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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

A escuta do paciente em cuidados ao fim de vida – entre a ética biomédica e a ética do sujeito

 

Listening to the patient at end-of-life care - between biomedical ethics and subject ethics

 

 

Renata de Lamare1,I,II; Juliana Castro-Arantes2,I; Anna Carolina Lo Bianco3,III

IInstituto Nacional de Câncer José de Alencar Gomes da Silva (INCA)
II
Hospital Federal Cardoso Fontes
III
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

 

 


RESUMO

Neste artigo analisamos o papel do profissional de saúde diante dos pacientes sob cuidados paliativos oncológicos. Uma visão protocolar é revisada, associada à ponderação das singularidades identificadas em cada situação. Procura-se analisar questões como o grau de mediação da equipe de saúde nas internações hospitalares e o lugar da escuta das singularidades de cada caso, com suas consequentes incidências sobre os recursos oferecidos pelo saber estabelecido, objetivando a melhoria dos atendimentos realizados. Através da contemplação dos principais sintomas apresentados e da relação das características referentes a esse período, foi possível traçar linhas de conduta introduzidas e mantidas pela equipe de saúde, fornecendo condições para que o sujeito possa tomar um lugar na própria vida, resgatando sua biografia diante o inexorável fim que se aproxima.

Palavras-chave: cuidado paliativo; escuta; cuidados ao fim de vida.


ABSTRACT

The role of the health professional in the context of oncological palliative care is studied, emphasizing the evaluation of the subject and the assistance related to desires, pain and suffering, in their last moments of life. Issues as the degree of mediation of the health team during hospitalization and listening to each case peculiarities, with its consequent impact on the resources usually offered, are analyzed, aiming the improvement of treatment. Through the contemplation of the main symptoms presented, which meaning transcend their regular biological effect and relate exquisitely to this period, it was possible to change the approach of the health team, providing conditions so that the subject can take control of his life, rescuing his biography before the inexorable end that approaches.

Keywords: palliative care; listening; end of life care.


 

 

Lidar com pacientes em cuidados paliativos, principalmente os que demandam cuidados ao fim de vida, nos remete aos pacientes que nos dizem que para eles "falta tempo". É o tempo de que precisariam para encontrar com a sua vida e a urgência de revê-la, de avaliá-la, de reconsiderá-la e, não raro, de perguntar sobre um sentido para ela. É quase sempre um tempo de volta maior para o contato com os familiares e amigos, um tempo de resolver conflitos que foram sendo adiados, e de realizar despedidas.

É em meio a este cenário que as decisões da intervenção da equipe de saúde irão ter sua incidência. Trata-se de momento delicado em que, justamente, não é possível estabelecer de antemão a conduta acertada – trata-se de decisão que será tomada a cada vez, na escuta de cada caso. E, claro, tomar uma posição, levando em consideração o que se passa com o paciente, e com tudo e todos que o cercam naquele momento determinado, não é algo que se possa fazer apenas tendo por referência protocolos de conduta pré-estabelecidos. Sem dúvida, no entanto, é neste ponto precisamente, que, como veremos, muitos estudos e sistematizações da prática clínica em cuidados paliativos poderão vir em auxílio aos procedimentos da equipe de profissionais. Mas, estes recursos de que falaremos mais adiante, aos procedimentos protocolares e já padronizados para condições já levantadas e identificadas de antemão, que podem ser de imenso auxílio, têm que ser acompanhados da escuta das singularidades nas quais estarão intervindo. Aí sim, se farão valer como protocolos que visam o alívio do sofrimento e o cuidado daquele que está face ao fim de sua vida.

Veremos também que o recurso ao que está estabelecido não nos libera da necessidade do reconhecimento de cada situação singular e da exigência que, a partir deste reconhecimento, se coloca para as tomadas de decisões. Não se trata apenas de diagnosticar o problema e de aplicar os recursos disponíveis. Há algo a mais, incluído nos procedimentos da equipe de saúde, que requerem a presença e, de uma certa maneira, podemos dizer, o envolvimento daqueles que se responsabilizam por dar a direção da conduta a ser tomada. Envolvimento, não necessariamente aquele – "envolvimento emocional" – em que o profissional tome para si os afetos, as tristezas, os sofrimentos, a ameaça de perda que circunda e constitui toda a experiência pela qual o paciente face à morte eminente está passando e com a qual está vivendo. Mas envolvimento suficiente que lhe permita escutar todas estas pequenas e enormes circunstâncias que se apresentam naquele momento, para aquele que está morrendo, levando em conta o peso que o estar morrendo tem para todos e para cada um na vida.

É crucial aqui a consideração de que o que estamos chamando de um envolvimento com as inúmeras variáveis que constituem cada caso exige, cobra, daquele responsável por tomar a decisão, um preço alto. E falar de "preço" aqui sequer expressa com exatidão o de que se trata. Pois se paga com a subjetividade, com o trabalho subjetivo de cada membro da equipe – que neste caso não funcionará apenas "aplicando" os recursos do saber profissional – mas dependerá da escuta do caso em suas inúmeras particularidades, dificuldades e, também, nas soluções que pode vir a oferecer, mas que terão que ser identificadas, pesadas, avaliadas em suas várias dimensões.

 

A escuta da singularidade do caso

Tomaremos o trabalho em uma unidade de pronto atendimento hospitalar de cuidados paliativos oncológicos. Frequentemente nos deparamos com pacientes com "sintomas mal controlados" – aqui surge a questão que nos orientará: que atuação e que grau de intervenção esperar da equipe de saúde no ato de uma internação hospitalar? Que lugar terá aí a escuta da singularidade do caso? Que incidência ela terá sobre os recursos oferecidos pelo saber estabelecido pelo conhecimento biomédico, à disposição da melhoria dos atendimentos realizados?

É na interface, no encontro entre o tempo singular vivido pelo paciente e o tempo do funcionamento ditado pela dinâmica hospitalar, incluída que está num sistema público de saúde, com todas as consequências aí implicadas, que iremos deter a nossa atenção.

Para fazer avançar essa questão, lançamos mão de dois relatos clínicos. O primeiro, da paciente M.A.S, 62 anos, que recebeu há um ano o diagnóstico de neoplasia maligna de ovário e estava há dois meses em acompanhamento na unidade de cuidados paliativos exclusivos. Ela chegou à emergência, com KPS (Performance Status de Karnofsky) de 30%, após alta hospitalar 72 horas antes, com relato de anorexia e vômitos nas últimas 12 horas, sem náuseas associadas. O filho, muito ansioso, pedia reinternação hospitalar, preocupado com o agravamento da desidratação e falta de apetite da mãe. Dizia de sua impotência diante da incapacidade de cuidar dela em casa, não aceitando inclusive propostas alternativas como tentativa domiciliar de hipodermóclise (administração de hidratação e medicação subcutânea). Durante toda a avaliação clínica, apesar de lúcida, a paciente manteve-se quieta, como se não estivesse participando da consulta. A família foi ouvida e acolhida como uma unidade de cuidado, mas, e a doente diante daquela situação? Ao final da anamnese, ao ser ativamente questionada, disse que não queria ficar no hospital, que o vômito era algo suportável e que sentia falta da sua casa. Ela nos falou da alegria em poder abrir a sua geladeira e escolher, por exemplo, um caqui, mesmo sem aguentar comê-lo por inteiro. O filho, por sua vez, ao ver a colocação da mãe e diante da possibilidade de não internação, sobressaltou-se alegando ter uma procuração em que a paciente o autorizava a agir em seu nome.

Um segundo caso, de J.C.L., de 39 anos, com neoplasia maligna de reto já metastática no momento do diagnóstico três meses antes, encontrava-se há um mês em acompanhamento em outro serviço de cuidados paliativos oncológicos exclusivos. Ele foi admitido na emergência com KPS de 30%, apresentando dispneia, fadiga e oscilação do sensório. Sua esposa, cuidadora única dele e do filho de 2 anos, mostrava-se sobrecarregada e com sofrimento intenso diante da piora do quadro clínico nas duas semanas anteriores. Parecia claro o estado de declínio progressivo e inexorável, e a aproximação da morte. Mas ainda assim, nos momentos de lucidez, o paciente despertava e falava com clareza que desejava voltar para casa. Por sua vez, a esposa não conseguia aceitar a possibilidade da sua morte em casa diante do filho. Assim como no relato anterior, a indicação de internação foi discutida com o paciente, o qual permanecia irredutível em não querer a internação, dizendo de seu desejo de retornar para casa.

Segundo o princípio central da bioética principialista (Beauchamp & Childress, 1989), focada no indivíduo, a "autonomia" refere-se ao poder de decisão do paciente sobre seu tratamento. Atualmente, diante das modernas práticas no atendimento em saúde, as antigas posições de respeito absoluto ao saber técnico do profissional estão sendo reconsideradas. Se antes este saber era determinante de todas as decisões terapêuticas, reconhecemos agora uma retificação da assimétrica relação médico-paciente geradora de constantes conflitos, relacionados ao respeito à referida "autonomia" do doente (Secpal, 2018). O que podemos valorizar neste movimento é sobretudo a possibilidade que neste ponto se escutem as vicissitudes, as dificuldades, as circunstâncias do que o paciente experiencia naquele ponto tão crucial de sua vida.

E não se trata, certamente, de atender a um "capricho" aleatório do paciente, só porque se está dando a ele esta "autonomia". Avaliar, reconhecer o que está sendo demandado ou o que seria mesmo da ordem do desejo do paciente, requer envolvimento da equipe: é necessário que o profissional de saúde avalie a capacidade do doente de tomar decisões, identificando o seu grau de orientação auto e alo-psíquica, fornecendo informações sobre o caso e a conduta a ser tomada, considerando o projeto de vida do paciente e como ele lida com a doença e a clínica apresentada. Nesse sentido, um sintoma mal controlado aos olhos do profissional de saúde ou da família pode, no entanto, ser algo bem tolerado pelo paciente. O que vale enfatizar uma vez mais, é como a prática clínica requer uma tomada de posição em situações delicadas, cuja solução nem sempre é evidente.

Nos dois fragmentos clínicos trazidos, para respeitar a demanda dos pacientes, foi importante dar valor às suas considerações, possibilitando que eles pudessem se expressar no momento da conversa com a equipe. Neste ponto, não podemos deixar de refletir sobre sua vulnerabilidade, nesses casos, tanto física, quanto social. Vulnerabilidade é uma palavra latina, derivada de vulnus que significa ferida, podendo ser definida como suscetibilidade de ser ferido ou atingido por uma doença; fragilidade (Michaelis, 2018). Em situações de maior fragilidade, como as descritas, surge a pergunta sobre quais as condições para que a autoridade profissional determine a atitude terapêutica a ser tomada, uma vez que preservar a "autonomia" desses doentes poderia resultar em um aumento da vulnerabilidade (Felicio & Peccini, 2009).

É preciso ainda avaliar quais as pessoas de referência envolvidas para auxiliar na tomada de decisão. Em certo sentido, a presença da família pode significar um fator limitante da autonomia do paciente. Em outras palavras, a ausência de familiares ou cuidadores pode trazer dificuldades no cuidado, mas, por outro lado, pode acabar tornando a relação do paciente com a equipe mais direta.

Nos fragmentos de casos relatados, naquele momento, a melhor decisão teria sido a internação hospitalar? Respeitar e preservar a opinião da paciente, por exemplo, no primeiro caso, foi ouvir que naquele contexto havia condições clínicas e sociais para optar pela alta. Ela permaneceu em sua casa, confortável e junto à família, por mais duas semanas, quando faleceu. Diferentemente do segundo caso, em que ao se escutar a esposa se decidiu por manter o paciente internado no hospital, onde ele morreu dois dias depois.

Diante de tais reflexões, devemos nos perguntar se realmente existe o momento "certo" quando falamos em cuidados paliativos. O momento "ideal" para a realização do encaminhamento para cuidados paliativos já é um grande desafio. Defrontar-se com a indicação de paliação, pode ser tomado como a vitória da morte sobre a cura. Mesmo em países europeus, os encaminhamentos podem ser tardios e a sobrevida curta, após a admissão nos serviços especializados. Em um dos contextos em que as autoras trabalham - o do Instituto Nacional do Câncer José de Alencar Gomes da Silva (INCA) -, esse tempo pode chegar a 2 meses (Sampaio, Gomes, Serman & Lamare, 2014). Considerando que uma internação hospitalar dura em média 7 dias (INCA, 2018), isso significa 1/8 do tempo que resta ao paciente. Sendo assim, lidar com pacientes em cuidados paliativos significa ter a perspectiva de que o tempo é precioso e escasso para esses doentes e não pode ser desconsiderado.

A definição de uma sobrevida curta não significa necessariamente a finalização de uma história. Ao contrário, o valor do tempo é inverso à sua escassez, uma vez que a transitoriedade traz a urgência (Freud, 1916/1996). Uma semana é tempo de se escrever história.

 

Cuidados ao fim de vida – entre a ética biomédica e a ética do sujeito

Dentro dos cuidados paliativos, definimos cuidados ao fim da vida como a assistência recebida durante a última etapa da vida, a partir do momento em que fica claro que ela se encontra em um estado de declínio progressivo, aproximando-se da morte (Watson, Lucas, Hoy & Wells, 2009). Mas, para falar em fim de vida, como afirmamos, é preciso entender a morte como parte integrante da vida, e não como consequência de um insucesso do tratamento médico. A morte deixa de ser vista de uma maneira pontual, e passa a ser tomada como aquilo a que a vida leva.

Há neste ponto a necessidade do conhecimento biomédico, que tomando a morte a partir de seu saber específico, procure agora entender e identificar quando o foco deve deixar de ser a cura e o cuidar passa a ser o alvo principal (Pazin Filho, 2005). Sendo assim, torna-se fundamental conhecer a evolução da patologia em questão e lançar mão de ferramentas que auxiliem no prognóstico visando a melhor conduta em cada fase da doença. Mas, sobretudo cabe ao profissional de saúde reconhecer que a fase referida como sendo de fim de vida, não é simplesmente uma continuação de tudo o que se passou antes. Na verdade, ela vem muitas vezes acompanhada de novas causas de sofrimento para o doente e sua família. Portanto, o momento do encaminhamento para os cuidados paliativos vai ser crucial no que vai se seguir neste estágio de cuidados. É preciso ter tempo para discussões sobre o fim da vida. No entanto, na prática, o que vemos, é uma grande dificuldade na identificação desses momentos. Sendo assim, as perguntas que insistentemente nos ocorrem são: será que o embaraço está no medo de retirar a esperança dos pacientes mencionando metas de cuidados "além da cura"? Será pela incerteza em torno do prognóstico e da sobrevivência? Falta de habilidade para comunicação? Ou ainda, todos estes fatores culminando no enorme incômodo e na grande dificuldade em estabelecer um plano de cuidados nesse instante da vida (Goldwasser, Vinant, Aubry, Rochigneux, Beaussant, Huillard & Morin, 2018)?

É com estas perguntas que rondam o nosso cotidiano que, no entanto, nos lançamos no que é para ser feito, mesmo com as indagações que nos acompanham, e que não podemos simplesmente desconhecer.

O que se seguem são indicações baseadas na experiência com os cuidados ao fim de vida, que nos levam a tratar daquele que está morrendo a partir de uma direção ética. Esta direção é dada pelo tomar a morte como aquilo que fala da vida vivida pelo sujeito até que a morte mesma sobrevenha. São referências, linhas de conduta introduzidas e mantidas pela equipe de saúde que darão condições ao sujeito de ser cuidado como aquele que toma um lugar em sua própria vida a cada ponto em que é convocado a fazê-lo, mesmo no momento em que esta vida lhe escapa e o faz encontrar com o inexorável de seu fim.

De início, vale mencionar uma pesquisa que foi realizada com médicos (n=20.480) de seis países europeus, visando avaliar as características das práticas de tomada de decisão em fim de vida. Observou-se que a morte que ocorre de maneira inesperada faz parte da minoria dos casos (apenas um terço). Portanto, em todos os países participantes da pesquisa, verificou-se que decisões médicas em final de vida são necessárias e frequentemente precedem a morte (Van der Heid, Deliens, Faisst, Nlistun, Norup, paci, van der Wal & van der Maas, EURELD Consortium, 2003).

Nesse contexto, observamos que planos terapêuticos precisam ser reajustados face às novas necessidades que podem emergir no fim de vida. No entanto, encontramos habitualmente em nossa prática uma grande dificuldade em reconhecer e documentar essa fase irreversível da doença. Em outras palavras, o diagnóstico do processo de morrer, muitas vezes não é feito por falta de definição de um prognóstico adequado, quer seja por obstinação terapêutica, envolvimento emocional do profissional com o paciente/família, formação deficiente, e/ou por precariedade de recursos humanos, culminando com a dificuldade em saber como agir nesse contexto. Consequentemente, sem a identificação do processo, não ocorre a transição progressiva dos cuidados, e muitos doentes acabam sendo submetidos a intervenções e investigações até o momento mesmo da morte, como dissemos, devido ao exercício pouco pensado de uma pura obstinação terapêutica (Py, Burlá, Limoeiro, Geovanini, Floriani, Azevedo, Monteiro, Oliveira, Menezes, Souza, Pereira, S. & Moreira, 2010).

Ou seja, nos cuidados ao fim de vida, a tomada de decisão é influenciada basicamente pelas habilidades e competências clínicas desenvolvidas pelos profissionais. Interessante notar que estas habilidades e competências se dão justamente por referência à clínica – que, como o termo aponta, fala da inclinação em direção ao paciente, à sua vida e, portanto, ao que está sendo a iminência da morte nesta vida. Quando é necessário controlar sintomas potencialmente reversíveis, ou quando a realidade do morrer está em evidência, algumas estratégias podem ser usadas para reduzir a incerteza da conduta terapêutica (Middlewood & Gardner, 2001). Trata-se, mais uma vez, de poder contar com o todo o conhecimento desenvolvido e estabelecido pelas disciplinas, saberes e práticas biomédicas sem que estas venham a desconhecer o lugar do sujeito cujo padecimento se objetiva aliviar.

Visando à melhoria dos cuidados prestados na fase final de vida e uniformização dos registros, diversas diretrizes e indicadores de qualidade já foram elaboradas. Como, por exemplo, o instrumento multidisciplinar Liverpool Care Pathway (LCP), cujo objetivo é permitir que profissionais não especializados prestem cuidados de elevada qualidade aos doentes em fase terminal, nas últimas horas ou dias de vida, com o apoio de especialistas em cuidados paliativos, quando necessário. Seguindo esse protocolo, um cuidado de qualidade exige a avaliação inicial dos sintomas, reformulação das intervenções existentes, monitoramento visando garantir conforto e ausência de dor, além de cuidados após a morte, incluindo aí o acolhimento da família. Importante frisar que a entrada no protocolo não é algo irreversível, e deve ser revista de acordo com a evolução clínica. O diagnóstico deve ser reavaliado dentro de 72 horas (Costantini, Ottonelli, Canavacci, Pellegrini & Beccaro, 2011).

Algumas importantes e necessárias informações têm que ser dadas a pacientes e seus familiares neste momento. Elas permitem saber da proximidade da morte, mas também orientam quanto a vários recursos disponíveis os quais poderão ser utilizados nos cuidados e mesmo nas demandas do paciente. Por exemplo, fadiga é o sintoma mais comum ao fim de vida, podendo estar presente em 80% dos casos (Conill, Verger, Henríquez, Saiz, Espier, Lugo & Garrigos, 1997) Por isso, deve-se pensar em economia de energia, sendo que o estímulo, nesse momento, só trará desconforto, agravando o sintoma. Nesse contexto, não é incomum nos depararmos com situações de familiares frustrados diante de um banho no leito, em vez da ida ao banheiro.

A diminuição do nível de consciência é algo que também pode estar presente neste momento. As famílias frequentemente se verão diante da angústia causada pela capacidade decrescente de comunicação do doente com os que o cercam. Naturalmente, as últimas horas da vida são o momento em que mais querem se comunicar com o doente cuja perda se anuncia. Não é possível avaliar a compreensão do paciente que está morrendo e, portanto, presumir que ele possa ouvir. Mesmo assim, face à angústia que a situação traz para os que estão a seu redor, encorajar ao familiar que expresse o que sente necessário dizer pode ter sua importância simbólica nesse momento de despedida.

O descenso da consciência pode ainda trazer confusão mental que pode ser seguida de inquietação e/ou de agitação. Neste ponto é fundamental que os que estão em torno do paciente sejam advertidos desta condição e recebam o apoio necessário para enfrentarem a dificuldade. É particularmente importante que todos entendam que o que o paciente experimenta pode ser muito diferente do que eles veem. A equipe de saúde nesta hora terá que avaliar se é possível tentar reverter fatores contribuintes e tratar o desconforto que a agitação pode ocasionar (Craig, 2015).

A ingestão mínima de líquidos, acompanhada da diminuição da diurese, que é frequentemente verificada neste momento, é causa de muita preocupação pelos familiares e pelos que acompanham o paciente nesta fase. Nesses casos, deve-se ponderar a correção da desidratação somente quando o objetivo é melhorar um sintoma potencialmente reversível, como por exemplo o delirium. No entanto, é necessário lembrar que o excesso de fluidos pode levar à sobrecarga hídrica e consequente a edema pulmonar/periférico, com agravamento da falta de ar e aumento da quantidade de secreções em vias aéreas, o que culminará com grande desconforto do paciente. Em estudo recente pela Sociedade Australiana e Neozelandesa de Medicina Paliativa concluiu-se que a prescrição de hidratação artificial para pacientes na última semana de vida foi baixa, sendo que 77% dos entrevistados prescreveram para 0 a 10% dos pacientes, e somente 3% prescreveram para mais de 20%. A razão mais comum para a prescrição de hidratação artificial foi dada em resposta à preocupação da família. A maioria acreditava não haver efeito na sobrevivência ou no controle dos sintomas, e todos afirmavam piora do edema e secreções respiratórias (Oehme & Sheehan, 2018).

Um outro indicador do fim de vida é a dificuldade ou mesmo a impossibilidade do paciente de receber medicamentos por via oral. Pela perda da capacidade de engolir, também pode ocorrer acúmulo de secreções na árvore traqueobrônquica. Nesses casos, o simples reposicionamento da cabeça pode reduzir os sons decorrentes, tranquilizando familiares e equipe, muitas vezes aflitos com o som produzido. A aspiração orofaríngea em geral não é recomendada. Medicamentos antimuscarínicos podem ser utilizados em casos selecionados (Craig 2015).

O que também nos chama atenção é que nesse contexto, com frequência, ocorre a diminuição drástica da ingestão de alimentos. Em geral essa fase é acompanhada por perda completa do apetite. A questão de alimentar doentes ao fim de vida representa um dilema ético, envolto em grande controvérsia. Quaisquer que sejam as decisões tomadas, elas devem ser fruto de uma reflexão interdisciplinar centrada no doente, acompanhado pela família, visando à qualidade de vida e ao conforto. Valores pessoais devem ser respeitados (Good, Cavenagh, Mather & Ravenscroft, 2008). Qualidade de vida e conforto são formas de se reconhecer que se trata ali de um sujeito de desejo, que fala e toma lugar, como vivo que ainda é.

Enfatizamos mais uma vez que se trata aqui, como em todos estes momentos do diagnóstico clínico de fim de vida, de considerar que há ali um sujeito em questão, que sofre, mas está vivo, e se trata de respeitar a sua vida, não pela vida em si, independentemente de seu desejo e de sua presença como sujeito, mas pela preservação dos meios para que este sujeito não perca a sua condição de vivo antes que a morte ocorra.

É comum familiares e cuidadores considerarem as mudanças nos padrões respiratórios como um dos sinais mais angustiantes da morte iminente. Muitos temem que o paciente tenha uma sensação de sufocamento. Nessa fase, podem ocorrer respirações superficiais e aumento da frequência respiratória. Outras disfunções respiratórias podem ser verificadas, como, por exemplo, períodos de apneia. Em resposta a esta preocupação, em algumas situações podem ser utilizados opióides ou benzodiazepínicos para gerenciar qualquer percepção de falta de ar.

Ainda podem ser encontrados taquicardia, hipotensão, má perfusão periférica, cianose de extremidades e manchas da pele (livedo reticular). Esses sinais devem ser encarados como algo esperado nessa fase.

Muitos pacientes perdem a capacidade de fechar as pálpebras, permanecendo com os olhos abertos, o que agrava o ressecamento da mucosa e gera desconforto. Xerostomia, ou boca seca, também é um problema comum nessa fase. Nesse sentido, a prescrição de medidas para lubrificação de mucosas passa a ser uma prioridade.

Finalmente vale ressaltar a importância em avaliar a dor nesse momento. Sintoma tão prevalente e o mais temido. Seus sinais precisam ser analisados, seja diretamente por escalas ou pela avaliação indireta com observação da mímica facial e verificação de taquicardia. Controlar prontamente esse sintoma é condição fundamental para estabelecer um bom cuidado em fim de vida.

Por fim, diante de tantos sintomas, não podemos esquecer de explicar e discutir o plano de cuidados com o doente e cuidadores. Como vimos, a família deve ser parte integrante do processo de tomada de decisão, sendo claramente informada dos motivos de suspensão ou introdução de medicação, alimentação ou hidratação, evitando que sejam interpretadas como um abandono do doente (Silva, 2016). Em algumas situações, tais informações devem ser passadas através de uma reunião familiar. Esse poderá ser, inclusive, um dos espaços de atuação visando contemplar as necessidades subjetivas do paciente.

 

Considerações finais

Morrer envolve, além da dimensão clínica que atesta o fim da vida, "um cuidado com todos os aspectos que possibilitam dignidade e conforto para quem morre e para aqueles que precisam continuar vivendo" (Silva, 2016). Quer dizer, isso diz respeito à família enlutada pela perda, mas também aos profissionais de saúde no exercício necessário de encontrar essas perdas.

Compreendendo a importância do diagnóstico e como proceder frente a essa nova situação clínica, devemos rever nossa realidade e buscar entender como esse processo funciona em nosso país. O Brasil ficou na 42a posição, dentre 80 países envolvidos, em uma pesquisa fornecida pela consultoria britânica Economist Intelligence Unit, em 2015, através do Índice de Qualidade de Morte (Death Quality Index, 2015). O país ficou nas últimas posições no quesito disponibilidade de tratamentos e de conhecimento público sobre tratamentos disponíveis no fim da vida (Victor, 2016).

É de suma importância que passemos, ainda que de maneira resumida como fizemos aqui, por todo o conhecimento estabelecido pelos recursos da equipe de saúde para o enfrentamento deste momento de enorme aflição que, no entanto, acomete uma grande parte de nossa população, pois a morte causada pelo câncer é a de segunda maior prevalência, quando se trata de morte por doença na população brasileira (Organização Pan-Americana de Saúde, 2018). Trata-se, pois, de uma demanda massiva de atendimento que, para ser realizado, depende de uma logística que quase nunca permite à razão custo-benefício e à proporção demanda-atendimento os desvios e os desperdícios de uma atuação que, sendo assim, com frequência terá que ser planejada de antemão e pré-estabelecida, visando frequentemente à maximização dos resultados. Sob esta perspectiva, quase sempre resta pouco lugar para preocupações mais contingentes que dizem respeito ao singular do sofrimento implicado nas situações em que é necessário intervir. Trata-se, pois, de fazer vigorar na aplicação desses recursos a ideia de que há o sujeito que demanda ser escutado em seu desejo, em sua dor e em seu sofrimento, nos últimos momentos de sua vida.

 

Referências

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Agência de fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) / Bolsa de Produtividade.

 

 

1 Médica geriatra com atuação em Cuidados Paliativos Oncológicos. Membro do Grupo de Pesquisa Corpo e Finitude INCA/UFRJ. Contato: rdlamare@uol.com.br.
2 Pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica UFRJ. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Corpo e Finitude INCA/UFRJ. Contato: juliana.castro@inca.gov.br.
3 Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. PhD em Psicologia - Universidade de Londres. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Corpo e Finitude INCA/UFRJ. Contato: aclobianco@uol.com.br.

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