SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 número especialA psicanálise está em toda parte, e os psicanalistas, em outro lugarAtendimento psicológico durante o pré-natal de risco: ameaça de aborto e hospitalização prolongada índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

Prática psicanalítica em enfermaria de pediatria: possibilidades, desafios

 

Psychoanalytic practice in pediatric ward: possibilities and challenges

 

 

Andréa Barbosa de Albuquerque1

UERJ, Rio de Janeiro/RJ

 

 


RESUMO

Problematizam-se algumas possibilidades e desafios do trabalho do psicanalista numa enfermaria de pediatria de um hospital universitário. Apresentam-se as atividades realizadas nesse contexto, discutindo-se as expectativas da equipe de saúde quanto ao trabalho da equipe de psicologia e possibilidades de intervenção junto à equipe de saúde e ao paciente.

Palavras-chave: psicanálise; psicólogo; pediatria; hospital geral.


ABSTRACT

This paper examines some of the possibilities and challenges experienced by a psychoanalyst in a pediatric ward of an university hospital. It presents the activities in this setting and discusses the expectations of the health team concerning the work of the psychology team as well as discussing the possibilities of interventions by the psychoanalyst with the health team and with patients.

Keywords: psychoanalysis; psychologist; pediatrics; general hospital.


 

 

É relativamente recente a inserção de psicólogos nas equipes de saúde no âmbito do hospital geral. Aos poucos, têm-se delineado as linhas gerais de sua atuação neste cenário. No entanto, os diferentes modelos teórico-clínicos que sustentam as práticas dos psicólogos no hospital e os diferentes cenários de atuação no âmbito do próprio hospital configuram um campo marcado pela dispersão e heterogeneidade. Cada modelo teórico delineia suas formas de intervenção e seus objetivos, que podem ser bastante divergentes entre si (Dimenstein, 2000). Essa diversidade de modelos teórico-clínicos contribui para que os demais profissionais de saúde não tenham clareza de qual é a função do psicólogo na equipe.

Neste trabalho propomos uma discussão acerca das possibilidades e desafios da atuação de psicanalistas numa enfermaria de pediatria de um hospital universitário, onde as equipes de saúde são constituídas por staffs e residentes das diversas áreas da saúde, além de internos de medicina.

 

A rotina do psicanalista na equipe de saúde da enfermaria

O trabalho do psicanalista na enfermaria de pediatria pauta-se na aposta da viabilidade de escuta e intervenções norteadas pela teoria psicanalítica num cenário eminentemente marcado pelo ideário médico. Desde o início, a proposta é de estabelecer um trabalho integrado ao dos demais profissionais de saúde, com uma inserção consistente do psicanalista na equipe, de modo a evitar a configuração de sua atuação como um trabalho paralelo ou complementar ao da equipe médica.

Nessa perspectiva, a equipe de psicologia optou por participar rotineiramente do round (reunião diária da equipe médica, em que todos os casos dos pacientes internados na enfermaria são discutidos). Por tratar-se de um hospital de ensino, a passagem dos casos é feita minuciosamente, esclarecendo-se cada aspecto da clínica médica. Em geral, outros profissionais de saúde somente participam do round quando há uma questão específica a ser discutida com relação a algum paciente. Se, a princípio, a presença do psicanalista na reunião parecia passar desapercebida, aos poucos foi-se abrindo espaço para sua participação mais ativa. Mais recentemente, por iniciativa da equipe de psicologia, começou a ser realizada bimensalmente uma reunião multidisciplinar de discussão de casos clínicos, com pelo menos um representante de cada categoria profissional.

O round tem se mostrado um cenário muito rico para se identificar precocemente situações potenciais de dificuldades ou impasses. À primeira vista, poder-se-ia pensar que a criança hospitalizada é vista – e tratada – pela equipe médica apenas como um corpo adoecido (Carvalho, 2011). O que domina as discussões nos rounds é o funcionamento dos órgãos, os resultados de exames, os diagnósticos, as condutas terapêuticas. No entanto, no modo como a equipe relata o caso, comentários aparentemente inócuos sobre alguma atitude da criança ou da família ou algumas questões relativas à história da família, dizem algo da relação da equipe com cada paciente. No meio de uma discussão que se pretende estritamente científica, vez ou outra imiscui-se um comentário divergente, referido ao desânimo da criança ou ao desespero da mãe. É certo que o humor da criança sinaliza algo acerca de sua condição clínica e que o descontrole da mãe pode interferir no bom andamento do tratamento. Mas não se trata só disso. Esses comentários adjacentes falam da atenção discreta que é concedida à criança e não apenas a seu corpo; sinalizam a presença de subjetividades que se fazem notar tanto na equipe quanto nos pacientes e seus familiares. Mas parece não haver espaço para que se fale sobre isso em voz alta, para que também isso seja pauta de reunião; e assim essa presença permanece sorrateira e raramente chega a ocupar a cena.

Como rotina, é feita pelo menos uma entrevista com a criança e sua família. Essa primeira entrevista tem o objetivo de apresentar o serviço de psicologia e conhecer a família – o que a família relata sobre a condição clínica da criança, perspectiva de tratamento e prognóstico, como a criança e a família estão lidando com o adoecimento e a internação e como a família se organizou para acompanhar a hospitalização da criança e administrar a vida lá fora. Por vezes, o relato da família sobre a condição clínica da criança se mostra bastante distante do parecer médico e, nestes casos, importa saber a que se deve essa distância: não foi explicado à família o diagnóstico/prognóstico? A família não entendeu os esclarecimentos médicos? Ou a família não pode ou não quer entender do que se trata?

Instituiu-se, também, o projeto “visita dos irmãos”. Considerando-se o impacto que o adoecimento/hospitalização da criança pode ter sobre a experiência subjetiva dos irmãos, viabilizou-se a visita dos mesmos com acompanhamento do psicanalista, desde que desejada pelas crianças e autorizada pelos pais e pela equipe médica. É realizada uma conversa inicial com a criança visitante, em que se abordam brevemente suas ideias e expectativas com relação à situação do irmão e à visita, descreve-se o cenário que ela vai encontrar na enfermaria (como a aparelhagem médica, por exemplo) e esclarecem-se os cuidados a serem tomados (com contato e assepsia, por exemplo). A visita é supervisionada pelo psicanalista, que acompanha a uma certa distância o encontro, pronto a intervir caso se faça necessário. Ao término, é realizada uma nova conversa sobre a experiência vivida. Se, a princípio, houve alguma relutância da equipe a esse projeto, pela preocupação com a segurança tanto dos pacientes quanto dos visitantes no que se refere a risco de contaminação, acidente ou impacto emocional, os efeitos positivos provocados pela visita sobre pacientes, visitantes e equipe mostram a relevância do projeto.

 

A equipe de saúde e suas solicitações à equipe de psicologia

O discurso médico é hegemônico no hospital, norteando as atuações de todos os profissionais de saúde. É um discurso prescritivo, que orienta o paciente quanto aos procedimentos e cuidados adequados a seu restabelecimento durante a internação.

Em geral, os profissionais de saúde pautam suas intervenções em protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas que norteiam sua conduta e apontam os resultados esperados. Nessa perspectiva, há uma expectativa não enunciada de que o psicólogo atue de forma análoga, sabendo de antemão o que pretende alcançar com suas intervenções, numa prática coadjuvante a do tratamento médico. É com essa ideia que a equipe médica dirige suas solicitações ao psicólogo, com a expectativa de que ele possa intervir nas situações-problema com vistas a solucioná-las de forma rápida e eficaz, em consonância com os objetivos propostos pela equipe de saúde.

Em geral, a solicitação da equipe se dá quando se considera que o paciente – a criança e a família – está “fora da curva”. A equipe tem um parâmetro pré-estabelecido e não explícito do que se espera em termos de reação emocional à doença e à internação. Trata-se de um conjunto de expectativas compartilhado pela maioria, mas não explicitado: espera-se algum grau de sofrimento emocional, alguma adesão ao tratamento, alguma submissão às prescrições médicas e alguma adaptação às normas de comportamento na enfermaria. Há uma faixa de tolerância com relação à variação singular de cada paciente com relação a esses aspectos e a própria equipe busca lidar com isso: médicos, enfermeiros, atendentes conversam com a família, explicam os procedimentos e tentam promover os ajustes necessários ao bom tratamento do paciente. Quando se considera que esses esforços não foram suficientes, ou seja, quando o paciente se mostra “fora da curva”, solicita-se a intervenção do psicólogo. Espera-se que este possa ajudar o paciente a melhor se adequar às normas da enfermaria, a sua condição clínica – e seu sofrimento -, bem como às exigências do tratamento.

A dificuldade de adesão ao tratamento é um dos momentos em que a participação da equipe de psicologia é solicitada. Por vezes, trata-se da relutância da família em assinar a autorização para a realização de um procedimento médico, como gastrostomia, por exemplo; outras vezes, trata-se da recusa em acatar as prescrições médicas como, por exemplo, restrições alimentares. Nesses momentos, de alguma forma, o saber médico se vê questionado em suas certezas e a equipe se vê compelida a lidar com as expressões, sempre singulares, do paciente/família. Os motivos que determinam as atitudes da família quase nunca se pautam em verdades científicas, mas antes se enraízam em suas crenças, convicções pessoais, desejos,fantasias, enfim, em motivos que não encontram espaço de compreensão na racionalidade médica.Mesmo estando segura da terapêutica proposta, a relutância da família faz balançar as certezas da equipe, abrindo, assim, caminho para a angústia (Carvalho, 2011). Sua expectativa, visando sempre o melhor tratamento para a criança, é que o psicólogo, esse “especialista em subjetividade” (Batista e Rocha, 2013, p. 27), possa solucionar de imediato o impasse, mas atendendo sempre ao direcionamento médico - tratar-se-ia, em última instância, de conseguir a colaboração aquiescente do paciente.

As expressões emocionais da criança/família constituem outro motivo para se requerer a intervenção da equipe de psicologia: a equipe de saúde pede atendimento quando avalia que a criança ou a família está triste demais, ou ansiosa demais, ou deprimida etc. Essa solicitação é interessante porque diz algo sobre a sensibilidade de cada profissional às expressões emocionais da criança e da família, ao modo como o paciente afeta o profissional. Nesse caso, a expectativa é que o psicólogo possa ajudar a criança/família a lidar melhor com sua condição clínica e sua hospitalização, o que, em muitos casos, significa ajudar a conter os afetos dentro de determinados parâmetros. Cumpre pontuar o efeito de apaziguamento da angústia do profissional que poderia resultar dessa modalidade de intervenção junto ao paciente.

Outro momento em que, com frequência, é requerida a presença do psicólogo é quando ocorre alguma transgressão às regras da enfermaria. A enfermaria conta com um conjunto de regras explícitas que devem ser cumpridas: um acompanhante por criança, horário de visita, horário de entrada e saída da enfermaria etc. E a enfermaria tem também um outro conjunto de regras não regulamentadas que fazem parte da cultura local. São representações que constituem o conjunto de expectativas dos profissionais com relação às atitudes e comportamentos dos acompanhantes. Em geral, é a mãe quem acompanha a criança; espera-se que ela tenha dedicação integral aos cuidados da criança, assumindo os cuidados de higiene, alimentação e companhia e que mantenha uma relação cordial com as outras mães e com a equipe. Mas nem sempre é assim. Eventualmente a mãe não cuida da criança, ou sai com frequência, ou vai para a casa e deixa a criança sem acompanhante, ou se envolve em conflitos com outras mães ou com a equipe. A tolerância da equipe a essas transgressões à cultura local depende muito da avaliação que ela faz sobre os motivos da mãe. Por exemplo, tende a ser mais tolerada a ausência da mãe quando ela sai para cuidar de outro filho que está em casa do que quando ela sai para se distrair, ou descansar ou simplesmente para se afastar do cenário hospitalar. A avaliação das atitudes e comportamentos dos acompanhantes pauta-se em representações do senso-comum acerca do que é o bem cuidar e dos valores pessoais singulares dos profissionais em questão.

Em geral, o pedido de intervenção da psicologia traz consigo o pedido de restabelecimento da ordem. E esse pedido, quase sempre, não pode ser atendido como foi proposto. Enquanto o pedido se dirige ao psicólogo, é do lugar de analista que esse pedido é escutado e pode ser trabalhado.

 

O psicanalista diante das solicitações da equipe de saúde

Dificilmente a solicitação da equipe será respondida tal qual formulada. Ao psicanalista está posto o desafio de lidar com a equipe – e com essa solicitação – de modo a poder trabalhar a sua própria maneira, sem entrar em confronto direto com a equipe nem ignorar o que lhe foi solicitado. O fato de já contar com um espaço delimitado na equipe favorece esse manejo. A relação com a equipe é atravessada pela cultura hospitalar que delineia lugares e poderes hierarquizados a cada categoria profissional – médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas - e a cada posição institucional – staffs, residentes.

A atuação do psicanalista, especialmente junto à equipe, depende, em certa medida, do reconhecimento do valor de seu trabalho que, por sua vez, é atravessado pelo lugar que ocupa na hierarquia institucional. Como dito anteriormente, há uma expectativa de que o psicólogo possa colaborar com o projeto terapêutico médico, promovendo maior adesão ao tratamento e solucionando impasses entre o paciente e a equipe, respeitando o tempo médico – o tempo da urgência. E isso não acontece da forma como parece ser esperado. O psicanalista pode, eventualmente, estabelecer uma mediação entre paciente e equipe, favorecendo algum diálogo, algum esclarecimento que pode – ou não – facilitar a superação de um impasse, mas não é esta sua proposta principal. Assim, por vezes, o psicanalista pode se ver pressionado pela equipe a atender seus direcionamentos terapêuticos, não sendo tarefa sempre fácil resistir a esse apelo.Afinal, atender à solicitação da equipe tal qual formulada parece trazer consigo uma promessa de satisfação narcísica pelo reconhecimento e valorização de sua atuação, o que talvez assegurasse ao psicanalista sua aceitação pela equipe (Machado e Chatelard, 2013).

No entanto, o risco que se corre é o de comprometer a especificidade de sua forma de atuação, ao atrelá-la a esse ideário de uma saúde universal que prescreve ao outro suas formas de bem-estar. Por outro lado, ao resistir a esse apelo, o risco que se corre é o de não reconhecimento de seu trabalho, que por vezes se expressa numa condição de certa invisibilidade do psicanalista na equipe. Nessa tensão entre a sedução do reconhecimento e o desejo de construção de um espaço que se possa dizer analítico, o psicanalista se mobiliza para poder sustentar um lugar de impasse, de angústia, de frustração sem abrir mão de sua função.

Com relação à equipe, busca-se trabalhar a solicitação feita no sentido de apreender o que está em jogo nessa solicitação e qual a expectativa com relação à intervenção do psicólogo. Na conversa com o profissional de saúde, o psicanalista se ocupa de escutar o que naquele discurso diz daquele sujeito singular, o que das questões por ele trazidas sobre o paciente falam não apenas do paciente, mas também dele e de sua relação com o paciente. Por que é aquele profissional que pergunta ou solicita algo daquele paciente naquele momento? O que no paciente provoca o que no profissional que o leva a buscar o psicólogo? De alguma forma, as questões do paciente e do profissional se entrelaçam nessa solicitação. Também a escuta do psicanalista é modulada por sua própria trajetória, a que se conjugam as marcas de sua apropriação de seu lugar institucional. Portanto, cada interconsulta é um acontecimento radicalmente singular, marcado pelas particularidades de cada um dos envolvidos. O discurso técnico tende a suprimir a subjetividade, pretendendo-se objetivo, pragmático. No entanto, a subjetividade modula toda decisão, toda conduta, em geral à revelia do profissional que não se atenta para o modo como suas convicções pessoais se entrelaçam ao discurso técnico, determinando suas escolhas. Nessa perspectiva, a atuação do psicanalista com a equipe visa favorecer um olhar mais ampliado do profissional não apenas com relação à situação identificada como problema como também sobre suas condutas clínicas.

 

O psicanalista e a criança/família

O adoecimento/hospitalização transforma de forma abrupta a vida da criança e da família como era concebida até então. Em especial, na situação de internação de longo prazo, a criança e, em geral, sua mãe, se veem repentinamente morando no hospital, tendo que assumir uma rotina que lhes é imposta, com horários predeterminados de refeições, compartilhando sua intimidade com estranhos, convivendo com o ruído constante de pessoas e aparelhos, com intervenções repetidas em seu corpo (Carvalho, 2011). A mãe, ao se internar junto com a criança, deixa em segundo plano os cuidados com a casa e demais filhos, que permanecem sob os cuidados de familiares ou vizinhos.

Não se trata apenas da mudança na rotina do dia-a-dia, mas principalmente da mudança em sua experiência de si mesmo. O adoecimento/hospitalização coloca em xeque a imagem de si, impõe limitações, confronta a criança e a família com a impotência, o desamparo, a angústia de sua fragilidade, da falta de controle, do não-saber. Tantas vezes, a culpa se faz presente na vida dos pais, por não terem podido evitar o adoecimento do filho, por sentirem que não aguentam mais tamanho sofrimento, por desejarem estar longe dali, daquela rotina cansativa e estressante, por quererem retomar sua vida, como se não houvesse aquele intervalo. Muitas vezes, ao desejo de restabelecimento da saúde do filho se mescla o desejo de fazer cessar aquele sofrimento, que é do filho, que é da família, nem que seja pela sua morte. Impõe-se um trabalho de elaboração psíquica, de busca de sentido, de criar formas possíveis de lidar com um afeto que transborda, com dor, com sofrimento; impõe-se o trabalho de criar formas possíveis de existência com as limitações impostas pela doença, que podem ser transitórias, mas também permanentes.

A doença objetivável diagnosticada e tratada pelos profissionais de saúde não é a mesma doença vivida pelo paciente. Esta se insere na trama de sua existência, podendo ter causas e sentidos que se diferenciam muito das concepções médicas. Essa distância talvez responda por alguns dos atritos entre equipe e paciente/família referentes ao tratamento proposto. A relutância ou recusa em concordar com um procedimento indicado ou seguir as orientações da equipe dizem algo de como o paciente/família vivenciam o adoecimento/tratamento, dizem algo de como veem a própria equipe e algo de como conseguem lidar com tudo isso naquele momento.

Por outro lado, a equipe, empenhada em prover a melhor assistência, muitas vezes não entende bem o que se passa, podendo considerar que a família não está entendendo a gravidade da doença ou a necessidade daquele tratamento e, nessa perspectiva, insiste em explicações que não respondem à inquietação da família. A gastrostomia é um exemplo. Muitas vezes a mãe reluta em aceitar esse procedimento por não querer ser privada do prazer de alimentar seu filho, momento em que se sente mãe ao cuidar dele. E tantas vezes a equipe insiste em esclarecer a necessidade desse procedimento ser realizado, sem atentar para os motivos da recusa pela mãe. Outras vezes, sensibilizados pelo sofrimento da família, diferentes profissionais buscam acolher a família, ofertando consolo, esperança, alternativas para enfrentar aquele momento. Mas este acolhimento pauta-se em suas próprias crenças e convicções do que seja o bem para a família, o mesmo bem para todas as famílias.

É neste cenário que se dá o atendimento à criança e à família na enfermaria, atravessado por algumas particularidades. Não há uma sala reservada ao psicanalista, que realiza os atendimentos junto ao leito (os leitos ficam em boxes individuais) ou na sala de recreação, coletiva. Na maioria das vezes, esse atendimento não foi solicitado pelo paciente, que pode aceitá-lo ou não. Cada atendimento pode ser interrompido inúmeras vezes, seja para a realização de algum procedimento médico, por ser hora de alimentação ou higiene, seja pela presença de outros profissionais ou familiares que circulam por ali. Muitas vezes, a princípio, o paciente não tem clareza da função do psicanalista ali – afinal, conversar e brincar são atividades desempenhadas também por outros profissionais, sejam profissionais de saúde ou de apoio. Ademais, o psicanalista é visto como um profissional daquela equipe de saúde daquela instituição, com tudo que isso possa representar. É somente na continuidade do trabalho, quando possível, que a especificidade daquela conversa e daquele brincar vão se delineando.

Cada paciente lida de modo singular com seu adoecimento, de acordo com sua história e com os seus recursos psíquicos. O adoecimento, transitório, ou uma nova condição clínica, permanente, precisam ser, de alguma forma, subjetivados, inseridos e integrados na história do paciente, não como um algo estranho a ele, mas como um evento – mais um – de sua história singular no mundo. Tantas vezes as sequelas deixadas pela doença impõem grandes mudanças no percurso que se vislumbrava para o futuro, impondo exigência de trabalho psíquico para que possam, a seu tempo, serem apropriadas de forma a permitir a criação de outros futuros. Há tempos de luto pelo que se podia e não se pode mais, pelos sonhos que antes havia, e há tempos de esperança pelo que ainda se pode, por novos sonhos a serem criados. De fato, é preciso lembrar que na enfermaria não há apenas sofrimento, mas também, tantas vezes, alegria, momentos em que os pacientes se mostram simplesmente crianças, brincando e se divertindo, mesmo com as restrições e os aparelhos médicos.

Talvez a principal tarefa do psicanalista neste cenário seja a de prover testemunho a essa experiência marcada por dor ou sofrimento, reconhecendo-a. Estar diante da dor do outro, suportando, sustentando esse olhar. O não reconhecimento da dor do outro ou a indisponibilidade diante dela podem intensificar a dimensão traumática da experiência vivida pelo paciente (Kupermann, 2016). Poder estar presente no silêncio, pelo tempo que durar a ausência de palavras que ofereçam contorno a uma experiência ainda não representável e poder escutar o relato do paciente tal qual relatado favorecem a estruturação em palavras da experiência sentida.

Acompanhar o paciente na enfermaria é poder também testemunhar os momentos de alívio, de descontração, momentos em que a doença parece se ausentar da cena sem atribuir de imediato um sentido de negação de sua condição clínica. Enfim, é poder acompanhar o paciente em sua trajetória singular, em seus altos e baixos, em seu ritmo, no tempo que se fizer possível.

 

Considerações Finais

Costuma-se dizer que o hospital é a casa do médico e, com efeito, é para tratamento médico que os pacientes são hospitalizados e é o médico o principal responsável pelos cuidados ao paciente. Não surpreende, portanto, a soberania do discurso médico na instituição que, de uma forma ou de outra, modula a assistência prestada pelos demais profissionais de saúde.

Nesse sentido, uma das primeiras tarefas do psicólogo no âmbito de um hospital geral é delinear um lugar possível de atuação e inserção na equipe de saúde. Em se tratando de um psicanalista, essa tarefa pode se constituir um desafio, tendo em vista as diferenças marcantes entre o discurso psicanalítico e o discurso médico. Cabe a ele construir seu pertencimento à equipe, manejando as solicitações da equipe sem necessariamente atendê-las, sustentando assim a especificidade de sua forma de atuação.

Talvez a principal função do psicanalista seja suportar a angústia que transborda no paciente, na família e na equipe de modo a favorecer ou possibilitar que cada um encontre sua forma singular de lidar com isso, criando um espaço propício à elaboração da experiência vivida, em processo.

Em se tratando de um hospital universitário, aposta-se também na possibilidade de que a familiaridade com uma modalidade de escuta e intervenção embasadas na psicanálise possa, de alguma forma, marcar o processo de formação desses profissionais.

 

Referências

Batista, G. & Rocha, G. M. (2013). A presença do analista no Hospital Geral e o manejo da transferência em situação de urgência subjetiva. Revista da SBPH, 16(2), 25-41. Recuperado em 25 de novembro de 2018, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582013000200003&lng=pt&tlng=pt -        [ Links ]

Carvalho, A. M. S. (2011). Psicanálise e hospital: há ato analítico? Estudo sobre a especificidade da intervenção psicanalítica na pediatria e seus efeitos no tratamento da criança hospitalizada. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - UFMG, Belo Horizonte.         [ Links ]

Dimenstein, M. (2000). A cultura profissional do psicólogo e o ideário individualista: implicações para a prática no campo da assistência pública à saúde. Estudos de Psicologia, 5(1), 95 – 121.

Kupermann, D. (2016). Trauma, sofrimento psíquico e cuidado na Psicologia Hospitalar. Revista da SBPH, 19(1), 6-20. Recuperado em 17 de novembro de 2018, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582016000100002&lng=pt&tlng=pt.         [ Links ]

Machado, M. V. & Chatelard, D. S. (2013). A psicanálise no hospital: dos impasses às condições de possibilidades. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 16(1), 135-150. https://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982013000100009         [ Links ]

 

 

1 Doutora em Teoria Psicanalítica – UFRJ. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos – EBEP. Psicóloga do Hospital Universitário Pedro Ernesto – UERJ. E-mail – andreabalbuquerque@yahoo.com.br.

Creative Commons License