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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

Atendimento psicológico durante o pré-natal de risco: ameaça de aborto e hospitalização prolongada

 

Psychological care during prenatal attendance: abortion threaten and long-term hospitalization

 

 

Helena Carneiro Aguiar1, I; Paloma Louzada Bodanese2, II

IClínica Perinatal de Laranjeiras, Rio de Janeiro/RJ
II
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ

 

 


RESUMO

O presente estudo tem o intuito de demonstrar a importância do acompanhamento psicológico durante a hospitalização prolongada devido à gestação de risco. A gestação é um período de intensas transformações físicas e psíquicas para a mulher. Abordaremos um estudo de caso de paciente com incompetência (ou insuficiência) istmocervical (IIC), que permaneceu internada por 90 dias em unidade semi-intensiva de uma maternidade particular. A partir do diagnóstico de gestação de risco, houve a necessidade de a gestante permanecer internada, em repouso absoluto com o intuito de evitar um aborto tardio ou um parto prematuro. Articulando conceitos de Winnicott, com alguns autores contemporâneos, pensaremos o medo de perder o bebê, a angústia, a negação da realidade e a impotência, presentes durante todo o período de internação. É fundamental o acolhimento da gestante pelo serviço de psicologia para que, através de um espaço de fala, possa externar seus sentimentos e elaborá-los.

Palavras-chave: gestação de risco; hospitalização prolongada; atendimento psicológico.


ABSTRACT

The present study intends to demonstrate the importance of psychological counseling during long-term hospitalization due to high-risk pregnancy. Pregnancy is a period of intense physical and psychological transformation to women. We will address a case study of a patient with istmocervical incompetence (IIC), who remained hospitalized for 90 days in a semi-intensive unit of a private maternity hospital. Since the diagnosis of high-risk pregnancy, it was necessary for the pregnant woman to remain hospitalized, in absolute rest, in order to avoid a late abortion or a premature birth. In an articulation of Winnicott's concepts with contemporary authors, we will discuss the fear of losing the baby, distress, denial of reality and impotence that were present throughout the whole hospitalization period. The caring for the pregnant woman by the psychology service assistance is fundamental, so that, through a space of therapeutic talk, she can express her feelings and elaborate them.

Keywords: high-risk pregnancy; long-term hospitalization; counseling.


 

 

Cuidados no Pré-Natal

No ciclo vital, a gestação ocupa um lugar extremamente relevante para a mãe, para o bebê e para o pai. Profissionais de saúde que acompanham os futuros pais precisam reconhecer a importância desse estágio e compreender que quaisquer vivências que se coloquem nesse período podem ter consequências significativas e, portanto, devem ser acompanhadas com delicadeza e seriedade.

A assistência da gestante durante a gravidez acontece no atendimento pré-natal. Na maioria das vezes, trata-se de acompanhamento médico, com início tão logo a mulher descubra a gravidez, ou até mesmo antes, quando começa a se programar a gestação. Nas consultas realizadas ao longo desse período, a mulher é examinada clinicamente, sendo encaminhada para a realização de exames laboratoriais, e recebe informações sobre as mudanças esperadas, além de se investigar quadros apresentados, dentre outros cuidados que se fazem necessários. Sobrevindo qualquer anormalidade durante a gravidez, ou sendo considerada uma gravidez de risco, haverá a necessidade de acompanhamento diferenciado, muitas vezes recorrendo-se à internação materna, no intuito de garantir melhores condições de saúde para a dupla mãe-bebê.

A portaria nº 1.020 do Ministério da Saúde, de 29 de maio de 2013, instituiu como uma de suas diretrizes que o atendimento à gestante de alto risco deve ser constituído por uma equipe interdisciplinar com diversos profissionais, dentre eles o Psicólogo. Dessa forma, firma-se o reconhecimento da relevância dos processos psicológicos envolvidos no período gravídico-puerperal. Pretendemos apresentar nesse artigo como o acompanhamento psicológico na gestação de alto risco com hospitalização da mãe pode auxiliar na vivência da gestação e nas reestruturações necessárias para o desenvolvimento da gravidez e dos vínculos iniciais.

M. Blazy (2012) indica que a ameaça de parto prematuro atinge 1 em cada 6 mulheres, sendo a primeira causa de internação materna durante a gravidez. Das gestações com ameaça de parto prematuro, apenas 30 a 40% das mulheres terão de fato um parto prematuro, mas, destaca a autora, o parto prematuro é a primeira causa de mortalidade e de morbidade neonatal, com possíveis consequências físicas e psíquicas para a criança e com possíveis consequências psicológicas para os pais.

O tratamento para a ameaça de parto prematuro influencia nas contas da saúde pública e isso traz repercussão para o acompanhamento da gestante de risco. Blazy (2012) destaca que na Inglaterra não há mesmo um nome para ameaça de parto prematuro e o diagnóstico de parto prematuro (preterm labour) é feito quando o parto já aconteceu. O toque vaginal normalmente feito por obstetras e parteiras (na França e na Inglaterra é comum o acompanhamento pré-natal e o parto sem risco serem feitos por parteiras) para avaliação do colo do útero não é mais feito na Inglaterra e a França está seguindo pelo mesmo caminho. Segundo a autora, na França alguns obstetras modernos defendem que o parto prematuro acontecerá, não importa o que se faça e que, devido ao progresso da neonatologia, o rastreio e o tratamento de ameaça de parto prematuro se tornaram ultrapassados. A autora discorda desse entendimento e nós reforçaremos o coro com a autora. O caso que apresentaremos no decorrer deste artigo pretende mostrar como o investimento na gestação de risco, aliado ao acolhimento emocional realizado junto ao leito da paciente, tendo como sustentação teórica a psicanálise, pode levar a um desfecho favorável.

 

Gestação e processos psíquicos

Processos psíquicos e mudanças subjetivas nos pais acontecem muito antes do nascimento de um filho e da própria gestação. Tornar-se pai e tornar-se mãe é um processo e o longo percurso a ser percorrido depende da história individual e do desejo de cada sujeito. As representações que possuem sobre seus bebês se iniciam com as identificações feitas na infância. O desejo de ter um filho reatualiza as fantasias de sua própria infância e o cuidado que receberam (Zornig, 2012).

Freud (1914/1974) reconhece que o afeto dos pais para com os filhos configura-se como uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo. Os pais colocam o filho no lugar de "Sua Majestade, o Bebê", atribuindo-lhe todas as perfeições e ocultando possíveis deficiências. Observa o autor que o bebê é o suporte das projeções narcísicas dos pais, existindo para "indenizá-los" narcisicamente: "O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior" (Freud, 1914/1974, p. 108).

A criança poderá ter função "reparadora" ao resgatar o narcisismo parental, permitindo que suas feridas narcísicas sejam revistas. Assim, ao mesmo tempo em que o filho pode despertar temor nos pais ao expô-los novamente às suas questões infantis, ele representa também a esperança de (re)enfrentá-las.

A partir das contribuições freudianas, podemos supor que grande ambivalência está potencialmente presente no nascimento de um filho pois, ao mesmo tempo em que o contato com o bebê traz a possibilidade narcísica de reparar falhas na história parental, ele também reativa fantasmas edípicos e provoca uma ruptura no equilíbrio dos genitores (Zornig, 2012).

Concordamos com as proposições de Stern (1997) ao afirmar que a inclusão do nascimento de um filho no psiquismo parental produz profundas mudanças, provocando uma "neoformação psíquica" nos pais. Segundo o autor, na gravidez, ocorre a "constelação da maternidade" – uma organização temporária que determinará novas fantasias, medos e desejos –, ou seja, uma reorganização do funcionamento psíquico da mulher. Ainda que sua duração seja variável, ela se torna o eixo organizador da vida psíquica da mãe, deixando de lado o complexo edípico como eixo organizador. A principal preocupação passa a ser a "trilogia da maternidade": preocupações e discursos que acontecem interna e externamente, concernentes aos discursos da mãe com sua própria mãe, consigo mesma e com seu bebê. Tal constelação da maternidade provoca na mãe uma experiência de realinhamento, inaugurando uma zona psíquica diferente, na qual a nova tríade psíquica "mãe, mãe da mãe e bebê" se torna o eixo organizador central.

São quatro os temas centrais da constelação apontados pelo autor Stern (1997). O primeiro tema refere-se à capacidade da mãe de manter a vida e o crescimento do bebê. A questão central aponta para os medos da mãe de fracasso em relação à vitalidade e ao desenvolvimento do bebê. Segundo o autor, a situação mais perturbadora para a mãe está relacionada à experiência de um vazio representacional, isto é, a mãe não consegue planejar o curso do desenvolvimento de seu bebê. O segundo tema refere-se ao relacionar-se primário, corresponde à capacidade materna de envolver-se emocionalmente com seu bebê. O terceiro tema é a matriz de apoio necessária para a mulher cumprir essas funções. A última temática diz respeito à reorganização da identidade, remetendo à necessidade da mãe de transformar e reorganizar sua identidade para permitir e facilitar essas funções. Essa reorganização imprescindível aponta para a necessidade de modelos. Desta forma, a mãe revive a história de suas identificações com a própria mãe e com outras figuras parentais e maternais, em busca dos modelos necessários.

M. Bydlowski (2002) aponta para alterações psíquicas maternas no curso da gestação, destacando uma modificação da vida psíquica das mulheres: um estado de permeabilidade entre as representações conscientes e inconscientes. O estado nomeado pela autora de "transparência psíquica" caracteriza-se pelos fragmentos do pré-consciente e do inconsciente que chegam facilmente à consciência. Esse estado aconteceria durante a gestação, pois o equilíbrio psíquico da mulher encontra-se abalado pelo duplo status do bebê: presente no interior do corpo da mãe e de suas representações, mas ausente de sua realidade visível. Dessa forma, encontrando-se "adormecidas" as forças do recalque, fica facilitado o estabelecimento, pelas gestantes, de uma correlação entre a situação da gestação atual e as lembranças do seu passado. As reminiscências antigas e fantasmas geralmente esquecidos surgem com força na memória, sem serem barradas pela censura.

Estando a mãe com o interesse no mundo exterior diminuído, curiosamente, não é o bebê que ocupa a maior parte do tempo o seu pensamento.Permanece a gestante mais centrada em si, parecendo mais ligada à criança que ela foi (ou que acredita ter sido). O superinvestimento na história pessoal da mãe é característico desse estado. Bydlowski (2002) propõe que a gravidez instaura um encontro íntimo da mulher consigo mesma devido à emersão de conteúdos psíquicos recalcados relativos a experiências e fantasias infantis.

No entanto, essa forma específica de funcionamento psíquico, em que as representações mentais maternas permanecem centradas sobre uma forte polarização narcísica, não se mantém durante toda a gestação. De acordo com Bydlowski e Golse (2002), a atenção da gestante, inicialmente dirigida a ela mesma, progressivamente irá se dirigir para o futuro bebê, que começa a ter um estatuto de objeto no psiquismo materno. O feto, ainda dentro do corpo da mãe, começa a apresentar um status exterior. Assim, quando a gestação vai se aproximando do final, e na medida em que a mulher consegue adentrar o estágio de preocupação materna primária, sua atenção psíquica se volta ao bebê. Importante destacar que a relação entre ambos se apoia ainda nas projeções maternas ancoradas no bebê que a própria mãe foi.

Termo cunhado por Winnicott (1956/1978), a "preocupação materna primária" descreve o período particular de grande sensibilidade afetiva da mãe, com início nas semanas anteriores ao parto e com duração até as primeiras semanas após o nascimento do bebê. Durante este período, se pressupõe uma mãe que é capaz de adaptar-se sensivelmente às necessidades de seu filho. De acordo com o autor, trata-se de uma identificação regressiva da mãe com seu bebê, possibilitando captar os sinais do filho e interpretá-los. Deve-se ressaltar que nem todas as mulheres conseguiram adentrar o estágio de preocupação materna primária. A mãe que atingiu este estado de preocupação materna primária encontra-se suficientemente devotada ao cuidado de seu bebê. Inicialmente, podemos falar em unidade dual mãe-bebê. Aos olhos de um observador externo trata-se de dois sujeitos: a mãe e o bebê. Mas, para a dupla, em certa dimensão psíquica, não há esta distinção. Nessa condição singular de sensibilidade, a mãe identifica-se ao bebê, na tentativa de maior eficácia na interpretação de seus sinais. O autor compara esse período a uma dissociação, a um estado patológico, uma "doença normal", quando relacionado a este período específico do final da gestação e logo após o nascimento. À medida que o bebê vai se desenvolvendo, a mãe vai se recuperando desse estágio de preocupação materna primária.

Todo bebê humano nasce prematuro, dependendo dos cuidados do ambiente para sobreviver e se constituir psiquicamente. De acordo com Winnicott (1975), o desenvolvimento humano seria dividido em etapas: da dependência absoluta, passando pela dependência relativa, seguindo rumo à independência. Antes de adentrarmos as fases descritas por Winnicott (1975), é importante destacar que optamos por descrevê-las separadamente por uma questão didática. Em certa camada psíquica e dada a questão da atemporalidade que permeia as leis do inconsciente, todos estariam, em maior ou menor grau e, dependendo do momento de vida, com essas "etapas" ainda produzindo efeitos no dinamismo psíquico.

A fase de dependência absoluta ocorre a partir do nascimento do bebê e se estende até alguns meses de vida. Neste primeiro momento, o bebê é totalmente dependente de cuidados dos seus outros primordiais. O ambiente do bebê é a sua mãe, ou aquela pessoa que exerce essa função de suporte. A preocupação materna primária pode ser exercida pela mãe, mas o vínculo sanguíneo não é imprescindível. Nesse sentido, o uso do termo winnicottiano "mãe-ambiente" seria mais correto para apontar que não se trata necessariamente da mãe biológica. É fundamental para a constituição psíquica do bebê a existência desse outro (mãe-ambiente), pois é na relação do bebê com os seus outros primordiais que ele se constitui.

Segundo Winnicott (1975), o desempenho da função materna envolve: o holding, o handling e a apresentação de objetos. Holding é o termo winnicottiano utilizado para designar o suporte, tanto físico quanto psicológico, dado pela mãe-ambiente ao bebê. Psicologicamente, o ego da mãe oferece apoio egóico à formação do eu do bebê, que está em constituição. O eu do bebê irá integrar-se a partir de um holding suficientemente bom. Winnicott (1975) cunhou o termo mãe suficiente boa para se referir a mãe dedicada comum, capaz de se adaptar ativamente às necessidades do bebê. O suporte físico oferecido pela mãe-ambiente envolve toda a rotina de cuidados com o bebê: alimentação, banho, troca de fraldas, prevenção de quedas. O handling está ligado ao manejo, à forma como a mãe-ambiente manipula o corpo do bebê. No início da vida, o bebê ainda não sente seu corpo como uma unidade, e o manejo cuidadoso do corpo do bebê o ajuda na integração dessas partes. A partir do handling da mãe-ambiente, o bebê dá-se conta de que o eu reside no corpo, sendo este a base para a coordenação corporal. A apresentação de objeto está relacionada ao início das relações interpessoais e à introdução de toda a realidade compartilhada. Na fase de dependência absoluta é a mãe que se apresenta ao bebê e o uso que o bebê faz da mãe-ambiente nesse momento está relacionado à forma como este bebê, no futuro, entrará em contato com outros objetos. A técnica de cuidado da mãe-ambiente tem por objetivo a apresentação do mundo para o bebê.

A partir dos cinco ou seis meses, se tudo correr bem, há a passagem do bebê da dependência absoluta para a dependência relativa, em que mãe e bebê começam a se relacionar como duas pessoas distintas. Se, na fase de dependência absoluta, mãe e bebê, do ponto de vista do bebê, digamos assim, eram vivenciados como uma unidade-dual (estado fusional), agora, na fase de dependência relativa, inicia-se um processo de separação mãe-bebê. Processo este que deve ser facilitado pela mãe-ambiente e recebe o nome de desadaptação ou fracasso gradativo (Davis, 1982). Trata-se da introdução gradativa do princípio de realidade, sempre com atenção às necessidades do bebê. A desadaptação gradativa está relacionada à recuperação da mãe-ambiente do estado de preocupação materna primária, ao mesmo tempo em que permite o bebê colocar suas habilidades em prática e, desta forma, seguir caminhando rumo à independência.

Para que este trabalho psíquico possa ser feito e o bebê comece a ser reconhecido enquanto objeto externo, é fundamental que o bebê deixe de ser o único foco de interesse da mãe-ambiente. Isso pode ocorrer através de um terceiro que irá favorecer um desinvestimento maciço da mãe-ambiente no bebê, propiciando uma ruptura do estado fusional. Não necessariamente o pai será responsável por incitar essa separação, no entanto, ele pode encarnar mais facilmente a função de separação e de reconhecimento do bebê enquanto alteridade e em sua dimensão de sujeito, uma vez que, desde a concepção, o bebê se constitui como objeto externo para si. Devemos destacar que a função paterna poderá ou não ser exercida pelo pai biológico, não precisando nem mesmo estar representada por uma pessoa, pode ser vinculada por outros interesses como o trabalho, estudos etc.

Além da função paterna, as próprias competências do bebê real poderão ajudar nesta tarefa de modificar as fantasias dos pais e ajudá-los a abandonar a representação metafórica do objeto interno (Santos & Zornig, 2014). Na medida em que o bebê não é um reservatório passivo dos cuidados parentais, suas respostas podem modelar o tipo de parentalidade que lhe é oferecida, propiciando novas formas de interação que vão além dos modelos identificatórios que os pais trazem de suas histórias individuais.

 

Vinheta Clínica

Ana Clara (nome fictício) é uma mulher com aproximadamente 40 anos, casada há mais de 15 anos e mãe de um adolescente. Ela e o marido programaram a nova gravidez com muita cautela, pois já haviam passado por dois abortos espontâneos no passado. A gestação transcorria bem, quando, com 21 semanas de idade gestacional, foi indicada internação em unidade hospitalar semi-intensiva devido a um quadro de incompetência (ou insuficiência) istmocervical (IIC). A IIC se refere a uma deficiência do colo do útero, que perde a capacidade de suportar o peso da gestação e acaba dilatando. É muito comum a mulher ter algumas perdas precoces de gestações anteriores até que se descubra a IIC. Quando há um histórico anterior de perdas precoces e, sendo clinicamente possível, é feito o procedimento de cerclagem (sutura de bolsa) do colo do útero, sendo indicado repouso absoluto para essas pacientes (Mattar et al, 1999). Porém, os médicos de Ana Clara contra indicaram esse procedimento, devido à posição de sua bolsa amniótica, restando-lhe apenas o repouso. Para evitar um novo aborto, ela precisaria fazer repouso absoluto, tendo que permanecer deitada e monitorizada por uma equipe especialista até o final da gestação. E assim conhecemos Ana Clara, após ter chegado ao hospital para uma consulta de emergência e descoberto que lá precisaria ficar por dias, possivelmente meses.

A equipe de Psicologia iria lhe acompanhar durante todo o período da internação, com atendimentos semanais à beira de seu leito. Ela mostrou-se receptiva a nosso acompanhamento e aparentava postura bastante otimista e bem-humorada. Em um de nossos primeiros encontros, pede para que a psicóloga volte em outro momento, pois estava tendo uma aula. Ao longo dos encontros foi possível perceber como Ana Clara conseguia se manter mentalmente ocupada, preocupando-se com exames que precisava fazer, estudos pessoais, questões práticas de sua profissão, com o quarto e com as roupas do bebê (fazia compras pela internet e chamadas de vídeo pelo celular para acompanhar a decoração do quarto e dar as "ordens" de como tudo deveria ser feito).

Durante a internação recebia poucas visitas, costumava dizer que não havia necessidade de ter as pessoas fisicamente ao seu lado e, mesmo à distância, sentia-se suportada pela rede de apoio. Seu filho vinha visitá-la algumas vezes na semana, acompanhado da avó materna, que havia ficado responsável pelo cuidado do neto. O marido de Ana Clara não podia afastar-se do trabalho, mas acompanhava a paciente durante o dia através de inúmeros contatos telefônicos. Pelo menos três vezes por semana o marido dormia no hospital acompanhando a mulher.

Ana Clara nos explicou sua situação clínica, falando do risco de um parto prematuro, antes de seu bebê estar pronto. Porém, a paciente parecia repetir um discurso médico e não demonstrava estar sofrendo com isso. Certa vez falou da possibilidade do seu bebê "escorregar sem que nada pudesse ser feito", mas logo em seguida dizia que isso não iria acontecer e não queria falar sobre isso. Chamou-nos atenção a dificuldade que ela apresentava para reconhecer que não havia só coisas boas na internação, pois ela se esforçava para estar sempre sorrindo e mantinha ótima relação com toda equipe que lhe assistia. Não se queixava nem do repouso. Banho, necessidades fisiológicas, escovar os dentes, tudo era feito no leito, com auxílio da equipe de enfermagem.

Ao completar 30 semanas de gestação, a paciente passou uma noite inteira acordada. O lençol estava retorcido no leito, provocando dores de coluna terríveis. Chorou das 6h ao meio-dia, e quando entramos no quarto para atendê-la no dia em que era habitual, recebeu-nos dizendo que tinha certeza que chamariam a psicologia, pois ela só fazia chorar. Naquele dia foi possível dizer quão difícil era estar ali.

Conseguiu falar do medo de uma perda fetal e do quanto era importante para ela que conseguisse ter esse novo filho, afirmando precisar provar para ela mesma que "era capaz". Após os abortos anteriores, sentia-se fracassada. Disse que deve ter conseguido ter o primogênito "por sorte", mas que, na verdade, seria culpa dela não conseguir chegar ao fim das gestações. Nunca se imaginava passando por isso, pois sempre achou que era uma pessoa muito forte e determinada, resolvia os problemas de toda a família, não gostava de pedir ajuda.

Descreveu-se como uma mulher muito independente e tentava não problematizar seu estado de total dependência durante esse repouso, mas, de repente, não conseguiu mais aguentar. Chorou muito, dizendo que se sentia como uma "criança pequena, que a mãe precisa limpar seu bumbum, escovar seus dentes e lhe dar tudo na mão". Contou-nos que não permitia que sua mãe ou seu marido fizessem esses cuidados, pois queria encará-los como um cuidado profissional e, além disso, ficaria envergonhada.

Foi um momento difícil para ela, passou a chorar muito em nossos encontros, mostrava sua fragilidade também para o restante da equipe e começou a pedir para sua mãe estar mais presente e se envolver mais em seus cuidados. Por vezes fazia referência a momentos de cuidados que recebia da mãe quando criança, comparando com os atuais. Ainda falava pouco do bebê e não se referia muito a ele pelo nome que escolheram, mas pôde perceber isso e inclusive associar ao medo de perdê-lo. Acolhemos a angústia da paciente em seu percurso. Ela tinha medo de não suportar mais 30 dias de repouso, porém com 30 semanas, seu bebê já era viável, ou seja, se nascesse teria plenas condições de completar seu desenvolvimento em uma UTI neonatal. Foi percebendo como, apesar da grande dificuldade que era estar internada, podia estar ali como "uma galinha que choca seu ovo", cuidando para que tudo desse certo, e assim passou a acreditar que esse bebê receberia a força que ela estava tendo para suportar isso tudo.

Seu quadro clínico foi se mantendo estável e com 34 semanas de idade gestacional, após 90 dias de internação, a equipe médica lhe deu alta para que completasse o repouso em casa e retornasse para o nascimento do bebê. Em casa, manteve repouso relativo (podendo sentar-se e ir ao banheiro), assistida pela mãe. Seu bebê nasceu saudável e grande, sem necessidade de ir para a UTI neonatal.

 

Análise do caso

O ambiente hospitalar é marcado pelo discurso médico e pode distanciar os pacientes de seu próprio discurso enquanto sujeito. Passar grande parte de uma gestação internada, tal como Ana Clara passou, pode afastá-la de uma dimensão mais subjetiva. No entanto, devido à intensidade dos sentimentos e das transformações que se impõem nesse período (conforme vimos), há o risco de um transbordamento dos conteúdos maternos inconscientes. Nesse sentido, a existência de um espaço de fala e escuta de tais questões pode auxiliar a gestante na elaboração dos seus conteúdos psíquicos e contribuir tanto no processo de construção do lugar materno como na preparação para a interação com o bebê.

O afrouxamento das defesas psíquicas, característico do estado descrito por Bydlowski (2002) como "transparência psíquica", favorece o trabalho terapêutico com a gestante, mas também intensifica as angústias. Ana Clara procurava manter-se tranquila e preocupada apenas com questões práticas, porém, em um dado momento,se percebe inundada pelos seus sentimentos e, então, não sendo possível mais ignorá-los, começa a encará-los. Acreditamos que a internação prolongada, neste caso, favoreceu a elaboração de suas questões relacionadas à gestação, uma vez que existia esse espaço aberto para a fala e a escuta de sua demanda velada. O repouso forçado incentivou que ela, apesar da resistência inicial, olhasse para dentro de si, na busca desse "encontro íntimo" consigo mesma. Através de toda vulnerabilidade em que se encontrava, foi percebendo o que essa nova gravidez representava para si.

Quando a paciente consegue olhar para o caos de sua internação e o desespero de precisar do cuidado de outras pessoas, ela admite sua ambivalência. Ao dizer que se sentia como uma "criança pequena", revela uma profunda identificação com seu bebê, que representa ao mesmo tempo o problema e a solução para suas questões. Seu filho lhe impõe a necessidade do repouso e, portanto, lhe lança num estado de grande dependência. O temor de reviver essa angústia inicial é posto em destaque, pesando ainda mais sobre o anseio de perder o equilíbrio que havia. Porém, esse próprio bebê também lhe assegura a possibilidade de tentar rever suas falhas. Ela precisava contestar a própria sensação de fracasso e incompetência que os abortos anteriores tinham lhe trazido. Só o filho, nascido vivo e a termo, poderia garantir que ela era competente. Mesmo já possuindo um filho, os abortos subsequentes representaram uma grande ferida narcísica que era importante rever. Como Ana Clara já era mãe, a questão que parecia se impor não era a de construir uma identidade materna, mas ela parecia almejar uma indenização narcísica devido ao estrago provocado pelos abortos, vividos por ela, e na singularidade de seu caso, como signos de falha, fracasso e dificuldade de realização de seus planos. Nesse sentido, tornava-se mais difícil o estabelecimento do espaço simbólico para o bebê.

Blazy (2012) pontua que no diagnóstico de IIC, o termo "incompetência" é um termo infeliz para ser usado com as mães. De fato, muitas mulheres diagnosticadas com IIC que acompanhamos na maternidade sentem-se elas mesmas incompetentes para gestar. Não foram raras as vezes que escutamos mães dizendo que o seu bebê é perfeito, e que a falha para gestar era dela mesma, assim como Ana Clara afirma que o fracasso era dela.

Como vimos, a preocupação materna primária (Davis, 1982) permite a identificação da mãe com seu bebê, por meio de suas lembranças inconscientes do bebê que ela mesma foi. Ana Clara, ao se perceber regredida e possivelmente identificada com seu filho, começa a se preparar psiquicamente para esse estado tão importante de sensibilidade, que lhe ajudará no reconhecimento de seu bebê para além de suas demandas narcísicas.

A reinvindicação de Ana Clara para que sua mãe estivesse mais presente ao seu lado, após as 30 semanas de idade gestacional, nos sugere que ela precisava resgatar suas relações interpessoais da primeira infância. Ser cuidada por sua mãe e não apenas por um profissional de enfermagem, certamente lhe trouxe muito de suas representações sobre sua própria mãe da infância, englobando as fantasias parentais, medos, sonhos, lembranças da própria infância e profecias sobre o futuro do bebê. Percebemos como uma nova organização realmente se impunha ao psiquismo de Ana Clara, precisando de um outro eixo organizador, encontrado na nova tríade psíquica "mãe, mãe da mãe e bebê" (Stern, 1997).

Durante o acompanhamento de Ana Clara, refletimos sobre as etapas de desenvolvimento apresentadas por Winnicott (1975): dependência absoluta, dependência relativa e rumo à independência. O autor utiliza o termo "rumo à independência", pois não existe independência absoluta em relação ao ambiente. O ser humano é sempre, em alguma medida, dependente dos demais a sua volta. Segundo o autor, diante dos acontecimentos da vida, o ser humano poderá retornar às etapas anteriores de dependência absoluta e dependência relativa, sem que isso represente uma falha do desenvolvimento. Não seria a necessidade de internação em unidade de tratamento semi-intensivo, com indicação de repouso absoluto, uma forma de retorno às etapas de dependência do ambiente? Acreditamos que, durante o longo período de internação restrita ao leito, foi possível para Ana Clara dar-se conta dessa dependência. Permitindo-se ser cuidada durante sua gestação, pôde ter seu bebê.

Por fim, outra questão merece nosso destaque nesse caso. Pela dificuldade da paciente para referir-se aos bebês que não nasceram vivos, inferimos que dificilmente tenha realizado um trabalho de luto satisfatório. Aguiar e Zornig (2016) alertaram para o potencial traumático e para a dificuldade da instauração do trabalho de luto nas mortes gestacionais. A morte durante a gravidez pode favorecer o aprisionamento dos pais a uma visão de um ideal, mais difícil de ser abandonada e compreendida em seu real sentido. As autoras observaram que, não raro, esses lutos fetais não são vividos, e os pais se colocam em uma busca incessante por recuperar o objeto perdido. Essa busca e o não reconhecimento da perda frequentemente sobrecarregam a história de seus familiares. Assim, nos pareceu a nossa paciente, buscando desesperadamente uma nova gravidez para que pudesse preencher esses "buracos" que ficaram em sua história.

 

Conclusão

Diante da teoria exposta acima e do caso apresentado, pretendemos destacar a extrema importância da atenção integral à saúde da gestante, quando internada por risco de abortamento. O cuidado deve ser voltado para o acompanhamento de sua condição física, mas também preocupado com as questões emocionais, de tal modo que o papel do profissional de psicologia é extremamente importante durante a internação hospitalar de uma gestante.

Deve-se lembrar da relevância de um atendimento multidisciplinar quando se trabalha em maternidade. A equipe de psicologia não atuou sozinha, mantendo sempre um ponto de contato com a equipe de obstetrícia e de enfermagem. A equipe de obstetrícia informava as condições clínicas da paciente e a equipe de enfermagem estava sempre atenta à rotina da paciente, sinalizando sempre que ela estivesse passando por um período emocional mais crítico.

A partir do caso apresentado, quisemos demonstrar que o investimento em uma gestação de risco feito para prevenir um parto prematuro pode ser muito relevante. Ainda que tenha havido grande progresso da neonatologia, o rastreio e o tratamento de ameaça de parto prematuro são fundamentais. Os atendimentos clínicos da psicologia junto ao leito da paciente proporcionaram sustentação emocional (holding) à paciente, para que ela pudesse elaborar seus sentimentos relacionados a uma gestação de risco, completamente diferente do esperado. Nesse sentido, a Psicanálise, dando luz a aspectos inconscientes, se torna uma importante ferramenta do atendimento clínico hospitalar.

Sem dúvida, as intervenções médicas, os medicamentos, o empenho e a determinação da paciente em seguir as recomendações de repouso absoluto foram essenciais para que Ana Clara pudesse sair da maternidade com seu bebê nos braços. No entanto, não podemos esquecer que a instauração de um espaço de fala, onde a paciente pudesse expressar livremente seus pensamentos, medos e angústias, certamente contribuiu para o desfecho positivo do caso.

 

Referências

Aguiar, H. & Zornig, S. (2016). Luto fetal: a interrupção de uma promessa. Estilos da Clínica, 21(2), 264-281.         [ Links ]

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1 Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Psicóloga da Clínica Perinatal de Laranjeiras. Contato: helenacarneiroaguiar@gmail.com.
2 Psicóloga graduada pela PUC-Rio e mestranda em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Contato: paloma.bodanese@yahoo.com.

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