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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.21 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

A criança gravemente doente fala sobre a morte: um relato de experiência

 

The deeply sick child talks about death: an experience report

 

 

Marina Ferreira Arienti1; Marcos Vinícius Zoreck Portela2

Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná

 

 


RESUMO

Em nossa sociedade, a morte ocupa o lugar de interdito, principalmente quando se trata da morte de crianças. Pouco ou quase nada é dito sobre o tema nas instituições de saúde. O silêncio sobre o assunto revela o que se tenta esconder: o adoecimento e a morte da criança. O presente artigo discute os motivos do silêncio do adulto diante da iminência de morte da criança e a função dos atendimentos de psicologia como lugar de escuta e fala para essas crianças. Este relato de experiência surge a partir do trabalho da psicóloga no Programa de Residência Integrada e Multiprofissional em um hospital com crianças gravemente doentes. Utilizou-se da teoria produzida por Raimbault e Kovács para fundamentar a prática do psicólogo e um relato clínico, que expõe o trabalho que a paciente conseguiu realizar quando oferecido um espaço de escuta.

Palavras-chave: criança; morte; hospital.


ABSTRACT

In our society, conversations about death takes an interdict place, mainly when regarding the death of children. Almost nothing is said about this subject at the health centers. The silence about this subject shows what it is trying to hide: the illness and the child's death. This article tries to discuss the effects in adults when they face the proximity of the death of a child and the importance of the psychological services as a place of listening and speaking for these children. This experience report is based on the psychologist's work at a Multiprofessional's Residence Program of a hospital with deeply sick children. The theory developed by Raimbaut and Kovács was used as base for the psychologist's practice and the clinical report that shows the work that the patient was able to achieve when a listening space was offered.

Keywords: children; death; hospital.


 

 

Introdução

O hospital é um lugar dedicado ao processo de cura, no qual se objetiva o tratamento e a recuperação do paciente. Acolhe-se um universo amplo de doentes, desde recém-nascidos até idosos, com doenças crônicas ou agudas, de fácil tratamento e até alguns com prognóstico reservado. Entretanto, apesar de ser uma instituição vista como um lugar de luta pela vida, nem sempre se obtém tal êxito. Por vezes os pacientes adoecem gravemente e morrem.

Nos corredores de um hospital, é comum ouvir murmurinhos e frases de adultos que expressam compaixão ao defrontar-se com uma criança doente. Nas unidades de internação pediátricas, alguns familiares apresentam grandes dificuldades para visitá-las, pois passam mal ao aproximar-se das enfermarias, chegam a angustiar-se. Nas instituições hospitalares e de saúde, eventualmente, alguns profissionais recusam a tarefa de trabalhar nos setores pediátricos. Raimbault (1979) explicita que o adulto esquece da criança que foi e vive a lembrança da infância como desejou, sempre feliz e sem limites, entretanto ao deparar-se com uma criança doente rompe-se a ilusão de um período no qual era sempre feliz, inocente e ignorante.

Royer (1979), no prefácio do livro A Criança e a Morte, expõe a dificuldade do adulto em aceitar e lidar com o fato de que as crianças morrem. "As crianças também morrem. Aceita-o Epicteto. Revolta-se Camus. Resignamse, abatem-se, indignam-se ou calam-se as famílias, os acompanhantes, o coro antigo. Os fatos, porém, são inflexíveis e o adulto refugia-se na ambiguidade". (p. 15). O refúgio do adulto é o não falar no assunto na tentativa de ignorar os fatos que, no entanto, são irrefutáveis.

Este artigo surgiu a partir da vivência da autora, psicóloga em um Programa de Residência Integrada Multiprofissional, nos atendimentos ocorridos com um paciente em estado grave, nos primeiros meses da residência, que logo faleceu. Este fato gerou forte impacto e questionamento à profissional sobre as possibilidades do trabalho do psicólogo com crianças gravemente doentes. Outro fator inquietante é o quanto o tema da morte permanece à margem no cotidiano de um hospital. Imediatamente após o óbito de uma criança, pouco ou quase nada, é dito entre os integrantes da equipe e, rapidamente, outra criança é internada.

Na pesquisa de revisão de literatura a respeito do atendimento psicológico com crianças enfermas, encontra-se textos sobre a importância de não ocultar fatos ou evitar falar sobre o tema com o paciente (Mariano & Possibom, 2015). Aberastury (1964) também destaca a necessidade de escutar e falar com as crianças sobre o assunto, pois estas possuem a compreensão do seu adoecimento e da hospitalização, de modo que o silêncio poderá gerar mais solidão. Torres, Guedes e Torres (1980) introduzem que o psicólogo tem a tarefa de não as deixarem debater-se sozinhas, permitindo que expressem suas emoções, fantasias e medos. Raimbault (1979) evidencia o conhecimento claro das crianças sobre a iminência de morte, entretanto, também salienta que não existe uma padronização das reações do paciente e do tratamento psicológico.

Os autores acima apontam o trabalho do psicólogo como aquele que se encontra junto da criança no seu adoecimento, suportando ouvir e falar sobre sua doença e a internação. Entretanto, diante de um ambiente no qual a morte é escondida e silenciada, como o psicólogo pode exercer um trabalho no sentido contrário?

Kovács (1992) apresenta a educação para morte como uma alternativa, como um momento de desenvolvimento pessoal e autoconhecimento que se propõe a busca de sentido para a vida e a preparação para a morte. Raimbault (1979) indica que o psicólogo deve continuar exercendo o método clínico nesses casos. De acordo com Figueiredo (2004) o trabalho clínico segue a "direção do 'aprendiz da clínica', ou seja, colher das produções do sujeito os indicadores para seu tratamento" (p. 83).

O objetivo deste artigo é discutir os motivos do silêncio do adulto diante da iminência de morte da criança e as possibilidades de trabalho do psicólogo com crianças gravemente doentes. Para atingir o objetivo, realiza-se a discussão sobre a concepção de infância e morte na sociedade atual, temas que permeiam a prática dos profissionais no ambiente hospitalar no setor da pediatria, e o trabalho do psicólogo neste contexto por meio de um relato de experiência. Utilizou-se de um recorte clínico e das teorias produzidas por Raimbault e Kovács para fundamentar as possibilidades de trabalho. Ambas as autoras apresentam experiências práticas e teóricas com o tema específico da infância, Raimbault (1979) utiliza como referencial teórico a psicologia clínica e a psicanálise, Kovács (2005) propõe a educação para morte como metodologia de trabalho.

 

A Máscara do Silêncio

Ariès, no livro História Social da Criança e da Família (1981) mostra que houve uma mudança da sociedade na forma de perceber a infância e a morte. O autor relata que na idade média as crianças ocupavam um papel de anonimato diante da sociedade e das famílias. Era normal se ter um grande número de filhos sendo que alguns desses sobreviviam e outros não. Quando uma criança morria era logo substituída por outra. A partir do século XVIII, na sociedade industrial, a criança passa a ter uma função central neste núcleo e, assim torna-se impossível conceber a perda ou a substituição de um filho. Na sociedade atual, o filho é considerado aquele que dará continuação ao nome da família.

A criança passa a exercer na sociedade um papel de continuidade dos pais e da geração anterior, ocupando o ideal de que a nova geração será melhor do que a anterior. Nas crianças, deposita-se a ilusão de um mundo melhor. Acredita-se que elas irão alcançar conquistas impossíveis e que suas falhas não aparecerão. Freud (1914/1969), no texto Sobre o Narcisismo: uma introdução, apresenta:

"A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação – 'Sua Majestade o Bebê', como outrora nós mesmos nos imaginávamos." (pp. 97 - 98)

Entretanto, quando a criança adoece e morre esse ideal se rompe. A criança gravemente doente lembra ao adulto que todos são submetidos à castração, que a morte pode acontecer a todos e em qualquer momento, sem respeitar o ciclo da vida.

Oliveira (1999), no livro A criança e sua dor, organizado por Marisa Decat de Moura, questiona o significado do silêncio do adulto diante da criança doente:

"O que será que o adulto não consegue escutar da criança? Será que escutar a angústia da criança faz suscitar a possibilidade de morte? Será, então, sobre a morte que o adulto não consegue escutar, muito menos falar? Mas sobre qual morte? A do outro (no caso, a criança)? Ou a morte dele mesmo?" (p. 30)

Escutar sobre a morte de uma criança é defrontar-se com duas perdas: a da criança e a própria. A perda de uma criança significa a ruptura da idealização da infância e do futuro que estaria por vir. Encontrar-se com a morte do outro é, por alguns instantes, defrontar-se com a própria morte. Fato este insuportável e que tende a ser esquecido rapidamente.

Raimbault (1979) apresenta como título do primeiro capítulo de seu livro 'Falam as crianças, silenciam os adultos', fazendo referência ao silêncio do adulto a respeito do tema, mas também aponta a possibilidade de ser diferente com as crianças. De acordo com a autora, as crianças gravemente doentes têm conhecimento sobre a iminência de sua morte e desejo de falar sobre a sua vivência. Elas percebem em seu corpo o agravamento da doença, o destino das outras crianças doentes e as mudanças de comportamento da equipe e da família. Entretanto, é necessário que a criança encontre alguém que aceite e suporte penetrar junto com ela em seus pensamentos, para que assim seja possível a ruptura do silêncio, pois caso isso não aconteça, a criança também irá se calar.

O caso a seguir é um exemplo do trabalho que pode ocorrer quando se oferece uma escuta ao paciente. Maria, 12 anos, internada na Unidade de Terapia Intensiva. Diagnosticada com tumor na cervical aos nove anos, ficou tetraplégica após realizar a cirurgia de retirada do tumor. Dois anos após a cirurgia, a paciente foi novamente internada por quadro de infecção urinária e na investigação encontrou-se um novo tumor na mesma região. Permaneceu internada por aproximadamente cinco meses.

Foi observado pela psicóloga a dificuldade da mãe em ouvir as queixas da filha sobre suas impossibilidades devido a tetraplegia e seu quadro clínico. A equipe também relatou que tal atitude da mãe era frequente desde que a paciente perdeu os movimentos, fato ocorrido há aproximadamente dois anos. Quando reclamava de suas limitações, a mãe respondia "que dó do meu anjinho" de forma irônica e afastava-se. Tal atitude mostrava a dificuldade em ouvir a filha falar sobre suas angústias. Maria percebia a reação e calava-se. A partir das observações da psicóloga e das conversas com a equipe, decidiu-se continuar os atendimentos com a paciente e encaminhar a mãe para que outra psicóloga do serviço a atendesse.

Durante as sessões, Maria gostava de criar letras de músicas, histórias e poemas. Ela ditava as palavras e a psicóloga as escrevia. Em um atendimento, a mesma sugeriu elaborar um poema, este com o título de "Estrela cadente":

O sol nasce todo dia

As crianças brincam

As crianças correm

As crianças pulam

No fim do dia o sol se põe

E aparece uma estrela cadente

Faço um pedido para ela

De eu voltar a andar

Ela pediu para escrever "e o pedido se realizou", mas, logo depois, pede para apagar, pois desconhecia o fim dessa história. Não sabia se o pedido iria realizar-se. Comentou que nunca viu uma estrela cadente e que, às vezes, achava que era um mito. Após alguns minutos em silêncio falou "acho que as estrelas cadentes não existem". Expressou, através do poema, seu desejo de voltar a andar e a vontade de brincar, correr e pular como as outras crianças. Ainda, mostrou ter algum conhecimento sobre a sua condição e a impossibilidade de voltar a andar.

Logo após criar o poema acima, decidiu inventar outro intitulado de "O pedido". Começou a ditar algumas palavras até o momento em que a enfermeira entrou no quarto. Calou-se, esperou alguns minutos e depois anunciou: "vou mudar a história". Neste momento, demonstrou que junto a psicóloga sentia-se livre para falar sobre sua doença, seus desejos e seus medos, sem pressões, sem cobranças e, assim, se construía a possibilidade de ser ouvida e também ouvir-se. Quando outro profissional apareceu ela calou-se, não falou mais sobre seu adoecimento, sua história mudou.

A paciente fazia pequenas tentativas de falar com a equipe ou com a mãe sobre a sua doença e como estava se sentindo, mas logo era silenciada com respostas como "tadinha", "você irá melhorar" ou retiravam-se do box após o comentário ou queixa da mesma. Raimbault (1979) demonstra que "todo diálogo autêntico mostra-se insuportável, ninguém é capaz de ouvir o depoimento do condenado, ninguém pode responder-lhe" (p. 18). Dessa forma, através do silêncio, escondia-se o que não se queria enxergar, a doença e a piora de Maria. O silêncio penetrava todas as relações: entre mãe e filha, equipe e paciente e equipe e mãe. A mãe não falava com a filha sobre a sua doença ou o tratamento, a paciente até aquele momento, não podia falar sobre sua condição com ninguém, pois era praticamente insuportável para todos escutá-la. Alguns integrantes da equipe apresentavam grande dificuldade de conversar com a mãe sobre a piora de Maria e o início dos cuidados paliativos. Nesse contexto sem diálogo, sem troca, Maria encontrou alguém que se dispôs a ouvi-la, percebeu isso e começou a usar o espaço dos atendimentos como melhor lhe aprouvesse.

 

O Trabalho do Psicólogo com Crianças Gravemente Doentes

Kovács (2005) caracteriza o século XXI pelo paradoxo do silêncio e argumenta que, ao mesmo tempo em que a morte ocupa o lugar do interdito, também se constata uma maior exposição da mesma na vida cotidiana através da violência urbana e pela superexposição na mídia. Em uma sociedade em que reina a conspiração do silêncio, a autora propõe a educação como forma de reflexão sobre o tema. "Propomos a ampliação do escopo da educação para a morte, fundamentada pela importância da discussão do tema numa sociedade na qual convivem a morte interdita, a busca da rehumanização da morte e a morte escancarada no cotidiano das pessoas" (Kovács, 2005, p.488). Kovács (2005) define:

Educação para morte é um estudo sobre a possibilidade do desenvolvimento pessoal de uma maneira mais integrada, no sentido entendido por Jung (1860) como individuação, o desenvolvimento interior que se propõe perante o existir, desenvolvimento que também pressupõe uma preparação para a morte (Kovács, 2005, p. 486).

O trabalho da educação funciona como forma de auxiliar o paciente a compreender seus sentimentos e, assim, enfrentar a situação. De acordo com Paiva (2014), educar consiste em informar a criança por intermédio do conhecimento oportuno e adequado para cada um e que este seja gerador de transformações e ressignificações. Dessa forma, o trabalho da educação para morte segue a direção do profissional apontar e informar para o paciente as questões relativas à vida e morte, ao processo de hospitalização e sentimentos para que esse possa trabalhá-las internamente.

Raimbault (1979), por sua vez, apresenta uma forma de trabalho com crianças gravemente doentes diferente. A partir de sua prática, pode-se inferir a necessidade do psicólogo levar a prática clínica ao seu extremo. No momento em que muitos recuam ou fogem, a autora propõe que o profissional não renuncie do seu fazer clínico. De acordo com Figueiredo (1995) a clínica consiste em aprender com o paciente:

Se cabe ao clínico aprender com o paciente algo que mais ninguém pode ensinar, algo que não está disponível em parte alguma, que só ocorre no próprio clinicar e que conseguimos nomear e, quem sabe, teorizar, sua 'técnica' basicamente será a de instituir o tempo e o espaço para que o outro venha a ser e se mostre em sua alteridade (p. 74).

O trabalho realizado pela psicóloga residente utilizou o método clínico e a perspectiva da psicanálise para fundamentar sua prática. Os atendimentos de Maria, referida anteriormente, ocorreram a partir da aposta de que a paciente queria e tinha condições para falar sobre o que estava vivendo e com o objetivo de ofertar um espaço em que ela pudesse se expressar.

Raimbault (1979) argumenta que a criança gravemente doente pode reconhecer a terminalidade de sua vida e assim realizar o caminho do luto, luto por suas famílias e o luto por ela mesma. Nesse percurso, o papel do psicólogo é estar junto a criança, suportando escutá-la, inclusive no seu silêncio. Ao identificar que existe alguém junto dela, que não irá abandoná-la ou se afastar no momento em que sua doença se agravar, a criança se sentirá à vontade para falar sobre o que sente. A mesma destaca que: "a única ajuda que podemos dar à criança moribunda é mostrar-lhe que temos vontade de permanecer com ela até o fim" (Raimbault, 1979, p.50).

Após quatro meses de internação, Maria começou a apresentar o agravamento do seu quadro clínico. A mãe e equipe não falavam com a paciente sobre o tratamento, quando a mesma perguntava a respeito de seus exames, respondiam em poucas palavras que estava tudo bem, mesmo não estando. Em uma sessão, Maria resolveu criar uma história: "Cinco adolescentes foram acampar em uma floresta e acabaram sendo mortos pelo homem da serra elétrica. Os pais os procuravam até que acharam uma carta escrita: 'Adeus, eu amei muito vocês'". Quando a paciente terminou de narrar a história, chamou sua mãe e alguns membros da equipe para ler. Rompe, de forma metafórica, o silêncio que todos faziam a respeito de seu quadro clínico, ela mostra que compreende a gravidade de sua doença e que inicia o caminho do luto comunicando a todos o quanto ela amou-os.

Após a mãe ler a história comentou apenas que a letra da psicóloga estava feia. Seria a letra da psicóloga feia? Ou estaria referindo-se à história como feia? Ouvir sobre a morte naquele momento, quando a filha está internada na UTI e encontra-se com um prognóstico reservado, é tarefa impossível para essa mãe. A técnica de enfermagem comenta que a história era muito assustadora. Realmente, pensar sobre a morte é assustador. A reação da mãe e da profissional de enfermagem ao lerem a história demonstrou a insuportabilidade de lidarem com as palavras da paciente e com a possibilidade de morte da mesma. Naquele momento, a paciente conseguiu enfim falar sobre seu adoecimento com todos ao seu redor, entretanto sua mãe ainda não consegue ouvi-la. As palavras da filha expõem o que era tão difícil de aceitar, a proximidade da morte. Maria percebeu a impossibilidade da mãe e, depois disso, pouco falou com a mesma sobre o adoecimento, contudo possuía os espaços dos atendimentos de psicologia para expressar-se, falar sobre sua vivência, angústias, medos e desejos.

O recorte clínico acima evidencia que muitas vezes a única pessoa que suporta ouvir o que estes pacientes têm a dizer é o psicólogo. Raimbault (2001) destaca que o trabalho com crianças próximas à morte exige que o profissional esteja disposto a acompanhá-las verdadeiramente, e também inclui a árdua tarefa de se trabalhar. Aceitar tal tarefa impõe ao psicólogo deparar-se com as questões descritas ao longo do texto como aquelas que o adulto tenta evitar, a perda da idealização da infância e a morte como destino a todos. Atender pacientes gravemente doentes é presenciar a exacerbação da doença e a possibilidade de morte a cada dia. Entretanto, quando o psicólogo aceita esse desafio, a criança, por sua vez, rapidamente identifica que tem alguém junto com ela e que não a abandonará. Nos atendimentos com Maria, a psicóloga não abordou ou direcionou o assunto da morte, contudo a paciente se dispôs a falar de sua vivência quando reconheceu na profissional alguém com desejo de ouvi-la.

Outros fatores importantes a serem considerados são o tempo e a singularidade de cada paciente. Não é possível ter pressa ou tempo determinado. O profissional precisa respeitar o tempo do paciente e sua capacidade de elaboração, que poderá ser de dias ou até meses, pois é ele que realiza o trabalho no atendimento e, dessa forma, indicará o tempo necessário para que o mesmo ocorra. No relato de caso foi possível perceber que a paciente e sua mãe encontravam-se em momentos diferentes de elaboração do adoecimento, sendo importante respeitar o tempo de cada um.

 

Considerações Finais

Ao longo da residência, período em que ocorreu maior vivência no ambiente hospitalar, atendimentos clínicos, supervisão, análise pessoal e o aprofundamento teórico, pôde-se observar o trabalho realizado pelas crianças quando oferecido o atendimento da psicologia como espaço de escuta e fala. Constatou-se que elas compreendem a gravidade de seu quadro clínico, sentem em seu corpo a exacerbação da doença e percebem as mudanças de comportamento do adulto. Dessa forma, ao descobrirem a possibilidade de falar sobre o seu adoecimento de forma segura, as crianças se apropriam deste espaço e falam sobre suas angústias, medos e desejos.

O contato com crianças próximas da morte exige que o adulto se depare com temas insuportáveis, como a perda da idealização da infância e a morte como destino à todos, inclusive a ele mesmo. O silêncio e o afastamento, ao defrontar-se com crianças gravemente doentes, são formas de refugiar-se diante de tais questões. Com isso, é importante que os familiares, profissionais de saúde e o próprio psicólogo realizem um trabalho pessoal para auxiliar na elaboração destes conteúdos. O atendimento psicológico pode ocorrer com os familiares possibilitando que eles trabalhem suas questões acerca do adoecimento da criança. As equipes de saúde envolvidas nos cuidados do paciente precisam do apoio por parte dos profissionais da psicologia para compreender e lidar com a exacerbação da doença e a possibilidade de morte do paciente. O psicólogo que se dispõe a trabalhar com crianças gravemente doentes se impõe a realização de um inevitável trabalho pessoal, pois é preciso que este profissional suporte ouvir o que estas crianças têm a dizer e possa estar junto delas sem recuar ou afastar-se perante os conteúdos trazidos.

Kovács (2005) e Raimbault (1979) advertem sobre o silêncio a respeito do tema da morte em nossa sociedade, entretanto, apresentam a possibilidade de realizar um trabalho com as crianças moribundas. Elas ressaltam a importância de proporcionar um espaço para estes pacientes de fala e escuta, que propicie abordar aquilo que todos procuram evitar: a doença e a morte. As autoras também demonstram diferenças em suas formas de trabalho. Kovács (2005) apresenta a educação para morte como recurso para informar ao paciente questões relativas à vida e morte, e Raimbault (1979) ressalta a importância de seguir o método clínico como condição de escuta dessas crianças. A prática da psicóloga residente encontrou conformidade com a teoria exposta por Raimbault. A partir da escuta clínica foi realizado o trabalho com a paciente, sem o direcionamento da profissional para questões relativas à morte e internação, a vontade de falar sobre estes assuntos emergiu da própria paciente.

No relato clínico apresentado, foi possível perceber que Maria realizou um trabalho quando encontrou alguém disposto a ouvi-la. Ela reconheceu o espaço com a psicóloga como um lugar em que poderia falar o que desejava e o utilizou decididamente. Rompeu o silêncio sobre o seu adoecimento. Começou a falar sobre a iminência de sua morte a todos ao seu redor, expondo suas angústias e medos. Apesar de ser difícil para a equipe e familiares escutarem as palavras da paciente, ela não se calou e se fez ser ouvida. Essa nova atitude da paciente gerou efeitos, voltou-se a discutir sobre a necessidade da internação prolongada e o início dos cuidados paliativos em casa. A paciente foi a óbito em casa após quatro meses da alta hospitalar.

A partir do relato clínico, observou-se que ao oferecer um espaço de escuta à paciente, deixando-a livre para falar o que quisesse, respeitando o seu tempo e a sua singularidade, proporcionou-se a possibilidade de que ela pudesse expressar sua vivência, dor e sofrimento. A paciente conseguiu romper o silêncio da sua doença com a psicóloga e posteriormente com sua família e a equipe. Através dos atendimentos ela conseguiu elaborar sobre o seu adoecimento e também se fez ser ouvida.

 

Referências

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1 Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Psicóloga residente do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Atenção Hospitalar no Eixo de Concentração de Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente. Contato: marinarienti@gmail.com.
2 Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Contato: mvzportela@gmail.com.

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