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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.21 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Percepção sobre formação em residência na área da saúde: necessidades, expectativas e desafios

 

Perception of residency training in health area: needs, expectations and challenges

 

 

Elislaine Cristina Pereira de Souza1; Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araujo2

Universidade de Brasília

 

 


RESUMO

No campo da saúde, as pesquisas revelam que a formação em nível de residência envolve múltiplos desafios associados ao processo de ensino-aprendizado e ao treinamento em serviço. Considerando tais pressupostos, realizou-se um estudo descritivo e transversal com o objetivo de descrever e analisar a percepção de residentes no que concerne às suas necessidades, expectativas e dificuldades. Para tanto, reuniu-se uma amostra com 90 participantes (média de idade = 26,11 anos; DP = 3,54) de diferentes categorias profissionais e programas. A coleta foi conduzida por meio de um survey online com os seguintes instrumentos: Questionário Sociodemográfico e Ocupacional; Inventário de Estratégias de Coping; e Inventário de Risco de Sofrimento Patogênico no Trabalho (IRIS). As estratégias de enfrentamento mais apontadas foram: suporte social, reavaliação positiva e resolução de problemas. A percepção de "utilidade", durante o exercício profissional, parece constituir fator de proteção frente aos riscos de adoecimento decorrentes da insuficiência de pessoal, sobrecarga laboral e falta de reconhecimento. As respostas ao IRIS indicaram que as situações de sofrimento tendem a se sobrepor àquelas vinculadas ao prazer. Para subsidiar políticas públicas fundamentadas, sugerem-se mais pesquisas sobre formação e atuação durante a residência, notadamente com instrumentos específicos e metodologias qualitativas diversificadas.

Palavras-chave: formação profissional; residência; enfrentamento; prazer; sofrimento.


ABSTRACT

In the health field, studies show that qualification at residency levels involves multiple challenges associated with the teaching-learning process and in-service training. Considering these assumptions, a descriptive and cross-sectional study was carried out with the purpose of covering and analysing the perception of residents regarding their needs, expectations and struggles. Therefore, a sample of 90 participants (Mage = 26.11 years; SD = 3.54) from multiple professional categories and programs was gathered. Data was collected through an online survey with the following instruments: Sociodemographic and Occupational Questionnaire; Ways of Coping Inventory; and Risk of Pathogenic Suffering at Work Inventory (IRIS). The highlighted coping strategies were: social support, positive reassessment and problem solving. The usefulness perception during professional practice seems to be a protection factor in face of the risks of illness due to insufficient personnel, work overload and lack of recognition. The responses to IRIS indicated that situations of suffering tend to overlap with those related to pleasure. To subsidize grounded public policies, more research on training and performance under residence is suggested, especially with specific instruments and diversified qualitative methodologies.

Keywords: professional education; residency; coping; pleasure; suffering.


 

 

Introdução

Sob uma ótica biopsicossocial, para cumprir a meta primordial de influenciar o processo "saúde-doença" e assegurar mais bem-estar às populações, é essencial efetivar a participação de profissionais de distintas áreas do conhecimento nas equipes de trabalho em saúde. Tanto a experiência clínica como a literatura especializada enfatizam que, nos diferentes níveis de atenção em saúde, as necessidades não se limitam ao paciente, pois os membros da sua rede social estão de algum modo envolvidos (Araujo & Negromonte, 2010; Barbosa, Andrade, Pereira, & Falcão, 2017).

Assim sendo, as numerosas demandas e dificuldades vivenciadas ao longo dos cuidados dedicados ao usuário e a seus familiares repercutem sobre a equipe de saúde. Vale lembrar que, há décadas, diversos estudos focalizam aspectos relacionados à qualidade de vida, ao enfrentamento, ao estresse e ao burnout dos profissionais que atuam nesse campo laboral. A título ilustrativo, cabe mencionar o estudo de Sousa e Araujo (2015) sobre estresse ocupacional de 92 trabalhadores da saúde em uma instituição universitária brasileira. Dentre os principais resultados obtidos pelas autoras, é possível salientar como fator de risco "realizar plantão" e como fator de proteção "suporte social satisfatório". Em outra pesquisa acerca do estresse, Negromonte e Araujo (2011) identificaram desde entraves administrativos até problemas de comunicação e de interação, como elementos adversos que perturbavam membros integrantes de equipes comprometidas com cuidados paliativos ou assistência a grandes queimados.

Diante desse panorama, parece imprescindível conhecer melhor as condições particulares da atuação em nível de residência, uma vez que, de um lado, programas de treinamento em serviço podem favorecer a aplicação e a articulação de saberes e práticas atualizadas, contribuindo para aumentar a eficácia das intervenções. E, de outro lado, por se tratar de uma formação, a residência exige esforços e adaptações dos estudantes e de seus grupos de trabalho, o que requer acompanhamento sistemático no intuito de prevenir desgastes e promover a evolução das trajetórias profissionais (Silva, Contim, Ohl, Chavaglia, & Amaral, 2015).

No Brasil, existem diversas modalidades de residência em saúde: médica, multiprofissional e atenção básica. Vale recordar que, em 1977, o Decreto nº 80.281 estabeleceu parâmetros de funcionamento da residência em Medicina, sendo que as demais residências, denominadas genericamente como multiprofissionais, foram institucionalizadas ulteriormente (Brasil, 1977). Com efeito, somente em 2005 foi promulgada a Lei n° 11.129 que instituiu o Programa Nacional de Inclusão de Jovens ao Contexto de Trabalho, possibilitando a criação de outras residências que se constituíssem como educação em serviço e atendessem às peculiaridades regionais e locais (Brasil, 2005).

Em 2012, foi criada a Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde e, naquela ocasião, estipulou-se a estruturação geral dos programas. Mais claramente, exigiu-se a elaboração de um Programa Pedagógico (PP), administrado por uma Comissão de Residência Multiprofissional (COREMU), que deve se responsabilizar pelas ações de um Núcleo Docente-Assistencial Estruturante (NDAE) composto por docentes, tutores, preceptores e profissionais da saúde residentes. Atualmente, tais residências correspondem a cursos de Pós-Graduação lato sensu com carga de 60 horas semanais, duração mínima de dois anos e regime de dedicação exclusiva (Brasil, 2012).

O residente pode ser equiparado a um trabalhador e, como tal, está exposto aos agravos e danos provocados pela execução das suas tarefas, sendo que uma gama de dispositivos jurídicos prevê iniciativas para promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde do trabalhador em nosso País (Brasil, 1990). No entanto, Camelo et al. (2014) e Campos, David e Souza (2014) alertaram que, por mais que se note progressos na legislação e nas práticas institucionais, persistem dificuldades quanto à sua efetivação. Além disso, as medidas costumam se restringir aos contextos físico e ergonômico. A exemplo de outros estudiosos, Rossato (2015) relembrou que a atividade laboral atravessa transformações históricas, tendo sido socialmente percebida como castigo, função de escravos, salvação de cunho religioso, alienação ou expressão da personalidade do indivíduo. Na atualidade, significativas mudanças vêm sendo geradas pelo uso de tecnologias eletrônicas que alteram os modos de agir e se relacionar e nem sempre resultam em mais conforto e segurança para o profissional ou o técnico de saúde.

No que tange especialmente ao trabalho em residência, uma breve revisão da literatura ofereceu aportes para nortear a presente pesquisa. É pertinente esclarecer que este levantamento foi feito na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), utilizando-se as palavras-chave "residência médica", "residência em saúde", "residência multiprofissional", "formação" e os filtros: texto completo; língua portuguesa; ano de publicação (a partir de 2012) e tipo de documento (artigo, tese e monografia). No total, foram extraídos 51 textos. Após leitura dos resumos, descartou-se material relativo a revisão de literatura, análise documental ou publicações duplicadas, bem como aquele que não abordasse diretamente os residentes. Ao final, restaram 10 artigos, repertoriados na Tabela 1.

Somente dois trabalhos empregaram metodologia quantitativa com uso de instrumentos generalistas (sem especificidade para formação em residência), orientados para a avaliação de burnoute/ou qualidade de vida (Guido, Silva, Goulart, Bolzan, & Lopes, 2012; Sanches et al., 2016). Os demais estudos elegeram outras modalidades: entrevistas, grupo focal, questões abertas, escalas atitudinais e questionários (Casanova, Batista, & Ruiz-Moreno, 2015; Fernandes et al., 2015; Landim, Silva, & Batista, 2012; Manho, Soares, Nicolau, 2013; Sassi& Machado, 2017; Silva, Contim, Ohl, Chavaglia, & Amaral, 2015; Torres, Barreto, & Carvalho, 2015; Zanin, Albuquerque, & Melo, 2015). As principais conclusões de cada uma destas pesquisas podem ser consultadas na Tabela 1.

 

 

Então, considerando preocupações de natureza social e clínica aludidas anteriormente, o presente estudo teve como substratos teóricos: o Modelo de Processamento de Stress e Coping de Lazarus e Folkman (1984, citados por Nunes, 2010; Straub, 2014); a perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho de Christophe Dejours (2011) e o Modelo de Demanda-Controle de Robert Karasek (Karasek, Baker, Marxer, Ahlbom, & Theorell, 1981).

O modelo desenvolvido por Lazarus e Folkman (1984, citados por Nunes, 2010; Straub, 2014) concebeu enfrentamento (ou coping) como a capacidade do indivíduo para lidar com situações estressantes internas e/ou externas através de esforços cognitivos e/ou comportamentais. Neste enfoque, as estratégias de enfrentamento são classificadas em duas categorias principais: a) focadas na emoção - que visam regular as perturbações emocionais, minimizar as alterações desencadeadas em nível somático e/ou aliviar sentimentos desagradáveis; e b) focadas no problema - que estão voltadas para o 'gerenciamento' da dificuldade mediante controle ou modificação da situação. As estratégias podem ser adaptativas ou disfuncionais a depender da pessoa e das circunstâncias.

Na visão de Dejours (2011), o trabalho pode ser fonte de saúde ou de adoecimento. No escopo de sua obra, muitos estudos foram produzidos e as dimensões prazer e sofrimento vêm sendo intensamente discutidas. Dessa maneira, para Silveira, Guilam e Oliveira (2013), mudanças na organização do trabalho poderão prover mais prazer; ao passo que Mariano e Carreira (2016) destacaram a ressignificação do sofrimento para oportunizar equilíbrio entre trabalho-saúde-adoecimento e consolidação da identidade profissional. Gama, Mendes, Araújo, Galvão e Vieira (2016) explanaram que a Psicodinâmica do Trabalho focaliza não somente o sofrimento patogênico, pois se interessa cada vez mais pelo sofrimento criativo.

O Modelo de Demanda-Controle (Karasek et al., 1981) reconhece quatro modalidades de atividade laboral: a) trabalho ativo, caracterizado pela baixa demanda psicológica e elevada autonomia para decisão; b) trabalho de baixo desgaste, demandas psicológicas baixas e alto controle decisório, o qual minimiza riscos de adoecimento psicológico e físico; c) trabalho de alto desgaste, no qual as demandas são elevadas e o controle é baixo, de modo que sofrimentos físicos e psicológicos são intensificados (e.g. depressão, insônia, exaustão e consumo de medicamentos); e d) trabalho passivo, em que demandas, controle, autonomia e participação na tomada de decisões são limitados, o que acarreta consequências nefastas para a saúde ocupacional do indivíduo e de seu grupo.

Em suma, visando aprofundar a compreensão sobre esta temática relevante, foi organizada uma investigação com o intuito de descrever e analisar a percepção de profissionais que realizam ou realizaram residência e melhor conhecer as necessidades, as expectativas e os desafios relacionados a essa formação. Mais especificamente, estabeleceram-se os seguintes objetivos: a) analisar variáveis sociodemográficas (e.g. idade, tempo de formação, programa de residência); b) identificar estratégias de enfrentamento; e c) avaliar o sofrimento no trabalho.

 

Método

Trata-se de um estudo descritivo e transversal, cujo projeto foi previamente autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília - CAAE 73949717.4.0000.5540. Para constituição de uma amostra, selecionada por conveniência, foram adotados como critérios de inclusão: ter participado, de modo integral ou parcial, de programas de residência da área de saúde e manifestar concordância por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); e critérios de exclusão: respondentes que não finalizaram o preenchimento do questionário eletrônico e aqueles que não manifestaram concordância no TCLE. Por se tratar de um estudo de natureza exploratória, não foram estipulados outros critérios.

Instrumentos

Foram selecionados em virtude dos modelos teóricos supracitados: - Questionário Sociodemográfico e Ocupacional - composto por nove questões de múltipla escolha e cinco questões abertas, destinadas à caracterização da amostra quanto a: idade, sexo, estado civil, se possuía dependente e estado brasileiro de realização da residência. O questionário possibilitou também averiguar a trajetória acadêmica e ocupacional. Verificou-se profissão, ano de término da graduação, maior titulação acadêmica, conclusão ou não da residência, modalidade de programa, experiências profissionais anteriores à residência e se pretendia cursar outra residência.

- Inventário de Estratégias de Coping de Folkman e Lazarus (1985) - validado para a população brasileira por Savóia, Santana e Mejias (1996), apresenta 66 itens, os quais visam ponderar oito fatores gerais – confronto, afastamento, autocontrole, suporte social, aceitação de responsabilidade, fuga-esquiva, resolução de problemas e reavaliação – em uma escala tipo Likert de quatro pontos (não usei esta estratégia; usei um pouco; usei bastante; usei em grande quantidade).

- Inventário de Risco de Sofrimento Patogênico no Trabalho - IRIS - validado por Mendes e Araujo (2012), foi construído com base no modelo da Psicodinâmica do Trabalho, possui 45 itens a serem respondidos em uma escala tipo Likert de cinco pontos (nunca; raramente; às vezes; frequentemente; sempre) para avaliação de três categorias globais: utilidade, reconhecimento e indignidade.

Procedimentos Para Coleta e Análise de Dados

A pesquisa foi realizada por meio de uma enquete eletrônica disponibilizada, com auxílio da ferramenta Survey Monkey, por um trimestre. Para recrutamento de participantes, enviaram-se mensagens com convite e informações preliminares para contatos profissionais, associativos e pessoais das pesquisadoras. Um levantamento dos cursos de residência em saúde também viabilizou a obtenção de endereços eletrônicos e de contatos para a constituição da amostra (Walter, 2013).

Após indicar concordância no TCLE, era liberado o acesso aos três instrumentos na seguinte sequência: Questionário Sociodemográfico e Ocupacional; Inventário de Estratégias de Coping de Folkman e Lazarus (1985, citado por Savóia et al., 1996) e Inventário de Risco de Sofrimento Patogênico no Trabalho (Mendes & Araújo, 2012). Os dados obtidos foram organizados e submetidos à análise descritiva de frequência, porcentagem, desvio padrão e média pelo Statistical Package for Social Science (SPSS - versão 23).

 

Resultados e Discussão

A Tabela 2 apresenta os dados sociodemográficos e ocupacionais da amostra pesquisada. O maior percentual de mulheres (91,1%) converge com a constatação de vários estudos que mostraram a crescente feminização das profissões de saúde (Matos, Toassi, & Oliveira, 2013; Wermelinger et al., 2010). Geralmente baseadas no cuidado do outro, essas atividades laborais podem ser impactadas pelos persistentes estereótipos de gênero na sociedade contemporânea. A média de idade de 26,11 anos (DP = 3,54), assim como o percentual de 97,8% dos participantes que não possuíam dependentes, indica que esse tipo de treinamento é escolhido por profissionais em início de carreira que recorrem às competências de um preceptor de campo e de um tutor teórico para lapidar e expandir suas práticas clínicas em um complexo espaço de atuação interdisciplinar (Morais, Castro, & Souza, 2012). Possivelmente, a carga horária semanal exigida e a remuneração recebida diminuem o interesse daqueles com mais idade e mais experiência profissional.

 

 

Quanto às estratégias de enfrentamento, prevaleceram modalidades adaptativas: suporte social, reavaliação positiva e resolução de problemas. A estratégia menos mencionada foi 'fuga e esquiva', a qual pode ser considerada como disfuncional para um profissional de saúde (Tabela 3). Suporte social sobressaiu-se como um fator de proteção para os residentes que facilitaria seu ajustamento em situações estressantes. Os itens que tiveram média mais elevada no Inventário de Estratégias de Coping de Folkman e Lazarus (1985, citado por Savóia et al., 1996) foram: "conversei com outra(s) pessoa(s) sobre o problema, procurando mais dados sobre a situação" e "aceitei a simpatia e a compreensão das pessoas". Tais resultados corroboram estudos de Tomás, Ferreira, Araújo e Almeida (2014) e Gottardo e Ferreira (2015) sobre o valor preditivo do suporte social percebido e recebido para adaptação em contextos similares.

A segunda estratégia mais utilizada foi reavaliação positiva, cujos itens com média mais elevada foram: "mudei ou cresci como pessoa de uma maneira positiva" e "redescobri o que é importante na vida". Assim, apesar da vulnerabilidade subjacente à condição de formação e avaliação profissional, a maior parte da amostra parece ter sido capaz de superá-la (Guido et al., 2012). Cumpre ressaltar que a reavaliação positiva é compreendida como a ressignificação das experiências estressantes em favor do controle e do desenvolvimento pessoal (Ribeiro, Pompeo, Pinto, & Ribeiro, 2015; Wilhelm & Zanelli, 2014). Semelhantemente, Manho et al. (2013) verificaram que residentes egressos da área de Terapia Ocupacional da Unidade de Saúde da Família São Carlos assinalaram insuficiências educativas, mas também admitiram a existência de processos de trabalho que engendraram aprendizado e aprimoramento.

No que se refere à resolução de problemas, os participantes privilegiaram os itens "me concentrei no que deveria ser feito em seguida, no próximo passo" e "eu sabia o que deveria ser feito, portanto dobrei meus esforços para fazer o que fosse necessário". Merece comentar que para Benetti et al. (2015), 'resolução de problema' diz respeito à capacidade de identificar demandas advindas do ambiente laboral e mobilizar-se para resolvê-las. Segundo Wilhelm e Zanelli (2014), trata-se da competência para refletir, analisar as singularidades de cada situação, assumir postura ativa frente aos estressores, definir prioridades e buscar alternativas.

 

 

Os resultados provenientes do IRIS revelaram risco moderado de sofrimento patogênico. A categoria utilidade não computou risco (M = 3,91). Em outros termos, a percepção em relação a esta dimensão parece preservada e assevera a importância da residência do ponto de vista daquele que se engaja nesse nível de treinamento. Em contrapartida 'reconhecimento' e 'indignidade' apresentaram risco moderado: média geral dos itens de 3,22 e 3,13, respectivamente. É válido frisar que Mendes e Araújo (2012) entenderam que existe uma dialética entre vivências positivas e negativas no trabalho, as quais tanto podem induzir sofrimento patogênico como sofrimento criativo. A partir dessa concepção de sofrimento laboral, é possível compreender a condição paradoxal de se perceber útil, ainda que reconhecimento e indignidade também perpassem a experiência na residência.

Especificamente, o fator 'utilidade' corresponde à premência por atender às demandas institucionais e executar as tarefas organizacionais. Nesta pesquisa, o único item em que se apurou média inferior foi "consigo adaptar meu trabalho às minhas expectativas" (Figura 1). De fato, estudos recentes apontaram que a residência fornece não somente enriquecimento profissional, como também é uma oportunidade de desenvolvimento pessoal (Landim et al., 2012; Manho et al., 2013; Sassi & Machado, 2017). Nessa mesma direção, Silva e Batista (2012) verificaram que, em um programa multiprofissional, os residentes salientaram como elementos positivos da sua formação, o contato com situações desafiadoras que induziram a expansão de habilidades e um julgamento clínico mais acurado.

 


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O fator 'reconhecimento' remete à percepção de aceitação e admiração em razão do desempenho demonstrado no espaço de trabalho. Os itens que obtiveram os menores escores foram "sinto o reconhecimento da minha chefia pelo trabalho que realizo", seguido por "tenho liberdade para dizer o que penso sobre o meu trabalho" e "tenho liberdade para organizar meu trabalho da forma que quero" (Figura 2). Martins, Mendes, Antloga e Maia (2017) explicaram que o reconhecimento no trabalho emana do pertencimento grupal, além de representar uma forma de retribuição simbólica que proporciona bem-estar aos trabalhadores. Estes resultados parecem detectar a necessidade de inovação das propostas pedagógicas de tal maneira que seja mantido o monitoramento do treinando com estímulo a sua autonomia. Vale comentar ainda que a escassez de reconhecimento não se limita ao período de treinamento, já que não existem medidas consistentes que respaldem a inserção do egresso de um curso de residência no mercado de trabalho. De acordo com Torres et al. (2015), as políticas públicas relacionadas às residências devem ser repensadas, no intuito de incentivar e planejar a inclusão de profissionais que foram devidamente qualificados para permanecerem colaborando no âmbito do SUS.

 


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O fator 'indignidade' equivale à percepção de injustiça, insatisfação e desgaste. Os itens que alcançaram maiores escores foram: "meu trabalho é cansativo", "meu trabalho é desgastante" e "o número de pessoas é insuficiente para execução das atividades da minha unidade" (Figura 3). Cabe realçar que Sanches et al. (2016) constataram piora dos indicadores de burnout e qualidade de vida entre residentes da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul ao longo do curso. Isso pode ser entendido em função do medo crescente de cometer erros, na medida em que o aumento de conhecimentos provoca tensões permanentes no sentido de evitá-los. Para estes autores, o residente não deve ser percebido como "tocador de serviço", em detrimento da sua condição de profissional em treinamento. Ou seja, uma carga horária de 60 horas semanais, composta por número elevado de atendimentos e desempenho de variadas tarefas acadêmicas, pode levar a exaustão física e mental (Guido et al., 2012). Em uma avaliação da residência multiprofissional ofertada no programa de Estratégia de Saúde da Família no Ceará, Zanin et al. (2015) também encontraram limitações, tais como deficiências institucionais e poucos profissionais para sustentar o curso.

 


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Por fim, os dados mostraram que apenas 3,3% da amostra já havia cursado uma residência e somente 17,8% pretendia iniciar formação similar. Ao se retomar as categorias do Modelo de Demanda-Controle, é possível supor que a formação em nível de residência produz alto desgaste, impõe atendimento a numerosas e diversificadas demandas clínicas em um contexto de baixo controle.

 

Considerações Finais

Esta pesquisa evidenciou que as situações de sofrimento tendem a se sobrepor àquelas vinculadas ao prazer. Em compensação, a adoção de estratégias de enfrentamento adaptativas parece proteger os residentes dos riscos associados às atividades exercidas, notadamente aqueles decorrentes da insuficiência de pessoal nas equipes de trabalho, sobrecarga laboral e falta de reconhecimento. A opção metodológica da presente investigação possibilitou abarcar uma amostra extensa e abordar temática desencadeadora de muitas reações, e até mesmo resistências, que restringem a participação do público-alvo. Ademais, a abordagem efetivada gerou subsídios para elaboração de instrumentos de avaliação específicos.

Porém, tendo em vista a necessidade de contínuo aprimoramento do ensino na saúde e da qualidade da assistência prestada aos usuários dos serviços que oferecem treinamento em nível de residência, recomendam-se que futuras pesquisas incluam metodologias qualitativas. É imprescindível reunir informações rigorosas sobre a rotina desta modalidade de trabalho e, nesse sentido, as técnicas observacionais podem constituir aporte para aprofundar conhecimentos em prol dos projetos pedagógicos brasileiros vigentes. Outrossim, sugere-se a condução de entrevistas e de grupos focais presenciais ou à distância. Outros delineamentos metodológicos possibilitarão identificar convergências e/ou disparidades entre a atuação propriamente dita durante a residência (por observação) e a percepção do profissional que está em formação (mediante entrevistas individuais ou grupais), superando as limitações do presente estudo executado com uma amostra de conveniência e durante um período de coleta restrito. Nesse sentido, estudos longitudinais poderão comportar contribuições significativas.

Também é importante lembrar a noção elementar de que é um coletivo de trabalho que sustenta as ações no campo da saúde, o que pressupõe colaborações e confrontações entre os atores sociais. Por conseguinte, para implementar e consolidar quaisquer avanços nesse cenário, em especial políticas públicas fundamentadas, é incontornável incluir docentes, tutores, preceptores e profissionais de saúde 'não-residentes' nos estudos sobre o assunto. Por fim, em razão das peculiaridades da residência, a perspectiva sobre o sofrimento laboral criativo deve ser mais amplamente discutida no âmbito da atuação e da formação em saúde.

 

Referências

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1 Hospital Universitário de Brasília da Universidade de Brasília. Psicóloga pela Universidade Católica de Brasília. Especialista em Saúde da Família pela Universidade de Brasília. Cursou Residência Multiprofissional no Hospital Universitário de Brasília - HUB - Universidade de Brasília. Contato: elislaine@otmail.com
2 Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília. Professora Titular da Universidade de Brasília. Pós-Doutora pela Unesco (França). Doutora pela Université de Paris-X Nanterre. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Coordenadora do Labsaudes - UnB. Contato: araujotc@unb.br

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