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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

A escuta psicanalítica no núcleo perinatal: o processo de ser mãe como uma construção

 

The psychoanalytic listening in perinatal core: the process of being a mother as a construction

 

 

Ester Susan Guggenheim1; Laudy Gabriele Pereira Guimarães2; Aline Monteiro Pinheiro3

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro/ RJ

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende destacar o lugar da psicanálise em uma enfermaria de gestantes de alto risco no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), apontando o quanto a experiência da maternidade se coloca de forma singular para cada mulher. A partir de fragmentos de casos clínicos e contribuições da psicanálise, articulações como feminino, mito da maternidade e o processo do ser mãe, serão feitas no decorrer do artigo. Seguiremos o estudo afirmando a multiplicidade na experiência do "ser mãe" e basearemos esse ponto com os discursos de pacientes que vivenciam a maternidade em sua singularidade o que aponta para um inesperado na relação mãe-bebê.

Palavras-chave: psicanálise; maternidade; alto risco; singularidade.


ABSTRACT

The present work intends to highlight the place of psychoanalysis in a high-risk pregnancy ward at Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), pointing out how much the experience of motherhood is placed in a unique way for each woman. From fragments of clinical cases and contributions of psychoanalysis, articulations will be made in the course of the article with the subjects of the feminine, the myth of motherhood and the process of becoming a mother. We will follow the study affirming the multiplicity in the experience of "being mother" and we will base this point with the discourses of patients who experience maternity in their singularity which points to an unexpected in the mother-baby relationship.

Keywords: psychoanalysis; motherhood; high risk; singularity.


 

 

Introdução

Este processo de escrita é resultado de um trabalho que tem sido realizado durante o programa de Residência em Psicologia Clínica Institucional no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), mais especificamente, no Núcleo Perinatal. O referido setor conta com um ambulatório de pré-natal de alto risco, referência no Estado do Rio de Janeiro, recebendo assim, gestantes de diversas partes do estado. Além disso, o setor possui uma enfermaria de gestantes e puérperas e uma UTI Neonatal.

As gestantes atendidas no ambulatório do pré-natal são encaminhadas ao HUPE por serem portadoras de doenças que transformam suas gestações em experiências que envolvem altos riscos para a sua própria saúde e a do feto. Dentre estas condições clínicas podemos destacar: hipertensão arterial, diabetes gestacional, lúpus eritematoso sistêmico, cardiopatias diversas, trombose venosa profunda, anemia falciforme, gestações ectópicas, pacientes HIV positivo, síndrome do anticorpo antifosfolipídeo (SAF) e outras.

O serviço de psicologia se insere no ambulatório do pré-natal disponibilizando horários semanais para atendimentos às gestantes que procuram o serviço por conta própria, e, também, para aquelas que são encaminhadas para a psicologia pelos demais profissionais de saúde do ambulatório. Estas pacientes, ao necessitarem de internações na enfermaria, seja devido a alguma complicação clínica, seja para realizarem o parto, são acompanhadas pelo mesmo profissional de psicologia que as atendia no pré-natal.

No entanto, apesar de existir a possibilidade de acompanhamento desde o pré-natal, a maior parte das pacientes recebe a primeira visita da psicologia quando necessitam de internações hospitalares. Os psicólogos que atendem no Núcleo Perinatal, sejam eles servidores ou residentes, possuem como parte da rotina do serviço oferecer atendimento a todas as pacientes internadas na referida enfermaria.

A partir dos discursos das pacientes escutamos muitas inquietações em relação ao novo que a maternidade impõe: "Cada mulher ao ser atendida é única no modo como vive as suas angústias e dificuldades" (Guggenheim, 2018, p. 130). A relação mãe-bebê é cercada de conflitos, seja o conflito interno da mãe ou conflito em relação à criança da fantasia e a criança real (André, 1998). Essas questões costumam retornar durante a internação hospitalar da gestante e, devido ao parto de risco, a experiência de encontro com um bebê fantasiado pode se tornar mais difícil devido às dificuldades inerentes a própria da saúde do bebê.

A mulher grávida também, muitas vezes não planejou ter o filho que agora a trouxe ao hospital. Silva (2004) fala-nos do processo de tornar-se mãe como constituinte de uma fase importante da existência do ser humano. Tal processo leva essa mãe a se deparar com transformações em suas identificações e fazem parte do processo de evolução de sua personalidade. Há gravidezes indesejadas, temidas por seus riscos, não aceitas pelo companheiro ou pela sua própria família. Todo o contexto de uma gravidez é um marco na vida da mulher. As transformações no corpo, as perspectivas de como será o filho ou filha, sua relação com o pai da criança e sua vida sexual diante desta nova condição são colocadas em questão.

O Núcleo Perinatal é um espaço do hospital que muitas vezes é visto como um lugar em que, por ocorrerem nascimentos, está referido à ideia de vida e felicidade. Entretanto, a clínica cotidiana nos mostra que apesar desta faceta, algumas gestantes apresentam questões sobre o processo de ser mãe. Diante disso, utilizaremos fragmentos de dois casos clínicos para ilustrar tais dificuldades.

 

Método

Utilizaremos os casos de duas pacientes que se encontravam internadas no hospital. Foram realizados atendimentos clínicos que aconteciam três vezes por semana no leito da paciente, por um período de mais de um mês entre internação e reinternação, no caso de Sarah. Com relação a paciente Gilda, o período de acompanhamento foi de quatro meses.

Por ser uma internação hospitalar, os atendimentos no geral eram realizados no leito, o que confere à consulta um setting diferente do comum na psicologia. Os quartos são compartilhados com duas a três pacientes.

 

Resultados e Discussão

Ao considerarmos o inconsciente captamos discursos bastante significativos, onde aspectos recalcados surgem em tempo muito diverso de uma psicanálise mais estendida. Há uma riqueza de discursos surpreendentes sobre a própria mãe, o seu nascimento e a sua infância. Os casos têm nos mostrado muito da condição da mulher e do feminino.

Se o corpo se transforma durante os nove meses, o inconsciente da mesma mulher gestante vem através de inúmeras palavras e ações nos mostrar o que está em questão naquele momento, durante o atendimento e os efeitos das nossas intervenções a posteriori. Muitas são as gestantes que dizem não querer aquele filho, mas engravidaram, e outras querem muito concluir com um parto a chegada de um bebê depois de muitas tentativas frustradas.

Sarah (nome fictício), 28 anos, foi uma das pacientes acompanhadas no Núcleo Perinatal do HUPE durante sua internação e trazia algumas questões no que tange a maternidade. Apesar de apresentar um intenso desejo de ser mãe, esse caminho não foi fácil nem apareceu de forma natural. A paciente interage pouco durante os atendimentos, mas diz que teve quatro perdas fetais devido à síndrome do anticorpo antifosfolipídeo (SAF), uma síndrome que pode provocar abortos repetitivos. Sarah quase não falava sobre a gestação atual, relatava apenas que seria diferente das anteriores. Em dado momento a paciente é questionada durante o atendimento clínico sobre as expectativas em relação ao bebê que estava por vir e diz: "não planejei nada, não comprei nada, tenho medo de perder o bebê e me frustrar". Sarah, mantinha atitude reativa durante os atendimentos, mas em alguns momentos falava sobre o medo de perder o filho que tanto esperou.

Costumava falar da sua relação com a própria mãe e dizia: "não saio da casa dela de forma alguma". Com o passar dos atendimentos Sarah pôde abrir questões em torno do que era tornar-se mãe diante de sua própria mãe. Será que podemos pensar que algo estava se movimentando desse lugar de filha para o futuro lugar de mãe? Após longa internação hospitalar, há o rompimento prematuro da bolsa de líquido amniótico que faz com que a internação se prolongue até o nascimento do bebê.

Sarah começou a relatar que não estava seguindo as prescrições de repouso e sabia do risco que estava correndo. Seu bebê poderia nascer prematuro. Ao questionar a paciente sobre esse posicionamento, pouco falava e seguia em momentos de recusa dos cuidados a momentos de aceitação da prescrição. Que ambivalência era essa que colocava em risco um bebê tão esperado? Havia alguma dificuldade em concretizar esse ser mãe?

Outro caso clínico que relata fortemente questões referidas a dificuldade no processo de ser mãe e o ideal da maternidade pela equipe é o caso da paciente que será chamada de Gilda (nome fictício), 37 anos. A paciente chega ao HUPE pela primeira vez, sendo encaminhada por uma Unidade Básica de Saúde de seu município onde realizava seu pré-natal. No prontuário constava que a paciente sofria de transtorno de humor de longa data, histórico de síndrome do pânico e Hipotireoidismo.

Em seu primeiro atendimento clínico, Gilda relata estar desesperada, pois não sabe como será essa gravidez, por não conseguir sentir nenhum afeto pelo bebê e por se encontrar muito doente.

Com um histórico de depressão há mais de 20 anos, afirma que tudo começou após um acidente de escada, em que fraturou a bacia e o fêmur e, com isso, "perdeu" uma perna, usando prótese há alguns anos. Nessa mesma época sua casa foi alagada e passou por uma separação conjugal após dezenove anos de casada. "Foi muita coisa ao mesmo tempo". Diz que foi abandonada pela mãe aos 3 anos e criada pela sua madrinha. Seu pai faleceu antes de seu nascimento. Sua gestação já estava indo para 9 meses e tudo que a paciente conseguia dizer era que não conseguia amar a criança, que tinha muito medo, preocupação e culpa: "Não consigo cuidar nem de mim, ainda mais de uma criança".

Gilda morava com sua mãe e atual companheiro, pai do bebê, que havia começado a namorar há 7 meses. Segundo o parceiro, Gilda não precisava amar, nem cuidar da criança pois ele faria isso por ambos. Passou por um aborto espontâneo há alguns anos, nunca teve o desejo de engravidar e atualmente encontrava-se em uma gravidez indesejada, segundo a paciente.

Gilda relatava que não conseguia se alimentar pois sentia muito enjoo e raiva devido suas contrações: "Porque essa criança teve que aparecer". Sentia muito medo do parto normal e ao perguntar a paciente o porquê, respondia ter receio de que alguma coisa acontecesse com ela, pois o bebê não era sua preocupação principal.

Durante o acompanhamento de Gilda, caso que mexeu com toda equipe, a paciente começou a trazer com profundidade o quanto a atual gestação estava sendo difícil: "Tem hora que dá vontade de pegar uma faca, abrir minha barriga e acabar com esse sofrimento". Diz ter sofrido agressões na infância, abuso pelo seu padrasto e que sua infância foi na casa de todos, menos dos pais.

Em seu discurso aparecia a dificuldade de falar sobre o que sentia com a equipe, chegando a verbalizar que eles só perguntavam da criança. Segundo a paciente, quando estava com a psicóloga podia falar sobre toda sua vida, sem medo de ser julgada. Com isso Gilda afirma que tudo começou após um acidente "de escada" onde fraturou a bacia e fêmur e com isso "perdeu" uma perna, usando prótese há alguns anos. Após algumas semanas de atendimento, Gilda relata que o acidente na escada na verdade não foi "bem assim": ela havia se jogado devido as inúmeras brigas com o ex-marido. "Fiquei caída e ele não fez nada, meus vizinhos que ajudaram e me levaram para o hospital". A paciente levanta o lençol e ao mostrar a perna, fala sobre as cicatrizes, a "prótese", mas que não perdeu a perna, precisando colocar "pinos".

Durante a internação de Gilda, alguns profissionais da equipe chegaram até a psicóloga tentando colher informações de como lidar com a paciente pois a mesma não se alimentava de forma adequada e estava muito queixosa. Dias depois a paciente foi transferida para a Unidade de Psiquiatria do Hospital chegando a ficar 1 (um) dia, indo para casa à revelia e retornando para maternidade. Ao encontrar a psicóloga, relata que foi uma experiência traumática e que não se via como os pacientes internados.

Ao retornar aos atendimentos, a mesma havia tido o bebê no sábado. Ao ser perguntada sobre como foi a experiência e o nascimento de sua filha, Gilda afirma ter tido uma indiferença quanto a criança e sentido medo ao pensar em como seria daquele momento para frente com a chegada do bebê.

Após o nascimento, Gilda começou a ficar irritada por ter de amamentar, por não conseguir dormir e com o choro do bebê que a deixava impaciente. No atendimento relata que uma das enfermeiras a acordou pela manhã dizendo que Gilda precisava amamentar sua filha e que deveria estar feliz por seu nascimento e não reclamando da situação. Um pouco chorosa, Gilda diz que tem sido muito difícil. Foi segurada pela mão e parabenizada pelo esforço pois apesar das dores e impaciência, ela estava tentando.

Ao levar a situação de Gilda para o round médico (reunião em que os casos clínicos são debatidos), a psicologia foi acolhida de forma positiva e o médico responsável chegou a falar com a equipe de enfermagem sobre tal pressão com relação a amamentação da paciente e sua dificuldade no relacionamento com a filha. No dia seguinte, uma enfermeira e duas residentes perguntaram como podiam agir com Gilda já que a paciente não conseguia se aproximar muito do bebê. Após esse contato, foi acordado junto a equipe de deixar o bebê durante o dia todo com a mãe, até a hora da mesma dormir, fazendo com que o bebê desça para seu quarto sem precisar haver o deslocamento de Gilda para visita ou amamentação.

Após dias de contato e supervisão da equipe com uma posição de auxiliar e não mais pressionando pelo tempo certo e melhor maneira de cuidar do bebê, Gilda ao me encontrar afirma que não sente mais raiva, medo e irritabilidade com relação ao bebê, que agora ela finalmente pôde chamá-la de filha: "Coloquei na cabeça que ela precisava de mim. O pai a ama de paixão e eu estou aprendendo a amar". Diz que sua relação aos poucos com a filha tem melhorado, que tem sentido carinho e que está conseguindo se adaptar melhor com seu choro.

Já próxima de sua alta, relata que foi de grande importância a presença da psicóloga durante todo o processo e que hoje a paciente reconhece que é dia após dia, que é preciso tempo para uma construção desse processo tão árduo de ser mãe.

Diante dos dois fragmentos clínicos supracitados, pôde-se suscitar algumas questões que dizem respeito ao campo do feminino e da maternidade. Decidiu-se primeiramente abordar a ligação pré-edipiana da menina com a mãe a partir dos estudos de Freud, sendo "mãe" não a biológica, mas aquela que ocupa o lugar em uma função, mais especificamente, na função materna.

A mãe é a responsável por alimentar o bebê, tomar conta dele, oferecer os cuidados necessários. De acordo com Freud (1933/1969) os primeiros investimentos objetais estão relacionados com a satisfação das necessidades vitais. Desta forma, pela similaridade das situações que envolvem os cuidados para ambos os sexos, a mãe seria o primeiro objeto amoroso tanto para o menino quanto para a menina.

No mundo ocidental existe uma concepção do mito do amor materno como algo inato às mulheres (Badinter, 1985). Nas palavras de Freire (2012): "O mito de que a mulher nasce para ser mãe leva à cristalização da ideia de que a realização da mulher só acontece pela maternidade, enquanto que para o homem seria necessário aprender a ser pai" (p. 39). Consequentemente, observa-se a construção de diversos ideais sobre o que seria a maternidade.

No entanto, as mães são mulheres que por diversos motivos buscam ou não a maternidade. E, desta forma, podem se deparar com toda a sorte de dificuldades no processo de se tornarem mães. Foi o que pôde ser observado durante o acompanhamento da paciente Gilda ao se deparar com uma equipe às voltas com esse ideal da maternidade e seu não desejo de ser mãe, já que a paciente rejeitava a ideia de ter um filho e a equipe sustentava o lugar da mãe como acolhedora, amável, ideal.

O desejo de ter um filho está relacionado com o complicado processo do desenvolvimento sexual da menina. Da mesma forma, o processo de tornar-se mãe de um filho do qual se está gestando também não se dá de forma simples. Como ressalta Curi (2016):

Uma menina não nasce pronta para ser mãe, assim como uma mulher não se torna mãe apenas ao engravidar ou mesmo ao ter em seus braços o seu bebê, após o parto. (...) assim, podemos dizer que da mesma forma que um bebê necessita de um tempo para se constituir, física e psiquicamente, a mulher precisa ‘gestar-se’ psiquicamente para poder se tornar mãe. (p. 56)

Esta dimensão do tempo envolvida na gestação vai favorecer que vivências da relação mãe e filha ressurjam, e, desta forma, os percalços desta relação original. Aragão (2007) situa a gravidez como um processo que coloca para uma filha - ao estar se tornando ela própria mãe - a possibilidade de reviver de forma invertida seu laço com sua mãe, no sentido oposto da dinâmica que a conduziu ao pai.

Como se o investimento narcísico que é necessário à gravidez contribuísse para um retorno no qual se recorda a si próprio como um bebê. Nas palavras da autora: "O investimento narcisista da gravidez, centrado sobre o corpo, contribui para esse retorno às origens, ao arcaico, à experiência pela mãe do seu próprio vivido como bebê." (Aragão 2007, p. 94).

Segundo Dolto (1996), ser mãe na ótica psicanalítica não implica apenas maternidade biológica; demanda também, sentimentos e atitudes de adoção que decorrem do desejo pelo filho que pode se dar com o tempo. Durante a gestação, o psiquismo de uma mulher, inevitavelmente, irá passar por transformações. Podemos pensar que uma destas alterações se coloca através de um tempo necessário à elaboração de um espaço para o filho em seu psiquismo. Inicialmente, um bebê pode se apresentar enquanto um estranho, um enigma para esta mulher. Espera-se que, conforme a gestação for se desenrolando, este bebê possa vir a ser objeto das projeções das experiências infantis da mãe. Logo, gestar teria relação com um trabalho de transformar o estrangeiro em familiar, atribuindo-lhe características via projeção e idealização, que estão relacionadas com sua própria história sexual infantil (Aragão, 2007).

Na visão de Curi (2016), uma das modificações proporcionadas pela experiência da gestação diz respeito à mudança na cadeia de filiação. Consequentemente podemos pensar em um processo de luto que se coloca no bojo desta transformação. Para o autor, a mulher que estava em um lugar de filha precisa abdicar parcialmente deste lugar para que ela possa se tornar mãe, situando a gestação como um tempo de espera que se concretizará com um duplo nascimento: o nascimento de um bebê e o nascimento de uma mãe.

Cabe ressaltar que os processos psíquicos que se desenrolam durante a gestação, como também aqueles relacionados à história individual de cada sujeito, irão marcar a relação com este novo bebê e com a assunção ou não de um papel no âmbito da maternidade. Desta forma,

um filho está remetido a representações simbólicas constitutivas da subjetividade de um sujeito-mulher, mesmo antes de sua concepção. Desde que vem ao mundo, sabemos, a criança já se encontra mergulhada num contexto que a preexiste, nascendo em meio a uma história que a antecede – a história de seus pais. (Curi, 2016, p. 56)

A gravidez é um estado que produz uma alteração de referenciais. Um destes referenciais se situa no campo da alteração corporal. Esta alteração necessariamente afeta a imagem do corpo e, consequentemente, a representação narcísica da mulher. Como nos aponta Aragão (2007): "O limite corporal se modifica, a unidade da representação de si é deslocada para permitir a representação do corpo próprio que vai englobar progressivamente um outro corpo." (p. 45), fazendo com que a experiência da gestação proporcione um encontro da mulher com si própria.

Aragão (2007, p. 38) pontua que o que estaria em jogo é a capacidade da mulher de erotizar uma parte ainda interna a si. Durante a gestação, a criança possui um duplo status: está presente no interior do corpo da mãe e em seus pensamentos conscientes e inconscientes, porém ausente da realidade externa e visível, sendo desta forma, apenas objeto de interações imaginárias.

 

Conclusão

Com o presente trabalho, torna-se possível abrir a questão da ausência de uma regra sobre o que seria a mãe e a mulher, uma vez que ambas estão no campo de uma construção que cada sujeito irá se haver durante sua vida. Apesar disso, existe algo de uma transmissão sobre a maternidade e feminilidade que se dá na relação de mãe para filha. É o que Curi (2016) afirma ao relatar que as falhas nesta identificação da menina com a mãe podem gerar dificuldades posteriores no âmbito da maternidade.

Tais dificuldades podem ser verificadas nos percalços de conceber, na predisposição em sofrer abortos espontâneos, óbitos fetais e outros. As reações das mulheres com a gestação e seus filhos estão diretamente relacionadas com sua relação com suas próprias mães (Freire, 2012).

Foi possível perceber, a partir dessas construções, que o ideal de maternidade que temos hoje, fundamentado socialmente, é a idealização do papel de mãe como forma de ser mulher ligando-se à obtenção da completude, do objeto fálico do qual as mulheres foram privadas no nascimento. Segundo o que Freud (1933/1969), discutia em seus textos, visavam entender o enigma da feminilidade. Assim, a maternidade passou a ter a representação de via de acesso à obtenção do falo, potência fálica da mulher.

O olhar da potência fálica que a maternidade representa na vida de uma mulher levou-nos também a pensar na relação mãe e filha. Dessa forma, pudemos compreender que esta primeira relação estabelecida entre mãe e filho se especifica pelo lugar que a criança ocupa para a mulher, como um lugar de objeto fálico, sendo este o primeiro lugar determinado para o filho e ocupado pelo desejo deste. Nesse sentido, percebemos que a relação com a figura materna é de grande importância na constituição do indivíduo e que ela passa pelos desejos anteriores, como também pela vivência na gestação.

É possível observar ao longo do trabalho que mulheres como Sarah e Gilda, ao terem um encontro com a psicanálise pela primeira vez em um período de muitas inquietações e transformações, começam a refletir sobre o seu lugar desejante como futuras mães.

 

Referências

André, S. (1998) O tornar-se mulher. In: O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

Aragão, R. O. (2007) A construção do espaço psíquico materno e seus efeitos sobre o psiquismo nascente do bebê. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Badinter. E. (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Curi, P. L. (2018). Da curetagem aos restos psíquicos. Cadernos de Psicanálise – SPCRJ, Rio de janeiro, RJ, v.32, n.1, p. 52-59, 2016. Recuperado em: 27 julho, 2018 de https://spcrj.org.br

Dolto, F. (1996) no jogo do desejo: ensaios clínicos. 2. Ed. São Paulo: Ática, p. 295.         [ Links ]

Freire, T. C. G. de P. (2012). Transparência psíquica em uma nova gestação após natimorto. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília, Brasília.         [ Links ]

Freud, S. (1933) A feminilidade. Novas Conferências Introdutórias XXXIII. Edição Standard Brasileira das obras completas, vol.XXII, 1969.         [ Links ]

Guggenheim,S. (2018) Gravidez e psicanálise: considerações institucionais e clínicas In Alberti, S & Vorsatz,I. [organizadoras] Residência em Psicologia Clínica Institucional: O primeiro jubileu de uma experiência. Rio de Janeiro: CEPCI-MRH.         [ Links ]

Silva, M. C. P. (2004) O processo de construção da tese de doutorado: a herança psíquica na clínica psicanalítica. In: Ser pai, ser mãe: parentalidade; um desafio para o terceiro milênio. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 9-10.         [ Links ]

 

 

Agência de Fomento: O trabalho foi escrito durante a residência da UERJ com bolsa da Coordenadoria de Desenvolvimento Acadêmico (CDA).

 

 

1 Doutora em Saúde Coletiva pela UERJ e supervisora do Núcleo Perinatal da residência em Psicologia Clínico Institucional da UERJ. E-mail: esusang@gmail.com.
2 Especialista em Psicologia Hospitalar na área da Infectologia- INI/FIOCRUZ, especialista em Psicologia Clínico Institucional- modalidade residência pela UERJ e mestranda em Psicanálise e Políticas Públicas pela UERJ. E-mail: laudypsicologia2017@hotmail.com.
3 Especialista em Psicologia Clínico Institucional- modalidade residência pela UERJ. E-mail: alinemontp@gmail.com.

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