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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre a clínica psicanalítica em um ambulatório de especialidades médicas

 

Reflections on the Psychoanalytic Clinic in an ambulatory of medical specialties

 

 

Cristiana Rodrigues Rua1

Hospital de Transplantes Euryclides de Jesus Zerbini, São Paulo/SP

 

 


RESUMO

No presente trabalho são abordadas as particularidades de uma prática orientada pela Psicanálise no ambulatório de um hospital público que realiza procedimentos de alta complexidade. Neste contexto são realizadas as ditas "avaliações psicológicas", que podem representar para o psicanalista um momento precioso de escuta e intervenção. Nota-se ao longo do percurso na instituição como uma intervenção que tem como disparador o encaminhamento médico pode se transformar em uma futura demanda de análise. Há certas especificidades nesta prática, especialmente no que se refere ao viés institucional e suas repercussões na escuta. Trata-se de um contexto em que nos deparamos com múltiplas transferências que demandam diferentes manejos. Com o objetivo de fundamentar teoricamente esta prática, é realizado um breve percurso por alguns dos "Artigos sobre Técnica" de Freud (1911-1915 [1914]/1994) e por textos de psicanalistas contemporâneos. O percurso apresentado traz alguns elementos para uma reflexão a respeito das possibilidades do trabalho analítico no contexto do referido ambulatório.

Palavras-chave: hospital; avaliação psicológica; clínica psicanalítica; psicologia hospitalar.


ABSTRACT

In the present article, the particularities of a practice guided by psychoanalysis in the ambulatory of a public hospital that performs high complexity procedures are approached. In this context, the so-called "psychological assessments" are performed, representing, to the psychoanalyst, a precious moment of listening and intervention. It is noted along the journey within the institution that an intervention which has, as a trigger, the medical referral can become a future demand for analysis. There are certain specificities in this practice, especially with regards to institutional bias and its repercussions on the listening. This is about a context in which we face multiple transfers that demand different managements. Aiming to theoretically substantiate this practice, a brief course is carried out through some of Freud's "Articles on Technique" (1911-1915 [1914]/1994) and also by texts of contemporary psychoanalysts. The course presented provides some elements for a reflection regarding the possibilities of analytical work in the context of the aforementioned ambulatory.

Keywords: hospital; psychological assessments; psychoanalytic clinic; hospital psychology.


 

 

O presente trabalho tem por objetivo apresentar algumas considerações a respeito da prática do psicanalista no contexto de um ambulatório de um hospital de alta complexidade cuja assistência se dá integralmente por meio do Sistema Único de Saúde. Serão apresentadas algumas reflexões sobre a peculiaridade da escuta analítica neste contexto, principalmente considerando que o analista deve estar advertido da dinâmica institucional para poder viabilizar um trabalho analítico.

Para fundamentar teoricamente tal prática nos baseamos na obra de Freud, especialmente nos chamados "Artigos sobre Técnica" (1911-1915 [1914] /1994), além de contribuições de autores contemporâneos que abordam questões pertinentes à temática. Desta forma, considerando as recomendações técnicas de Freud e as articulações teórico-clínicas de outros autores, pretendemos apresentar uma reflexão crítica acerca de um trabalho que nos instiga e desafia pelas suas particularidades.

É importante uma breve contextualização histórica da instituição, com ênfase no período em que teve início o trabalho a ser descrito. Trata-se de um hospital que existe há mais de 50 anos e, portanto, já atravessou diferentes momentos em termos de políticas públicas. Era da esfera federal em sua fundação e posteriormente passou a ser administrado pela Secretária de Estado da Saúde. Apesar de continuar sendo um hospital público da esfera estadual, desde 2010 está sendo administrado por uma OSS (Organização Social da Saúde), sendo esta a principal mudança vivenciada na instituição nos últimos anos.

O início da atuação na instituição se deu a partir de avaliações e atendimentos a pacientes da Clínica de Cirurgia Plástica e da Ginecologia, tanto em ambulatório quanto em enfermarias. Já neste início houve o contato com o intenso sofrimento gerado, seja pelo corpo ferido precisando de cirurgia plástica reparadora, seja pelas cirurgias que podiam ser mutiladoras para mulheres que tinham câncer de colo de útero avançado, por exemplo.

O trabalho nestas clínicas ocorreu por pouco tempo, pois pelas mudanças institucionais o hospital tornou-se um hospital especializado em transplantes (de córnea, fígado, rins e medula óssea que já ocorria anteriormente), além de outros procedimentos de alta complexidade como cirurgias neurológicas.

As mudanças vivenciadas envolveram tanto reformas e construção de novos espaços quanto um rearranjo importante em termos de trabalho e das diretrizes que a nova administração apresentou. A partir de 2010, o foco do nosso trabalho passou a ser essencialmente o atendimento aos pacientes da Hematologia e do Transplante de Medula Óssea. Recentemente também têm sido realizadas avaliações de pacientes da Hepatologia, principalmente os que aguardam por um transplante de fígado.

Ao longo do tempo, na medida em que a inserção nas equipes se deu de maneira efetiva, os pedidos médicos para atendimentos a serem realizados no ambulatório cresceram de forma significativa. Estes pedidos são variados, mas os mais frequentes são aqueles em que é solicitada uma "avaliação psicológica pré-transplante" que faz parte dos protocolos já estabelecidos na instituição para a realização destes tipos de procedimentos. Tais pedidos são acolhidos conforme a disponibilidade de agenda.

Geralmente o processo de avaliação é composto por uma ou duas entrevistas, mas somos constantemente surpreendidos por conteúdos que ultrapassam significativamente o protocolo de avaliação instituído. Protocolos são importantes no contexto de uma instituição, mas a dor e o sofrimento humano não cabem em seus limites. Uma escuta analítica neste contexto marca uma diferença fundamental entre o profissional que somente cumprirá o protocolo e aquele que está mais atento e disponível para as possíveis demandas que surgem a partir de uma primeira entrevista. Então, embora os pedidos endereçados ao Setor de Psicologia sigam certa lógica proposta pela instituição, o analista, a partir de sua posição, pode ter uma escuta que esteja aberta também às demandas que fogem ao que a ordem médica espera que seja contemplado. Por meio da fundamentação apresentada a seguir, pretendemos demonstrar que o trabalho em ambulatório é uma das vias possíveis do exercício da Psicanálise nas instituições de saúde.

Discutiremos ao longo do texto como solicitações corriqueiras como a referida avaliação psicológica, que geralmente antecedem um procedimento médico, podem se revelar como importante momento de escuta, equivalente às entrevistas que Freud (1913/1994) considerava serem uma etapa essencial do início do tratamento. Logicamente devemos estar advertidos de que, por se tratar de uma prática na instituição de saúde gerida pelo SUS, não teremos um contrato que contemple o estabelecimento de honorários e não temos o divã, por exemplo. Embora este seja um ponto importante para pensarmos em qualquer trabalho analítico, não nos ateremos a ele no escopo do presente artigo. Mas, gostaríamos somente de indicar que a experiência tem mostrado que a questão do investimento no tratamento é algo que se sustenta ao longo do tempo e nos prova que a ausência do dinheiro em si não aponta para a impossibilidade de um trabalho analítico neste contexto.

 

Articulações em Freud e Outros Autores

Retomando o que fora nomeado de Artigos Técnicos de Freud (1911-1915 [1914]/1994), nas Obras Completas traduzidas para o inglês, nos deparamos com a importante observação feita pelo editor James Strachey de que, embora Freud tivesse a intenção de fazer um "Manual de Técnica", ficou longos anos sem escrever artigos que abordassem o tema diretamente. Iannini e Tavares (2017a), na apresentação de uma compilação sobre os artigos técnicos intitulada "Fundamentos da Psicanálise", retomam uma afirmação de Freud de que as maiores dificuldades relativas ao aprendizado da Psicanálise são de ordem técnica e não teórica. Ao abordar o número restrito de textos sobre a técnica, Iannini e Tavares (2017a, p. 8) afirmam: "Com efeito uma arqueologia completa da técnica freudiana exigiria a reconstrução das diversas amostras de trabalho espalhadas ao longo principalmente dos casos clínicos, que funcionam como lições de técnica analítica, mas também das análises de sonhos e de outros fenômenos psíquicos.".

Mesmo sem elaborar um "Manual", Freud apresentou o seu método por meio das histórias clínicas e, também, de textos técnicos mais tardios como "Construções em Análise" (1937/1994) e "Análise Terminável e Interminável" (1937/1994).

Retomando a articulação com a prática que descrevemos, um ponto importante que merece destaque é que muito antes de escrever os textos dedicados à técnica especificamente, Freud (1898/1994) já apontava para as possibilidades do método psicanalítico poder ser exercido em contextos diversos daquele que até então estava sendo apresentado. Neste trabalho, Freud afirma que a Psicanálise, até aquele momento, só poderia ser aplicada às neuroses, uma vez que o material clínico de que dispunha era oriundo dos tratamentos de pessoas com neuroses consideradas crônicas e que pertenciam às classes mais abastadas. Após reconhecer as limitações do método, afirma: "Acho muito provável que seja possível conceber métodos complementares para o tratamento das crianças e das pessoas que recebem assistência médica nos hospitais" (Freud, 1898/1994, p. 268).

Freud (1919 [1918] /1994), muitos anos depois, ao retomar a questão do futuro da Psicanálise menciona a perspectiva de que pessoas com poucos recursos financeiros tivessem a possibilidade de um tratamento psicanalítico. Fala aos seus interlocutores que esta ideia para o futuro da Psicanálise poderia até parecer fantasiosa. Admite que o número de pacientes que ele e outros psicanalistas da época podiam atender era muito limitado. Então, traz a questão de que, para que o método atingisse maior números de pessoas, seria necessário que fosse subsidiado pelo Estado. Mas, como este pronunciamento foi feito no final da Primeira Guerra, Freud não acreditava que a participação do Estado fosse possível naquele momento. Então, apostava que os tratamentos que seriam gratuitos se dariam por meio do que chamou de "caridade privada". Destacamos a seguir um trecho deste pronunciamento que serve como um importante disparador para abordarmos a clínica nas instituições:

É muito provável, também, que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta; e também a influência hipnótica poderá ter novamente seu lugar na análise, como o tem nos tratamentos das neuroses de guerra. No entanto, qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa (Freud, 1913/1994, p. 211).

O trecho acima é bastante conhecido e traz a percepção de Freud a respeito das mudanças que o método sofreria se a Psicanálise fosse estendida a um maior número de pessoas. Acreditamos que a sugestão representa um risco para a prática analítica nas instituições, mas também podemos afirmar que o final da citação nos impele a refletir sobre a nossa prática e inferir que estamos constantemente atentos à importância de que os ingredientes mencionados por Freud sejam mantidos. Iannini e Tavares (2017b) destacam a analogia com a análise química presente neste trecho:

O tropo relativo à Química permite ainda outra importante metáfora, aquela que distingue o ouro puro da análise e o cobre dos métodos sugestivos. A fusão destas substâncias, sob certas condições, poderia ser uma inovação técnica com vistas à extensão do tratamento analítico em contexto institucional (Iannini e Tavares, 2017b, p.203).

Iannini e Tavares (2017b) fazem algumas considerações sobre o impacto desta apresentação de Freud na época. A plateia era composta por representantes dos governos da Alemanha, Áustria e Hungria, o que impulsionou Freud a fazer um pronunciamento mais político, já que estavam no final da Primeira Grande Guerra, conforme já citamos anteriormente. Os autores trazem o dado histórico de que, após este pronunciamento, muitos lugares para tratamentos gratuitos surgiram nestes países, inclusive com a participação de psicanalistas como Melanie Klein, Karl Abraham, entre outros:

Este texto é um ótimo exemplo do cruzamento entre a dimensão ética e a dimensão técnica da Psicanálise, especialmente quando aborda o risco de uma certa análise ortopédica, que submete os destinos de uma análise seja aos ideais do terapeuta, seja a ideais sociais determinados (Iannini e Tavares, 2017b, p. 203).

Após estes trechos em que temos uma antecipação de Freud do que poderia ocorrer no futuro da Psicanálise, seguimos com algumas articulações entre o que Freud desenvolveu nos "Artigos sobre a Técnica" (1911-1915 [1914]/1994) e a nossa prática analítica no contexto do ambulatório.

Iniciamos com uma citação de Alonso (2011) que sintetiza o que, no seu entender, caracteriza a clínica em Freud:

O texto freudiano pode ser definido como um tratado sobre os processos psíquicos que, no interior do movimento entre a prática e a teorização, vão sendo elaboradas a imagem de um aparelho psíquico e uma metodologia de investigação. As construções do campo e do objeto de estudo são, portanto, simultâneas e contemporâneas a uma certa prática, que vai sendo paulatinamente inventada: a situação analítica (Alonso, 2011, p.153).

Alonso (2011) segue nos advertindo de que o analista se depara constantemente com obstáculos e o desafio é sempre manter a possibilidade de análise. Freud, ao enfatizar a importância de uma fase preliminar no tratamento, afirma:

Este experimento preliminar, contudo, é ele próprio, o início de uma psicanálise e deve conformar-se às regras desta. Pode-se talvez fazer a distinção de que, nele, deixa-se o paciente falar quase todo o tempo e não se explica nada mais do que o absolutamente necessário para fazê-lo prosseguir no que está dizendo (Freud, 1913/ 1994, p. 165).

Como podemos observar neste trecho, para Freud, a fase das entrevistas preliminares já pode ser considerada o início de um tratamento psicanalítico.

No mesmo texto, lembremos que Freud (1913/1994), ao tratar da prática da Psicanálise, faz a bela analogia do tratamento analítico com o jogo de xadrez, no qual as regras só se aplicam às aberturas e aos finais dos jogos, de forma que após o início do jogo as possibilidades de jogadas são infinitas. Tal analogia faz bastante sentido na clínica psicanalítica como um todo, e ganha também novos sentidos quando abordamos o tipo de prática institucional que descrevo.

Se os pacientes têm em comum o pertencimento a uma determinada clínica no hospital e o adoecimento no corpo, diferem entre si amplamente em termos de configurações psíquicas. O principal ponto em comum é que todos recebem o convite para a fala quando chegam ao Ambulatório de Psicologia:

Penso estar sendo prudente, contudo, em chamar estas regras de "recomendações" e não reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas. A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica... (Freud, 1913/1994, p.164).

Freud (1913/1994), neste ponto, enfatiza uma característica importante da clínica psicanalítica, que diz respeito à necessidade de que o analista maneje as regras do jogo, de acordo com a situação, porém sem perder de vista a importância das mesmas. Apresenta algumas destas regras em relação ao início do tratamento. Enfatiza o começo do vínculo do paciente e o posterior estabelecimento da transferência. Nas palavras de Freud (1913/1994):

Se cuidadosamente se dissipam as resistências que vêm a tona no início e se evita cometer certos equívocos, o paciente por si só fará essa ligação e vinculará o médico a uma das imagos das pessoas por quem estava acostumado a ser tratado com afeição. É certamente possível sermos privados deste primeiro sucesso se, desde o início, assumirmos outro ponto de vista que não o da compreensão simpática, tal como um ponto de vista moralizador, ou se nos comportarmos como representantes ou advogados da parte litigante - o outro cônjuge, por exemplo (Freud 1913/1994, pp.182 -183).

Destacamos este trecho porque ele condensa uma recomendação fundamental para a discussão acerca da prática que descrevemos neste trabalho. No contexto de uma instituição podem ser muitos os riscos de sucumbir a um discurso moralizante. Por exemplo, nos pedidos endereçados ao psicanalista no sentido de "convencimento", de que o paciente deve ser convencido a aderir ao tratamento para o seu bem, ou que o paciente deve submeter-se a procedimentos que não deseja, etc. É preciso cuidado também para não permitir que a fala que deveria ser do paciente seja substituída pela fala de familiares que geralmente aflitos pelo contexto se sobrepõem e impedem que o paciente fale de si. É tentador colocar aquele que está mais frágil, no caso, o paciente atingido pela doença, no lugar daquele que não tem mais voz: esta advertência é importante tanto para o analista quanto para toda a equipe multidisciplinar.

Freud, em "A Dinâmica da Transferência" (1912/1994), nos mostra um caminho precioso quando nos adverte que a transferência não é um fenômeno restrito à situação analítica, mas ocorre em qualquer relação humana, inclusive nas instituições. Neste caso, temos que lembrar que, no contexto da instituição hospitalar, falamos de várias transferências: médico/paciente, psicanalista/médico, enfermagem/paciente e inclusive familiar/analista, entre outras. Portanto, ao abordar o trabalho neste contexto, não aludimos a uma situação controlada, mas ao contrário, se trata de um cenário com muitas imprevisibilidades e atravessamentos na escuta. Como nos lembra Souza (1992, p. 27): "Há momentos em que a equipe reproduz, transferencialmente, os conflitos presentes na situação - uns acolhem, outros agridem. Se não houver um espaço coletivo de troca, de solidariedade, uns encarnarão o bem, outros ficarão depositários do mal.".

Em "A dinâmica da transferência" (1912/1994), Freud menciona que nas instituições encontramos mais frequentemente a transferência negativa; a transferência erótica também é encontrada, porém, encoberta e não revelada, manifestando-se como resistência ao restabelecimento, o que pode até fazer com que o paciente não saia da instituição.

Em nossa experiência, temos notado que o risco maior é o segundo apontado por Freud, pois temos uma grande adesão ao tratamento psicológico, mesmo considerando que, na maioria das vezes, os pacientes não escolhem ir para a Psicologia, mas são encaminhados porque os médicos identificam algum sofrimento psíquico.

Assim, um dos desafios propostos para pensarmos na função de um analista em um ambulatório deste tipo é que, na medida em que há uma abertura para a escuta e o estabelecimento da transferência, o manejo tem que se dar sem negligenciar as peculiaridades do trabalho na instituição. Os ruídos do que ocorre fora da relação analítica estarão presentes a todo tempo e o psicanalista deve incluir esta variável em seu manejo. Desta forma, trata-se de um duplo manejo: da situação analítica em si e das outras relações que podem ter ressonâncias variadas tanto no analista quanto no paciente.

No contexto do ambulatório é surpreendente o grande número de pacientes que mesmo sem nunca terem frequentado psicólogos ou psicanalistas, quando chegam para a primeira entrevista, já entendem que aquele é o espaço para que falem e em sua grande maioria falam o que nunca haviam dito para ninguém antes. Podemos considerar um privilégio para um psicanalista que trabalha em uma instituição a possibilidade de realizar um trabalho que ofereça a oportunidade de fala para pessoas que estão sofrendo algo muito grave, do ponto de vista de seus organismos, mas muitas vezes não falam somente desta realidade. Ao serem convocados para falar de sua história de vida, trazem o que estava emudecido, muitas vezes pela falta de oportunidades no contexto social em que vivem. O espectro das problemáticas trazidas e trabalhadas no âmbito do que começa com o propósito de uma avaliação é muito amplo. É muito pequena, então, a parcela de pacientes atendidos no ambulatório que já fizeram algum tipo de acompanhamento psicológico. Pode parecer uma atividade corriqueira, mas sabemos que nem sempre o psicanalista encontra contextos institucionais que permitam este tipo de trabalho.

 

Sobre a Dor e o Sofrimento

O trabalho descrito nos leva a uma reflexão do ponto de vista psicanalítico das noções de dor e sofrimento. Birman (2012), ao tratar do tema do mal-estar na contemporaneidade, destaca a diferença entre dor e sofrimento. Afirma que a dor é uma experiência solipsista, que restringe o indivíduo somente ao si mesmo, e não revela nenhuma dimensão alteritária. Traz a hipótese de que o mal-estar na contemporaneidade se caracteriza principalmente por dor e não por sofrimento:

Já o sofrimento é uma experiência eminentemente alteritária. O outro está sempre presente para o sujeito sofrente, a quem este se dirige com seu apelo. Daí a dimensão da alteridade, que inscreve a interlocução no centro da experiência de sofrimento (Birman, 2012, p.141).

Birman traz a questão de que o analista é o outro para quem aqueles que sofrem dirigem suas demandas de cuidados para poderem se inscrever na experiência da transferência. O sofrimento é a subjetivação da dor:

Se pelo adentramento em si o sujeito se interioriza, com a carcaça espacializada presente no registro do somático e se faz então corpo vibrátil e desejante, ao se lançar para fora de si ele se dirige ao outro... A interlocução do sujeito com o outro evidencia uma experiência eminentemente temporal, pela qual o discurso assume formas eminentemente simbólicas (Birman, 2012, p.142).

A partir destas considerações, voltando para a prática no ambulatório, ao se fazer uma oferta de escuta há a possibilidade de transformação da experiência de uma dor que não era comunicável para um sofrimento que pode ser dito e escutado. Como se a dor encontrasse então uma tradução. Os pacientes se apresentam das mais variadas formas na primeira entrevista, sendo que uns só descrevem a dor que sentem no corpo e outros já falam diretamente de suas vidas permeadas por sofrimento. Podemos citar uma fala em que, em uma destas primeiras entrevistas de avaliação, a paciente, ao mencionar certas sensações estranhas pelas quais era acometida, afirma: "pensando bem não deve ser loucura, é sofrimento".

Citamos também Alonso (2011) que, lembrando Pontalis (1978), aborda o fenômeno da dor de uma forma que condiz com a experiência que descrevo:

É no lugar produzido pela dor, lugar de indistinção entre o fora e o dentro, entre o consciente e o inconsciente, entre o corpo e a psique, que se encontram os limites do analisável: exatamente neste umbigo, onde o luto não realizado do objeto primordial fecha-nos o acesso à linguagem. Ajudar essa dor a se dizer, abrindo as trilhas que irão permitir-lhe aceder ao universo da linguagem e o poder de sonhar-se - no sentido em que o trabalho da elaboração onírica, ao tomar as moções pulsionais e transformá-las, as inclui nas condições de linguagem, permitindo um trabalho de metaforização: é exatamente nisto que se encontra a possibilidade do trabalho analítico (Alonso, 2011, p. 154).

Esta longa citação sintetiza o que podemos discutir acerca da prática descrita. Podemos afirmar que o principal objetivo do trabalho analítico nestas situações clínicas seja permitir que o acesso à linguagem se reestabeleça, pois, este acesso pode mesmo estar interrompido por efeitos traumáticos, nos quais podemos incluir o adoecimento do corpo.

Conforme já abordamos em Rua (2014), o adoecimento pode ser entendido como uma experiência traumática cujos efeitos psíquicos revelam-se como um excesso que aponta para uma impossibilidade de representação psíquica. No referido trabalho foram descritos dois casos clínicos que, mesmo após mais de dois anos da remissão de uma doença grave, ainda apresentavam em seu discurso certa paralisia no ser doente. Na maioria dos casos clínicos com os quais nos deparamos no hospital, não só o diagnóstico de uma doença grave pode ter efeito de trauma, mas também os tratamentos podem ser muito debilitantes. Assim, a constatação da não elaboração da situação de adoecimento nos faz enfatizar a importância de uma escuta clínica em todas as etapas que envolvem o processo de adoecimento, inclusive sendo a mesma possível já no momento que é considerado de avaliação.

 

Sobre o Contexto Institucional

Focando no contexto em que ocorre este trabalho, recorremos a Figueiredo (1997) que entende os atendimentos em ambulatórios públicos como uma variação no contexto da clínica psicanalítica. Concordando com Figueiredo (1997), acreditamos que há uma espécie de nova contextualização de nossa clínica a cada novo lugar em que nos inserimos na instituição. Insistimos, porém, que o que deve ser invariável, seja qual for o contexto, é a escuta.

Salientamos a questão institucional e a marca diferencial que este contexto traz em relação à prática em consultório, por exemplo. Primeiramente, o modus operandi da instituição se impõe a todo o momento e o trabalho analítico é inevitavelmente atravessado por isto. No trabalho que se realiza com a maioria dos pacientes está previsto algum tipo de contato ou intervenção com a família e acompanhantes, o que no consultório só ocorre em algumas situações, a depender do diagnóstico ou até mesmo de qual faixa etária predomina no consultório de cada analista.

Outra diferença é que há um pedido de algum outro profissional da instituição (médico(a), enfermeiro(a)), que precisa de um parecer. A questão do tempo nas instituições também marca definitivamente o trabalho do psicanalista. Esta é outra diferença fundamental em relação ao consultório, pois não raramente há uma urgência que não vem do paciente, a qual entendemos que deve ser considerada, mas não necessariamente atendida pelo psicanalista. Já ocorreram muitas situações em que era preciso de mais tempo para a escuta, mas não foi possível devido à urgência da intervenção. É importante acrescentar que nem sempre é uma urgência da conduta médica especificamente, tendo em vista um risco de morte iminente, por exemplo, mas, por vezes, trata-se de urgências de ordem mais burocrática, da instituição com seus protocolos.

Neste ponto, frequentemente temos um certo atrito entre o fazer psicanalítico e o fazer médico e muitas vezes um fazer mais administrativo, de como se dá a gestão da instituição em seus diversos níveis. A instituição tem seus fluxos de trabalho e metas a serem alcançadas, o que repercute no trabalho do psicanalista. Assim, embora possamos vivenciar este tipo de atrito é importante que estas questões sejam contempladas no âmbito do trabalho interdisciplinar. Desta forma, o psicanalista não pode estar alheio ao que ocorre no âmbito do gerenciamento da instituição, mas também não pode deixar que tais questões obstruam a sua escuta. Trata-se de um difícil equilíbrio de forças no cotidiano do trabalho na instituição hospitalar. Neste ponto, podemos retomar a analogia com o jogo de xadrez, no sentido de que o analista terá que fazer uso de estratégias que mantenham sua capacidade de escuta e de diálogo com a instituição em seus diferentes níveis.

 

Considerações Finais

Após estas breves reflexões sobre a prática analítica em uma instituição médica, enfatizamos que este é um trabalho possível, apesar das dificuldades inerentes ao contexto. A maioria dos pacientes que recebemos no ambulatório nos trazem questões que nunca puderam ser ditas antes. Muitas vezes, o que faz com que a experiência de falar e ser escutado seja inédita é o contexto social no qual o paciente está inserido, o qual é marcado pela falta de recursos em muitas esferas.

Acrescentamos que o trabalho analítico não pode ficar restrito às questões relativas ao setting ou a regras que os analistas se impõem, sem se aterem ao fato de que o inconsciente estará lá onde estiver um analista com disponibilidade de escuta. Acreditamos que há, então, neste contexto, a aposta em uma escuta orientada pela ética da Psicanálise. As questões relativas a como entendemos a experiência de adoecimento são importantes, pois é justamente a singularidade desta experiência que nos alerta para a necessidade de que possamos compreender este momento chamado de "avaliação", para além de um momento de aplicação de protocolos já estabelecidos.

Os desafios são muitos, e a maioria resultantes das transferências diversas que ocorrem nas instituições, conforme apontamos acima. Mas, novamente nos inspirando no trabalho de Alonso (2011), a acompanhamos em mais uma afirmação sobre a prática analítica, na qual afirma que o analista deve ter criatividade para manter a situação analítica funcionando, levando em conta cada realidade clínica.

 

Referências

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1 Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Título de Especialista em Psicologia Hospitalar concedido pelo CFP, Especialização em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae, Membro do Projeto de atendimento e pesquisa em Psicossomática Psicanalítica da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, Coorganizadora da coletânea "Psicanálise e Psicossomática – Casos clínicos, construções", Ed. Escuta, 2015. Contato: cris.rua@uol.com.br.

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