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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.1 São Paulo Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

Vicissitudes da experiência laborativa de enfermeiros de Unidades de Terapia Intensiva Neonatal

 

Vicissitudes of nurses' work experience in Neonatal Intensive Care Units

 

 

Raíssa Ramos da Rosa1; Carolina Villanova Quiroga2

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre/RS

 

 


RESUMO

O trabalho profissional ocupa uma posição de valorização na contemporaneidade, apresenta-se como central na vida do sujeito e possui inegável importância identitária. A partir dos pressupostos teóricos da Psicodinâmica do Trabalho e da Psicanálise, este estudo tem como objetivo compreender as especificidades da experiência laboral de enfermeiros em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) brasileiras. Para tanto, realizou-se uma revisão bibliográfica de artigos publicados entre os anos de 2008 e 2017 indexados nas bases de dados BVS, SciElo, LILACS e PsycINFO. Constatou-se a presença de estressores próprios do âmbito em questão e a existência de uma amplitude de tarefas exigidas aos profissionais. Observou-se também a lacuna que se apresenta entre o trabalho prescrito e o trabalho efetivo, sendo necessário que o sujeito mobilize suas capacidades criativas para fazer frente aos impasses impostos pela realidade. Assim, percebeu-se a necessidade de lançar um olhar cuidadoso para o profissional da enfermagem a fim de que este possa cuidar de si e exercer efetivamente suas práticas de cuidado, considerando a mutualidade de cuidados como princípio ético fundamental. Propõe-se como intervenção a promoção de grupos de encontros que permitam a elaboração das experiências do trabalho em UTIN e promovam o cuidado com o profissional cuidador.

Palavras-chave: cuidados de enfermagem; unidades de terapia intensiva; saúde do trabalhador; psicanálise.


ABSTRACT

Professional work occupies a position of appreciation in contemporaneity, presenting itself as central to the subject´s life, having an undeniable identitary importance. Based on the theoretical assumptions of Work Psychodynamics and Psychoanalysis, this study aims to comprehend the specifics of nurses working experience in Brazilian Neonatal Intensive Care Units (NICUs). A bibliographic review of articles was carried out between the years 2008 and 2017, indexed in the databases BVS, SciElo, LILACS and PsycINFO. It was verified the presence of stressors of the scope in question and the existence of a wide range of required tasks for professionals. It was also observed the gap that exists between the prescribed work and the effective work, being necessary that the subject mobilize its creative capacities to face the imposed impasses by the reality. Thus, it was perceived the need to take a careful look at the nursing professionals so that they can take care of themselves and effectively exercise their practices of care, considering the mutuality of care as a fundamental ethical principle. It is proposed as an intervention the promotion of groups of meetings that allow the elaboration of the work experiences in NICU and promote the care with the caregiver professional.

Keywords: nursing care; intensive care units; occupational health; psychoanalysis.


 

 

Introdução

O trabalho configura-se como um fenômeno substancialmente amplo e complexo, sendo problematizado e discutido por diferentes áreas do conhecimento. Parece consensual que a vida laborativa se apresenta como central na vida do sujeito (Dejours, 2012), ocupando uma posição de significativa valorização nos tempos atuais. A noção de trabalho ganha diferentes significados de acordo com o viés pelo qual é explorado. A psicanálise, diferente de outras concepções, como as propostas pela sociologia e pela economia, ocupa-se das vicissitudes do exercício laboral na vida psíquica do sujeito.

Desde a década de 1980 se percebe a crescente discussão acerca do trabalho como fonte de adoecimento e sofrimento psíquico (Silva & Ramminger, 2014). Christophe Dejours, psicanalista francês, é considerado atualmente, em âmbito internacional, uma das principais referências no campo da "Saúde Mental e Trabalho" (Barros & Lancman, 2016). É tido como um grande expoente da disciplina "Psicodinâmica do Trabalho", a qual está em desenvolvimento desde 1980, tendo se dedicado, até os tempos atuais, ao que chamou de "Clínica do Trabalho". Dejours lança a perspectiva do exercício laboral como produtor de saúde, o que é considerado uma inversão do que comumente as discussões sobre esta temática centravam-se, ou seja, o trabalho como produtor de adoecimento e alienação. É importante frisar que este autor não desconsidera a existência de padecimento no campo laboral, porém direciona o olhar para a potencialidade existente no campo do fazer (Silva & Ramminger, 2014).

Desde o nascimento da Psicanálise, o papel do trabalho na cultura e na vida psíquica do sujeito é problematizado. Sigmund Freud, em "O Mal-Estar na Civilização" (1930/2011), apresenta o seu entendimento a respeito do trabalho como sendo resultado da sublimação das pulsões. A sublimação é entendida como um importante traço da evolução cultural, pois permite ao sujeito direcionar a sua energia para elevadas atividades psíquicas, como as científicas e artísticas, as quais possuem papel significativo nas civilizações. Ainda sobre a sublimação, Freud destaca que "o melhor resultado é obtido quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual" (Freud, 1930/2011, p. 23). Assim, percebe-se que na gênese da Psicanálise o exercício laboral está situado no campo da obtenção de satisfação, o que posteriormente será ampliado ao longo da obra de Christophe Dejours ao abordar a dinâmica pela qual o ofício constitui-se como produtor de saúde mental.

Dentre as diversas profissões que se configuram atualmente, tem-se a enfermagem como uma importante disciplina teórica e prática cuja característica central se encontra no cuidado ofertado ao outro (Silva & Kirschbaum, 2008; Vieira, Silveira, Silva, Rodrigues, & Martins, 2014). No âmbito hospitalar, os profissionais da saúde – os enfermeiros são a maior categoria de trabalhadores inseridos neste contexto (Vieira et al., 2013) – convivem diariamente com aspectos relativos à dor, perda e morte, o que pode acarretar experiências de fragilidade, vulnerabilidade, medos e incertezas (Kovács, 2010).

Uma das áreas de atuação do enfermeiro no âmbito hospitalar é a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) que se destina a atender recém-nascidos que necessitam de cuidados profissionais especializados (Rocha et al., 2012). Esta é considerada uma das unidades mais difíceis de trabalhar (Nunes, Monteiro, Aguiar & Luz, 2013), sendo um local gerador de estresse (Fogaça, Carvalho, Cítero & Nogueira-Martins, 2008; Matos et al., 2012; Nunes et al., 2013; Pereira et al., 2013; Rodrigues, 2012; Vieira, et al., 2013) e com alto risco de desencadear o processo de desenvolvimento de Síndrome de Burnout (Ferreira, Azevedo, Cunha, Cunha, & Cardoso, 2015; Ferreira, Vasconcelos, Oselame, Oliveira & Dutra, 2016; Fogaça et al., 2008; Glória, Marinho & Mota, 2016; Matos et al., 2012). Diante disso, faz-se necessário atentar para os sentimentos de quem cuida, visto que estes interferem diretamente na qualidade do cuidado ofertado ao outro e na qualidade de vida do enfermeiro intensivista (Moreira, Sousa & Ribeiro, 2013; Nunes et al., 2013).

A partir dos aportes teóricos da Psicodinâmica do Trabalho e da Psicanálise, este artigo objetiva compreender as especificidades da experiência laboral de enfermeiros em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) brasileiras. Escolheu-se privilegiar a palavra "experiência" no sentido benjaminiano do termo, onde há a possibilidade de elaboração do que é percebido cotidianamente e de construção de traços de memória (Benjamin, 1989), considerando que as marcas do passado permitem apreender o presente e traçar o futuro, dando sentido à história do sujeito. Pretende-se assim realizar uma leitura do trabalho exercido por profissionais da enfermagem que atuam em UTIN, considerando as especificidades da profissão em contato com as particularidades desta unidade hospitalar. Para tanto, realizou-se uma revisão bibliográfica de artigos indexados nas bases de dados BVS, Scielo, LILACS e PsycINFO utilizando os descritores: enfermagem, trabalho, saúde do trabalhador, unidade de terapia intensiva, psicologia, psicanálise e cuidado, em diferentes combinações. Nesta busca, incluíram-se artigos publicados entre os anos de 2008 e 2017, não havendo restrição metodológica para sua inclusão. Além disso, utilizou-se a lista de referências dos artigos de busca, não sendo assim seguido o critério de tempo estipulado. Objetivando o enriquecimento teórico, buscaram-se também livros e dissertações pertinentes ao tema.

Destaca-se nesse ponto a implicação das autoras com o tema em questão. A primeira integrou uma equipe de Psicologia denominada "Saúde da Mulher" em âmbito hospitalar, atuando principalmente no ambiente de UTI Neonatal junto aos pais dos bebês em tratamento nesta unidade (Rosa & Gil, 2017). A partir desta experiência, pode-se atentar para a equipe de saúde, principalmente enfermeiros e técnicos de enfermagem, que, não raro, procuravam o profissional da psicologia buscando uma escuta. Ainda, observou-se o envolvimento emocional da equipe tanto com os seus "pacientes diretos" quanto com os pais destes. A partir de relatos de pais, chamou a atenção o quanto a presença e o cuidado da equipe de enfermagem lhes eram caros, influenciando diretamente na relação deste adulto com seu filho recém-nascido. Já a segunda autora atuou com pacientes pediátricos em diferentes unidades hospitalares, muitos advindos das unidades neonatais. A partir disso, este trabalho procura lançar um olhar para o profissional que cuida e que, para tanto, também necessita ser cuidado, considerando que "o turbilhão de emoções que nos acompanha no trabalho é inseparável de nossa condição de humanidade" (Onocko-Campos, 2014, p. 90).

 

Entre o Prescrito e o Efetivo: a Experiência Laborativa em UTI Neonatal

O processo de subjetivação do sujeito, a partir da leitura psicanalítica, ocorre por meio de influências do contexto sociocultural em contato com a história individual, sendo o olhar para as interfaces entre os aspectos do mundo interno e do mundo externo condição sine qua non para a reflexão sobre o sujeito (Kegler, Santos & Macedo, 2011). A partir destas proposições, os autores apontam para o trabalho como um importante elemento de interseção entre a realidade psíquica e material. Através da atividade profissional, o sujeito obtém satisfações de ordem concreta e simbólica. A primeira está relacionada com a necessidade de sustentar-se, podendo manter, desta maneira, o bem-estar físico, ou seja, suprir as demandas de ordem autoconservativa. Já a segunda diz respeito ao significado simbólico que o trabalho adquire na vida psíquica do sujeito a partir de seus investimentos pulsionais. Diante disto, percebe-se a relação da experiência laboral com o narcisismo do sujeito, ou seja, com o sentimento de estima de si, pois toma o seu ofício como objeto de investimento de importante quantidade de energia psíquica (Kegleret al., 2011).

A partir do conceito de narcisismo introduzido, revela-se a possibilidade que o sujeito tem de aplicar as suas habilidades e competências e assim obter reconhecimento através de sua atividade laboral (Dejours, 2012). Neste sentido, trabalhar não é apenas produzir, mas também transformar a si mesmo; modificação que ocorre na medida em que o sujeito adquire novas habilidades e potencialidades durante seu processo laboral. Para Dejours (2012) o fortalecimento da identidade ocorre a partir do reconhecimento pelo olhar do outro, sendo o trabalho uma oportunidade de mobilizar a atenção deste outro não diretamente para si, mas para o que produz. A experiência laborativa também adquire relevância no campo identitário na medida em que interfere na forma do sujeito reconhecer a si mesmo a partir do que realiza como ofício (Dal Forno, 2015). Além de ser um elemento constituinte e fundamental da personalidade, o trabalho também se delineia como essencial na manutenção das relações sociais (Kegler et al., 2011).

Alguns sujeitos, a partir de suas escolhas singulares, dedicam-se ao ofício da enfermagem, a qual, em suas diferentes áreas de atuação, pauta-se no cuidado ofertado ao outro (Silva & Kirschbaum, 2008; Vieira et al., 2014). Faz-se fundamental destacar a necessidade ética de discussões e problematizações constantes sobre o significado do cuidar, visto que, baseadas em discursos de cuidado, ações geradoras de sofrimentos físicos e psíquicos foram realizadas ao longo da história. Dentro do bojo das práticas de cuidado em enfermagem, são esperadas, destes profissionais, atitudes de prontidão e eficácia na assistência prestada, sendo que, muitas vezes, a perfeição na realização de tarefas é vista como uma obrigação inerente à profissão (Traesel & Merlo, 2009). Quanto à formação acadêmica dos profissionais de saúde, Kovács (2010) ressalta a preocupante realidade a respeito dos currículos não abrangerem os aspectos emocionais que permeiam a prática cotidiana. A desatenção para esta esfera parece permanecer nas relações de trabalho posteriores, onde os enfermeiros não se sentem autorizados para expressar seus sentimentos, procurando por ajuda especializada apenas quando são acometidos por uma doença grave e incapacitante (Traesel & Merlo, 2009).

Neste sentido, observa-se que os enfermeiros estão expostos a altos níveis de exigência e sofrimento psíquico, o que pode acarretar consequências nocivas à saúde mental. Esta discussão faz-se mister ao considerarmos que a atuação em enfermagem demanda saúde física e, especialmente, saúde psíquica para o exercício efetivo do cuidado (Vieira et al., 2013). Ademais, destaca-se que o modo como o enfermeiro se relaciona com o paciente está diretamente associado ao cuidado dispensado a si mesmo (Baggio, 2007; Kovács, 2010). Uma das importantes áreas de atuação é junto à pacientes internados em unidades hospitalares de urgências e emergências, sendo a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) uma destas. A UTIN desenvolveu-se durante a década de 1960 (Ministério da Saúde, 2011) e destaca-se por ser altamente tecnológica, mecanizada, ruidosa, regrada e imprevisível, sendo considerada um ambiente agressivo física e psicologicamente (Pereira et al., 2013). Neste contexto, a produção de cuidado humano requerida pela profissão de enfermeiro é considerada um desafio (Souza & Ferreira, 2010).

O Ministério da Saúde lançou, no ano 2000, a Norma de Atenção Humanizada ao Recém-nascido de Baixo Peso (Método Canguru), a qual embasa a política de humanização preconizada para a atuação em UTI Neonatal (Ministério da Saúde, 2011). Articula-se com a Política Nacional de Humanização (PNH), também conhecida como HumanizaSUS. O Método Canguru é definido como um modelo de assistência perinatal que visa ao cuidado humanizado, propondo estratégias de intervenção biopsicossocial. Neste estão explicitadas práticas que devem ser assumidas pelos profissionais de saúde que exercem seu ofício no âmbito em questão. Algumas delas são: diminuição do nível de ruídos; redução da luminosidade; utilização de procedimentos menos dolorosos e estressantes; agrupamento de tarefas a fim de reduzir o número de vezes em que o bebê é manipulado; manutenção da temperatura adequada e maior atenção ao posicionamento e conforto do recém-nascido. Além destas recomendações de nível ambiental, o manual também atribui à equipe de saúde a orientação às famílias; o oferecimento de suporte emocional aos pais; o encorajamento ao aleitamento materno; o desenvolvimento de ações educativas, entre outras (Ministério da Saúde, 2011).

O Ministério da Saúde (2011) propõe que estas condutas sejam assumidas por todos os profissionais de saúde da equipe multiprofissional que atuam em UTIN, não direcionando tarefas específicas para determinada especialidade. Entretanto, sabe-se que são os enfermeiros quem mais permanecem em contato com os familiares do recém-nascido internado e são os principais responsáveis pela inserção da família na UTI Neonatal (Costa, Locks, & Klock, 2012). A partir da realidade apresentada, entende-se que cabe à equipe de enfermagem a adoção das inúmeras condutas propostas.O impasse que se estabelece é quanto às possibilidades de implementação destas novas ações. Pesquisas apresentam como resultado alguns entraves no oferecimento de assistência humanizada, como a falta de recursos humanos e materiais, além do desgaste a nível físico e psíquico (Forte, Trombetta, Pires, Gelbcke, & Lino, 2014; Moreira et al., 2013; Nunes et al., 2013; Pereira et al., 2013; Rodrigues, 2012; Vieira et al., 2013). Assim, percebe-se que a humanização não está totalmente inserida na UTI tal como preconizada (Moreira et al., 2013), devido, em parte, à ausência de olhares e escutas sensíveis para a experiência destes profissionais.Onocko-Campos (2014) amplia esta discussão para os diversos saberes que atuam na área da saúde, nos espaços de hospitais, postos de saúdes, centros de atenção psicossocial, equipes de saúde mental, entre outros, e destaca (p. 59): "nas organizações de saúde que trabalham diretamente com gente, uma grande parte do cansaço dos trabalhadores deve-se à permanente exposição ao sofrimento e à morte; daí a necessidade de repor-se". Onocko-Campos aponta justamente para o perigo da produção de efeitos iatrogênicos na medida em que as equipes de saúde não possuem espaços de cuidado.

O ofício da enfermagem, especialmente o realizado em UTIN brasileiras, também se caracteriza pela sobrecarga de trabalho. As situações de urgência e emergência acarretam a necessidade de trabalhar em ritmo intenso, acelerado e sob pressão constante, havendo pouco tempo para pausas. O número de funcionários geralmente é reduzido e há carência de recursos materiais disponíveis nas unidades, principalmente em hospitais da rede pública de saúde, gerando precárias condições de trabalho e impedindo que determinadas tarefas sejam realizadas com eficiência. A superlotação das unidades é frequente, o espaço físico é inadequado e, em algumas situações, há falta de preparo da equipe para lidar com tamanha demanda. Ademais, a desvalorização da categoria se torna evidente ao atentarmos para o baixo piso salarial, o que acarreta em jornadas duplas de trabalho e comprometimento na qualidade de vida ao gerar desgaste físico e emocional (Fogaça et al., 2008; Forte et al., 2014; Nunes et al., 2013; Rodrigues, 2012).

Na conjuntura da realidade brasileira, a precarização do trabalho é uma questão de grande preocupação. O cenário político-econômico atual aponta para iminentes retrocessos em relação aos direitos conquistados pelos movimentos sociais de outros tempos. Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010) destacam diferentes dimensões do processo de precarização que ocorre no Brasil, tais como vínculos de trabalho menos estáveis (sem garantia de benefícios), lógica que considera como gastos desnecessários os investimentos em saúde do trabalhador e aumento da terceirização com consequente enfraquecimentos dos sindicatos. As autoras também alertam para a lógica produtiva da sociedade capitalista enquanto limitante da possibilidade do exercício laboral se constituir como meio de desenvolvimento das potencialidades do ser humano. Tornam-se preocupantes os dados que denunciam a degradação das políticas públicas do país, sendo que a área da saúde sofre impactos diretos tanto nas condições de trabalho oferecidas quanto no acesso da população a serviços de qualidade (Druck, 2016).

O ambiente físico da UTIN pode contribuir para os sintomas de estresse e influenciar negativamente o serviço realizado. São ambientes fechados que apresentam iluminação e temperatura artificiais (Rodrigues, 2012). Também são restritos, sendo orientado que não haja circulação por outros setores do hospital para prevenção de contaminação (Fogaça et al., 2008; Souza &Ferreira, 2010). Os ruídos provenientes dos monitores e respirados são potenciais geradores de irritação e de dificuldade de comunicação entre a equipe. Este aparato tecnológico é considerado essencial pela função de alertar o profissional a respeito de alguma instabilidade do paciente, porém geram consequências desagradáveis, sendo que alguns enfermeiros relatam insônia por terem a sensação de continuarem ouvindo os alarmes mesmo em casa (Rodrigues, 2012).

A dinâmica que se estabelece entre os diferentes efeitos gerados pelo exercício laboral mostra-se relevante para a reflexão a respeito das condições psíquicas dos profissionais para a realização de práticas de cuidado humanizado (Souza & Ferreira, 2010). Alguns motivos de insatisfação entre os enfermeiros da UTIN são a falta de autonomia, falta de comunicação da equipe, precárias condições de trabalho e sofrimentos dos pacientes. Já os fatores de satisfação dizem respeito à atuação no sentido de salvar vidas, o reconhecimento e o trabalho funcional em equipe (Forte et al., 2014). Alguns profissionais também referem o trabalho em UTIN como fonte de prazer por este se configurar como um desafio, sendo uma experiência agradável e geradora de realização profissional e pessoal (Nunes et al., 2013).

Adentrando no campo teórico no que concerne à prática laborativa, esta é entendida por Dejours (2012) como o hiato existente entre o trabalho prescrito e o trabalho efetivo. O primeiro é conceituado como todas as previsões e procedimentos descritos a priori a respeito da tarefa a ser exercida, como por exemplo, as prescrições existentes nos protocolos e manuais. Porém, mesmo a organização do trabalho sendo clara, rigorosa e detalhadamente descrita, o estrito cumprimento das prescrições mostra-se impossível (Dejours, 2004). A prática laboral diária é permeada por situações inesperadas, incidentes, desequilíbrios no funcionamento, incoerências organizacionais, imprevisibilidades etc. Assim, o trabalho efetivo diz respeito à realidade que se impõe na prática diária, denunciando o que a prescrição não consegue dar conta. Desta maneira, percebe-se o estabelecimento de uma lacuna entre o prescrito e o efetivo. É na tentativa de preencher este hiato que o trabalho irá se dar (Dejours, 2012).

Considerando a perspectiva dejouriana apresentada, percebe-se que o trabalho necessita ser inventado, dentro dos limites de cada ofício, sendo sempre um exercício de interpretação e de criação. Cabe ao trabalhador, a partir da sua subjetividade, inventar e criar diante das vicissitudes de seu labor (Dejours, 2004). Em entrevista à Barros e Lancman (2016), Christophe Dejours ressalta que trabalhar é fracassar e, em seguida, ser capaz de suportar a experiência de fracasso e não se render a ela, mas sim confrontá-la até que se encontre uma solução. Neste confronto, a inteligência do sujeito é mobilizada. Inteligência não é aqui concebida como habitante cerebral passível de mensuração, o conceito proposto pressupõe a experiência afetiva na relação com o real, permitindo pensar em soluções para os impasses que se impõe, sendo, portanto, inteiramente subjetiva.

Cabe aqui destacar o significado do título da obra "Trabalho Vivo" publicada em 2012 por Christophe Dejours. O autor entende o trabalho vivo como aquele que implica a inteligência e a mobilização da subjetividade. O trabalhador é convocado a acrescentar algo de si para alcançar o resultado, e neste processo também se desenvolve e fortalece a sua subjetividade. A vivacidade laborativa não consiste apenas em produzir, mas implica em transformar a si próprio. Assim, a partir da perspectiva dejouriana, pode-se conceber o exercício laboral como produtor de saúde mental.

A teoria de Dejours faz especial sentido quando atentamos para a distância existente entre o trabalho prescrito e o efetivo na prática de enfermeiros das UTIN brasileiras. O Manual do Método Canguru é claro nas inúmeras prescrições que direcionam a atividade do profissional, parecendo não haver brechas para o imprevisível ao criar a ilusão de que não há o que não possa ser controlado. Entretanto, ao nos aproximarmos da realidade das condições de trabalho e das demandas próprias deste contexto, percebemos que, entre o prescrito e o efetivo, há uma grande lacuna a ser preenchida pelo profissional enfermeiro a partir de seu trabalho vivo.

O preenchimento deste hiato ocorre na medida em que o sujeito faz frente ao real e constrói, criativamente, soluções para os impasses que se apresentam, colocando sua subjetividade em ação. Souza e Ferreira (2010) exemplificaram claramente esta questão ao observarem que, na UTIN pesquisada, os enfermeiros lançaram a estratégia de colocar um lençol sobre as incubadoras com o objetivo de reduzir o impacto da luminosidade, visto que na unidade em questão as luzes artificiais permanecem constantemente acessas. Revela-se assim que os profissionais são mais influenciados pelas experiências vivas e concretas do cotidiano de trabalho do que pelas diretrizes propostas pela política de humanização – PNH – vigente. A problematização que cabe agora é quanto às condições psíquicas que este profissional tem, em meio à realidade que se apresenta, de inventar e criar diante dos impasses que se estabelecem na rotina laboral.

 

Intensidades afetivas: o olhar para o cuidador

Em UTIN, a especificidade encontra-se no fato do paciente a ser assistido se tratar de um recém-nascido cujo estado de saúde necessita de cuidados hospitalares especializados, ou seja, o paciente é um ser frágil e indefeso. O atendimento a bebês de alto risco envolve emocionalmente os profissionais, pois, além de consistirem em casos graves, são pacientes que passam mais tempo internados. Estas situações, muitas vezes, remetem os profissionais às suas próprias fragilidades e limitações, como o medo de falhas e julgamentos (Nunes et al., 2013). Alguns enfermeiros referem o desejo de despender mais atenção e cuidado aos pacientes e familiares, angustiando-se por não conseguirem atender às suas próprias expectativas (Traesel & Merlo, 2009). Desta maneira, torna-se extremamente complexo sentir-se reconhecido, visto que o próprio profissional busca um ideal difícil de ser alcançado.

O uso de medicamentos entre os profissionais da equipe de saúde é frequente (Forte et al., 2014; Pereira et al., 2013; Vieira et al., 2013). As doenças de ordem psíquica mais prevalentes entre enfermeiros são a depressão e a ansiedade, as quais podem assumir caráter incapacitante quando em níveis elevados (Vieira et al., 2013). Consequentemente, os antidepressivos são os medicamentos mais utilizados, seguidos pelos ansiolíticos e analgésicos. Os motivos referidos para o uso de medicações são estresse, cansaço, questões generalizadas envolvendo o trabalho e fatores pessoais (Vieira et al., 2013). Neste sentido, o uso de medicamentos psicoativos é considerado uma resposta do trabalhador ao sofrimento proveniente de seu ofício.

Diversos estudos apontam a existência de potenciais estressores nas UTIN (Fogaça et al., 2008; Matos et al., 2012; Nunes et al., 2013; Pereira et al., 2013; Rodrigues, 2012; Vieira et al., 2013). Ferreira et al. (2015) consideram que o estresse se tornou uma epidemia na contemporaneidade e apresenta crescimento em proporções assustadoras. Quando este se apresenta cronificado, ocorre o desenvolvimento da Síndrome de Burnout, caracterizada por ser uma patologia estritamente ocupacional (Ferreira et al., 2016) ocorrida frequentemente entre profissionais cuja atividade laboral envolve o contato próximo com pessoas (Maslach & Jackson, 1981). Observa-se a alta prevalência de Síndrome de Burnout entre profissionais da saúde (Glória et al., 2016), principalmente entre enfermeiros de unidades de urgência e emergência (Ferreira et al., 2015; Ferreira et al., 2016) e, especificamente, enfermeiros que se dedicam à UTIN (Fogaça et al., 2008; Matos et al., 2012).

Maslach e Jackson (1981) propõem uma definição de Burnout baseada em três aspectos: exaustão emocional, despersonalização e baixa realização profissional. A exaustão emocional diz respeito às sensações de esgotamento físico e mental, à falta de energia para o desenvolvimento das atividades diárias e a sensação de sobrecarga. Já a despersonalização refere-se à busca por uma distância entre si e as pessoas com quem convive no trabalho, gerando relacionamentos conturbados. Por último, a baixa realização profissional caracteriza-se por sensações de incompetência, falta de realização e produtividade. A partir destas informações, percebe-se o impacto que a cronificação do estresse pode exercer nas condições psíquicas do sujeito, influenciando negativamente no desenvolvimento das práticas intrínsecas à profissão.

Na enfermagem, tem-se a prática do cuidado como inerente à profissão, prática que se associa diretamente com a lógica da cura. Assim, ao priorizar-se o "curar" a qualquer custo, a ocorrência da morte ou de uma doença incurável pode gerar sentimentos de frustração e desmotivação no trabalho, o qual inclusive pode passar a ser percebido como sem significado (Kovács, 2010). O "salvar vidas" como ideário da formação em saúde e a pouca compreensão da finitude dificulta o processo de lidar com a morte (Nunes et al., 2013), favorecendo a utilização de estratégias defensivas, como o bloqueio dos sentimentos e a naturalização do sofrimento (Traesel & Merlo, 2009). Este distanciamento emocional que se tornou habitual entre os enfermeiros acaba por ser reforçado ao não haver espaço para o compartilhamento dessas experiências, impedindo a elaboração de vivências dolorosas e se tornando fonte de sofrimento psíquico. Torna-se ainda mais difícil o enfrentamento da morte quando o paciente se trata de uma criança, no caso das UTIN, onde, por exemplo, muitos profissionais preferem sair da unidade ao ver os pais chorando a perda de um filho (Nunes et al., 2013).

A importância deste período inicial de vida para o estabelecimento de vínculo pais-bebê é inquestionável, sendo abordada em diferentes estudos (Alves, 2015; Rosa & Gil, 2017). É esta premissa que embasa as políticas propostas pelo Método Canguru e, assim, legitima a imprescindibilidade do seu cumprimento. Ao entrarem na UTIN, os pais apresentam uma série de reações e sentimentos que podem se apresentar como entraves no estabelecimento do vínculo saudável com seu filho. Como consequência, tais reações influenciam negativamente na saúde física do bebê, assim como há evidências que o apego seguro interfere de forma positiva na recuperação do neonato, repercutindo no tempo de permanência na UTIN (Ministério da Saúde, 2011). Assim, é esperado do enfermeiro – considerando que este é quem possui maior contato com o paciente e sua família e é o responsável por recebê-los na unidade – o acolhimento aos pais de modo a sentirem-se amparados para o enfrentamento da situação de internação do filho (Costa et al., 2012).

Esta prática de acolhimento está dentre as diretrizes propostas pela Política Nacional de Humanização – recebendo especial destaque –, sendo a palavra "acolher" entendida por Costa et al. (2012) como "receber, proteger e amparar". Algumas das atitudes de acolhimento se dão através do diálogo, da escuta, da presença, do comprometimento e da valorização da presença dos pais. Para que o enfermeiro possa exercer efetivamente – e afetivamente – este papel de mediador da relação mãe-bebê, é necessário que esteja sensibilizado para este momento. Caso contrário, a relação se dará de maneira mecânica e impessoal e o amparo não será efetivo. O acolhimento genuíno requer atenção para a singularidade de cada demanda, sensibilidade e disponibilidade. Ao estar disponível para estabelecer interações afetivas com os pais, o enfermeiro pode proporcionar aos mesmos uma experiência menos angustiante e sofrida, havendo repercussões diretas na recuperação e no desenvolvimento biopsicossocial do bebê (Costa et al., 2012).

Os impasses que se estabelecem para a realização destas práticas de humanização são justamente as condições de trabalho descritas anteriormente e a consequente geração de estresse na equipe de enfermagem. Os próprios enfermeiros julgam importantes, em momentos críticos da internação, a permanência junto à família e a intensificação de práticas de acolhimento a fim de minimizar o sofrimento (Costa et al., 2012). Assim, o questionamento que surge é quanto à possibilidade destes profissionais exercerem a sua função de cuidadores na medida em que se veem privados de cuidados provenientes tanto de si quanto de outros (Baggio, 2007; Forte et al., 2014; Kovács, 2010; Nunes et al., 2013).

Em "As diversas faces do cuidar", Luis Cláudio Figueiredo (2012) propõe a mutualidade de cuidados como um princípio ético fundamental a ser exercido e transmitido. Ou seja, ressalta a necessidade daquele que cuida também ser olhado por um terceiro. Deixar-se ser cuidado implica em reconhecer seus próprios limites e, assim, torna-se mais sensível para as demandas singulares do outro. As inaptidões para o cuidado revelam-se em práticas mecânicas, repetitivas e estereotipadas, não havendo criatividade em tais exercícios. O autor ressalta a necessidade de haver uma introjeção criativa das funções cuidadoras, as quais não podem ser aprendidas através de manuais ou por imitação. Ao abordar o contexto hospitalar e a profissão da enfermagem, Figueiredo faz um importante questionamento: "como introduzir a dimensão do cuidado em um ambiente tão asséptico, administrado e tecnológico?" (Figueiredo, 2012, p. 150).

A partir destas considerações, abre-se um leque de possibilidades de atuação ao profissional psicólogo junto à população em questão. Entende-se que o universo teórico da Psicanálise pode proporcionar uma compreensão profunda e adequada das complexidades dos fenômenos humanos (Dockhorn & Macedo, 2008). Onocko-Campos (2014) destaca que assumir o sujeito como movido por – e principalmente – forças inconscientes muda nossa forma de analisar e intervir nas relações que se estabelecem nas organizações de saúde. Assume-se que a experiência do ato de cuidar está para além do cogito cartesiano, envolvendo aspectos da subjetividade que o próprio sujeito desconhece em si mesmo.

Neste sentido, a escuta psicanalítica procura articular fragmentos de um discurso cujo sentido é construído a posteriori em um espaço intersubjetivo (Martins & Mendes, 2012). Esta escuta se constitui como importante ferramenta na promoção de intervenções que objetivam a atenção à saúde do trabalhador. Visto ser impreterível a viabilização de espaços de comunicação e de promoção de cuidado aos cuidadores (Baggio, 2007; Forte et al., 2014; Gama, Mendes, Araújo, Galvão, & Vieira, 2016; Kovács, 2010; Nunes et al., 2013; Pereira et al., 2013; Pereira & Lopes, 2014; Traesel & Merlo, 2009), propõe- se a realização de grupos de encontro com os profissionais da enfermagem que exercem seu ofício em UTI Neonatal.

A intervenção psicológica através de grupos de encontro objetiva proporcionar um espaço de acolhimento onde os profissionais possam produzir e compartilhar narrativas sobre sua prática laboral. As experiências de sofrimento, presentes do contexto de UTIN, podem, desta maneira, ser elaboradas e ressignificadas, como observado nos grupos conduzidos por Gama et al. (2016). O diálogo proporcionado pelos encontros propicia a construção de soluções e novas formas de lidar com as demandas da profissão (Gama et al., 2016). Ao propor semelhante intervenção, Peres, Pereira, Xavier e Oliveira (2011) também observaram que os momentos de interação e compartilhamento auxiliaram os participantes a vislumbrarem novas possibilidades na maneira de se relacionarem e assim conviverem de forma mais harmoniosa no ambiente de trabalho.

Nos espaços proporcionados por Traesel e Merlo (2009), os profissionais puderam refletir sobre as práticas de cuidado de si, percebendo a impossibilidade de atender efetivamente ao outro quando não se dá atenção para as próprias necessidades. Percebe-se que, os imperativos presentes da profissão de enfermeiro, tais como "tem que dar conta" e "tem que ser forte", impedem a elaboração de experiências dolorosas e o encontro com o sentido do trabalho, na medida em que este cai no vazio quando há o impedimento de emocionar-se. É desta maneira que se percebe a construção de caminhos divergentes ao que levam ao sofrimento no campo do trabalho.

Cabe aqui retornar à questão da escolha privilegiada pelo conceito benjaminiano de "experiência". Walter Benjamin, filósofo alemão, em seu ensaio "Sobre alguns temas em Baudelaire" (Benjamin, 1989), problematiza as noções de vivência e experiência. A primeira está relacionada com a ideia de choque que impede a formação de traços de memória. Diante do excesso, do traumático, a consciência deve se esquivar, gerando anestesia e não elaboração. Assim, a vivência se dá na imediacidade, que logo se perde para dar lugar a uma nova vivência. Já o campo da experiência engloba aquilo que é único, irrepetível, aquilo que se conecta com a história do sujeito e assim atribui sentido às percepções atuais, criando traços de memória que podem ser compartilhados no laço social. Benjamin denuncia o declínio da experiência e a predominância das vivências a partir das mudanças aceleradas nas sociedades capitalistas. Portando, este trabalho privilegiou o retorno ao campo da experiência que permite afetação, imprescindível no exercício do cuidado ao outro.

 

Considerações Finais

Conforme abordado, o trabalho profissional configura-se como central na vida adulta, tendo inegável importância identitária, no sentimento de estima de si e na manutenção de relações sociais. Ao desenvolver e fortalecer a subjetividade, além de ser fonte de reconhecimento, o exercício laboral adquire a potencialidade de ser produtor de saúde mental.

A partir do objetivo de compreender as especificidades da experiência laboral de enfermeiros em Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) brasileiras, buscou-se direcionar o olhar para as particularidades da prática dos enfermeiros, visto os seus cuidados serem fundamentais na recuperação de um sujeito que está fragilizado fisicamente. No contexto de UTIN, este sujeito se trata de um recém-nascido cujos pais estão, em sua maioria, vivendo momentos de angústia e tensão.

Tornou-se claro que a teoria dejouriana faz especial sentido na medida em que se desvelou a lacuna entre a prática da enfermagem prescrita no manual que norteia as ações em UTIN – Método Canguru – e a prática possível de ser realizada diante dos entraves da realidade. Assim, é essencial que o trabalhador disponha de condições subjetivas para poder construir soluções criativas que deem conta dos impasses que, inevitavelmente, se fazem presentes (Dejours, 2012). O adoecimento, que pode ser causado pelos diferentes estressores levantados no presente estudo, impede o sujeito de dispor de suas capacidades psíquicas, tornando-as rígidas e estereotipadas.

A partir do "pensar" e "falar" sobre si e sua produção laboral, abre-se uma possibilidade de elaboração das experiências cotidianas e singulares que podem favorecer as condições de plasticidade psíquica (Dal Forno, 2015) e, consequentemente, a promoção de saúde no trabalho. É reconhecendo o papel da fala e da escuta psicanalítica que se propõe a formação de grupos de encontro a fim de propiciar espaços de ressignificação das intensidades experienciadas, de compartilhamento, aproximação entre a equipe de enfermagem e de encontro com o sentido do trabalho. Considera-se que, na medida em que o profissional pode pensar o que sente e se reconhecer como alvo de cuidados se abre a possibilidade de, efetivamente, cuidar do outro.

A proposta de realização de grupos de encontro coordenados por psicólogos se configura como uma das diversas intervenções possíveis que objetivam a prática de cuidado com o cuidador enfermeiro. Faz-se mister que, tanto psicólogos quanto outros profissionais da saúde, se sensibilizem com o cenário em questão e possam lançar mão, criativamente, de estratégias de cuidado possíveis. Neste sentido, conclui-se que as intensidades afetivas experienciadas cotidianamente por quem se dedica ao cuidado de um ser tão frágil quanto um recém-nascido e, consequentemente, de seus genitores, não podem ser abafadas pelos ruídos da UTINeonatal. O olhar para a cuidador apresenta-se como um compromisso ético que pode ser exercido e transmitido ao se endereçar uma escuta genuína à singularidade do sujeito e suas vicissitudes.

 

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1 Psicóloga (PUCRS). E-mail: raissa.r.rosa@gmail.com.
2 Psicóloga (PUCRS), especialista em Psicologia Hospitalar (HCPA) e mestre em Psicologia Clínica (PUCRS). Vice-coordenadora do Núcleo SBPH/RS (gestão 2015-2017). E-mail: carolina.quiroga@acad.pucrs.br.

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