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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.21 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Desvelando o lugar de acompanhante do paciente em um Centro de Transplante de Medula Óssea

 

Unveiling the patients caregiver's place at a bone marrow transplant center

 

 

Larissa Nunes Benamor1; Daphne Rodrigues Pereira2

Instituto Nacional de Câncer (INCA)

 

 


RESUMO

Nas instituições de saúde, a prática das equipes geralmente está voltada para o doente, cabendo aos acompanhantes um lugar de menos destaque no âmbito de intervenção. Ainda que os acompanhantes desempenhem um papel fundamental no conforto ao paciente e auxílio nos cuidados diários, eles comumente ficam à margem, dificilmente recebendo assistência e suporte específicos. Dentro deste contexto, o presente trabalho busca analisar os efeitos de acompanhar um paciente do Centro de Transplante de Medula Óssea do INCA (CEMO/ INCA), investigando quais as repercussões promovidas na vida de quem ocupa este lugar. Trata-se de uma pesquisa realizada no período de residência multiprofissional em oncologia e física médica, onde foi realizado um estudo teórico-clínico pautado pela teoria psicanalítica. Para tanto, articula as diversas variáveis envolvidas no processo, como complexidade do procedimento e gravidade das doenças tratadas, com conceitos como inconsciente, finitude e narcisismo. A partir da escuta a esses sujeitos, foram analisados fragmentos clínicos em que se observou o impacto ocasionado por tal experiência naqueles que se dispõem a acompanhar o paciente nessa trajetória.

Palavras-chave: transplante de medula óssea; psicanálise; cuidadores; finitude.


ABSTRACT

In health institutions, the professional practice is usually directed towards the sick patient, leaving companions in a less prominent position in the extent of intervention. Although the companions play a fundamental role in the patient's comfort and daily care, they are often left in a secondary place, hardly receiving specific assistance and support. In this context, the present study sought to analyze the effects of accompanying a patient who is undergoing a transplant at the INCA Bone Marrow Transplantation Center (INCA/CEMO). The study investigates the repercussions that this place promotes in the lives of those who occupy it. The present study is a research carried out in the period of multi-professional residency in oncology and medical physics, where a clinical-theoretical study was carried out based on the psychoanalytic theory. It articulates several variables in the process such as the complexity of the treatment, the severity of the treated disease, with psychoanalysis concepts such as unconsciousness, finitude, and narcissism. From the listening of these subjects, clinical fragments based on psychoanalytic theory were analyzed, in which the impact caused by such experience was observed in those who are willing to accompany the patient in this trajectory.

Keywords: bone marrow transplant; psychoanalysis; caregivers; finitude.


 

 

Uma breve introdução

O presente trabalho3 origina-se a partir da experiência como psicóloga residente no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva, mais precisamente, no Centro de Transplante de Medula Óssea (CEMO/ INCA). Este caracteriza-se por receber pacientes cujas outras propostas terapêuticas não obtiveram a resposta esperada e que veem no transplante de medula óssea (TMO) uma última tentativa de tratamento curativo. Certamente, a partir da detecção de uma doença grave, muitas questões já podem se apresentar para um paciente. No entanto, ainda que dentro de um mesmo diagnóstico – como o do câncer, por exemplo –, existe uma gama de quadros distintos, o que determinará o tipo de tratamento escolhido e o prognóstico que se espera. A pertinência desta introdução reside na necessidade de contextualizar o transplante: o paciente que recebe tal indicação já possui uma trajetória de doença grave, tratamentos e insucesso dos mesmos.

O transplante de medula óssea é um procedimento capaz de reverter o mau prognóstico de pessoas acometidas por doenças hematológicas (benignas ou malignas), tumores sólidos, imunodeficiências, doenças de depósito e doenças degenerativas; sendo que algumas destas indicações ainda estão em caráter experimental, e requerem mais estudos para sua consolidação. É um tratamento de alta complexidade, que consiste na infusão de células-tronco saudáveis, progenitoras de células sanguíneas, cujo objetivo pode ser curativo ou de melhora de sobrevida para o paciente. O TMO pode ser autólogo – quando as células a serem enxertadas provêm da própria pessoa –, ou alogênico – quando as células são proveniente de outro indivíduo (SBTMO, 2016). O que consideramos como uma particularidade da clínica neste lugar corresponde ao desafio de atender o paciente que está diante da necessidade de uma tomada de decisão: realizar o transplante e se submeter aos riscos inerentes ao mesmo; ou não o fazer, o que pode significar o retorno ou, pior, o avanço da doença. Em outras palavras, consiste em um momento no qual o sujeito encontra-se submetido a decidir entre a perda assegurada ou o ganho incerto.

Nesse cenário, o trabalho da psicologia se insere nas três etapas atravessadas pelo paciente: pré, peri e pós transplante. A primeira envolve a realização de exames e consultas com a equipe multidisciplinar, a serem realizados pelo paciente preferencialmente acompanhado. O objetivo fundamental desta fase é avaliar a elegibilidade do paciente – considerando também os fatores psicossociais que o cercam – e orientar sobre o procedimento. Uma das principais questões que surgem nesta etapa é que a melhor época para realização do transplante é justamente o momento de remissão, isto é: quando, após os tratamentos realizados, não há sinais de atividade da doença. O problema é que, nesta fase, o paciente sente-se muito bem, às vezes, passando mesmo a acreditar-se curado. Isto gera uma contradição: ele se vê consentindo em se submeter – ou, mais difícil ainda, submetendo um outro, no caso dos responsáveis por pacientes menores de idade ou incapazes – a um procedimento que poderá causar vários efeitos adversos e que envolve incontáveis riscos, inclusive de morte. Paradoxalmente, ele entende que recusar o procedimento pode ser ainda mais arriscado, dada a gravidade de sua doença.

A segunda etapa se refere à internação para a realização do TMO. O tempo de infusão das células-tronco dependerá da quantidade colhida, mas costuma ser breve. Antes disso, porém, o paciente precisa passar pelo condicionamento, que consiste em receber altas doses de quimioterapia, associada ou não à radioterapia, a fim de preparar o organismo para receber o enxerto a ser infundido. A principal consequência desta fase é que, a depender do condicionamento feito, a medula óssea fica aplasiada, ou seja: pára de produzir células sanguíneas e assim permanece por algum tempo. Concomitantemente, o enxerto recebido ainda não é capaz de produzi-las de imediato, disto decorrendo a necessidade do paciente permanecer internado no hospital, em regime de isolamento. Após a recuperação da medula e com a alta hospitalar tem início a última etapa, na qual o paciente continua a receber tratamento, mas agora em regime ambulatorial, ou em hospital-dia. Os principais riscos do transplante se relacionam à ocorrência de infecções potencialmente graves, à toxicidade causada pelos medicamentos e a uma reação imunológica que pode culminar na doença do enxerto contra hospedeiro. Tais fatores devem ser reavaliados sistematicamente e podem levar à reinternações (SBTMO, 2016).

Diante do exposto, a equipe de profissionais ressalta a importância de acompanhantes durante o tratamento no CEMO, pois estes promovem o conforto e suporte ao doente, além de auxiliarem nos cuidados. Contudo, o ambiente hospitalar – que pertence ao cotidiano da equipe – pode ser sentido pela família como estranho, intenso e ameaçador, provocador de mal-estar. Além disso, o processo de tratamento não é simples, não é rápido, não tem garantias e nem prazo de validade. Durante seu decurso, a presença de efeitos adversos pode levar à dor e angústia. Há pacientes que chegam ao CEMO – dependendo do estágio da doença em que se encontram – apresentando poucos sintomas, sem doença visível no corpo. É somente com o início do procedimento que o corpo será marcado pelo impacto do tratamento e assim, tanto o paciente como sua família, perceberão os riscos inerentes ao mesmo.

Do encontro com esta clínica e por intermédio de uma escuta atravessada pela psicanálise, surge o ensejo deste trabalho. Este se constituiu no decurso do acompanhamento diário a situações de sofrimento extremo, mas também marcadas pelo desejo do paciente e investimento do acompanhante. Pois estes, ao mesmo tempo que aceitam submeter-se a uma travessia por vezes muito dura, o fazem por apostar em um recomeço. Nesse contexto, por tratar-se de uma instituição na qual os pacientes têm direito (e são estimulados) a contar com acompanhante durante todo o percurso, consideramos o cuidado ao familiar como indissociável ao do paciente. Como lemos em Andreolli e Silva (2008): "membros da família são necessários para tomar decisões importantes e são também a fonte da história clínica, social e psicológica pregressa do paciente e de seu mundo – dados vitais para a compreensão do caso" (p. 119). Importa salientar que, embora os termos acompanhante, cuidador e familiar não possuam o mesmo significado – pois nem todo acompanhante realmente desempenha o papel de cuidador, assim como nem todo cuidador é familiar – optamos, neste trabalho, por utilizar os três termos atribuindo-lhes o mesmo sentido, posto que todos os participantes eram familiares e exerciam simultaneamente o papel de acompanhantes/cuidadores.

Considerando este cenário e partindo da premissa que não somente o paciente vivencia esse momento de forma intensa, como também o faz aquele que o acompanha, a questão norteadora que o estudo busca analisar é: como o acompanhante vivencia esse momento e quais são os possíveis impactos de presenciar o sofrimento e o risco de morte de um familiar? Propomos essa análise numa articulação com o conceito de inconsciente e a sua relação com a nossa própria finitude.

Uma das consequências precípuas do trabalho balizado pela psicanálise, constituído a partir da fala de um sujeito, implica no reconhecimento de não haver uma leitura única daquilo que é dito. Todas as leituras feitas são produções e concernem àquele que as lê. Garcia-Roza (1992) declara que Freud era quem melhor o sabia, pois, partindo do que era manifesto, foi em busca de outro texto, onde encontra o inconsciente e suas próprias leis. Ao longo da obra freudiana, torna-se patente que o caminho para o inconsciente irrompe naquilo que claudica no consciente, como os atos falhos, os sonhos, os esquecimentos e os sintomas. Os assim chamados fenômenos lacunares são os indicadores preferenciais da existência de uma outra ordem, formalmente distinta do consciente; isto é, submetida a uma outra lei de articulação. Desta forma, a clivagem subjetiva que a psicanálise traz não trata de uma coisa repartida em duas metades, nem se refere a uma região mais profunda; mas sim, de uma cisão de regimes, de um corte. Lacan (1964/1988), no Seminário 11, afirma que não basta dizer que o inconsciente é dinâmico. Ele ratifica a função de causa, de algo não-realizado. Isto é, os efeitos do inconsciente também repercutem na ordem consciente, mas não de forma contígua. Ao se considerar a clivagem do eu, não é possível prever a incidência do inconsciente sobre o consciente. Seguindo este caminho, Lacan acentua a descontinuidade entre a causa e seu efeito.

A correlação mais importante quanto ao dito acima e a clínica no transplante tange, como já mencionado, à questão da própria finitude. Freud (1915a/1996) escreve, em seu texto Reflexões para os tempos de guerra e morte, que o inconsciente de cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade e a morte é sempre tida como contingencial, algo passível de se evitar. Seguindo no texto, todavia, ele faz uma ressalva, declarando que quando várias mortes ocorrem em sequência, essa relação sofre uma transformação. Se a morte acomete um homem, isto pode ser tomado como circunstancial, mas se acomete vários homens, aquele que sobrevive começa a se perguntar se ele também não está suscetível, pondo termo à presença da morte como algo casual em nossas vidas. Desta maneira, o testemunho constante do sofrimento atravessado por um familiar em estado grave – ainda que a morte se apresente como um risco, mas não, obrigatoriamente, uma concretização – se configura como um dos principais pontos a serem abordados, por concernir aos efeitos do encontro entre a não inscrição da morte em nosso inconsciente e aquilo que é vivenciado neste lugar.

 

Reverberações da escuta como método

O trabalho com psicanálise é calcado na escuta ao sujeito, assim sendo, é a partir da clínica – e por meio da linguagem – que se chega ao estudo teórico. As vinhetas clínicas analisadas surgiram a partir de questões trazidas pelos próprios sujeitos, durante os atendimentos de rotina. Isto é: os resultados apresentados são, de fato, achados clínicos, em relação aos quais não havia nenhuma hipótese a priori e sobre os quais passamos a intervir a partir dos atendimentos. Nesta perspectiva, seguimos a afirmativa de Freud (1976/1926), de que na especificidade da psicanálise existe um laço inseparável entre tratamento e pesquisa, uma metodologia em que é impossível tratar um paciente sem apreender algo de novo.

Não se trata, porém, de aplicar este método num modo linear, ou melhor, não se trata de pensar que caso sejam reunidas determinadas condições, um mesmo resultado inexoravelmente se repetirá. Ou que os efeitos encontrados a partir de um dado contexto, sejam passíveis de generalização para outros contextos. Diferentemente desse nexo causal, propomos aqui nos remeter aos textos freudianos como baliza para abrir uma discussão e não a encerrar. O desafio ao campo da psicanálise diz respeito à renovação/invenção de seu saber e de sua prática, fundamentada na particularidade de que, para cada analista, como para cada caso clínico, é necessário reinventar toda a psicanálise novamente (Poli, 2008).

Vale ressaltar que para a realização do estudo, houve preocupação quanto à exigência institucional de os participantes assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Se por um lado, receávamos que tal fato pudesse constrangê-los ou dificultar a expressão de suas questões, o que observamos foi que, para alguns acompanhantes, assinar o referido termo teve como efeito o reconhecimento de seu sofrimento e de que este precisava ser ouvido. Alguns conteúdos, portanto, só foram trazidos pelos familiares após a assinatura do termo, com a compreensão de que estávamos ali para ouvi-los e nos debruçar sobre suas questões também.

Importante esclarecer duas características da pesquisa. O primeiro ponto é que a psicologia atende todos os acompanhantes envolvidos no processo, independentemente de haver ou não alguma demanda prévia. A segunda característica é que estes conteúdos serão trazidos no formato de vinhetas clínicas, pois não requerem uma apresentação formal dos casos para a sua compreensão. Iniciaremos agora a apresentação do que foi colhido.

 

Extratos de uma experiência em um Centro de Transplante de Medula

Tendo em vista o método escolhido para este estudo, torna-se relevante pensarmos sobre este encontro. Verifica-se que pouco tem sido escrito a respeito desta práxis, marcada por características extremamente específicas, que se presentificam em um lugar não habitual para um analista. Nesse aspecto, diante da singularidade de cada contexto e de cada sujeito, a psicanálise coloca-se como um importante recurso para compreensão do novo, para a realização de descobertas, colocando em cena exatamente este lugar onde se produz sentido que é desconhecido até para o próprio sujeito (Freire & Lustoza, 2005).

A partir da experiência clínica, podemos dizer que o CEMO se constitui como um lugar privilegiado para a escuta e intervenção clínicas, posto que neste se presenciam momentos cruciais na vida de uma pessoa. Apesar do tempo aguardando o procedimento e da expectativa pela realização do mesmo, ao ser chamado para a internação propriamente dita, o sujeito pode ser remetido a um inesperado, a uma interrupção da vida como ele a conhecia. Tal ruptura se manifesta nas palavras de um acompanhante, esposo de uma paciente: "não caiu a ficha ainda de que estou aqui, acho que só cairá quando tudo acabar. No momento tenho que ser forte e aguentar o que está por vir".

 

A eleição do acompanhante

Ao se deparar com o adoecimento ou a internação de algum membro, uma família se vê na difícil tarefa de se reorganizar e eleger o acompanhante principal. As especificidades dessa clínica que levam a equipe a incentivar a presença de um acompanhante referem-se, principalmente, à vulnerabilidade ocasionada pelo tratamento, que poderá desembocar no aumento da dependência do paciente em relação a terceiros, durante um período considerável.

Apesar de ser socialmente esperado que esposas cuidem de seus maridos – e vice-versa –, assim como, que os filhos cuidem de seus pais (Berwanger, 2012), a escuta a esses sujeitos nos mostra que o processo de se tornar cuidador não é natural. A decisão para assumir os cuidados do paciente envolve, em algum nível, uma escolha – isto é, o lugar do acompanhante não é definido apenas por laços de parentesco. Não é um lugar naturalmente dado, apontando mais para uma tomada de posição. Na rotina da enfermaria, presenciamos casos em que pacientes, apesar de possuírem famílias que residiam próximo ao hospital, permaneceram desacompanhados durante o período de tratamento. Por outro lado, testemunhamos situações em que o cuidador sequer conhecia o paciente antes do momento da internação, assumindo esta incumbência não por remuneração, mas por razões pessoais.

Um aspecto trazido de forma recorrente pelos familiares que se tornaram cuidadores é que, enquanto eles tomaram para si a responsabilidade, outros abstiveram-se desse papel. Isto significa, para alguns acompanhantes, uma "escolha forçada". Como revela uma mãe que acompanhava sua filha de nove anos:"se não fosse eu aqui, não seria mais ninguém". Neste ponto, nos remetemos à analogia de Lacan (1964/1988; pág. 207), conhecida como "a bolsa ou a vida". Dissertando acerca de nosso assujeitamento, ele exemplifica com a circunstância de sermos abordados por um ladrão, que nos imponha uma decisão: entregarmos a bolsa, ou perdermos a vida. Se insistirmos em manter a bolsa, automaticamente ficaremos sem ambas. Por isso, na tentativa de preservar a vida, entregamos a bolsa. Porém, isto nos leva à condição de uma vida decepada: ocorre uma perda, à nossa revelia. Por fim, conclui que, diante de certas injunções inerentes à vida, resta muito pouca liberdade de escolha.

Continuando a narrativa acima, esta mesma mãe afirmava que, apesar de sentir-se exausta e de possuir obrigações fora do hospital, não conseguia revezar o acompanhamento com mais ninguém. Acreditava que era a sua obrigação cuidar da filha e que o fazia melhor que qualquer um. Ela verbalizava: "nem mesmo o pai (…) Eu sei quando ela [filha] não está bem, ela não precisa nem dizer. Sei de todos os remédios que ela precisa, vejo quando algo está errado. Se fosse o pai, não repararia". Ao mesmo tempo, outros profissionais da equipe consideravam que esta mãe estava sobrecarregada e, apesar das inúmeras sugestões, ela não admitia a possibilidade de dividir esta responsabilidade com mais ninguém. Nesse sentido, cogitamos a possibilidade de haver, concomitantemente à queixa de desempenhar essa tarefa sozinha, um certo ganho por ocupar esse lugar – e que inclusive a impediria de compartilhá-lo com terceiros.

O Ministério da Saúde (2008, p.8) descreve o cuidador como "um ser humano de qualidades especiais, expressas pelo forte traço de amor à humanidade, de solidariedade e de doação". No entanto, as vantagens de ocupar esta posição vão muito além deste reconhecimento social. Já ouvimos de uma acompanhante, por exemplo, que a atividade de cuidar de pessoas que no momento estão dependentes, trazia um "sentido à sua vida" e fazia seus "problemas parecerem pequenos" diante do que assistia no outro. Para ela, em comparação com o sofrimento da pessoa adoecida, sua vida era "muito boa". O que se constata é que, apesar de não ser simples ocupar este lugar, é uma tarefa que pode, em algum nível, proporcionar uma satisfação para quem a realiza.

 

A vida em suspensão

Acompanhar o paciente durante o processo do TMO expõe ao sofrimento em vários aspectos da vida. O que todos os casos analisados demonstraram como marcante fator em comum relaciona-se ao cansaço, sobretudo à perda de qualidade do sono – quase sempre comprometida pela falta de uma cama apropriada – somada às rotinas hospitalares noturnas e às frequentes demandas de cuidados por parte do paciente. Como apontado por uma mãe que acompanhava sua filha de nove anos: "eu não vejo a hora de ir para casa e dormir, pois, aqui tem gente entrando no quarto toda hora, até de madrugada." Além disso, a privação do sono pode ocorrer também devido a apreensão em relação ao estado de saúde do paciente, como aponta esta mesma familiar: "hoje eu só consegui dormir depois de duas horas da manhã, quando a febre baixou. Antes eu ficava checando o tempo todo, preocupada." A mãe supracitada relata que sequer conseguia sair do quarto para almoçar, em consequência da necessidade de cuidados ininterruptos.

Algumas falas revelam também o quanto os familiares encontram-se imersos naquilo que assola o paciente. Um exemplo nesse sentido é mencionado por um cônjuge: "demoramos para encontrar o diagnóstico certo e com isso perdemos muito tempo. Chegamos a tratar com ortopedistas, fisioterapeutas, durante um ano e meio. (…) Quando ficamos internados nas últimas vezes foi muito difícil" [grifo nosso]. A inclusão do enunciador, por meio do uso dos verbos na primeira pessoa do plural, torna visível em sua fala o quanto este cuidador compartilha daquilo que afeta a paciente, sobretudo, a angústia e o medo. Os acompanhantes nos transmitem isso em seu discurso, ainda que não percebam, tal como nos explica Lacan (1973/1985, p.161): "Falo sem saber. Falo com meu corpo, é isto, sem saber. Digo, portanto, sempre mais que sei. É aí que chego ao sentido da palavra sujeito no discurso analítico. O que fala sem saber me faz eu, sujeito do verbo.".

Isto nos permite dizer que, em alguns casos, o cuidador encontrava-se tão mergulhado na rotina do paciente, que ele experimentava o que nomeamos de "vida em suspensão": onde tudo está voltado para os cuidados do paciente. Como elucidado nas palavras de uma filha, adulta, que acompanhava a mãe: "a prioridade nesse momento é minha mãe", ao explicar que, para se dedicar à sua mãe, interrompera todas as suas atividades. Dentre as maiores dificuldades relatadas pelos cuidadores, estão a incompatibilidade de conciliar com o trabalho remunerado, a impossibilidade de cuidar de outros parentes – como os filhos saudáveis –, assim como a falta de momentos de lazer. No tocante a essa última questão, essa mesma filha traz para os atendimentos a dificuldade de ter um envolvimento amoroso, desde que a mãe adoecera há cerca de dois anos. Refere que demais membros da família nunca estão presentes e, em suas palavras, são "egoístas", pois "poderiam ajudá-la, mas não querem abrir mão da vida lá fora" – como ela relatava fazer.

Além disso, observamos em alguns casos, mudanças nos papéis familiares – como o filho que passa a cuidar dos pais, ou a esposa que acompanha o marido e afirma: "tenho que trocar a fralda dele, igual a um neném". Frequentemente, verificamos que novos arranjos tiveram que ser construídos, assim como novas divisões de tarefas, dentro e fora de casa.

 

A fragilidade escancarada

Conforme já descrito, não é incomum a queixa da sobrecarga e da ausência dos demais familiares. Uma esposa que acompanhava seu marido revela: "querer, eu não quero estar aqui. Mas as pessoas da família que podem, não querem". Em outro atendimento, a filha de uma paciente afirma que os demais familiares não estavam presentes "por não conseguirem ficar". Essas falas nos fazem questionar: o que levaria essas pessoas a não comparecerem, ou não suportarem, estar ali?

Em uma unidade de tratamento como o CEMO, os sujeitos ali presentes – seja exercendo a função que for – podem ser levados a presenciar o limite do mal-estar do corpo, onde a vulnerabilidade constituinte de nós mesmos torna-se escancarada. Em algumas circunstâncias, a dor e o sofrimento são originados não somente pela doença, mas pelos próprios tratamentos agressivos aos quais os pacientes precisam ser submetidos. Freud (1929/2006), ao discorrer acerca das principais fontes de mal-estar para a humanidade, afirma que o sofrimento nos ameaça a partir de três direções: do mundo externo – o qual pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas –, das relações com outros seres humanos e do nosso próprio corpo. Este último, segundo o autor, está fadado ao declínio e à dissolução, não podendo sequer dispensar a dor e o medo como sinais de advertência.

Além disso, a trajetória de doença, tratamentos e de insucessos destes, já se iniciou antes da chegada ao CEMO. Tanto neste decurso, quanto no momento do transplante, observamos uma tentativa de elaboração do luto – não necessariamente pela perda do familiar, mas pela perda da saúde do familiar. Como evidencia uma mãe durante a internação: "Essa aqui dentro não é minha filha, pois ela estava brincando, pulava, dançava no outro dia.". Ou nas palavras de um pai, que expressa em frente ao leito do filho, na presença da criança: "sinto saudades do meu filho, de quando ele se arrumava para ir para escola, antes de descobrir a doença" [grifo nosso]. Nesses casos, interrogamos se essa elaboração não se refere também à perda do filho ideal. Freud (1914/1996) afirma que a atitude de um pai para com seus filhos pode se constituir como uma revivescência do seu próprio narcisismo. Os pais passariam então a atribuir à criança todas as perfeições e a esquecer seus defeitos, tendendo a renovar nela todas as exigências de privilégios que há muito tempo eles tiveram que renunciar com a vida adulta. Nesta direção, podemos notar o quanto o adoecimento e tratamento contrariam a projeção dos pais de que seus filhos teriam uma fruição melhor da vida e de que estariam livres de todo sofrimento, doença e morte.

 

A ambivalência dos sentimentos concernidos ao cuidar

Em meio ao desejo de estar próximo e participar do tratamento do familiar, encontramos também a presença de sentimentos ambivalentes quanto a ocupar esse lugar. Dentre as três fontes de mal-estar humano enumeradas por Freud (1929/2006), ele aponta o sofrimento que provém das relações humanas como talvez o mais penoso e fatidicamente inevitável. Na rotina hospitalar, torna-se evidente a imposição de proximidade que paciente e acompanhante ficam expostos durante a internação. Mergulhados nesse papel, a rotina de cuidados pode ser vivenciada como uma perda da privacidade, excedendo-se os limites da intimidade que havia antes. Um exemplo que ilustra esta situação é narrado por alguns familiares, que nos revelam sentimentos como repulsa e nojo, derivados do contato com fluidos e dejetos corporais do paciente. Essa ideia sobre uma aproximação excessivamente íntima do ser humano com o próximo é bem representada pela famosa alegoria schopenhaueriana dos porcos-espinhos, citada por Freud (1920-1923/2013):

Um grupo de porcos-espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia de frio de inverno, de maneira a aproveitarem o calor um dos outros e assim salvarem-se da morte por congelamento. Logo, porém, sentiram os espinhos um dos outros, coisa que os levou a se separarem novamente. E depois, quando a necessidade de aquecimento os aproximou mais uma vez, o segundo mal surgiu novamente. Dessa maneira foram impulsionados, para trás e para frente, de um problema para outro, até descobrirem uma distância intermediária, na qual podiam mais toleravelmente coexistir (p. 112).

Nesse sentido, quais seriam os impactos – para o paciente e para o acompanhante – de permanecerem longos períodos de intensa proximidade emocional e física? Ainda seguindo com Freud (1920-1923/2013), este aponta que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas, que perdure por certo tempo – casamento, amizade, relações parentais –, contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escaparia à nossa percepção em consequência da repressão. Esses afetos costumam surgir, desde seu início, em pares opostos; num fenômeno capaz de gerar certo estranhamento, denominado ''ambivalência de sentimento''. Este autor acrescenta também que o exemplo mais observável e compreensível disso reside no fato de que o amor e ódio intensos possam, com frequência, coexistirem na mesma pessoa – e que esses dois sentimentos, não raramente, possuam o mesmo objeto em comum.

Isto remete-nos à fala de uma mãe empenhada nos cuidados de seu filho de quatro anos, que nos dirige as seguintes indagações: "Por que só eu tenho que ficar na parte ruim? (…) Quando eu sair daqui serei outra pessoa, uma pessoa pior. Não quero que ninguém chegue perto do meu filho, já que ninguém vem visitá-lo" [grifo nosso]. Ela expressava também que o filho, frequentemente, solicitava falar com o pai por telefone. No entanto, ela negava todas essas solicitações de contato desde que o casal se separara, há nove meses. Nesta situação, além da acompanhante manifestar um importante sofrimento, ela revelava ainda algo difícil de ser expressado: os sentimentos ambivalentes envolvidos no processo de cuidar, incluindo-se a raiva por ocupar este lugar de modo solitário. Claro está que não é possível, a princípio, afirmar que esta mãe sairá desta experiência melhor ou pior – até porque não cabe aqui nenhum julgamento neste sentido. Mas o que queremos sinalizar, a partir de sua fala, se refere à mescla de afetos que permeiam e constituem os sujeitos. Nessa dimensão, Freud acrescenta que "raramente um ser humano é totalmente bom ou mau; via de regra ele é 'bom' em relação a determinada coisa e 'mau' em relação a outra, ou 'bom' em certas circunstâncias externas e em outras indiscutivelmente 'mau'' (Freud, 1915a/1996, p. 291).

Freud (1915a/1996) também declara que, diante da constatação de tais sentimentos, um leigo reagiria, erroneamente, com um horror extraordinário, já que não se trata de uma depreciação dos sentimentos de amor. O autor defende que a Natureza, fazendo uso desse par de opostos, consegue manter o amor sempre vigilante e renovado, a fim de protegê-lo contra o ódio que jaz, à espreita, por detrás dele, defendendo que "poder-se-ia dizer que devemos as mais belas florações do nosso amor à reação contra o impulso hostil que sentimos dentro de nós" (p. 309).

No hospital, essa imisção de afetos diversos e contraditórios é também, com frequência, dirigida aos profissionais. Como relatado por uma mãe que afirmava ter sentido-se "irritada" na época da internação de sua filha, afirmando que, em alguns momentos, precisou se conter para não brigar com a equipe – principalmente durante a realização de alguns procedimentos. Se por um lado, esses sentimentos hostis podem ser interpretados pelos profissionais como originados somente de suas relações com os familiares, o que essa mãe nos trouxe, a posteriori, era que se tratava de uma raiva gerada pelo adoecimento da filha. Um acúmulo de preocupação, cansaço, dentre outras questões que ela só pôde elaborar após a alta. Apesar dos desentendimentos entre familiares e equipe dentro do hospital surgirem de múltiplas circunstâncias, o que este caso nos faz pensar é que, muitas vezes, esses sentimentos podem ser derivados de um deslocamento, da substituição de um lugar por outro, ou de uma pessoa por outra. A raiva pela perda de saúde de um familiar, por não ter um objeto concreto a que se possa direcionar – já que a doença não é um ente – com frequência é dirigida àqueles que prestam a assistência.

 

Protegendo o paciente de sua dor

Em uma circunstância de internação, torna-se ainda mais difícil para o familiar falar dos sentimentos diante do doente. Em algumas situações, ao realizarmos o atendimento ao leito, pudemos notar que, apesar de o familiar verbalizar estar bem, algo em seu semblante apontava em outra direção. Posteriormente, em atendimentos realizados somente com o acompanhante, ouvimos de alguns a crença de que a maneira como eles enfrentariam a situação, influenciaria no modo como o paciente lidaria com o tratamento. Nesse contexto, o acompanhante se priva de demonstrar ou falar de sua tristeza e preocupações junto ao paciente, acreditando que isso o "desanimaria" a continuar suportando a doença. Não é incomum os relatos de querer "dar força" ao paciente, ou como uma filha nos revela, "proteger o paciente de sua dor". Outro exemplo pode ser observado também na fala de uma mãe, que ao presenciar a equipe de voluntários cortando o cabelo da filha [antes que caísse devido à quimioterapia], afirma: "Eu sei que eu não posso chorar na frente dela, tenho que me manter forte. Tenho medo que ela abandone o tratamento".

Além da tentativa por parte do acompanhante de velar certos pensamentos e sentimentos, em outras situações percebemos um pudor em fazer menção ao risco de agravamento do quadro clínico do paciente. Nessa direção, uma mãe que acompanhava seu filho de vinte e um anos e que soubera do óbito de outro paciente jovem – que também havia feito o transplante de medula – nos dirige as seguintes afirmações: "fico tentando poupar meu filho das coisas que acontecem aqui dentro. Se ele pergunta de outros pacientes, eu digo que está tudo bem". Apesar do quadro clínico e prognóstico dos pacientes em questão serem distintos, o que esta mãe trazia para os atendimentos é o quanto este acontecimento a remeteu a possibilidade da perda do filho. Como nos lembra Mohallem e Moura (2003), esse momento limite vivido por um familiar no hospital pode ser justamente o momento para a oferta do analista que, com sua presença, pode propiciar o surgimento da demanda do outro, início de um trabalho analítico.

Sobre o temor da perda do ente querido ser revelado apenas em atendimentos exclusivamente com cuidador, Freud (1915a/1996) nos lembra que quando se trata da morte de outrem, o homem civilizado cautelosamente evita falar de tal possibilidade no campo auditivo da pessoa adoecida. Segundo o autor, apenas as crianças desprezam esse comedimento e abertamente se ameaçam umas às outras, chegando ao ponto de fazer a mesma coisa com alguém que amam, como, por exemplo: "querida mãezinha, quando você morrer eu farei isso ou aquilo" (p. 299). Por outro lado, o adulto dificilmente pode alimentar o pensamento da morte de outra pessoa, sem parecer diante de seu próprio julgamento como insensível ou malvado; a menos que, como médico ou advogado, por exemplo, precise lidar com a morte em caráter profissional. A pessoa se permitirá menos ainda a pensar na morte de outra se algum proveito em termos de liberdade, propriedade ou posição estiver ligado a ela.

Todavia, constatamos que esta tentativa de proteger o outro e a si mesmo desses pensamentos e temores é algo que fracassa, pois apesar da intenção de escondê-los, parece haver algo que escapa por parte do familiar e que muitas vezes é registrado pelo paciente. O que nos sinaliza este fato é que, embora o cuidador não mencione certos conteúdos na presença do paciente, este último comumente solicita atendimento individual ao acompanhante, por perceber que este está em sofrimento. Como lemos em Rüdger (2007), existe algo que escapa a todos nós, algo que foge da consciência, algo que obedece a pulsões e que se manifesta nos mais variados modos. A teoria psicanalítica, tendo como objeto de estudo os fenômenos inconscientes, questiona vários conceitos como autonomia, liberdade, determinação, dentre outros. Nesse aspecto, Freud (1917/1996) esclarece a impossibilidade de um domínio sobre todas nossas ações e sobre o desgoverno de nossos afetos. O eu não é, portanto, senhor em sua própria morada.

 

O cuidar diante do sentimento de impotência e desamparo

No que concerne ao ambiente hospitalar, são vários os fatores provocadores de intensos afetos, a veemência dos sintomas pode assustar a quem acompanha. Diante dessa circunstância, os sentimentos de impotência e desamparo com o qual o familiar se depara, por encontrar-se como mero expectador, são testemunhados frequentemente. Apesar dos pacientes depositarem suas esperanças e se submeterem ao processo de transplante buscando maiores chances de cura, o que observamos é que nem o mais moderno aparato tecnológico é capaz de trazer algum tipo de garantia. Se no passado, o campo de conhecimento mais avançado no mundo era a física, hoje a ciência que mais recebe investimentos para pesquisa é a biologia e suas diferentes áreas, juntamente às ciências da saúde (Ide, 2007). Por esse prisma, parece haver na contemporaneidade uma ilusão de que a ciência responderá a tudo, sobretudo no que concerne ao sofrimento humano. Entretanto, apesar de todos os esforços para mudar a realidade à qual estamos submetidos, existem circunstâncias que escapam do escopo da ciência. Ou, nas palavras de Freud (1929/2006, p.44): "a ciência ainda não conseguiu muita coisa, mas mesmo que progredisse mais, não bastaria para o homem. Este possui necessidades imperiosas de outro tipo, que jamais poderiam ser satisfeitas pela frígida ciência". Nesta lógica, poderíamos afirmar que o exemplo mais evidente desse mal-estar do homem, o qual tenta-se evitar a todo custo, seria a própria finitude?

De acordo com Barros (2013), diferentemente de outros seres vivos – que têm um mundo ao qual se integram perfeitamente – o homem se encontra desprovido de qualquer saber prévio que lhe permita sobreviver como indivíduo. Freud (1895/1996) destaca a imaturidade biológica do recém-nascido humano frente às ameaças decorrentes do mundo externo, o que coloca o bebê na total dependência de um semelhante, responsável pelos seus cuidados. Para sobreviver, é absolutamente imprescindível que exista um outro que o acolha, interprete suas manifestações e responda a elas. Ele segue afirmando que além dessa situação de desamparo perdurar durante toda a vida, ela seria, sobretudo, o estado em que se encontra o ser humano diante do risco de, a qualquer momento, entrar em sofrimento sem nada poder fazer para eliminá-lo. No hospital, vários são os fatores desencadeadores desse mal-estar, escancarando a fragilidade do humano. O adoecimento mostra, sobretudo, que existe um limite biológico ao qual estamos todos submetidos, fazendo com que a questão da finitude esteja sempre presente, de forma consciente ou não.

Diante de tudo que foi dito, podemos nos perguntar: o que resta ao homem frente à incessante possibilidade de se deparar com a terminalidade no mundo? A partir dessa questão, Freud (1915a/1996) nos lembra que é justamente porque estamos sempre ameaçados de perder o que amamos, que temos a chance de lhe dedicar mais amor. A efemeridade de algo não implica em uma perda de seu valor – pelo contrário, implicaria exatamente em um aumento deste. Talvez, por essa razão, o que se presencia na rotina hospitalar é uma dedicação, um empenho e manifestação de amor que, dificilmente, são testemunhados em maior intensidade em outro lugar.

 

Fazer falar a diferença

Considerando que a presente escrita surge a partir da escuta aos familiares de pacientes que se submeteram a um transplante de medula óssea – procedimento marcado por um longo percurso de dúvidas e incertezas – é importante frisar que não pretendemos, com esse trabalho, finalizar a discussão. Ao contrário: propomos aqui apenas mais um passo dentro de um campo vasto e marcado por tantas singularidades.

Embora a palavra acompanhante seja um termo que remeta a um lugar comum, cada pessoa ocupará esse lugar de diversas formas, já que não está definido, a priori, o que faz um acompanhante ou a especificidade desse papel. Conforme foi discutido, por não ser um lugar natural, existe um limite para cada um. Em certas situações, presenciamos familiares que não suportaram estar ali e foram embora – ou que nem chegaram a estar presentes. Diante de algo que se apresenta à revelia do sujeito – já que ninguém realmente escolhe precisar de um transplante – tanto o paciente como sua família só saberão os efeitos de decidirem por estar ali posteriormente. Um exemplo claro de "só depois". Se para alguns, cuidar de um paciente neste contexto traria certa satisfação, para outros, essa vivência poderia levá-los a experimentar o limite do insuportável.

A experiência clínica mostrou ainda que, diante do adoecimento de um ente querido, o acompanhante pode ser remetido ao sentimento de impotência e desamparo, por encontrar-se como mero expectador do sofrimento e da possibilidade da perda do familiar. Ademais, conforme foi analisado com Freud (1929/2006), o reconhecimento de que o ser humano nunca dominará a natureza e o organismo corporal por completo não possui um efeito paralisador, "pelo contrário, aponta a direção para a nossa atividade" (Freud, 1929/2006, p.93). Assim como, também para Freud (1915b/1996), é justamente nossa transitoriedade no mundo que nos faz aumentar o valor da vida. Para Peralva (2008), a morte, enquanto limite, engendra uma dimensão de urgência, impulsionando a vida através das questões que mobiliza em cada sujeito. Essa autora ressalta ainda que a presença e a escuta do psicanalista permitem que algo desse confronto com a finitude possa ser encaminhado pela fala.

Diante dessa circunstância, o cuidador pode construir saídas frente aos impasses e dificuldades que se impõe em sua vida, pego com o inesperado adoecimento e possibilidade de morte de um membro da família. Como nos lembra Mohallen e Moura (2003), ao estarmos diante de um outro que sofre, seja ele paciente ou familiar, é ético inaugurar constantemente o novo e o inédito, no sentido de ser uma possibilidade de tratar o insuportável através do um a um, tendo como direção o fazer falar a diferença para que cada sujeito possa existir no que ele tem de mais singular. Contudo, é imprescindível frisarmos que isso só será possível para este sujeito se, primeiramente, houver o reconhecimento – tanto da equipe profissional, como do próprio – de que este também sofre por se encontrar no lugar de acompanhante. Cabe à equipe de profissionais ouvi-lo, atentando no que para o acompanhante está difícil suportar, propiciando assim que ele construa saídas singulares frente ao que vivencia, tema que propomos que continue a ser explorado em trabalhos posteriores.

 

Referências

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1 Psicóloga – Instituto Nacional do Cancer (INCA) – Rio de Janeiro, RJ. Contato: larissa.benamor@gmail.com.
2 Psicóloga no Centro de Transplante de Medula Óssea do Instituto Nacional de Câncer (CEMO/ INCA), Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Contato: daphne.pereira@inca.gov.br.
3 O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do INCA no dia 06 de junho de 2016, sob o número de CAAE: 56381016.0.0000.5274, tendo sido aplicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para todos os participantes.

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