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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

A clínica e a pesquisa psicanalítica no hospital universitário

 

Clinic and psychoanalytic research at university hospital

 

 

Niraldo de Oliveira Santos1

Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), São Paulo/SP
Associação Mundial de Psicanálise (AMP), São Paulo/SP

 

 


RESUMO

O exercício da clínica psicanalítica no hospital permite afirmar que se trata de um locus privilegiado para o convite à fala: encontro com o real, surpresa, ameaça narcísica e mal-estar diante da finitude, abrindo um campo vasto para a atuação do psicanalista. Este trabalho discute as especificidades da prática psicanalítica em Hospital Escola e enfatiza a ética da psicanálise de orientação lacaniana na clínica e na pesquisa atualmente. O grande desafio do psicanalista que atua em instituições marcadas pela articulação do discurso da ciência com o discurso capitalista reside em apresentar uma produção que se diferencie radicalmente da produção de objetos de consumo em larga escala. A psicanálise nesse contexto pode produzir pesquisas contundentes por meio do exemplo paradigmático e tratar de sujeitos gravemente afetados pelo gozo mortífero em seus corpos.

Palavras-chave: psicanálise; Lacan; hospital universitário; prática clínica; pesquisa.


ABSTRACT

The practice of psychoanalytical clinic in the hospital enables us to affirm the hospital as a privileged space for the subject to be invited to speak. Encountering the real, facing surprises and narcissistic threats and feeling discontent in the face of finitude opens up a vast field for the psychoanalyst to act. This article discusses the specificities of psychoanalytical practice in a university hospital, emphasizing the ethics of lacanian psychoanalysis in clinical practice and research in current times. The great challenge faced by psychoanalysts working in institutions marked by the intersection of the science and capitalist discourses lies in being able to produce a form of output that is radically different from the manufacturing of items for mass consumption. The psychoanalysis in this context may engender meaningful research through the paradigmatic example and treat subjects gravely affected by the deadly jouissancein their bodies.

Keywords: psychoanalysis; Lacan; university hospital; clinical practice; research.


 

 

O hospital – locus privilegiado

De acordo com Lacan, "a certeza é a coisa mais rara para o sujeito normal" (1955/2002, p. 90). Apesar desta maneira particular de lidar com a certeza, de um modo ou de outro, o humano é convocado a se deparar com as ameaças provenientes da decadência corporal e da finitude, como tão bem nos mostrou Freud (1936/2010) no texto "O mal-estar na civilização".

Possuir um corpo, habitar um corpo é, portanto, condição para gozar e também um modo radical de lidar com o impossível de controlar, de domesticar. Como decorrência dessa conjunção entre a tendência do vivo, que caminha para o inanimado, e do real implacável, com seus efeitos de surpresa,o hospital é um lugar que, independente do seu estilo de hotelaria, é signo de ameaça ao narcisismo.

O exercício da clínica psicanalítica no hospital permite afirmar, portanto, que se trata de um locus privilegiado para o convite à fala: encontro com o real, surpresa, ameaça narcísica, mal-estar diante da finitude; tudo isso se apresenta no cotidiano hospitalar abrindo um campo vasto para a atuação do psicanalista.

 

A ética lacaniana no hospital

A radical singularidade da psicanálise neste contexto é marcada pela aposta de que é pela via discursiva que é possível permitir ao ser falante lidar com este real. Para isto, vale a pena lembrar as palavras de Lacan (1953/1998, p. 242) no texto "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise": "Nada há de criado que não apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na fala".

O psicanalista de orientação lacaniana não costuma passar desapercebido no hospital. O motivo disso é porque sua posição é clínica e política. É clínica na medida em que aposta no surgimento do inconsciente, mesmo nas condições mais adversas, onde até mesmo o aparelho fonador pode estar comprometido. Ele insiste. E é política, porque leva a sério a diferença entre a ética do bem e a ética do bem dizer. Estamos advertidos do perigo de levar o bem para o próximo a partir das nossas convicções. Vejamos o que o próprio Lacan (1967/2006, p. 18) nos diz na conferência "Lugar, origem e fim do meu ensino":

Prestem inclusive muita atenção para não terem a fraqueza de ir rápido demais pelo bem do singular, pelo bem daquele com quem lidam, porque sabem muito bem que não é querendo o bem das pessoas que se é bem-sucedido e que, na maior parte do tempo, dá-se inclusive o contrário.

Ou seja, não é sem riscos sugerir ou impor um modo particular de gozo ao outro.

 

Psicanálise e hospital hoje

A partir do significante "hoje", destacamos a seguir aquilo que, em nossa concepção, se apresenta como uma das insígnias das instituições de saúde no século XXI, sejam elas privadas ou públicas, mas com maior intensidade nas instituições universitárias: as consequências do "casamento" do discurso da ciência com o discurso capitalista. De acordo com Miller (2014, p. 21), o mundo em que vivemos foi "reestruturado por dois fatores históricos, dois discursos: o da ciência e o do capitalismo". E continua: "São esses os dois discursos prevalentes da modernidade, desde o início, desde o aparecimento de cada um, começaram a destruir a estrutura tradicional da experiência humana".

Este acontecimento contemporâneo provoca uma tensão que resvala no trabalho do psicanalista no hospital, uma vez que imprime um empuxo à produção de objetos, poderíamos dizer comercializáveis, implicando no risco constante da exclusão do sujeito ali onde ele deveria ser convocado.

Sob a égide de organizar processos e tornar a instituição mais eficaz e lucrativa, artifícios burocráticos como a criação de indicadores de eficácia, produção de relatórios de desempenho, criação de planilhas com planejamentos estratégicos, elaboração de manuais de procedimentos operacionais, dentre outros, estão na ordem do dia.

Além disso, clínicos são frequentemente substituídos por pesquisadores na área Psi, com a finalidade de responderem às constantes demandas por pesquisas que incluam, por exemplo, questionários e testes para a avaliação da qualidade de vida, níveis de estresse, ansiedade, depressão. No texto "Do sujeito enfim em questão", Lacan (1966/1998a, p. 235) é enfático ao dizer que:

O sintoma só é interpretado na ordem do significante. O significante só tem sentido por sua relação com outro significante. É nessa articulação que reside a verdade do sintoma. O sintoma tinha um ar impreciso de representar alguma irrupção de verdade. A rigor, ele é verdade, por ser talhado na mesma madeira de que ela é feita, se afirmarmos materialisticamente que a verdade é aquilo que se instaura a partir da cadeia significante.

Observa-se, com esse empuxo à construção de "perfis psicológicos", uma espécie de fetiche da produção imaginária a respeito da verificação da psicogênese de certas doenças.

Todo este expediente movimenta uma produção serial de artigos, dissertações, teses e protocolos, ao preço de relegar a um plano inferior a assistência ao paciente e familiares em sofrimento, desconsiderando a potência criativa e curativa da fala e da linguagem. Cito um trecho de Lacan (1953/1998, p. 244) em "Função e campo da fala e da linguagem":

Trata-se da tentação que se apresenta ao analista de abandonar o fundamento da fala, justamente em campos em que sua utilização, por confinar com o inefável, exigiria mais do que nunca seu exame: a saber, a pedagogia materna, a ajuda samaritana e a mestria/dominação dialética. Torna-se grande o perigo quando, além disso, ele abandona sua linguagem, em benefício de linguagens já instituídas e das quais ele conhece pouco as compensações que elas oferecem à ignorância.

Reiteramos que a clínica é imperativa porque, se o sujeito não for convocado à cena, escutado, aumentam os riscos pela via do sintoma ou da passagem ao ato – isso pode ter consequências nefastas à vida. Portanto, um ponto norteador para nossa clínica é a tarefa de localizar em que medida a posição de gozo do ser falante é uma ameaça ao tratamento, à vida e ao laço social. E isto continua despertando o interesse dos mestres e administradores. Este trabalho pode e deve ser feito em conjunto com os demais profissionais que compõem as equipes de saúde, embora o trabalho de interlocução não seja tarefa fácil. Não podemos esquecer o que Lacan no disse no texto "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada": "a corrida para a verdade, ninguém o atinge a não ser através dos outros" (1945/1998, p. 212).

 

Impasses da pesquisa psicanalítica no Hospital Universitário

Assim como Moretto (2001) nos diz em seu livro: "O que pode um analista no hospital?", para discutirmos a respeito do lugar do psicanalista e da prática possível, é necessário partirmos do pressuposto de que haja um psicanalista; o mesmo se dá quando se trata da pesquisa psicanalítica.

Abrimos um parênteses para dizer que, quando não se trata de um psicanalista, ou quando não se trata de um psicanalista marcado pelo ensino de Lacan, a pesquisa no hospital pode se apresentar com uma série de outras dificuldades – muitas delas de ordem técnica ou metodológica. Porém, quando nos referimos aqui aos impasses da pesquisa psicanalítica no Hospital Universitário, quando este psicanalista é – para usar uma expressão corrente em nosso meio, atravessado pela orientação lacaniana, os impasses são sobretudo discursivos, e isto não é, para nós, uma vantagem nem uma desvantagem a priori. Quer dizer, e isto não é bobagem, que o psicanalista de orientação lacaniana no Hospital Universitário e em qualquer outro lugar, está atento e se interessa em localizar uma produção cujos efeitos – práticos e discursivos, estejam de acordo com uma ética – a de fazer surgir o singular em cada um daqueles que são submetidos ao nosso método.

Como dizia antes, fazer pesquisa no hospital, sem se inquietar em fazer uso dos dispositivos padronizados, utilizando uma lógica do agrupamento, coletando características do paciente e o inserindo em categorias, certamente se dá sem maiores conflitos, o que não quer dizer que não seja trabalhoso. Fazer desta via o emblema da pesquisa no hospital, ainda que seja utilizando recortes teóricos da psicanálise, não faz da pesquisa uma pesquisa psicanalítica, pelo menos não na vertente que aqui discutimos.

Fazer pesquisa psicanalítica é ter a clareza de que esta é decorrente da escuta clínica. É sustentar a ética da subversão do sujeito, como nos mostra Lacan em seu primeiro ensino, ou tratar do embaraço do ser falante frente aos seus modos de gozo em sua relação com o corpo vivo; seja no exercício da clínica, da pesquisa ou na transmissão/ensino.

Apesar de reconhecermos que o momento atual contribui sobremaneira para acirrar os impasses da pesquisa psicanalítica no hospital, seria tentador isolar e dar consistência a esse Outro (seja ele o discurso da ciência, o discurso capitalista, as neurociências etc.) e fazer disso a justificativa de uma impossibilidade. Como não reconhecer aí a saída sintomática de tantos, seja na clínica ou na vida cotidiana? O fato é que, quando se trata dos impasses discursivos, temos que ter a clareza de que estes não estão circunscritos à biotecnologia, mas estão no mundo, exatamente por se tratar de defesas frente ao real.

Portanto, não podemos dizer, de modo simplista e reacionário, que fazer pesquisa psicanalítica no Hospital Universitário hoje é impossível. Nunca foi fácil, na verdade. Sustentar a ética da psicanálise – e sua condição de extraterritorialidade, é e sempre foi um desafio.

Desde a intervenção que fez no pavilhão pediátrico da Pitié-Salpetrière, em Paris, a convite de sua supervisionanda Jenny Aubry, Lacan (1966/2001) já marcava o empuxo das tecnociências ao fascínio de deixar o sujeito de fora da jogada. Naquele momento, Lacan falava da ida do homem à lua. Hoje, as pesquisas espaciais não nos assustam mais – nem a ideia de o homem morar na lua, num futuro próximo. Somos também confrontados cotidianamente com diversas notícias a respeito dos avanços tecnológicos que incidem no corpo do ser falante que, sem dúvida alguma, trazem benefícios irrecusáveis, mas que também trazem consigo novas modalidades de gozo que continuam convocando o psicanalista ao trabalho.

Miguel Bassols (2014, p. 61-62), ao falar da relação entre ciência e desejo e recuperando o que Lacan nos apresentou em seu Seminário, livro 7, "A ética da psicanálise", nos mostra claramente a ideia do que aqui chamamos de impasse:

A razão do impasse é, efetivamente, estrutural: a ciência tem ocupado, ela mesma, o lugar do desejo, e o tem deslocado, o tem desalojado, para outro lugar em sua aliança com o discurso capitalista. Na medida em que a ciência vem no lugar do desejo deslocado, recalcado, inclusive, não pode tomar esse desejo como objeto, sem se dividir em seu próprio campo, ocultando a divisão do sujeito que ela mesma encarna. Desde então, o desejo escapa como objeto da ciência, com o paradoxo de que a ciência se funda nesse objeto que a causa sem ela saber. Seguindo essa via, o resultado é o que Lacan situa como "a paixão do saber", não o desejo de saber, senão a paixão, que reduz esse saber a um objeto do conhecimento apto para o uso de um poder que lhe dá, por sua vez, seu crédito.

Retomamos mais de perto algumas insígnias dos impasses da pesquisa psicanalítica no hospital-escola:

- O empuxo à realização de protocolos de pesquisa e publicações em periódicos científicos, indexados e que compartilham uma certa fobia ao método psicanalítico;

- A supervalorização da utilização de escalas, testes, questionários padronizados – tendo aqui seu ápice nos questionários de qualidade de vida;

- A insistência em eliminar as diferenças discursivas em nome de classificações diagnósticas lipoaspiradas e "ateóricas" dos manuais de classificação diagnóstica;

- A monotonia das afirmações de eficácia exclusiva das técnicas cognitivo-comportamentais, descritas como sendo de baixo custo e desenhadas visando a educação da pulsão.

Comecemos por discutir a respeito da principal moeda do Hospital Universitário hoje: publicações em periódicos científicos. Já sabemos que um Hospital Universitário tem como principal objetivo o ensino e a produção de conhecimento. Sabemos também que, para cada especialidade médica existente, corresponde uma disciplina ligada à universidade. Para que estas disciplinas tenham um forte poder de impacto na obtenção de verbas (públicas ou privadas) para a pesquisa, é necessário mostrar uma produção sob o formato de publicações em periódicos científicos. Deste modo, quanto mais artigos publicados, maior a nota que esta disciplina obtém frente às agências de fomento à pesquisa e, como consequência, mais verba se adquire para novas pesquisas. Nada de errado até aí. O problema se dá quando o objetivo de produzir algo novo e que contribua com a sociedade se perde. O que seria próprio à pesquisa – a produção de conhecimento, muitas vezes é excluído da cena e o que vemos ser publicado é algo que foi produzido exatamente com o objetivo de obter uma pontuação. Com isto, o Hospital Universitário se insere nos mercados comuns, com o risco de perder de vista seus fundamentos.

O que falamos antes se articula diretamente ao segundo ponto de impasse, que é a supervalorização dos instrumentos padronizados. Tais instrumentos vêm como uma resposta ao casamento da psicologia e da psiquiatria com a medicina baseada em evidências. Mas de que evidência se trata? É a suposta verdade transmitida pela estatística – muitíssimo valorizada no mercado. Sabemos que, para a publicação de uma pesquisa em determinados periódicos científicos, os instrumentos padronizados são a condição. Explicitam a falsa noção de que o agrupamento dos sujeitos e suas respostas padronizadas foi o meio científico de se alcançar um pedaço do real. A este respeito, Miller (2006, p. 16) é enfático: "Com o pretexto de que há medida, mede-se, escalona-se, conta-se, compara-se etc., imagina-se que é científico. (...) Não é porque há cálculo que há ciência".

Também é certo que os dois itens anteriores – o empuxo à publicação e a utilização de instrumentos padronizados, não são apartados do uso de manuais de classificação diagnósticas, que já têm prontos os critérios para inserir os avaliados/pesquisados em uma categoria prêt-à-porter.

Em virtude de ser desenvolvida como um braço da medicina baseada em evidências, as teorias comportamentais não experimentam conflito algum em relação aos itens anteriormente apresentados, o que faz com que estes despontem como detentores de uma prática (assistencial e de pesquisa) que é vista como possuindo comprovada eficácia no Hospital Universitário. Ora, sabemos bem que o ser falante é, por excelência, um ser não educável do ponto de vista pulsional.

Neste cenário, as pesquisas não decorrem mais da pergunta clínica e sim, do furor das publicações e da utilização e criação de novos instrumentos padronizados, retroalimentando uma produção esvaziada de consequências para o avanço da clínica em si.

Lacan, no texto "A ciência e a verdade" (1966/1998b, p. 871-872), mostra-nos que Freud também não estava livre destes impasses:

Não visamos ao acidente de ter sido pelo fato de seus pacientes terem ido procurá-lo em nome da ciência e do prestígio que ela conferia, que Freud conseguiu fundar a psicanálise, descobrindo o inconsciente. Dizemos que foi esse mesmo cientificismo que conduziu Freud, como nos demonstram seus escritos, a abrir a via que para sempre levará seu nome. Dizemos que essa via nunca se desvinculou dos ideais desse cientificismo (...). E que é por essa marca que ela preserva seu crédito, malgrado os desvios a que se prestou, e isso na medida em que Freud se opôs a esses desvios, sempre com uma segurança sem retardos e com um rigor inflexível.

Dito isto, e parafraseando Moretto, o que pode um psicanalista pesquisador no Hospital Universitário?

Consideramos que, para que o psicanalista possa preservar seu crédito, além de estar seguro de sustentar a ética da psicanálise, não pode se esquecer de que não há produção que nos interessa sem que se leve em conta a transferência – tanto seu conceito quanto sua instalação.

Se a prática do psicanalista não dissocia clínica e pesquisa, esta última também só pode se dar se tivermos condições de instalar e manejar a transferência junto às equipes com as quais trabalhamos.

A retomada destes itens serve para que possamos destacar este ponto vital que é a instalação da transferência como um pré-requisito, sem o qual clínica, pesquisa e transmissão ficam estéreis.

A partir disto – a instalação da transferência de saber pelos profissionais da equipe dirigida ao psicanalista, é possível reinserir na cena hospitalar a via régia da pesquisa psicanalítica, que é a construção do caso clínico e sua elevação à categoria de exemplo. Nesta direção, a pesquisa psicanalítica é desenvolvida e apresentada como uma decorrência direta da clínica, por meio do caso clínico paradigmático. Considerar esta orientação é, em tudo, diferente das estratégias higienistas de exclusão do sujeito. É fato que isto convoca o psicanalista a se posicionar, de maneira subversiva na maior parte das vezes, inserindo a perspectiva do não-todo. Vale lembrar que, em cada caso, a transferência de saber e a decorrente transferência de trabalho não estão lá a priori. Estas têm que ser construídas, a cada momento.

Some-se a isto o fato de que a construção do caso clínico tem que estar em consonância com o ser falante, tal como nós o concebemos a partir do último ensino de Lacan. A este respeito, Miller (2014, p. 31) nos diz:

Até agora, sob a inspiração do século XX, os casos clínicos, tal como os expressamos, são construções lógicas e clínicas sob transferência. Porém, a relação de causa e efeito é um preconceito científico apoiado no sujeito suposto saber. A relação de causa e efeito não vale no âmbito do real sem lei, ela só vale como ruptura entre a causa e o efeito. (...) A psicanálise transcorre no âmbito do recalcado e de sua interpretação graças ao sujeito suposto saber. Mas, no século XXI, trata-se, para a psicanálise, de explorar outra dimensão: a da defesa contra o real sem lei e fora de sentido.

Como consequência disto, o psicanalista terá seu produto de pesquisa condizente com a nossa época e, em nenhuma hipótese, deve se eximir de comunicar seus achados, seja em reuniões de equipe, seja em periódicos indexados: a psicanálise também deve se inserir aí, como uma forma de provocar interlocuções; falar e escrever a respeito de nossa prática em outros meios. Não devemos abrir mão disto, uma vez que não devemos nos envergonhar de ocupar a posição de analisante, seguindo o exemplo de Lacan quando se referia ao seu modo de transmitir a psicanálise em seus Seminários.

Para concluir, voltemos ao ideal das tecnociências e os impasses da nossa prática. Podemos dizer que é fato que o ideal do discurso das tecnociências é fazer do corpo um território 100% conhecido, mas não sem com isso produzir objetos de consumo.

O grande desafio da pesquisa psicanalítica no hospital-escola está em, exatamente, articular uma produção que, se por um lado não possui a marca do objeto de consumo para todos, por outro, sua marcação contundente contribua, por meio do exemplo paradigmático, com o tratamento de sujeitos fortemente afetados pelo gozo mortífero em seus corpos.

De acordo com Laurent (2007, p. 171-172):

O psicanalista deve permanecer atópico em relação à corrente principal da civilização que o arrasta. Ele não se contenta em encantar-se com a 'liberação dos costumes', pois percebe o seu avesso, o novo império do gozo. Irá, por isso, transformar-se em um novo censor, em um defensor dos costumes, em uma espécie de simetria inversa ao deslocamento da civilização? (...) Não devemos nos isolar em uma falsa alternativa entre dizer sim ao empuxo-ao-gozar, cujas exigências são incessantes, e dizer não, apelando para os limites da justa medida. Esse sim e esse não, assim formulados, fogem da particularidade do inconsciente para cada sujeito.

Laurent (2007, p. 172-173), retomando Heidegger, nos propõe dizer sim e não a um só tempo:

Podemos dizer 'sim' e, ao mesmo tempo, 'não' ao emprego inevitável dos objetos técnicos, no sentido de impedi-los de nos engolir e, assim, falsear, confundir e, finalmente, esvaziar o nosso ser. (...) Uma palavra antiga serve para designar essa atitude de dizer simultaneamente sim e não ao mundo técnico: Gelassenheit, 'serenidade'.

 

Referências

Bassols, M. (2014). Ciência e desejo. In: Scilicet – Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum.

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Moretto, M. L. T. (2001). O que pode um psicanalista no hospital? São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

1 Psicanalista. Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). E-mail: niraldosp@uol.com.br.

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