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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

"A psicanálise está em toda parte, e os psicanalistas, em outro lugar"

 

"Psychoanalysis is everywhere, and psychoanalysts, elsewhere"

 

 

Monica Marchese Swinerd1

Hospital do Câncer I – INCA, Rio de Janeiro/RJ

 

 


RESUMO

O presente artigo consiste em um relato de experiência sobre a prática psicanalítica em um hospital, em sua relação com a medicina, tendo como eixo a pergunta sobre o que é um psicanalista no hospital. O que permite dizer que há um psicanalista em uma equipe multidisciplinar e o que pode um psicanalista operar com seu ato, o ato analítico? Essas são algumas questões que procuraremos abordar nesse trabalho, visando apresentar o que podem ser os efeitos de uma psicanálise aplicada no hospital, o que significa, em última instância, pensar no ato analítico no campo da medicina, bem como nos discursos que operam nessas diferentes funções.

Palavras-chave: psicanálise; medicina; hospital; câncer; ato analítico.


ABSTRACT

The present article consists of an experience report about the psychoanalytic practice in a hospital, in its relationship with medicine, based on the question of what a psychoanalyst is in the hospital. Then, we ask: what makes it possible to say that there is a psychoanalyst in a multidisciplinary team and what can a psychoanalyst operate with his act, the analytic act? These are some questions that we seek to address in this work, in order to present what may be the effects of an applied psychoanalysis in the hospital, which means, ultimately, to think about the analytical act in the field of medicine, as well as on the discourses that operate in these different functions.

Keywords: psychoanalysis, medicine, hospital, cancer, analytical act.


 

 

Uma introdução

O presente artigo tem como base a prática clínica enquanto psicóloga e praticante da psicanálise em uma instituição especializada no tratamento das doenças oncológicas. Ser psicanalista em uma instituição de referência, instituição de assistência (tratamento do câncer), ensino (formação de especialistas em nível de residência) e pesquisa (com importante impacto no fomento e ações de políticas públicas de saúde), suscita, de partida, algumas questões importantes. Um local que se propõe a ser formador em tecnologia na área oncológica, isto é, com foco em realizar estudos e pesquisas que possam contribuir para o avanço no tratamento de determinadas doenças, acaba por reforçar esse lugar de expertise, de um saber especializado. Cabe lembrar que o contexto é um hospital, tal como é descrito por Foucault (1979), lugar da disciplina, de um certo controle sobre as práticas, lugar dos diagnósticos e protocolos. Lugar do saber médico por excelência, com o peso que a cientificidade lhe atribui, e que também pode ser definido como o lugar da ordem médica, como aborda Clavreul (1983). Então, é a partir desse cenário, nesse encontro entre a psicanálise, o hospital, e a medicina, que proponho o desenvolvimento das questões a seguir.

O cenário dessa clínica é o INCA – Instituto Nacional de Câncer - uma instituição que está organizada em cinco unidades hospitalares, assim denominadas: HC I (a maior delas, com 11 clínicas), HC II (câncer ginecológico e tecido ósseo-conectivo), HC III (mama), HC IV (cuidados paliativos) e CEMO (Centro de Transplante de Medula Óssea). A prática que inspira esse trabalho parte da experiência enquanto psicóloga na clínica de hematologia do Hospital de Câncer I (HCI). Nessa unidade, com tamanha complexidade, a psicologia está organizada de maneira a ter um psicólogo de referência para cada clínica oncológica, visando criar referências não só para o paciente, como também para as equipes de tratamento.

Acompanhar pacientes, seja no momento de uma internação (enfermaria), seja em ambulatório, levanta questões muito específicas. Na enfermaria, na maioria das vezes, não é o paciente que demanda a nossa presença, mas, ao contrário, essa demanda vem em sua maioria pela equipe, ou até mesmo de nós que nos apresentamos ao paciente em meio a uma rotina de internação hospitalar. Já no ambulatório, é comum o paciente procurar atendimento a partir das suas questões subjetivas, da vivência e experiência de ter passado por um tratamento oncológico ou, como alguns dizem, "é o momento em que cai a ficha". Cabe dizer que todas as falas e fragmentos clínicos apresentados ao longo dessa escrita estão associadas ao projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do INCA, sob o n. CAEE 497.65815.7.0000.5274, por ocasião da dissertação de Mestrado, no período entre 2015-2016, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ.

Um trabalho de escuta que não se restringe ao câncer, pois é da vida que esses pacientes vêm falar. Uma disponibilidade que se constitui pela presença do psicólogo, aqui de orientação psicanalítica, que se coloca a serviço da transferência com o paciente, e é a partir disso que pensamos haver uma possibilidade de trabalho. É comum, e até mesmo esperado, do lugar de paciente, uma preocupação com o corpo, com o que se passa com ele, fazendo-se inevitável a busca por uma explicação, como é muito comum, por exemplo, escutar a associação entre o aparecimento do câncer com algum fato vivido. A busca por uma explicação ou causa, pode ser entendida como uma tentativa de dar um sentido para o que parece ter sido devastado pelo real do câncer. A disponibilidade de uma escuta orientada para o sujeito e descentrada da doença, possibilita a cada paciente se deslocar de um primeiro sentido, algo que rapidamente se associe ao aparecimento do câncer, para uma outra posição que permita a cada sujeito recontar algo sobre sua história.

Servimo-nos de um pequeno fragmento da clínica para ilustrar o que se passa nessa experiência de adoecimento. Uma paciente chegou ao ambulatório de psicologia no momento da suspeita de um segundo câncer, dessa vez no estômago (já vinha em tratamento para uma leucemia há cerca de 10 anos). Uma das primeiras associações que a paciente fez nesse momento foi "eu sempre fui de engolir tudo, acho que é por isso que esse câncer apareceu". Esse diagnóstico de um segundo câncer não se confirmou, contudo essa foi a brecha para um trabalho de escuta, a partir da torção, ou desarticulação desse primeiro sentido "engolir – câncer de estômago". Como Lacan afirma, o discurso do analista é "o que faz girar os discursos, sendo o avesso do discurso dominante, no sentido de que o discurso dominante, o do mestre, é 'o lugar em que se demonstra a torção própria do discurso da psicanálise'" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 9). A disponibilidade de escuta, colocada pelo dispositivo analítico, permite ao sujeito, com seu sofrimento singular, e para além do câncer, ter acesso a outra cena, à qual nos referimos em psicanálise, e que aponta para o sujeito do inconsciente.

Em 1975, Lacan, em uma série de conferências em universidades norte-americanas, apresenta a psicanálise como "a última flor da medicina", quer dizer, um lugar onde a medicina pode encontrar algum refúgio, "pois em outras áreas tornou-se científica" (Lacan, 1975, p.15). Lacan retoma Freud ao resgatar a origem mesma da psicanálise, como uma práxis que pode se ocupar daquilo que escapa ao saber médico, porém sem desconsiderá-lo. Isso nos serve para pensar algumas articulações entre a psicanálise e o hospital, uma relação que pode ser pensada a partir de um "e", e talvez seja justamente a partir de um "fora", à margem, tal como Lacan aponta (1966/2001), que propomos pensar o trabalho do psicanalista nesse contexto.

A frase lacaniana escolhida para intitular esse trabalho, "A psicanálise está em toda parte, e os psicanalistas em outro lugar" (Lacan, 1964/2003, p. 243) aponta para algo que não nos parece ser óbvio, e que faz indagar "o que é um psicanalista em um hospital?". Podemos tomá-la a partir de diferentes posições, considerando que a preposição "em" o coloca em referência a um conjunto de enunciações próprias de certa posição discursiva, isto é, em relação às demandas de diferentes ordens. De um lado podemos tomar a questão pelo lado da instituição, do lugar onde está o psicanalista. Trata-se de uma instituição centrada em práticas e procedimentos médicos que visam o tratamento de uma doença grave, doença que lembra a cada um de sua própria finitude. O mandato terapêutico é a cura, a retirada do câncer, ou a minimização de seus efeitos, visando à manutenção da vida e, nesse sentido, é esperado que a equipe que aí está esteja em condição de fazer o tratamento andar. Quais as implicações disso para o psicanalista que está em uma equipe multiprofissional? Se o saber especializado é fundamental no tratamento da doença e, cabe ressaltar, muitos pacientes escolhem essa instituição de tratamento considerando que ali encontrarão aqueles que saberão melhor tratar, como pensar o psicanalista nesse lugar que lhe demanda um saber e expertise? Portanto, temos aí o outro lado da questão, que é a do lugar a partir do qual o psicanalista se situa para responder a tais demandas, e de que maneira responde.

 

O Psicanalista no Hospital

A presença do psicanalista em um contexto médico de tratamento de uma doença grave, como o câncer, convoca à escuta do que pode escapar ao tratamento médico. Escutamos sobre o que é ter um corpo e os efeitos disso para cada sujeito. Corpo marcado, e muitas vezes retalhado pelos tratamentos médicos, com a objetividade científica própria do discurso da medicina, isolando a doença, o órgão doente, daquele que o habita. Mas sabemos, contudo, que o estatuto do corpo em psicanálise possui uma dimensão que está para além do corpo orgânico, que pode ser tratado por técnicas e procedimentos "baseados em evidências". De que evidência se trata ao escutarmos "meu médico não acredita que eu sinto dor, mas é verdade, eu sinto"? Para a psicanálise não há corpo sem um imaginário e um simbólico que o sustente. Então indagamos em que se baseia a prática da psicanálise em um hospital? Que evidências podem ser recolhidas a partir do giro discursivo operado pela presença do psicanalista na cena hospitalar? Aqui, fazemos equivaler o discurso médico, ao discurso do mestre, na medida em que o sujeito está sob o enunciado de um diagnóstico, um enunciado que funciona como um significante-mestre que nomeia algo acerca desse sujeito. No discurso do analista, o agente do discurso é aquele que dá lugar à palavra do sujeito sobre seu sintoma, permitindo que este sujeito trabalhe na produção de um saber no lugar da verdade (Lacan, 1969-1970/1992).

A prática psicanalítica com pacientes em tratamento de câncer tem demonstrado que, entre o corpo real e esse real que acomete o corpo, somos apresentados a um descompasso, um corpo visto que não equivale ao corpo imaginado: "Eu me olho no espelho e não me reconheço mais, essa não sou eu", dizia uma paciente. Uma imagem que se impõe, mas onde o sujeito não se reconhece. Segundo Decat e Kruel, "para a psicanálise, diante da pergunta 'quem sou eu', surgem os três registros: o eu especular; o sujeito dividido do inconsciente; e o objeto pequeno a como o pouco ser do sujeito" (Decat & Kruel, 2000, p. 307).

O que comumente sabemos é que, em um contexto hospitalar, ao psicólogo é demandado um saber sobre o psíquico e sobre as emoções do paciente, e este profissional tem seu lugar em uma equipe multidisciplinar, junto a outros profissionais, colocando-se como "mais um saber" em meio a tantos outros, para formar o "multi" de uma equipe, tomando o paciente como objeto de sua intervenção. Seleciona-se e convoca-se psicólogos para uma equipe, não um psicanalista. O lugar do psicanalista, nesse sentido, não coincide com o lugar do psicólogo com seu saber a mais em uma equipe, pois o psicanalista está advertido que se trata ali não do saber como especialidade, mas de um lugar que justamente aponta para um furo de saber (Lacan, 1968-1969/2008).

Na posição de psicanalistas, estamos advertidos de que se trata de um saber não todo, um não saber a priori (Decat & Kruel, 2000); menos de uma especialidade, e mais de uma escuta particular do sofrimento. Pierre Malengrau lembra que, para o psicanalista, não se trata de contribuir com "um saber a mais, nem um a mais de saber" (Malengrau, 1995, p.87). Nossa aposta é que o que permite ao psicólogo operar como analista é a sua ética, posição frente ao sofrimento subjetivo, de poder suportar aquilo que é da ordem do incontornável, operando um deslocamento do lugar de quem comparece com um dizer sobre o paciente, para dar lugar ao saber do sujeito na construção ou enunciação de uma verdade sobre seu sofrimento, sua dor. Nessa operação, a palavra é o que pode amortecer o sofrimento de uma doença no corpo.

Nesse diálogo entre a psicanálise e a medicina no hospital, podemos recorrer a algumas orientações de Lacan (1964/2003) como, por exemplo o que ele apresenta no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris. Neste, Lacan aponta três seções de psicanálise, a saber: seção de psicanálise pura, que diz respeito à práxis e doutrina da psicanálise propriamente dita; a seção de psicanálise aplicada, o que esta significa de terapêutica e clínica médica; e a seção de recenseamento do campo freudiano, para fins de levantamento de suas produções. Desde então, a questão da psicanálise aplicada passa a ser objeto de investigação por aqueles que a praticam em diferentes contextos.

O que é importante não perder de vista, tal como Miller (2017) assinala, é que a psicanálise aplicada à terapêutica não se confunda com a psicoterapia, isto é, que ela seja psicanálise e reservada ao psicanalista, "e que se mantenha exigente com relação à sua identidade psicanalítica" (Miller, 2017, p.3). Não recuar dos princípios de seu ato, o que significa que ela seja uma prática da fala, a partir de uma relação transferencial, na qual o analista é apenas objeto do saber que o sujeito construirá sobre si mesmo, nos parece ser aquilo para o que Miller aponta, considerando que a diferença radical entre a psicanálise aplicada à terapêutica e a psicoterapia é o lugar do qual o praticante responde.

Ser psicanalista em meio a uma equipe não garante, então, que o que opera é o discurso do analista. Nas psicoterapias, esse praticante pretende operar do lugar de um Outro consistente, de quem tem um dizer sobre o mal-estar do sujeito, e, portanto, se situando no campo da demanda, o que o aproxima do discurso do mestre. Em outras palavras, o lugar do mestre é esse lugar de quem se supõe que conduz a um saber (Lacan, 1969-1970/1992), e o sujeito aparece como verdade de um significante-mestre. O que o diferencia do lugar do analista é o fato deste se situar em um mais além, um lugar de um saber opaco, abstendo-se de ter que responder do lugar de quem sabe a priori. Vemos, com isso, que a partir da noção dos discursos em Lacan, podemos tentar extrair algumas orientações sobre o lugar do psicanalista nesse contexto.

Podemos ilustrar com algumas situações bastante conhecidas em uma rotina hospitalar, como, por exemplo, o momento em que a equipe médica precisa comunicar alguma notícia difícil para um paciente. Quando o médico se vê diante dos limites de um tratamento com proposta curativa - situações em que, e a despeito de todo o investimento e tecnologia que a medicina dispõe (radioterapia, quimioterapia, cirurgias, etc.), a doença progride e o paciente/doença é dito como "refratário" - isso muitas vezes é vivido como um fracasso. Para a medicina isso é um limite, porque o médico só vai até onde a medicina avançou; ao contrário da psicanálise que se ocupa de um sujeito e de um corpo que traz as marcas significantes de sua constituição subjetiva. Ainda segundo Malengrau, "a psicanálise se ocupa do impossível de suportar a partir das formas que ele toma no dizer" (Malengrau, 1995, p.87), e acrescenta "a psicanálise inclui em sua própria experiência os limites que ela encontra; será ela capaz de oferecer alguma referência a uma prática tendo por objetivo, não curar, mas atenuar o irredutível de um real?" (Malengrau, 1995. p.87).

Na maioria das vezes o médico faz essa comunicação sozinho – comunicar ao paciente/família; o que é considerado um ato médico, informar sobre o estado da doença e prognóstico. Poderíamos nos perguntar, considerando um certo ideal do trabalho em equipe, por que ele não inclui o psicólogo nesse momento, e tomar isso como uma exclusão, ou impossibilidade de fazer alguma coisa. Mas, de outro modo, tomar essa "exclusão" como o que fica de fora, apontando para o lugar mesmo da psicanálise, como possibilidade de trabalho. Não será desse lugar, do que está fora, que podemos recolher os efeitos daquela comunicação, a partir do que ficou para cada sujeito ao receber a notícia de que "não há mais o que ser feito"? Assim, mesmo diante do que pode ser um limite para a medicina, afirmamos: há trabalho!

Uma das maneiras de se pensar o psicanalista em uma equipe, no espaço hospitalar, então, é como integrante de uma equipe que está ali para tratar do paciente e oferecer a este, e de certo modo também à equipe, todo o "suporte" e "apoio" ao tratamento. Todavia, é a partir da brecha aberta, do que escapa ao protocolo, que o psicanalista pode comparecer para escutar o que há de mais singular, e justamente por isso não cabe no protocolo. Um diagnóstico de câncer, quando acompanhado por uma internação hospitalar, pode desencadear importante angústia em quem vivencia tal experiência, considerando que se trata de um tratamento que afasta o sujeito de sua vida, seus laços afetivos, seus planos e, não raro, das referências de sua própria identidade. Nessa função então, muitas vezes identificada com o lugar de "ajudar o paciente a se adaptar a determinado contexto ou situação", o praticante da psicanálise está nessa equipe para atestar a presença de um sujeito, e recolher os efeitos dessa vivência de ter um corpo marcado por uma experiência de finitude, advertido de que tem que se haver com o incurável de cada um.

O que é interessante nisso é que escutamos o que há de mais singular, pois o que retorna para o sujeito não é necessariamente o que o médico anunciou no momento daquela comunicação, e é aí que algo de muito particular de cada sujeito pode aparecer. A psicanálise no campo da medicina, segundo Ansermet (2014), toca exatamente no ponto de real, do limite, e do que fica fora da possibilidade de recobrimento:

Resta definir mais precisamente esse campo e determinar o que nele está em jogo para a clínica: esses pontos limites entre medicina e psicanálise poderiam assim se tornar, para a psicanálise, uma espécie de laboratório de pesquisa sobre a questão do real (Ansermet, 2014, p.2)

A questão que retorna é: o que um psicanalista opera com seu ato no tratamento de uma doença que devasta o corpo? E por que será que ainda observamos uma certa resistência quanto à prática da psicanálise nesse contexto? A partir das indicações de Lacan (1966/2001), podemos pensar o trabalho do psicanalista com o que resta, com o que muitas vezes escapa e fica foracluído do saber médico, com o resíduo não científico da medicina, "o nada", que é então encaminhado ao profissional "psi", como é comum ouvir: "o médico disse que eu não tenho nada, me encaminhou para o psicólogo". É ocupando essa posição, de resto de saber, que Lacan (1969-1970/1992) afirmara que o discurso do analista é o avesso do discurso do mestre, ou seja, aquele capaz de fazer girar os discursos e, com isso, dirigir-se ao sujeito do inconsciente.

Então temos aqui dois lugares, ainda que diante do mesmo paciente, duas posições discursivas diferentes, ou, se podemos dizer, duas formas distintas de fazer laço. O discurso da cientificidade, na medida em que aponta para o já instituído, não deixa muito lugar para o singular, a subjetividade propriamente, na medida em que tal discurso aponta para um "para todos", deixando o "um" que interessa à psicanálise. É no que se produz como enigma para cada sujeito, e que pode produzir um efeito de verdade a partir da marca significante "ter um câncer", que a psicanálise tem algo a escutar.

 

A Questão do Tempo ou da Urgência no Hospital

Recorremos a um breve caso clínico para ilustrar a experiência que fundamenta as questões até aqui apresentadas. Trata-se de um paciente jovem, 25 anos, com uma leucemia aguda que após vários protocolos de tratamento, e de uma série de perdas reais em seu corpo (visão, amputação de dedo…) todas pelo efeito da toxicidade do tratamento, recebe a notícia pela médica que não podiam mais tratá-lo, que "não havia mais nada a ser feito". "Então significa que eu vou morrer, doutora?", perguntava esse paciente. "Sim", respondia a médica, tão jovem quanto ele, consternada com a pergunta e com o mandato médico de não mentir para o paciente. Ainda assim, e diante daquilo que acabara de ouvir, ele começava a fazer vários planos: fazer uma tatuagem, comprar um ar condicionado para seu quarto, talvez uma moto… Diante de tantos planos de vida, que pareciam ali incoerentes com a comunicação que acabara de ser feita, a médica chama a psicóloga com ar de muita preocupação para dizer que achava que ele estava "negando a realidade", pois como ele poderia fazer tantos planos se iria morrer? Acolhendo a angústia daquela médica, foi possível dizer que ele ainda estava lá, vivo, e talvez a possibilidade de falar de seus planos, de desejar, era o que lhe permitia ainda viver. Acreditamos que não fazer planos, significaria morrer antes mesmo da morte chegar. Enquanto vivo, ele queria falar da vida. Estar ali diante daquele sujeito, não para responder ou suturar um buraco deixado pela palavra ouvida da médica, é o que permite o sujeito elaborar, e poder fazer alguma coisa com a vida, ainda que diante da morte.

Assim podemos dizer que corremos o risco de assumir ao menos duas posições nesse cenário hospitalar, o que implica numa escolha ética. A primeira é se colocar no lugar de quem sabe sobre o sofrimento do sujeito, assumir uma posição de adaptar o paciente à determinada situação, como suporte ao tratamento. A outra é, diante do encontro com o paciente, apostar e apontar para um saber do lado do sujeito, que pode advir desse encontro com o real, esse real de uma doença que lembra cada um da sua mortalidade. Estar ao lado, e ao largo do saber médico, para juntos acompanharmos o paciente nessa travessia. É desse lugar que aquele que pratica a psicanálise pode escutar e possibilitar que o sujeito conclua algo sobre si, produzindo um saber singular sobre algo que toca sempre o real, nesse caso a vivência diante do câncer ou diante da morte.

Não sabemos, a priori, se diante da notícia das propostas de tratamento, ou da impossibilidade do mesmo, o paciente vai deprimir, ou vai querer falar sobre a morte, ou vai simplesmente querer falar e investir na vida, afinal ele está ali, há um sujeito. O que sabemos é que em psicanálise não é possível falar em protocolos, ao contrário da medicina. O saber que o sujeito produz sobre isso depende do laço que se estabelece com aquele que o escuta, se de fato está ali para isso, pois é a presença do analista na transferência que permite que aquilo que ficou como "resto' pode ser elevado a uma condição de enigma fazendo o sujeito trabalhar (Lamy, 2003). Se ao médico cabe atestar a vida e a morte, atos médicos por excelência (atestado de nascimento e de óbito), ao psicanalista resta atestar o que cada sujeito faz entre a vida e a morte, nesse circuito absolutamente singular (Swinerd, 2018).

Poder escutar esse jovem paciente até o momento do desfecho da vida, secretariá-lo em seu desejo, permitiu que ele pudesse concluir algo. Ao mesmo tempo, possibilitou àquela igualmente jovem médica perceber que a sua palavra podia ganhar novas direções que não somente uma sentença de morte. Poder falar de sua fragilidade como médica, diante do impossível, permitiu que ela pudesse dividir um pouco essa decisão com o paciente e outros membros da equipe, colocar em suspenso a certeza do que o saber médico era capaz de atestar. Deixar que o paciente pudesse concluir alguma coisa sobre sua vida naquele momento, foi o possível a ser feito.

 

Considerações Finais

Pensar então a relação entre a psicanálise e hospital, nos faz retornar a Freud (1932-1936/1996), quando afirmou, em uma de suas Conferências, que a psicanálise é um método terapêutico como os demais, e assim está sujeito a triunfos, derrotas, limitações, e indicações, e como uma atividade árdua e exigente, não deve ser manejada tal como um par de óculos, que se coloca ou se retira em algumas situações, "ela possui um médico inteiramente ou não o possui em absoluto" (Freud, 1932-1936/1996, p.150). Podemos entender que essa afirmação freudiana aponta para duas maneiras de se pensar a psicanálise: uma, enquanto método e instrumento; a outra enquanto ato, posição ética e discursiva.

Como apontado ao longo desse trabalho, o imperativo do contexto hospitalar é a cura, identificada aqui à ausência ou remissão dos sinais e sintomas presentes no diagnóstico. Se para a medicina o que é visado é a ausência do sintoma; para a psicanálise o sintoma é o que confere ao sujeito seu modo particular de ser e estar na vida, é o que determina o circuito pulsional de cada sujeito, a maneira singular com que cada um goza do fato de ter um corpo. Portanto não há uma coincidência de sintomas. É também o que Lacan (1966/2001) apresenta em seu trabalho de 1966, "O lugar da psicanálise na medicina", apontando que entre elas há uma falha epistemo-somática, o que quer dizer que o somático está ali, como campo pulsional. Mas se de um lado a medicina trata o corpo como campo da demanda; a psicanálise está interessada nesse corpo como campo de gozo, lugar onde se inscrevem as marcas que dão a existência de um sujeito. Para além do biológico.

O que pretendemos demonstrar com esse trabalho é que pensar na especificidade do discurso psicanalítico no diálogo com outras ciências, e especificamente no diálogo com a medicina, impõe, tal como apontado por Ansermet (2014), passar pelo mal-entendido, incluí-lo, sem necessariamente contorná-lo ou recobri-lo com um saber a mais. E, nesse sentido, podemos afirmar que a operação discursiva instaurada pela psicanálise marca uma posição ética e política, porque resiste às exigências de um puro ato médico, evitando que o sujeito sucumba em meio a tantos protocolos.

Ainda que dentro de um hospital, lugar do conhecimento científico necessário no tratamento das doenças, o psicanalista deve estar advertido de que está ali a partir de uma outra posição, tal como Lacan (1958/1998) se refere ao analista na direção do tratamento, como lugar do morto – como no jogo do bridge - permitindo que o outro, o sujeito, jogue. É a partir desse lugar, de um "dentro-fora", que colocamo-nos nessa prática clínica, com a singularidade de cada sujeito em tratamento. A partir de cada encontro clínico, podemos nos deparar com a afirmação de que "o que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise, é justamente da ordem do saber, e não do conhecimento" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 30). Lugar este, do discurso do psicanalista, que o que é da ordem do real, e tem valor de traumático para cada sujeito, pode encontrar um lugar no relato daquele que nos fala, trazendo para o lugar de sujeito aquele que fica como objeto das intervenções e procedimentos médicos.

 

Referências

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1 Psicóloga do Hospital do Câncer I – INCA, Rio de Janeiro/RJ; Mestre e Doutoranda em Psicanálise (PGPSA/UERJ), Rio de Janeiro/RJ. Especialista em Atendimento Psicanalítico em Instituição (IPUB-UFRJ). Docente, preceptora e supervisora do Programa de Residência Multiprofissional em Oncologia do INCA. Contato: monicamarchese@globo.com.

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