo momento com um afluxo de excitações (internas ou externas) e a necessidade/possibilidade de descarregá-las pelas possíveis vias: orgânica (somática), a ação e o pensamento; representando um grau hierárquico de evolução e complexidade de resposta (Volich, 2010).

A saída mais complexa e adaptada, pela via do pensamento, envolve o processo definido como mentalização, explicado por Volich (2010) como um "conjunto de operações de representação e simbolização por meio das quais o aparelho psíquico busca regular as energias instintivas e pulsionais, libidinais e agressivas" (p. 203). Entretanto, falhas no desenvolvimento psíquico ou experiências perturbadoras (traumáticas) podem comprometer o funcionamento mais evoluído, temporária ou cronicamente, e tais descargas restam a ocorrer então pela via da ação (abre-se aqui uma ampla possibilidade de debates acerca da adicção, compulsão, violência e impulsividade, a hiperatividade, os usos "autocalmantes" do exercício físico) ou por reações orgânicas, incluídas aqui desordens funcionais de órgãos, desorganizações psicossomáticas progressivas com adoecimentos recorrentes e potencialmente graves (Marty, 1998), ou até mesmo o que se compreende pelas reações fisiológicas da ansiedade/pânico.

O pré-consciente ocupa lugar de destaque na regulamentação psicossomática, como apontado por Ferraz (2005):

Uma boa mentalização protege o corpo das descargas de excitação, à medida que esta encontra abrigo nas representações existentes no pré-consciente. Um grau pobre de mentalização, ao contrário, deixa o corpo biológico desprotegido, entregue a uma linguagem primitiva basicamente somática. As representações psíquicas, bases da vida mental, são responsáveis pela existência das fantasias e dos sonhos, longas vias associativas que permitem o escoamento das excitações, dando-lhes um substrato propriamente psíquico. Nos processos de somatização pode-se falar, então, em insuficiência ou indisponibilidade das representações pré-conscientes. (p. 13)

Uma cirurgia, o implante e a experiência de choque do CDI ou outra experiência de adoecimento pode representar um excesso abrupto de excitações, provocando momentos de desorganização no aparelho psíquico, uma sobrecarga do que pode ser mentalizado naquele momento. A não existência ou impossibilidade momentânea de se trabalhar com representações, com componentes simbólicos, afetivos e metafóricos acerca do que se está vivendo acaba por comprometer a função de proteção dos recursos representativos, deixando o sujeito à mercê de descargas pelo comportamento ou quadros de somatização. Isto equivale a dizer que não apenas os pacientes com uma predisposição estrutural à má-mentalização adoecem por esta dinâmica, mas que existem certas experiências - da ordem do indizível, inominável, do traumático "excessivo" (aspas pela redundância) - que podem desestruturar indivíduos tidos como neuróticos, bem adaptados e com muitos recursos psíquicos.

A discussão psicanalítica atual acerca do pânico (Menezes, 2006; Pereira, 2008; Santos, 2009) traz à luz o conceito de desamparo. A partir de 1926, com "Inibições, Sintomas e Angústia", com a reviravolta de uma segunda teoria da angústia, Freud (1926[1925]/1969d) apresenta o próprio nascimento como um protótipo da angústia automática; visto que esta vivência carrega em si a combinação entre um afluxo enorme de excitações de um lado, e de outro um aparelho psíquico extremamente frágil, incipiente e incapaz de organizar em um plano representacional (simbólico) tal experiência. Assim, como aponta Pereira (2008), a noção freudiana de "desamparo" remete aos limites da capacidade metafórica e simbólica da linguagem. Entrar em pânico, segundo este ponto de vista, é situar-se em plena experiência de desamparo e não-representatividade experienciada nos primórdios da vida psíquica.

Ainda que Winnicott não tenha se debruçado especificamente sobre a questão do pânico, Santos (2009) faz uso de seus textos para uma importante reflexão acerca da previsibilidade e da confiança no ambiente. A autora referencia que o bebê depende de cuidados ambientais (maternais) contínuos e estáveis para uma não ruptura dos processos de personalização, integração e estabelecimento de um contato saudável com a realidade.

Para além das satisfações básicas fisiológicas, a mãe cumpre o importante papel de "páraexcitação", como organizadora e intérprete das reações e estímulos que atingem o bebê (Volich, 2010); tendo esta uma dupla função de integração entre corpo e psique e estabelecimento de contato com o mundo (nomeação). Sobre tal função, Winnicot (1963, citado por Santos, 2009) também afirma que

Desenvolvendo-se num ambiente em que os cuidados maternos são contínuos e têm como característica a regularidade, a monotonia, a evitação de coincidências, e onde a mãe é consistentemente ela mesma, o bebê pode permanecer por tempo suficiente num mundo subjetivo no qual não se intromete o mundo da realidade externa... . o bebê, gradualmente, torna-se capaz de prever e a confirmação regular de suas expectativas forma a base de apoio para a confiança. (p. 248)

Isto equivale a dizer que uma pessoa integrada, não acometida por traumatismos ou rupturas nesta continuidade da existência (atuais ou primitivas), pode "confiar neste mundo" (Santos, 2009). E uma vez confiando no seu ambiente, ainda que angustiada, tratar-se-á de uma angústia neurótica, não da ordem do desamparo: primitiva e automática.

A experiência de um adoecimento grave e deparar-se com a ideia da própria morte representam uma grave ruptura nesta confiabilidade ambiental e da experiência de si. Diante desta vivência potencialmente traumática, o ambiente hospitalar - em um paralelo com os cuidados maternos - constitui-se como o único possível e capaz de dar conta, nomear e organizar tamanho caos. O drama vivido por um paciente gravemente adoecido e hospitalizado assemelha-se à condição de desamparo do recém-nascido (Chevnik, 1991): inicialmente há uma grande regressão e dependência total do ambiente para a própria sobrevivência, ter seu corpo alvo de manipulações estranhas à sua compreensão, assustadoras, sentidas como agressivas ou violentas - os próprios choques, os exames diários, os cortes cirúrgicos, a dor física, jejuns ou dietas forçadas, ser retirado abruptamente de seu convívio social, seu labor, seu dia-a-dia. Ficaria assim, a cargo da equipe de cuidados hospitalares – médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, etc. – cumprir a vital função dita "materna" de páraexcitação destas vivências traumáticas, inomináveis e alheias à simbolização do paciente, frágil e indefeso como um recém-nascido, naquele momento.

Chevnik (1991) compreende a equipe multiprofissional de cuidados hospitalares como uma espécie de "rede" com função protetiva e sustentadora, rede esta, com a qual os pacientes devem contar e confiar para "cair enfermo", como se diz vulgarmente. Implica não só em saber de onde se cai, quais são as falhas incidentes na elaboração psíquica dos conflitos, mas também "conhecer qual o contexto que vai receber esta queda, como é a rede constituída a dar um suporte que permita uma evolução positiva desta enfermidade"3 (p. 175).

Ainda que cumprindo o papel de um dos elementos formadores desta "rede" de cuidados, um psicólogo, psicoterapeuta ou psicanalista incluído na equipe de cuidados de uma instituição hospitalar tem não só o importante papel de oferecer a páraexcitação e cuidados "maternos" necessários para esta relação com o paciente, como apresentado por Santos (2009) – o apoio (holding), o manejo (handling) e a apresentação/nomeação dos objetos; mas também analisar e focar sua atenção em como esta própria rede de cuidados vem se organizando, servir como elo de ligação entre possíveis falhas na interação entre seus membros, déficits no processo de mentalização e representação da própria equipe (Chevnik, 1991).

Existe uma máxima no discurso psicanalítico na qual "é impossível imaginar nossa própria morte", autores como Winnicott e Joyce McDougall encaram o irrepresentável da própria morte como agonias impensáveis ou angústias primitivas, vividos no despedaçar-se, no desintegrar-se, no cair para sempre (Santos, 2009). Pereira (2008) discorre que "várias condições psicopatológicas decorrem justamente deste movimento de ir rumo ao angustiante para nele encontrar uma garantia 'verdadeira' da realidade da própria vida psíquica" (p. 164). O remeter ao desamparo primitivo é justamente o que concede o caráter terrível e de colapso de uma experiência que envolve risco de vida, ou seja "é porque uma 'morte' já ocorreu que o sujeito tem tanto medo dela" (Santos, 2009). A ideia de morte provoca, então, um grande pesadelo não só para o paciente adoecido, ou que teve a vivência do choque e "teve sua morte súbita interrompida", mas também para a equipe de cuidados que, contratransferencialmente, se vê engendrada nestas questões da ordem do primitivo, com tão pouco suporte representativo a se apoiar.

 

Nunca fui doente

J. é um jovem de 33 anos que em seu primeiro contato com o psicólogo da unidade relata ter adoecido por volta dos 20 anos de idade e que reconhece períodos de "revolta" em função das limitações vividas. Referiu sentir uma piora progressiva em seus sintomas (cansaço, arritmia e os choques do CDI que o trouxeram à internação) havia cerca de um ano. Apesar de ter o diagnóstico de cardiomiopatia dilatada e tomar medicações já por doze anos, J. culpa-se por "esquecer-se de sua doença" ao longo da vida, e que só naquele momento sentia-se realmente doente.

J. sempre fora muito sociável. No próprio trato com a equipe tal fato ficou bastante evidente, mas foi pelos conteúdos trazidos em terapia que aparece a grande importância de seus relacionamentos, principalmente com seus amigos. Conta que havia participado da organização de uma festa no final de semana anterior à internação, disse que carregou peso e passou a tarde fazendo uso de bebida alcoólica. J. chora e culpa-se, pergunta o porquê de agir como um "adolescente de 33 anos de idade" (sic), o porquê de não reconhecer suas limitações, o porquê de seu "abuso" nas festas. Disse que a maioria de seus amigos acompanhavam seu ritmo, e até nadavam ou "exigiam mais de seu organismo que ele" (sic), mas que também haviam outros que se sentiam cansados e até "pegavam mais leve" (sic) do que ele: "e estes outros eram saudáveis! E eu que tenho essa doença e sempre fingi que não?!" (sic).

Neste primeiro momento, apesar de muito ansioso e com alguns episódios de pânico, J. fazia uso do espaço terapêutico refletindo sobre sua relação com a doença e o significado disto em sua vida. Sentia medo, necessitava constantemente da companhia da mãe e não gostava de ficar sozinho. Do ponto de vista da Psicossomática, J. permanecia hipervigil ao seu corpo, seus limites, seu "ritmo", sensível a qualquer palpitação ou anormalidade sentida por ele na função cardíaca, e aflito desta maneira acabava por experienciar momentos de taquicardia ou arritmias transitórias. Os fantasmas se misturavam: sua doença de base, sua ansiedade crescente, sua dificuldade para dormir, seu medo, enfim, seu psíquico e seu corpo.

J. trabalhava em uma função administrativa em uma escola, morava com sua mãe, e estava recém noivo, com planos de casamento e mudança com sua esposa até que a internação o confrontou com algo que ele próprio referia estar "evitando pensar sobre durante os últimos anos" (sic): os choques de CDI e a possibilidade de um transplante cardíaco; "agora não sei de mais nada sobre mim" (sic). A principal tônica trazida por ele nos atendimentos recai sobre sua "negação" anterior, ele conta detalhadamente de como levara uma vida considerada por ele de "exageros", culpava-se pelas noites de festas, o uso de álcool e o ritmo incessante de trabalho.

Com o passar dos dias de internação e consultas com equipe hospitalar, J. concluiu que seus ataques de pânico, sentidos eminentemente no ritmo cardíaco, tinham outra origem que não seu diagnóstico médico de cardiomiopatia dilatada. Começou a se questionar acerca do retorno para a casa, com a proximidade da alta, referia não se sentir seguro para ficar longe do hospital, sem a "garantia" do seu ritmo cardíaco constantemente monitorado pelos aparelhos. Mas neste momento abriu-se uma brecha para o questionamento acerca de para qual vida ele voltaria, ele próprio reparou que não mais precisa da presença constante de sua mãe no quarto da enfermaria e a "autoriza" a almoçar fora do hospital e voltar para casa algumas tardes.

Os conteúdos de suas falas, antes circunscritos às experiências somáticas, "coração calmo ou acelerado" e resultados dos exames mudam para "agora posso falar sobre o meu pânico, ainda sinto medo, mas acho que eu preciso é finalmente falar sobre e com a minha doença e não mais fugir dela" (sic). Então ele pôde falar em terapia sobre seu casamento porvir e o quanto ele sente-se extremamente completo ao lado de sua noiva, sobre seus amigos e o sentimento de "vergonha e menos valia" (sic) perante eles que são supostamente saudáveis, sobre sua relação com a mãe e o "amor e ódio" que sentia ao perceber que depende tanto dos cuidados dela ao sentir-se "fragilizado como um bebê" (sic).

J. sentiu-se, então, menos dependente e teve alta hospitalar, com sua doença estabilizada a possibilidade de transplante cardíaco fica como algo no horizonte, postergada, mas não descartada. Mobilizado a procurar ajuda psicoterapêutica em sua cidade natal, solicitou uma indicação profissional pois "queria conversar mais com sua doença e pensar na vida que pode levar com o implante de CDI, mas não sozinho, pois ainda que este assunto não o paralisava mais, sentia precisar das 'rodinhas da bicicleta' para ir além" (sic).

Retomando a relação com a própria morte, no pensar psicanalítico, Pereira (2008) elucida que o pânico estaria do lado das pulsões de vida, constituindo por si só um esboço no sentido de uma simbolização. A hipervigilância sobre seus sintomas, observada nos pacientes com CDI, uma certa reação hipocondríaca acerca de seus próprios batimentos cardíacos ou os sintomas de ataques de pânico marcam uma ancoragem no próprio corpo do terror inominável, ainda que permaneça ali enigmático. Ora, se compreendemos o pânico destes pacientes como uma reação do aparelho psíquico à aproximação daquilo que é insuportável, inominável e perigosamente mortal, então, segundo Pereira (2008):

Experimentar o morrer sobre o próprio corpo constitui uma tentativa de se desvendar o enigma do morrer, para eliminar as surpresas que se impõem a um sujeito que não pode se permitir experimentá-las passivamente – genuinamente, talvez seja mais adequado – quando for, de fato, chegada a hora.... Nenhuma compreensão simbólica definitiva e tranquilizadora é viável dado que morrer é sempre outra coisa; pelo menos uma coisa outra que a que se encena num ataque de pânico. De qualquer forma, pode-se afirmar que o pânico visa tanto a evitação do sexual inassimilável, e portanto mortal, quanto a apreensão subjetiva do traumático". (p. 169)

No cuidar psicanalítico, esta perspectiva revela que o trabalho não deve visar simplesmente a extinção da angústia, como nos moldes de um tratamento clínico medicamentoso para os transtornos de pânico. O analista deve aqui encontrar em sua função, através de sua escuta e posição subjetiva – uma possibilidade de atividade metafórica capaz de "ativar", por assim dizer, um trabalho de linguagem já existente no germe da própria experiência de pânico (Pereira, 2008). O pânico não deve assim, necessariamente ser confundido como característico da pulsão de morte ou encarado de maneira pessimista como uma desorganização psicossomática progressiva tendendo ao inanimado; "pelo contrário, o pânico é pânico pela vida e, neste sentido, o sofrimento particular que ele engendra surge justamente de se ter frisado o inominável, daí a potencialidade do pânico em tornar-se uma obra de linguagem" (Pereira, 2008, p. 171).

A alusão a este aspecto "autocurativo" do pânico assemelha-se com a compreensão dos sintomas somáticos proposta por Dejours (1991), mais especificamente ao seu conceito de "somatizações simbolizadoras". Segundo o autor, as somatizações seriam "simbolizadoras" uma vez que permitiriam novas ligações psíquicas, ativando a capacidade de o sujeito representar a posteriori. Em outras palavras, o fenômeno psicossomático do pânico carrega em si, ainda que de maneira oculta e expressivamente sofrida para o indivíduo, um passo necessário para a reativação de um processo de criação das representações, possibilitando novas ligações psíquicas, principalmente quando encontrado respaldo por parte daquele que sofre em um encontro analítico para pensar e falar sobre seu sofrimento.

Em seu trabalho sobre as formas de sofrer "neuróticas e não neuróticas", Minerbo (2009) entende que as somatizações, como parte do sofrer "não neurótico", advém de falhas na capacidade de simbolização das experiências vividas. Ela toma emprestado da medicina o termo "depleção", que significa literalmente "falta de, redução de alguma substância no meio celular com prejuízo de funcionamento deste" (a depleção de ferro no organismo, por exemplo, conduz o organismo à anemia) e faz alusão à uma "depleção simbólica" – como uma espécie de "anemia psíquica" (Minerbo, 2013).

Segundo esta compreensão, o sentido do trabalho analítico visaria "tecer com 'cotecer', algum sentido onde ainda não há" (Minerbo, 2013). Criando uma nova imagem, podemos falar em construir uma "ponte de palavras" através da qual seja possível ao paciente primeiramente atravessar, sem "cair", o abismo e o vazio de significados da experiência atual, para então poder, em um segundo momento, conseguir integrar na sua biografia o que antes era tido como traumático e intolerável. Sendo que, neste trabalho, como uma retomada do processo de subjetivação – de transformação e lapidação dos traços orgânicos e pré-psíquicos em material psíquico – depende de um analista implicado não apenas como intérprete, mas também como outro-sujeito. À maneira da relação mãe e seu infante.

Sobre o trabalho de "historicizar" a doença e as experiências potencialmente traumáticas, o psicanalista incluído em uma equipe de cuidados hospitalares, bem como toda equipe de saúde detém um papel privilegiado. Função esta muito além de simplesmente diagnosticar, tratar e "despedir-se" do paciente para "devolvê-lo" ao seu cotidiano, que traria em si o risco de inúmeras iatrogenias psíquicas. Chevnik (1991) defende que a equipe de saúde precisa funcionar como uma espécie de sistema mediador e de transição entre a realidade psíquica e a realidade externa de um paciente. Este funcionamento seria semelhante a uma membrana celular, que transforma, filtra e identifica os elementos que a atravessam. O autor destaca o efeito benéfico que uma (suficientemente) boa capacidade de sustentação por parte da equipe, mesmo nos momentos mais nefastos, sintomáticos e desorganizados, como nas crises de pânico, pode torná-los simbolizáveis, aproveitando-os positivamente.

 

Conclusão

Os benefícios médico-clínicos para os pacientes portadores de CDI, bem como a reconhecida redução na mortalidade são, atualmente, inquestionáveis. Entretanto, existe uma preocupação e tentativa de compreensão sobre as consequências psicológicas do uso desta tecnologia. Mesmo que na cena médica/hospitalar esteja claro o reconhecimento das possíveis consequências e iatrogenias psíquicas com o uso do CDI, a aproximação empírica e as pesquisas atuais em torno do tema refletem as marcas de objetividade e cientificidade próprias do discurso médico, excluindo a subjetividade, o mais particular da vivência destes pacientes com o implante. Entendendo que a experiência possivelmente traumática é advinda do não-representado, do CDI não "historicizado" na vida do paciente e que este sofre do que não foi ou nem sequer ainda pode ser dito, temos que o discurso médico escuta estes sintomas com uma função silenciadora, enquanto que para Moretto (2013), o discurso psicanalítico com outro referencial teórico "não tem uma função silenciadora, mas sim uma função silenciosa, que promove a proliferação da fala do sujeito" (p. 69).

Mediante essas questões, é possível vislumbrar que a busca por uma aproximação psicanalítica, como na articulação teórico-clínica apresentada, pode auxiliar no sentido de uma outra compreensão acerca do tema, outra maneira de "escutar" estes sintomas e esses pedidos de ajuda dos sujeitos, contribuindo também para a própria assistência a estes pacientes e a possibilidade de práticas em saúde que se dediquem a cuidar dos impactos psíquicos do uso da tecnologia em medicina.

 

Referências

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1 Mestrando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. E-mail: patrick.vronick@gmail.com
2 Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Email: elisa.ops@terra.com.br
3 Tradução livre do original em espanhol: "La interconsulta médico psicológica; entre la medicina y el psicoanálisis, una mediación posible" (Chevnik, 1991)

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