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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.21 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

Cuidado de pacientes pediátricos no início da adolescência sob tratamento onco-hematológico no contexto hospitalar: a experiência dos pais

 

Pediatric patients in early adolescence under onco-hematological treatment in the hospital setting: the parent's experience

 

 

Leticia Gabriella Nascimento Ribeiro Silva1; Karina Franco Zihlmann2

Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista

 

 


RESUMO

O objetivo do trabalho foi compreender as vivências subjetivas dos pais de pacientes pediátricos no início da adolescência, durante o tratamento onco-hematológico bem como as demandas no processo de cuidado no contexto hospitalar.Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com entrevistas semiestruturadas com cinco pais de pacientes com idades entre 11 e 14 anos, internados e em tratamento, realizada em uma unidade de Oncologia Pediátrica de um hospital da Baixada Santista. Os discursos foram categorizados por meio de análise de conteúdo do tipo temática, segundo Bardin (2011). Os pais são alvos de expectativas por parte da equipe de saúde, mas não têm suas próprias necessidades atendidas, especialmente de ordem emocional, pois o cuidado é voltado para o paciente. A experiência dos pais envolve sofrimento, sentimento de impotência e priorização do outro. Por outro lado, os discursos revelaram sentimentos de esperança, superação e dedicação ao filho nesse contexto. Esta complexidade de sentimentos, sinaliza a importância de um trabalho psicológico que permita que os envolvidos possam ser vistos em suas necessidades intrínsecas.

Palavras-chave: oncologia pediátrica; psicologia hospitalar; cuidador; adolescente.


ABSTRACT

The objective of this study was to understand the parent's subjective experiences of pediatric patients in early adolescence under onco-hematological treatment and their demands in the care process in the hospital setting. This was a qualitative research, with semi-structured interviews with five parents of patients aged between 11 and 14 years hospitalized and undergoing treatment, performed at a pediatric oncology unit in a hospital in Baixada Santista region – São Paulo - Brazil. The discourses were categorized through thematic type content analysis, according to Bardin (2011). Parents are targets of expectations on behalf of the health team, but do not have their own needs attended, especially emotional ones, because care is aimed at the patient. The experience of the parents involves suffering, impotence feelings and prioritization of the other. On the other hand, the speeches also revealed feelings of hope, overcoming and dedication to the child in that context. This complex experience makes explicit the importance of a psychological work, in which one tries to open space to allow those involved to be seen in their intrinsic needs.

Keywords: pediatric oncology; hospital psychology; caregiver; adolescent.


 

 

Introdução

O adoecimento é algo inesperado, um tropeço (Simonetti, 2004), algo que debilita, não apenas à própria pessoa, mas também todos aqueles que constituem a rede de relações do paciente. Há uma grande frustração quando um jovem adoece, deflagrando-se forte conflito emocional, tendo em vista que o adoecimento vai para além das fronteiras dos sintomas, mas também incide sobre representações simbólicas, morais, sociais e psicológicas (Monteiro, Veloso, Sousa & Morais, 2008).

Estima-se que o câncer pediátrico (0-19 anos) tenha tido uma incidência de 420.310 casos novos no Brasil em 2016, excluídos os tumores de pele não melanoma (INCA). Esse tipo de acometimento envolve longos períodos de hospitalização, reinternações frequentes, terapêutica agressiva com sérios efeitos colaterais devido ao tratamento, limitação na convivência entre os membros da família, interrupção das atividades diárias, limitações na compreensão do diagnóstico, desajuste financeiro, angústia, dor, sofrimento e o medo constante da possibilidade de morte (Nascimento, Rocha, Hayes & Lima, 2005).

A criança diagnosticada com câncer é privada de seu cotidiano - retirada do lar e afastada do convívio social – ela é inserida no contexto hospitalar cercada por pessoas estranhas e submetida a exames dolorosos e invasivos (Menezes, Passareli, Souza, Santos & Valle, 2007). O cuidador desse paciente, também vivencia as mudanças e, muitas vezes, abre mão de seu próprio mundo, colocando como suas as lutas e os sofrimentos do paciente (Monteiro et al., 2008).

O paciente é considerado o verdadeiro alvo das ações de cuidado, pois a equipe de saúde, muitas vezes, deixa os cuidadores à margem do processo de cuidado, esperando que eles participem apenas quando são solicitados (Beck & Lopes, 2007). Por outro lado, há uma expectativa implícita de que o cuidador realize um trabalho quando a equipe de saúde se ausenta. Di Primio et al. (2010) apontam que existem expectativas da equipe de saúde quanto aos deveres e responsabilidades dos cuidadores familiares, uma vez que se entende que a família é um importante referencial e detém a responsabilidade com o bem-estar físico, emocional e social de seus membros.

Beck & Lopes (2007) apontam uma contradição, pois o trabalho do cuidador tende a ser desvalorizado ao mesmo tempo em que é, frequentemente, alvo de cobranças por parte da equipe.

Revela-se, então, um contexto complexo, especialmente quando se trata de um paciente pediátrico no início da adolescência com diagnóstico oncológico. Barros (2004) comenta que, devido à idade, esse paciente é capaz de compreender o risco que significa ter câncer e, por saber disso, pode haver uma tentativa de proteger as pessoas que a cercam do sofrimento gerado pelo diagnóstico e, além disso, sentir vergonha e medo da rejeição dos amigos que tem fora do contexto hospitalar. Além de tais elementos, a partir da adolescência, ele vai ganhando gradativamente mais autonomia, porém, a partir do adoecimento, o paciente pode perder a autonomia que já tinha adquirido.

Baseado nestas características, optou-se por entrevistar os pais desses pacientes tendo em vista que, esta faixa etária, envolve questões importantes neste período da vida como: desenvolvimento da identidade, surgimento de conflitos, preocupações com a estética e vida social, e diante do adoecimento, pode ocorrer a exacerbação desses problemas.

Sendo assim, o objetivo do presente trabalho foi compreender as vivências subjetivas dos pais de pacientes pediátricos no início da adolescência em tratamento onco-hematológico e suas demandas no processo de cuidado no contexto hospitalar.

 

Método

Realizou-se uma pesquisa qualitativa em uma unidade de oncologia pediátrica de um hospital geral da Baixada Santista. Buscou-se compreender as angústias e ansiedades dos pais, interpretar sentidos e significações dos fenômenos, via observação ampla e entrevistas de profundidade, conforme estudos de Turato (2011).

Os participantes foram cinco pais de pacientes diagnosticados com câncer, na faixa etária entre 11 e 14 anos, sendo quatro mulheres e um homem. Foram realizadas cinco entrevistas semiestruturadas, como propõe Nogueira-Martins e Bógus (2004), com um roteiro temático de questões sobre dados sociodemográficos, vivências e percepções dos pais sobre a situação atual do paciente, partindo-se de certos questionamentos básicos e apoiados em teorias e hipóteses que interessam à pesquisa.

Como critério de inclusão foram convidados maiores de 18 anos, de ambos os sexos e que consentiram em participar da pesquisa, independentemente da fase clínica da doença do paciente que acompanhava. Utilizou-se como critério de exclusão, participantes que acompanhavam pacientes fora da faixa etária determinada por este estudo. Todos os entrevistados passavam a maior parte do tempo com o paciente e eram responsáveis por autorizar procedimentos.

Os participantes foram esclarecidos sobre o teor da pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram transcritas e categorizadas por meio da análise de conteúdo do tipo temática (Bardin, 2011). Os aspectos éticos desse projeto seguiram a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP sob número CAAE 51988215.9.0000.5505, com parecer número 1.407.289. Todos os nomes citados neste trabalho são fictícios para preservação da identidade dos entrevistados e seus familiares.

Na análise dos discursos das entrevistas foi criado um Núcleo Estruturador intitulado "A experiência dos pais quanto ao cuidado de pacientes pediátricos no início da adolescência sob tratamento onco-hematológico no contexto hospitalar", referente às questões que envolvem como era a percepção dos cuidadores quanto às demandas e desafios de cuidados dos filhos. A seguir, apresentamos o Quadro 1, com as categorias gerais e específicas deste núcleo.

 

 

Resultados e Discussão

Considerando-se que a maioria dos participantes foi do sexo feminino, nossos dados corroboram com os encontrados no estudo de Wanderbroocke (2005) em que as mulheres são as principais cuidadoras em situações similares, assim como com os dados de Beck e Lopes (2007) ao afirmarem que tal papel, na maioria das vezes, é desempenhado pela mãe.

A média de idade dos entrevistados foi de 36,8 anos (variando entre 47 e 34 anos). Em média os entrevistados têm 1,8 filhos. Apenas dois participantes eram solteiros e, os demais, casados ou em união estável.

Todos os entrevistados tiveram alteração na situação de trabalho devido adoecimento do filho. Uma participante era dona de casa, mas apontou que houve alteração na situação de trabalho do marido, que teve que se dedicar menos ao trabalho para auxiliar no cuidado da outra filha. Os demais participantes estavam desempregados ou decidiram não procurar mais emprego para se dedicarem ao cuidado do familiar adoecido.

A maioria dos entrevistados não contava com ajuda de outras pessoas, alguns contando apenas com ajudas pontuais, se encontrando privados de sua vida pessoal e sobrecarregados. Apenas uma das entrevistadas contava com uma rede de apoio nos períodos de internação e em casa para que pudesse descansar e manejar sua vida pessoal.

Em relação aos pacientes que os pais acompanhavam, a média de idade entre eles foi de 12,6 anos, sendo três meninos e duas meninas. Quatro destes foram diagnosticados com leucemia, sendo, entre estes, dois casos de recidiva. Todos se encontravam, na época da entrevista, afastados da escola. A média de tempo de tratamento foi de 2,6 meses até a data das entrevistas. Dentre os pacientes em que apresentavam a primeira manifestação da doença, a média foi de quatro internações até o momento das entrevistas. Os pacientes com recidiva tiveram mais de dez internações.

Quanto à análise de conteúdo temático dos discursos dos entrevistados referentes ao Núcleo Estruturador "A experiência dos pais quanto ao cuidado de pacientes pediátricos no início da adolescência sob tratamento oncohematológico no contexto hospitalar", na Categoria Geral I "Cuidando de alguém com uma doença grave", temos duas categorias específicas. Em relação à Categoria Específica 1 "A vivência do cuidado como uma tarefa difícil", todos relataram que cuidar de alguém com uma doença grave era uma tarefa difícil e destacam que se torna ainda mais delicada, principalmente quando se trata dos seus próprios filhos.

Silvana – cuja filha foi diagnosticada há dois anos - destacou o sofrimento relacionado à sua reação diante da notícia do diagnóstico dizendo "Quando eu recebi o diagnóstico que ela tinha um tumor, para mim, foi o fim do mundo". Por sua vez, Josué traz como elemento significativo ver o filho sofrer e sentimentos de impotência com as reações adversas do tratamento e os procedimentos que são, muitas vezes, dolorosos e invasivos. Ele diz:

"Dá uma tristeza em mim, só de falar essas coisas já sai a lágrima dos meus olhos… Eu não queria ver ele assim, né? (...) Ele vive mais no hospital do que brincar (...). Ele tava sendo furado, que não achava veia… (...) Ele teve um problema a noite toda, ficou vomitando… Nesse dia, eu me senti muito mal mesmo… (...) Porque eu não posso fazer nada por ele nesse momento, né? Mas aí, nas outras coisas que eu posso, eu ajudo… (...) Tá na mão de Deus (...), eu me dedico porque eu quero ajudar ele até a melhora, né? É assim…" (Josué, 36 anos, solteiro, pedreiro, desempregado, pai de J., de 14 anos).

Quanto à Categoria Específica 2 "A fé como uma estratégia de enfrentamento", cabe destacar que todos os cuidadores, em algum momento, apontaram a importância da espiritualidade, afirmando que isso os auxiliava para aliviar seus sofrimentos permitindo desenvolver seus papéis de cuidadores com mais segurança: "Nós cremos naquilo que Deus promete na nossa vida. Então assim, tem sido muito tranquilo nessa questão. Porque a gente tem um apoio espiritual" (Silvana, 34 anos, casada, pedagoga, desempregada, mãe de V., 14 anos).

Sendo assim, nossos dados estão em consonância com a literatura, que apontam a importância do caráter espiritual e religioso como consolo diante da possibilidade de morte de um ente querido, além de ser uma tentativa de recuperar e ganhar forças para o enfrentamento das situações difíceis que cotidianamente vivenciam (Coelho, 2012).

Na Categoria Geral II, observa-se que os entrevistados entendem que o seu papel é fundamental, como comenta Claudia, a seguir: "Ah! Eu acho que meu papel é fundamental, né? Que eu tô aqui pra dar esse suporte pra ela, pra tudo que… acontecer... Eu explico para ela… Eu acho assim, que eu ajudo muito nos cuidados dela" (Cláudia, 47 anos, casada, dona de casa, mãe de M. C., de 11 anos).

Cláudia avalia seu papel como fundamental, mas estabelece relação com o ajudar, indicando que ela não se vê como alguém que desempenha o papel de cuidado, de fato, mas que apenas auxilia. Outras pesquisas também observaram essa questão, como no caso da pesquisa de Beck e Lopes (2007), na qual o cuidador é visto pela equipe de saúde apenas como aquele que ajuda no processo de cuidar e, nesse sentido, a fala de Cláudia parece acompanhar essa característica. Yavo (2012) aponta que o papel esperado pela equipe é que o cuidador seja um "ajudante" obediente e eficiente, que não deve trazer suas próprias demandas.

Na Categoria Geral III destacam-se as necessidades dos cuidadores, apontando cinco Categorias Específicas: 1. Contato social; 2. Necessidade de uma rede de apoio; 3. Necessidade de acesso às informações; 4. Necessidade de que o filho melhore.

Duas entrevistadas apontam a necessidade de contato social. Destacase aqui a fala de Lucilene que traz sentimentos de ambiguidade, no qual ela percebe que, ao mesmo tempo em que quer estar fora do hospital, quer também estar ao lado de seu filho: "Tenho várias (necessidades). Necessidade de estar lá fora, de estar aqui dentro cuidando dele. A gente sempre tem a necessidade de estar lá fora, mas aqui dentro te prende. É seu filho, né? (...) É difícil." (Lucilene, 34 anos, gestora portuária, desempregada, mãe de C., de 12 anos).

Outro elemento que ganhou destaque nas entrevistas foi a importância de uma rede de apoio. Silvana aponta que a rede de apoio é um aspecto fundamental para que o cuidador não deixe totalmente de lado sua vida pessoal:

"Nesses nove dias, eu não fiquei integralmente com ela (...), vem uma tia, vem outra tia, vem uma prima, vem uma amiga. Então, quer dizer, (…) eu vou em casa, faço minhas coisas, dou atenção para o meu filho, aí eu volto…(...)Se eu não tivesse hoje o suporte que eu tenho, (...) Como que ia fazer, né? (...) Eu ia ter que morar no hospital com ela. Então está indo tudo bem e eu acredito também por conta disso, por conta dessa estrutura que a gente tem" (Silvana, 34 anos, casada, pedagoga, desempregada, mãe de V., de 14 anos).

Em outro momento, Silvana destaca que também sente a necessidade de acesso às informações e saber tudo que é programado no tratamento. Ela diz: "Então, gostaria de ter mais acesso às informações… Para eu poder me organizar melhor (...) Porque quando você conhece, é mais fácil, né? (... ) Eu acho que acaba com muita angústia, né? É muito angustiante quando você… Tá no escuro" (34 anos, casada, pedagoga, desempregada, mãe de V., de 14 anos).

Um quarto ponto que os cuidadores destacaram foi a necessidade de que o filho(a) melhore, como comenta Josué a seguir: "Olha, na verdade, a minha necessidade hoje é ver meu filho bem… Porque casa eu tenho, de fome a gente não vai morrer …(...) Na verdade, a necessidade é ver meu filho bem…" (Josué, 36 anos, solteiro, pedreiro, desempregado, pai de J., de 14 anos).

Na Categoria Geral IV discute-se como o cuidador lida com sua própria saúde, destacando-se a categoria específica "Priorização do cuidado da saúde do filho em relação à própria saúde", pois foi observado que, no geral, a saúde do paciente prevalece sobre a do cuidador. Três entrevistadas apontam que acreditam que sua saúde está boa, entretanto, não sabem avaliar essa questão de forma efetiva, pois afirmam não terem tempo de cuidarem de si e realizar exames de rotina, como vemos na fala de Claudia: "Eu tô fazendo tratamento há 4 meses com ela, eu ainda não fui no médico… Eu ainda não tive tempo de assim parar um pouquinho para ir no médico" (Claudia, 47 anos, casada, dona de casa, mãe de M. C., de 11 anos).

Todos os entrevistados relatam alguma alteração em sua saúde pessoal, mas não estabeleceram uma relação direta entre sua própria condição de saúde e a situação atual de saúde dos filhos. Apesar de tal relação não ser estabelecida por eles, foi possível identificá-la em seus discursos. Silvana, por exemplo, afirmou que tem dores de cabeça devido à preocupação com o estado de saúde da filha. Além disso, todos afirmam terem questões de ordem emocional devido ao adoecimento dos filhos, mas alguns não identificam tal aspecto como componente de sua saúde pessoal. Nota-se que, no geral, atribuem a ideia de saúde como equivalente apenas a questões de ordem biológica, sem considerar os aspectos psíquicos.

Monteiro et al. (2008) identificaram que o cuidador frequentemente abre mão de seu próprio mundo, colocando como suas as lutas e os sofrimentos do paciente, priorizando-os. O discurso de Lucilene ilustra esse tipo de situação: "Ele vai emagrecendo, a mãe vai emagrecendo também, é incrível! Que nem... Ele parou quatro horas da manhã em jejum e aí eu também... Desde quatro horas em jejum..." (Lucilene, 34 anos, gestora portuária, desempregada, mãe de C., de 12 anos).

Na Categoria Geral V, que aborda questões que envolvem ocupar o lugar de cuidador, ao avaliarem o seu papel como cuidadores, apesar de todos se entenderem como fundamentais, tiveram dificuldade em falar de si mesmos, dizendo que não sabiam como fazer tal avaliação. Todavia, revelaram a sensação de não conseguirem fazer seu melhor, não conseguirem fazer tudo que imaginam que poderiam e/ou deveriam, como ilustra a fala de Patrícia, a seguir: "Por mais que a gente tente suprir, sempre vai ter falhas. Por sermos seres humanos, sempre vai ter algo que a gente vai deixar", né? (Patrícia, 33 anos, casada, autônoma, desempregada, mãe de P., de 13 anos).

Além desse aspecto, foi perguntado o que acreditavam que era esperado deles. Todos entendem que seu papel é ajudar ao paciente nas ações orientadas pela equipe de saúde, como, por exemplo, se alimentar e beber água. Comentam também que acreditam ter um papel de suporte, de ajudar a distrair ao paciente e na infraestrutura que o hospital não tem como oferecer, como comenta Patrícia:

"Se a gente tá como acompanhante ou cuidadora é... Você sempre vai desenvolver um papel que, muitas vezes, eles (equipe) não conseguem, entendeu? Eu acho que... Tudo... É como em um carro: todas as peças são necessárias, né? E cada uma tem a sua função, eu creio assim" (Patrícia, 33 anos, casada, autônoma, desempregada, mãe de P., de 13 anos).

Na analogia apontada por Patrícia, todas as peças do carro têm uma função e, em outras palavras, ela se insere como um elemento que compõe a ação de cuidado e reconhece que tem um papel a ser desempenhado que, muitas vezes, não pode ser feito por outra pessoa.

Na fala de todos os entrevistados surgiu a necessidade de se apresentarem como "fortes", principalmente diante do paciente, ainda que internamente se sintam fragilizados e impotentes. A fala de Lucilene ilustra essa questão: "Às vezes [me sinto] meio impotente, porque a gente fica fraca aqui dentro, mas tem que demonstrar força. Não pode nem uma vez deixar a lágrima te dominar, sempre com um sorriso" (Lucilene, 34 anos, gestora portuária, desempregada, mãe de C., de 12 anos).

Menezes et al. (2007) apontam que cuidadores tomam para si a tarefa de sustentar uma condição de suposta tranquilidade e serenidade, ainda que a situação seja grave. Com isso tentam poupar os pacientes de um sofrimento excessivo e, como consequência disso, eles mesmos experimentam sentimentos de desamparo, correndo o risco de comprometer o seu próprio bem-estar emocional e até físico.

Foi possível observar nos discursos que a prioridade diante do contexto do adoecimento voltava-se totalmente para o paciente. Quatro dos cinco entrevistados destacam que, quando há um cuidado voltado para seus filhos, eles também se sentem cuidados (Categoria Específica 4): "Normalmente eles vêm é para falar com ela, né? (...) É ela que está [doente], né? É ela que precisa de atenção… Eles interagem com ela, eu sinto paz" (Cláudia, 47 anos, casada, dona de casa, mãe de M. C., de 11 anos).

Desta forma, é possível notar que os cuidadores têm dificuldade de reconhecer suas próprias demandas e apontam que a prioridade está voltada ao paciente. Silvana também afirma esse aspecto e, de forma poética, usa uma metáfora que envolve luz e sombra para se referir ao contexto que está vivendo. Ela trouxe um jogo de imagens, afirmando se sentir "no escuro" ao falar da falta de informações e, diante do questionamento se deveria haver um cuidado direcionado para ela, fala que "os holofotes" devem estar voltados para a paciente e que a cuidadora deve ficar fora da luz.

Outra mãe, Claudia, também ressalta que, segundo seu ponto de vista, ela não é o foco da ação de cuidado: "Como mãe… Tudo o que for é para minha filha. (...) No momento eu não tô dando muita importância a meu sentimento, mais pra ela mesmo, tá?" (Cláudia, 47 anos, casada, dona de casa, mãe de M. C., de 11 anos).

A noção de "humanização" inclui não somente a valorização da qualidade do cuidado do ponto de vista técnico, mas que seja associada ao reconhecimento dos direitos do paciente, de sua subjetividade e referências culturais, implicando também a valorização do profissional e do diálogo intra e interequipes. Apesar disso, como ainda não estão totalmente delimitados com exatidão os contornos teóricos e operacionais do conceito, sua abrangência e aplicabilidade não estão totalmente demarcados (Deslandes, 2004).

Nesse contexto, alguns detalhes parecem fazer diferença: Lucilene ressalta que ser chamada pelo nome próprio faz muita diferença, sendo algo que vai em direção de um processo de acolhimento das diferenças que se relacionam diretamente com as propostas de humanização, na qual os sujeitos envolvidos no processo de cuidado (pacientes e cuidadores) são vistos como sujeitos de direitos e protagonistas de sua própria história: "É muito bom... Ser chamada pelo nome é muito bom, porque 'mãezinha' é mais uma e a Lucilene não é mais uma. A Lucilene é a mãe do Caique. Essa é a diferença." (Lucilene, 34 anos, gestora portuária, desempregada, mãe de C., de 12 anos).

Na categoria que discute as particularidades do cuidado de adolescentes com doença grave, os entrevistados compreendem que esse fator pode ser tanto um facilitador quanto um dificultador. Tanto Cláudia, quanto Josué, destacaram que a idade foi um facilitador na compreensão da doença:

"Eu me surpreendi com ela, porque ela tem 11 anos… Ela encarou muito bem a doença… (...) Aí eu falei pro meu marido: 'Não falei pra ela que ela tem câncer'... Aí ele veio e me contou [o que ela disse pra ele]: 'Pai, a mãe pensa que eu não sabia… Eu já sabia que eu tinha câncer… Eu só não tocava no assunto porque ela não falava'… Ela já sabia que ela tinha… E eu com todo aquele medo (...) Ela aceitou tão bem que às vezes ela me dá lição..." (Cláudia, 47 anos, casada, dona de casa, mãe de M. C., de 11 anos).

"Olha, na verdade, agora, essa época eu acho que fica mais fácil para lidar (...). Porque no tempo que foi diagnosticado [pela primeira vez], não era fácil para ele, né? Porque ele não entendia. Hoje em dia, ele entende bastante já a situação, ele aceita (...) Ele tem que aceitar… Porque ele também se cuida, ele também… Quer viver, na verdade, né? (...) Ele aceita conversar, ele quer entender também, porque ele sabe da situação, né?" (Josué, 36 anos, solteiro, pedreiro, desempregado, pai de J., de 14 anos).

Por outro lado, Lucilene coloca a compreensão sobre a doença como um fator importante e facilitador, assim como a autonomia mais desenvolvida, na condição do adolescente. Apesar disso, a aceitação da doença é um desafio, uma questão a mais a ser administrada devido à resistência do adolescente em aceitar o tratamento e seus efeitos, agora com um pouco mais de autonomia para se posicionar:

"Então, assim, é muito melhor nessa idade para lidar com o problema, mas é mais difícil. Eles não aceitam a doença mais. Com quatro anos, eles estão debilitados, são obrigados a aceitar. Agora com doze, já não. (...) Não aceita que vai levar a quimio, [aí fala]: 'Não quero'. Sempre é tudo não. Quando está com quatro anos, você vai lá, coloca e pronto. Então, agora com doze, ele levanta, vai no banheiro, liga para avó e fala que está com dor. É tudo muito diferente e mais trabalhoso (...) Quanto maior, mais trabalho" (Lucilene, 34 anos, gestora portuária, desempregada, mãe de C., de 12 anos).

Apesar do sofrimento ao ver o paciente na situação em que se encontra e da sua sensação de impotência, os pais sentem que devem se colocar como porto seguro para os pacientes, não se deixando abater. Entendem seu papel como fundamental e imprescindível. Entretanto, os discursos apontaram que há uma tendência em priorizar o trabalho diretamente empenhado junto aos pacientes. Sendo assim, os cuidadores de pacientes pediátricos no início da adolescência com diagnóstico de câncer têm necessidades e demandas específicas não atendidas, especialmente quanto a questões de ordem emocional.

A necessidade de um trabalho humanizado ficou evidenciada nos discursos, na medida em que há uma busca de aproximação, não apenas do paciente, mas também dos que o cercam. Diante disso, precisamos tomar a reflexão de Benevides e Passos (2005), quando apontam que é necessário compreender que o processo de produção de saúde e o processo de produção de subjetividades são inseparáveis protagonistas e se engajam na reprodução e/ou na invenção dos modos de cuidar. Com isso podemos pensar que para que ocorram transformações no processo de cuidado será preciso que os protagonistas sejam capazes de se colocar no processo e propor novas formas de cuidado. Nessa mesma linha de reflexão, o trabalho de Yavo (2012) nos permite perceber que o cuidar é um contexto cheio de paradoxos, no qual há momentos em que se exige uma postura ativa em que se realize o que é necessário, e, por outro lado, também há momentos em que há uma expectativa de passividade por parte do cuidador, supondo que ele deveria ceder lugar à equipe de saúde que detém o saber que orienta um cuidado.

Outro elemento importante que envolve este trabalho está na especificidade do cuidado voltado ao adolescente que, como apontado, é visto pelos cuidadores como um ganho – no sentido da compreensão do diagnóstico - mas também um desafio, pois devido à idade e maior autonomia, alguns pacientes assumem atitudes mais resistentes para aderirem ao tratamento, ainda que, no final, o façam. Outro ponto importante é ressaltar que a maioria das ações no contexto hospitalar são voltadas às crianças e ao público adulto, porém, a faixa etária que envolve a adolescência não costuma ser tradicionalmente alvo de muitas ações que atendam suas especificidades e demandas específicas.

 

Considerações finais

Diante da soma de tantos elementos, compreende-se que, em um contexto com inúmeras inseguranças, necessidade de tomada de decisões junto ao paciente e por lidarem de forma tão direta com a possibilidade de finitude e com a angústia que ela acarreta, observa-se que as questões de ordem objetiva (procedimentos, diagnósticos, exames, etc) são colocadas à frente e, as subjetivas (como necessidade de suporte emocional) à sombra. Esse jogo de luz e sombra foi evidenciado na fala de Silvana ao afirmar que "os holofotes devem estar em direção a sua filha" e, posteriormente, afirmando que "ela se sente no escuro". Essa metáfora nos permite perceber que há uma expectativa de que as figuras de destaque, os atores principais, sejam o paciente, ou ainda, a equipe de saúde que é vista como detentora de um saber que pode ajudar a fazer cessar o sofrimento. Mas o cuidador, embora seja alvo de inúmeras expectativas (declaradas ou não), fica relegado a um mero colaborador que faz um "trabalho de bastidores".

Para finalizar, considera-se que a experiência dos pais no cuidado de pacientes pediátricos no início da adolescência sob tratamento onco-hematológico no contexto hospitalar envolve sofrimento, sentimento de impotência e priorização do outro. Por outro lado, os discursos também revelaram sentimentos de esperança, superação e dedicação ao filho nesse contexto. Essa experiência complexa sinaliza a importância de um trabalho psicológico, no qual se procura abrir espaço para permitir que os envolvidos possam ser vistos em suas necessidades intrínsecas.

 

Referências

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1 Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista. Graduanda do Curso de Psicologia da UNIFESP-BS. Contato: lg_leticia@hotmail.com.
2 Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista. Docente do Curso de Psicologia da Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista. Responsável pela Área de Psicologia Hospitalar. Vice-chefe do Departamento de Gestão e Cuidado em Saúde. Mestre e Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Psicóloga Hospitalar pelo HC-FMUSP. Contato: kzihlmann@hotmail.com.

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