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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e hospital universitário hoje

 

Psychoanalysis and university hospital today

 

 

Glória Castilho1; Renata de Oliveira Fidelis2

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ

 

 


RESUMO

O presente texto aborda questões em torno da inserção da Psicanálise no ambulatório Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI), unidade docente assistencial do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), vinculado à Universidade Aberta da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UnATI/UERJ), tanto no que tange à relação com a equipe de saúde, quanto à supervisão clínica e institucional, desenvolvida pelas psicólogas que trabalham neste setor, junto às residentes de Psicologia. A inserção em um Hospital Universitário hoje situa, sobretudo, dois significantes: saúde e universidade, fortemente ancorados no progresso da ciência tecnológica. A partir destes significantes, busca-se indicar especificidades recolhidas através da escuta de pacientes reconhecidos pela equipe como "idosos", termo que não expressa as particularidades que aparecem na clínica com estes sujeitos. No entanto, é muito presente na fala destes sujeitos uma incidência de efeitos advindos de perdas importantes e usualmente concomitantes, que podem abrir a necessidade de um trabalho de luto.

Palavras-chave: psicanálise; hospital universitário; velhice; trabalho de luto; supervisão.


ABSTRACT

The present text addresses questions regarding the insertion of Psychoanalysis in the ambulatory of the Center of Attention to the Elderly (NAI), assistance teaching unity of Hospital Universitário Pedro Hernesto (HUPE), linked to Third Age Open University of the state or Rio de Janeiro (UnATI/UERJ), addressing both the relationship with the health team and the clinical and institutional supervision developed by the psychologists working in this sector, together with the Psychology residents. The insertion in an University Hospital today places, above all, two signifiers: health and university, strongly anchored in the progress of technological science. From these signifiers, it is sought to indicate specificities collected through the listening of patients recognized by the team as "elderly", a term that does not express the particularities that appear in the clinic with these subjects. However, it is very present in the speech of these subjects an incidence of effects arising from important and usually concomitant losses, which may open the need for grief work.

Keywords: psychoanalysis; university hospital; old age; grief work; supervision.


 

 

Introdução

O presente trabalha busca localizar algumas questões advindas da atuação da área de psicologia no ambulatório Núcleo de Atenção ao Idoso (NAI), unidade docente assistencial do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), vinculado à Universidade Aberta da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UnATI/UERJ). O ambulatório NAI foi criado no início dos anos noventa e instalado no Campus Maracanã da UERJ. Conta com uma equipe que se define como multiprofissional – geriatras, enfermeiros, nutricionistas, assistentes sociais, fisioterapeutas, psicólogos – e interprofissional. A área de psicologia do NAI acolhe residentes de duas residências distintas: o Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional, Modalidade Residência Hospitalar do Instituto de Psicologia da UERJ(IP/UERJ) e a Residência Multiprofissional em Saúde do Idoso do NAI/UnaTI. O trabalho com residentes é apresentado pela equipe de saúde como treinamento de profissionais em serviço.

É importante assinalar que o 'e' como conjunção em 'Psicanálise e Hospital Universitário hoje' considera também a disjunção, a separação. A partir de um recorte, no qual se encontram reflexões sobre a relação com a equipe de saúde e fragmentos clínicos, sublinha-se a incidência de efeitos nos sujeitos que na velhice enfrentam com frequência perdas importantes, e por vezes, concomitantes, que podem implicar na necessidade de um trabalho de luto.

Estes apontamentos partem de uma práxis psicanalítica. Lacan (1963-1964/1979) traz uma discussão em torno da psicanálise como práxis no seminário 11. Em determinado ponto Lacan (p.14) interroga: "O que é uma práxis?" E em seguida responde: "É o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja, que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico".

Cabe sublinhar que além do exercício de funções de supervisão e preceptoria junto aos residentes, as psicólogas do NAI sustentam a escuta de alguns "idosos" e "cuidadores" tanto no ambulatório como na enfermaria. Utilizamos aspas nos termos "cuidador" e "idoso", para indicar a dissimetria entre o cuidador e o idoso como categorias histórica e socialmente construídas e o sujeito dividido da experiência analítica, confrontado com as questões – sempre singulares – colocadas pelo processo de envelhecimento. Neste ambulatório de geriatria público e universitário, a práxis da área de psicologia orienta-se por uma pergunta acerca da incidência e sustentação do discurso analítico e, ao longo do texto, os termos "área de psicologia", "psicólogo" e "psicanalista" consideram sempre esta referência à práxis da psicanálise.

Algumas indicações de Freud nos norteiam. Ao abordar as relações entre psicanálise e universidade, Freud (1918-1919/1976b) sublinha que a academia pode se beneficiar com as contribuições da psicanálise. Cabe ressaltar que para Freud (1918/1976c, p.211), o que opera no trabalho clínico em uma instituição é "a psicanálise estrita" ou, em outros termos, "o ouro puro da análise" e não "o cobre da sugestão direta". Já o psicanalista pode "prescindir completamente da universidade" (Freud, 1918/1976b, p.217).

Formular a pergunta acerca da conjunção entre psicanálise e Hospital Universitário hoje implica abordá-la considerando a vigência de diferentes discursos. No final dos anos sessenta, Lacan formaliza quatro diferentes discursos, compatíveis com distintos laços sociais e capazes de rotação. Lacan (1969-1970/1992) procura esclarecer as coordenadas estruturais do discurso "como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra" (p. 10/11). Assinala uma dimensão invariante na disposição dos lugares – agente, Outro, produção e verdade – e na seqüência das letras: a, $, S1 e S2. Posteriormente, especificará o lugar do agente (acima e à esquerda), como lugar do semblant (Lacan, 1970-1971/2009) que agencia cada um dos discursos: S1-do Mestre; S2-Universitário; $ – da Histérica; a – do Analista. Lacan se interessa, sobretudo, em sustentar os giros discursivos, a partir da experiência analítica. Qualifica-os de seus quadrípodes e afirma que "uma estrutura quadripartida é sempre exigível, desde o inconsciente, na construção de uma ordem subjetiva" (1966/2001, p.774).

A partir da formalização dos discursos, que Lacan (1969-1970/1992) aprofundou, é possível localizar no discurso vigente na área de saúde e na universidade o saber como meio de gozo, oscilando entre o discurso do mestre, sua variação, o discurso universitário – que é situado por Lacan como discurso do mestre moderno – e sua corruptela, o discurso do capitalista (Lacan, 1974/2003b). Ele equaciona o Discurso do Capitalista, de acordo com a formalização abaixo.

 

 

Vale ressaltar a partir deste matema que, por sua peculiar configuração, o discurso do capitalista faz obstáculo aos giros discursivos, o que demarca o grau de fechamento com que se lida em alguns momentos. Por outro lado, algumas vezes alguma abertura se apresenta. Esta abertura pode ocorrer a partir do trabalho de elaboração e construção que ocorre em uma análise. Como, por exemplo, quando após praticamente oito anos de análise, onde o trabalho associativo promoveu alguma leitura de sua história, R. pôde situar que "nem tudo tem a ver com o Parkinson.". Em um atendimento verbaliza: "às vezes eu me sinto muito alheia, com um intenso mal-estar. Antes eu achava que era do Parkinson, mas, eu já reparei que sempre que eu estou assim aparece alguma recordação".

Importa esclarecer que a oscilação entre discursos, não permite identificar o discurso científico a nenhum dos discursos exclusivamente. Em função desta complexidade é preciso a cada vez localizar o ângulo que está sendo enfocado, para situar o semblant discursivo dominante. Lacan chega a aproximar o discurso científico do discurso histérico, em função da ênfase colocada na busca de produzir saber sobre o real.

O discurso científico prevalente em um ambulatório universitário veicula significantes aos quais o sujeito se aliena, tais como depressão, fibromialgia, pânico, mal de Parkinson, déficit de memória, dentre outros. Significantes que, por vezes, tendem a responder por todo o mal-estar relatado fazendo obstáculo à implicação do sujeito no trabalho de análise. Neste sentido, torna-se importante que haja um manejo para possibilitar alguma abertura ao trabalho pela fala. Este discurso também aparece no cenário da enfermaria, no qual também é sustentada uma escuta orientada pela psicanálise.

 

A Atuação da Psicologia na Enfermaria

Dentre suas ações, a equipe NAI presta assistência a "idosos" internados na enfermaria de cirurgia vascular do HUPE, bem como responde a pareceres de outras enfermarias deste hospital.

A inserção em um Hospital Universitário hoje situa, sobretudo, dois significantes: saúde e universidade, fortemente ancorados no progresso da tecnociência. É assim que, informada conceitualmente pela ciência, a: "tecnologia moderna não só produz máquinas e ferramentas físicas, mas também organiza e sistematiza as atividades. A tecnologia física (pesada) apóia-se nas ciências naturais e a tecnologia não física (leve) nas ciências comportamentais" (Koerich, 2006, p.180).

Por esta via, há o caminho muitas vezes trilhado na rotina de um Hospital Universitário para fazer da escuta, uma dentre outras técnicas ditas leves. Logo, é preciso levar em conta este ambiente fortemente técnico, bem carcterístico da nossa época, no qual o médico, que encarna uma mestria tradicionalmente, passa a exercer algo da função do mestre moderno (Lacan, 1969-1970/1992), cada vez mais técnico.

Durante a hospitalização, o paciente se depara com uma interrupção no curso da sua vida e um afastamento de pessoas com quem tem laços importantes, que mesmo sendo temporário, traz uma exigência de adaptação ao contexto hospitalar que pode não ser simples para ele. Moura (2000) aponta isto e afirma que este contexto pode ser traumático e gerar angústia.

É importante ressaltar que não há uma enfermaria de Geriatria no HUPE, logo a equipe do NAI precisa dividir decisões com outra equipe, que por vezes apresenta divergências quanto à condução dos casos. Esta equipe já esteve presente em algumas enfermarias, de acordo com aberturas que se delinearam em diversos momentos. A enfermaria de cirurgia vascular admite pacientes para diversos procedimentos e não é raro que o paciente passe por alguma amputação de maior ou menor proporção. É um local que pode suscitar muita angústia na família, no paciente e na equipe de saúde. Cada um vai responder de uma maneira a esta experiência radical de perda.

Algumas vezes não há muito tempo para o paciente decidir se irá realizar determinado procedimento e esta decisão é influenciada pela fala da equipe de que há um risco de morte, caso não haja a amputação. Outras vezes, há uma certa pressa da equipe cirúrgica em obter a autorização escrita do paciente para o procedimento a ser realizado. Um paciente, ao se deparar com a folha de autorização que "só precisa assinar", disse para a equipe: "preciso conversar com a minha família primeiro", inserindo um tempo para poder refletir minimamente sobre o que poderia lhe acontecer. Desta forma, vemos a importância do manejo com a equipe, sustentando, junto a esta, que não se trata de uma decisão que pode ser tomada tão rapidamente, apesar de haver situações urgentes.

Esta dimensão de uma velocidade que não considera uma temporalidade necessária é uma característica do contexto hospitalar: os procedimentos precisam ser feitos e os leitos têm que ser liberados. Mas é muito importante que a equipe sustente que ali não se trata apenas de um pé, uma perna, mas de um sujeito que terá consequências advindas deste procedimento, pois a equipe médica apresenta um olhar voltado para o membro que sofrerá a intervenção cirúrgica e muitas vezes não reflete sobre a complexidade envolvida neste processo.

A inserção da Psicologia na enfermaria pode ajudar a trazer à tona esta complexidade, como, por exemplo, no caso da esposa de um paciente, que ao aceitar a oferta de escuta pela psicóloga, pôde elaborar algo da experiência radical de lidar com a piora do marido. Após uma complicação decorrente de uma amputação, fala do seu estranhamento diante da naturalidade com que os médicos comentavam na enfermaria sobre alguém que ia amputar um membro. A entrada do discurso analítico no contexto hospitalar pode possibilitar incluir algo da singularidade, fundamental em um contexto no qual a equipe apresenta um enfoque na técnica.

Apesar do setting ser diferente do qual o analista em geral trabalha, a ferramenta utilizada é a mesma: a escuta analítica. A equipe de uma enfermaria pode apresentar expectativas com relação ao trabalho da Psicologia, tais como: convencimento do paciente, melhor forma de dar notícias ruins, saber lidar com o choro. Ao acolher um pedido da equipe devemos separar o que é demanda desta e qual é a demanda do paciente. A oferta da escuta pela Psicologia não deve estar implicada com qualquer expectativa a priori. O que vai dar direção ao trabalho analítico é aquilo que o paciente puder trazer naquele momento como urgente.

A Psicologia atende nesta enfermaria a partir de demandas que identifica nos pacientes e solicitações da equipe do NAI e, também, da equipe que trabalha diretamente lá. Semanalmente há uma reunião de equipe, na qual profissionais das diferentes especialidades discutem os casos que estão sendo acompanhados pela equipe (são atendidos pelo NAI alguns pacientes a partir de 60 anos). Cabe ressaltar que mais do que um momento no qual cada um fala de especificidades do seu atendimento, este pode ser um espaço importante para reflexão por parte da equipe dos seus limites de atuação, pois há situações de muitas dificuldades físicas e sociais dos pacientes e alguns casos têm como desfecho o falecimento. A idealização do cuidado, com a oferta de cuidados amplos, pode não incluir a particularidade dos casos. O paciente "não entende que precisa mudar hábitos alimentares", "não coopera com o tratamento"; o paciente sente muitas dores e não aceita o atendimento", estes são exemplos de falas da equipe de saúde, que refletem uma irritação do profissional e não uma pergunta sobre que fatores estão envolvidos nestas dificuldades. Cabe ressaltar que é importante a oferta de cuidado, mas ela não deve ser imposta ao paciente, e cabe ao profissional, inclusive retornar em outro momento, se for o caso.

A Psicanálise nos traz ferramentas importantes para poder situar o impossível inerente a algumas situações. Como nos indica Lacan, o analista "não pode desejar o impossível" (Lacan, 1959-1960/1985, p.352). Nesta indicação está colocada a necessidade de cada um lidar com a própria castração, algo inerente à formação do analista. No tratamento analítico, o analista está advertido de que algo de sua ação sobre o paciente lhe escapa, pois se trata da elaboração de um saber inconsciente, portanto, ele dirige o tratamento, não o paciente (Lacan, 1958/1998). É muito importante que isto se situe para a equipe, pois "a impotência em sustentar autenticamente uma práxis reduz-se, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder" (Lacan, 1958/1998, p.592).

Apesar do discurso científico ter a intenção de suturar o sujeito (Lacan, 1965-1966/1998), isto não ocorre completamente. O sujeito, por não ser substancial e por estar relacionado à lógica do inconsciente, não é passível de total apreensão pelo discurso científico. A equipe em geral se angustia com as questões subjetivas que se colocam algumas vezes como empecilho ao bom andamento do trabalho. No entanto, estes momentos podem ser importantes para incluir a dimensão da singularidade aliada aos limites de atuação da equipe. Esta geralmente lida com os limites como algo da ordem de uma impotência e não da impossibilidade.

Desta forma, a Psicologia apresenta então três possibilidades de acolhimento: à equipe, ao paciente e ao familiar. Nos atendimentos com o paciente, este terá a possibilidade de elaborar algo da experiência da internação e poderá trazer questões que lhe são urgentes naquele momento, onde é muito comum que se faça um certo balanço da vida frente à iminência da possibilidade da morte: " quando sair daqui vou pescar mais com meus amigos, aproveitar a vida que me resta". Moura (2000) traz a especificidade desta urgência subjetiva, aquilo que angustia e que urge que se elabore através da fala, em um contexto onde predominam as emergências hospitalares. Ao se deparar com a necessidade de ser cuidado pelos filhos após ter alguns dedos amputados, o paciente diz "meu pé está carente", podendo a partir daí falar do afastamento que tinha destes filhos e da expectativa desta reaproximação. Nesta frase também fica exposta a forma particular como o corpo é experimentado, atravessado pela pulsão.

Um dos momentos no qual a angústia da equipe teve uma direção, foi quando se decidiu, após o falecimento repentino de um paciente que estava sendo acompanhado há bastante tempo, fazer uma carta de despedida, que foi entregue à esposa dele. Esta carta teve uma função importante para a esposa, e também para a equipe, ao colocar em palavras e poder elaborar algo de um real que se escancara com a morte. Este ato também pôde oferecer um acolhimento à esposa, pois a equipe se mostrou disponível e aberta a uma escuta, caso ela desejasse.

Apesar dos desafios apresentados, que envolvem uma frustração e angústia da equipe, frente a um cuidado que envolve uma complexidade não restrita à dimensão orgânica, observamos que a presença da Psicologia na enfermaria apresenta efeitos a cada vez, no sentido da inclusão da dimensão da singularidade e da consideração dos limites aos quais toda a equipe está submetida.

 

A Supervisão dos Residentes de Psicologia no NAI

A supervisão dos residentes em uma Universidade lança desafios quanto à questão da transmissão da psicanálise neste contexto. Além de estar junto ao residente nos espaços coletivos institucionais, tais como grupo de estudos multidisciplinar e reuniões de equipe, as psicólogas do NAI oferecem aos residentes a supervisão de Psicologia, a partir do referencial psicanalítico.

Freud nos indica que a formação do analista está ancorada em um tripé: a análise pessoal, os estudos teóricos e a supervisão. O eixo principal é o da análise, pois a partir desta o analista adquire convicção quanto aos efeitos do inconsciente a partir do trabalho analítico. Freud assinala "que nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas" (Freud, 1910/1976a, p.130), e segue acrescentando que por esta razão o trabalho de análise do próprio analista se impõe como necessário. No entanto, os outros eixos não deixam de ter importância e cabe destacar que a suposição de saber que está em jogo na possibilidade do desenrolar de uma análise também se mostra fundamental no direcionamento de questões em uma supervisão (Dias, 2003), ainda que não da mesma forma.

Esta questão nos transporta para a particular relação entre saber e verdade que a psicanálise demonstra. Apesar do início de uma análise estar relacionado à instalação da transferência, com a aposta do paciente de que o analista tem um saber sobre o seu sofrimento psíquico, o manejo necessário da transferência implica o desvelamento da dimensão inconsciente do saber em jogo em uma análise. O analista aponta para a importância das formações do inconsciente em um trabalho de elaboração psíquica, que vai se construindo em uma análise.

Logo, este saber não está dado a priori e o inconsciente não se deixa desvelar inteiramente, pois há momentos de abertura e fechamento do inconsciente e o real escapa a uma apreensão total pelo registro simbólico. O lugar que o analista ocupa é o de convocar, a cada vez, o paciente ao trabalho analítico. Transmitir algo desta dimensão da práxis analítica se mostra fundamental em uma supervisão. Um desafio se apresenta nesta transmissão: como manejar uma dimensão transferencial que se coloca no trabalho de supervisão?

Dias (2003) apresenta uma proposta para pensar a supervisão a partir dos quatro discursos apresentados por Lacan. Se o supervisor ocupa o lugar de mestre, a partir do Discurso Universitário, o efeito é uma exposição da psicanálise nos moldes de uma aula, que impede uma produção de saber a partir da experiência analítica. Se o supervisor trabalha a partir do Discurso do Mestre, ordenando o que se escuta na clínica, normatizando o que se deve ou não fazer, ele tampona os furos do saber. Se ao contrário, o analista sustenta um não-saber, pode fazer funcionar o Discurso da Histérica, levando à produção de saber a partir da escuta dos significantes mestres recolhidos na clínica. Desta forma, produz-se uma torção na demanda que o supervisionando direciona ao supervisor, que o leva a produzir algum saber a partir da escuta analítica, apontando para o Discurso do Analista. O supervisor deve trabalhar considerando os giros discursivos em um trabalho de supervisão.

A supervisão na Universidade pode trazer desdobramentos importantes para a sustentação de um compromisso com a formação que, para o analista, ocorre fora deste espaço, na experiência de sua análise e supervisão pessoal e no compartilhamento de questões em uma Escola de psicanálise. Não é raro que possam ocorrer pedidos de indicação de analistas e inserção em alguma atividade de Escola de psicanálise a partir do que se desenrola na supervisão na Universidade.

Da mesma forma Freud (1925/1996b), em "Prefácio à juventude abandonada de August Aichhorn", esclarece que a psicanálise deve ser experimentada "na própria carne" e acrescenta que "o ensino teórico não penetra tão profundamente nem produz convicção nenhuma" (Freud, 1925/1996b, p.308). Vale aqui indicar que o termo alemão Überzeugung foi traduzido pela Amorrortu por convicção. Em vários momentos da obra de Freud, Überzeugung aparece como o que se extrai do trabalho de análise. É assim em "Construções em Análise": "se a análise foi executada de forma correta, alcança-se nela uma convicção certa sobre a verdade da construção" (Freud, 1937/1996c, p.267) ou, ainda, em "Análise terminável e interminável": uma análise "cumpre seu encargo se instila no aprendiz a firme convicção na existência do inconsciente" (Freud, 1937/1996d, p. 250).

Freud finaliza seu texto de 1918, "Deve-se ensinar a psicanálise na universidade?" afirmando a respeito do estudante da universidade que "será suficiente que ele aprenda algo sobre psicanálise e que aprenda algo a partir da psicanálise" (Freud, 1919-1918/1976b, p.220). Tal distinção nos adverte quanto à dissimetria entre o ensino e a transmissão da psicanálise.

A transmissão de algo desta complexidade não está relacionada à cobrança de produção acadêmica que a universidade apresenta, mas sim a uma tentativa de situar a falta inerente à dimensão do saber em psicanálise.

Nos diversos cenários onde os residentes estão inseridos, uma questão que se coloca com frequência é a incidência de muitas e importantes perdas que os pacientes relatam. Estas perdas podem levar a um estado depressivo que, no discurso médico, se classifica como Depressão, gerando um protocolo medicamentoso que, em alguns casos, pode ser importante, mas também pode dificultar um trabalho que propicie que o sujeito atravesse esta perda e possa produzir novos investimentos na vida.

 

Do Sentimento de Luto ao Trabalho de Luto

A clínica com "idosos", que conforme explicitamos não se trata da categoria socialmente constituída, mas da consideração de cada sujeito com suas particularidades, traz uma especificidade que diz respeito a enorme recorrência de perdas que eles experimentam, que englobam perdas significativas que podem ser de pessoas queridas, que com o envelhecimento em geral são frequentes; perdas no campo dos ideais, com as mudanças corporais advindas com o envelhecimento, que demandam um luto de um corpo jovem; e perdas advindas de projetos que não são mais possíveis com o avançar da idade. Todas estas perdas tem o potencial de suscitar um "sentimento de luto" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 160). Se o paciente chega a uma análise, é possível que se lance a um trabalho de luto, que envolve um desinvestimento libidinal deste objeto perdido, que está superinvestido, trabalho doloroso, mas necessário, para elaborar algo da perda. Ao final do trabalho de luto, o paciente pode investir novamente a libido em outros objetos, segundo Freud (1917/1996a), possibilitando novas vestimentas para o desejo.

Freud (1917/1996a) adverte quanto à especificidade do trabalho de luto, o qual exige tempo e intensos esforços daquele que sofreu uma perda significativa, para que possa chegar a termo o trabalho e seja possível alguma substituição. Neste contexto coloca-se, por vezes, uma dificuldade "a mais" quando o "idoso" - tomado pela dor de uma perda valiosa - e que precisa trabalhar a partir desta – trabalho de luto – encontra-se entorpecido, sob o efeito de remédios, a partir da entrada precoce de antidepressivos e outras medicações associadas.

Trata-se de uma conjuntura que muitas vezes dificulta e interfere no avanço do já tão árduo e doloroso trabalho de luto. É preciso esclarecer que há, entretanto, aquelas situações em que a entrada da medicação torna viável que um "idoso" se levante da cama e venha falar, tamanho o grau de prostração em que se encontrava. Desta forma, cabe avaliar, a cada vez, a função e o lugar da medicação, ali onde se impõe um árduo trabalho de luto.

No trabalho junto à equipe de saúde podemos notar um efeito interessante da transmissão de algo a partir da psicanálise. Com alguma frequência, em alguns encaminhamentos à Psicologia, surge a expressão "luto não elaborado", ao invés de Depressão. Isto tem consequências importantes, já que "luto não elaborado" não gera qualquer protocolo médico. Já Depressão, por outro lado, gera um protocolo com prescrição de medicação antidepressiva que leva um tempo para ajustar e pode ainda estar associada a outras medicações.

Reintroduzir a pergunta em termos éticos demarca o lugar da psicanálise na medicina como "marginal" e "extra-territorial" (Lacan, 1966/2001, p. 8). Consideramos que seja recolhendo aquilo que fracassa e apresenta-se como atípico na prática dos especialistas que o discurso analítico pode localizar-se como contraponto nesta discussão quando, por exemplo, em uma reunião de equipe, alguém se pergunta sobre uma questão que o discurso científico não responde e pode apostar em um tempo de suspensão para que algo se esclareça melhor, antes de fechar um diagnóstico. É, portanto, operando a partir das brechas discursivas, e a cada vez, que algo do discurso analítico pode reintroduzir as questões do sujeito, muitas vezes elididas pela ênfase nos aspectos técnicos e na demanda de produtividade que aí se insinua.

 

Alguns Pontos de Conclusão

A pergunta acerca da intervenção do analista no hospital nos leva a uma conclusão importante: o trabalho atravessado pelo discurso analítico, em interlocução com uma equipe de saúde e junto aos residentes na universidade tem pontos em comum. É um trabalho minimalista, que opera a partir das brechas, não se rende a padronizações e não se ilude com garantias de efeitos grandiosos e definitivos. Lidamos com avanços pontuais e não com o progresso, já que, como nos lembra Lacan (1976-1977), com relação ao real não há progresso.

A pergunta que a equipe do NAI situa em alguns momentos sobre uma distinção entre luto e depressão, que recolhemos a partir dos encaminhamentos à Psicologia, junto com a aposta de um encaminhamento do luto em um trabalho pela fala, tem se mostrado fundamental para o estabelecimento de um tempo de suspensão do diagnóstico. Esta suspensão aumenta sua importância ao nos depararmos com o DSM-5 que autoriza a entrada de um protocolo medicamentoso decorridas apenas duas semanas de uma perda significativa. Em um ambulatório onde as perdas aparecem frequentemente na fala dos pacientes, este questionamento sobre a entrada de medicações mostra-se particularmente importante, ao refletirmos sobre a implicação destas no entrave ao trabalho de luto.

A presença de um psicanalista na universidade e ou no hospital é sempre contingente já que as condições para a construção de uma escuta analítica não estão dadas nem na universidade, nem na experiência fortemente técnica, própria à área de saúde. Qualquer que seja o ponto de partida, para Freud e Lacan a formação do psicanalista refere-se ao campo de uma Escola e implica a travessia pelas formações do Inconsciente, o lugar da supervisão e o trabalho de textos na interlocução com os pares que permita certo enlace entre intensão/extensão. Na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, Lacan (1967/2003a) traz as dimensões da Psicanálise em intensão e da Psicanálise em extensão. Certo enlace entre estas dimensões ocorre em alguma articulação entre o trabalho de análise e o trabalho em uma Escola de Psicanálise.

Esta direção torna possível que um psicanalista que se encontre na universidade recolha e, por vezes, dê direção a algo das questões próprias à formação analítica, segundo a qual está em jogo a transmissão, sobretudo, de certa precariedade, de um saber em falta, por estrutura, pelas múltiplas vias da transferência.

 

Referências

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1 Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Supervisora/Preceptora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar/IP/UERJ. Integrante da equipe clínica do Núcleo de Atenção ao Idoso/UnATI/UERJ. Coordenadora da Área de Psicologia da Residência Multiprofissional em Saúde do Idoso/NAI/UnATI/UERJ. Psicanalista, Membro da Escola de Psicanálise Letra Freudiana. Contato: gloria.castilho@gmail.com.
2 Especialista em Psicologia Clínica Institucional - Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Psicóloga do Núcleo de Atenção ao Idoso/UnATI/UERJ. Supervisora/Preceptora da Área de Psicologia da Residência Multiprofissional em Saúde do Idoso/NAI/UnATI/UERJ. Supervisora/Preceptora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar/IP/UERJ. Contato: renata-of@hotmail.com.

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