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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Diagnóstico diferencial na clínica psicanalítica entre sintoma e fenômeno psicossomático

 

Differential diagnosis between symptom and psychosomatic phenomenon in the psychoanalytic clinic

 

 

Nathaly Lamas Garcez1, I; Marcos Vinícius Zoreck Portela2, II

IUniversidade Federal do Paraná, Curitiba/PR
II
Complexo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (CHC-UFPR), Curitiba/PR

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo fomentar reflexões sobre o diagnóstico diferencial entre sintoma e fenômeno psicossomático (FPS). Esta questão surgiu a partir da experiência como residente de psicologia no Programa de Residência Integrada – Atenção à Saúde da Criança (PASCA) e do Adolescente do Hospital de Clínicas/UFPR (HC/UFPR), no atendimento ambulatorial de crianças e adolescentes, com idades de 8 a 13 anos, com dermatite atópica (DA). O acompanhamento de crianças com a dermatose, principalmente os casos graves, suscitou questionamentos sobre a direção de tratamento, na tentativa de se compreender se a doença se constitui como sintoma ou fenômeno psicossomático. Para auxiliar nas reflexões, foram apresentadas as características da clínica psicanalítica dentro de um hospital geral. Também foram retomados os conceitos: diagnóstico em psicanálise, sintoma em Freud e Lacan, e fenômeno psicossomático de Lacan. Por fim, conclui-se sobre a necessidade de estar atento sobre o estatuto do diagnóstico em psicanálise, sobre as categorias conceituais e sobre o lugar do psicanalista dentro do hospital, a fim de promover uma direção de tratamento baseada na ética da psicanálise.

Palavras-chave: diagnóstico diferencial; sintoma; fenômeno psicossomático; clínica psicanalítica.


ABSTRACT

This paper aims to promote reflections on the differential diagnosis between symptom and psychosomatic phenomenon (PSF). The question arose from the experience as a psychologist resident in the Integrated Residency Program - Child and Adolescent Health Care at Hospital de Clínicas / UFPR, in the outpatient care of children and adolescents aged 8 to 13 years with atopic dermatitis (AD). The monitoring of children with dermatosis, especially severe cases, raised questions about the treatment direction in an attempt to understand if the disease could constitute a symptom or a psychosomatic phenomenon. To assist in the reflections, the characteristics of the psychoanalytical clinic within a general hospital were presented. Also, the following concepts were recalled: diagnosis in psychoanalysis, symptom in Freud and Lacan, and psychosomatic phenomenon for Lacan. Finally, we conclude on the need to be aware of the status of diagnosis in psychoanalysis, the conceptual categories and the place of the psychoanalyst within the hospital, in order to promote a treatment direction based on the ethics of psychoanalysis.

Keywords: differential diagnosis; symptom; psychosomatic phenomenon; psychoanalytic clinic.


 

 

"O mais profundo é a pele"
Paul Valèry

 

Introdução

Este artigo tem como objetivo discutir o tema do diagnóstico diferencial entre sintoma e fenômeno psicossomático (FPS) na clínica psicanalítica, a partir da experiência da residente de psicologia no Programa de Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente (PASCA), no Hospital de Clínicas de Curitiba - HC/UFPR. Os pacientes atendidos eram crianças e adolescentes com dermatite atópica (DA), com idades de 8 a 13 anos, do Ambulatório de Dermatologia Pediátrica.

Os primeiros contatos da residente com os pacientes com doenças dermatológicas ocorreram no setor de internação pediátrica do Hospital de Clínicas (HC). A dermatite atópica se define como uma doença inflamatória da pele, crônica e reincidente, caracterizada por lesões eczematosas que produzem coceira intensa, com predominância na infância, embora possa ocorrer em qualquer período da vida (Amaral, March & Sant'Anna, 2012). Ainda que as informações sobre os processos e reações psíquicas relacionados às doenças de pele não estejam totalmente esclarecidas, na DA as relações entre sofrimento psíquico e manifestação somática estão mais evidentes (Fontes Neto et al, 2005).

A psicóloga residente foi chamada para atuar junto a dois casos a partir da suposição da equipe da dermatologia pediátrica do HC de que fatores emocionais poderiam estar implicados na manifestação e/ou agravamento das dermatoses das crianças internadas. Os pacientes encontravam-se hospitalizados para realizar tratamento, por complicações da doença. Posteriormente, verificada a existências de questões emocionais a serem tratadas, a residente passou a acompanhar os casos semanalmente, por um período de 12 meses. Todas as crianças e adolescentes acompanhadas eram portadoras de dermatite atópica. O ambulatório era frequentado para atendimento médico, com consultas mensais. Eventualmente, pela gravidade dos casos, as consultas se tornavam mais frequentes. Em algumas situações, os familiares também recebiam atendimento psicológico.

O trabalho desenvolvido pelos pacientes, alguns com quadro grave e crônico de dermatite atópica, suscitou reflexões. Qual a relação do paciente com seu corpo e de que forma isso se reflete na clínica psicanalítica, em cada caso: a dermatite atópica é uma manifestação psicossomática ou um sintoma? Como realizar tal distinção? Quais são as implicações no -trabalho clínico?

Estas perguntas se colocam como pano de fundo para o desenvolvimento do presente artigo. Lacan (1966/1998) diz: "O psicanalista certamente dirige o tratamento" (p. 592). Para realizar esta tarefa, a distinção entre sintoma e FPS se mostra fundamental. A discussão sobre diagnóstico na clínica psicanalítica se coloca, portanto, em pauta.

 

Diagnóstico em psicanálise

A construção de um diagnóstico em psicanálise se inicia por questões de ordem epistemológica, ou seja, abordando a relação existente entre sujeito e objeto de estudo. A psicanálise tem o inconsciente como objeto, e apresenta especificidades quanto à sua relação com os fenômenos observados. Figueiredo e Machado (2000) realizam este debate a partir do estatuto do inconsciente em relação à realidade. De acordo com os preceitos psicanalíticos, toda relação do sujeito com o mundo é mediada pela realidade psíquica, e esta se caracteriza como uma manifestação do inconsciente. Leandro, Couto e Lanna (2013) afirmam que a realidade psíquica vai sendo moldada a partir das primeiras relações humanas, como resposta fundamental ao desejo que constitui o ser humano e à fantasia atrelada a ele. Desta relação, comentam:

A fantasia seria uma manifestação do desejo no que esse teria de mais radical, seu caráter de mediação na relação possível entre sujeito e objeto (...) o desejo seria condição de percepção do mundo (...) a realização de um anseio e, se este anseio é motivo de transformação/construção da realidade, é porque ele é intermitente e não se realiza somente na cena objetiva, mas, sobretudo, na cena subjetiva, onde ganha força pela possibilidade de um mundo que pode gerar (...) a realidade psíquica é uma construção capaz de abrigar o desejo na mesma medida em que o toma como causa das associações das representações possíveis à sua realização e toda esta atividade é mediada pela fantasia. É a fantasia que alinhava as representações pelo recurso do sentido, permitindo que toda esta associação seja traduzida pelo regime da história do próprio sujeito. (p.31)

O desejo tem uma importância central em um processo analítico. A ética da psicanálise é direcionada ao trabalho com o desejo (Lacan, 1986/2008). O tratamento analítico visa possibilitar uma nova relação do sujeito com seu desejo, que não seja sintomática. No atendimento de crianças, o desejo inconsciente dos pais em relação aos filhos é uma variável a ser considerada pelo praticante, assim como a forma como criança se relaciona com tal desejo.

Freud (1900/2001a) postula sobre uma tendência do aparelho psíquico primitivo humano em manter-se tão livre quanto possível dos estímulos, e define o desejo como um desdobramento da história de experiências de satisfação mais primitivas. Partindo da perspectiva do desenvolvimento, no início da vida, o barulho, a temperatura, a luminosidade, a fome, as cólicas etc, são experienciados como excessos pelo bebê. Quando este excesso é cessado ou diminuído, a criança passa por uma experiência de grande satisfação, que irá gerar marcas em seu psiquismo (marcas mnêmicas). No momento em que o bebê novamente sentir que a necessidade se impõe e vive esta experiência como excesso, terá um impulso a buscar o prazer experienciado anteriormente.

Este movimento de obtenção de satisfação por meio do jogo de elevação e diminuição dos estímulos no aparelho psíquico, se desdobra: em um primeiro momento trata-se de um impulso psíquico em busca de um prazer do corpo; posteriormente, a criança anseia por algo além deste cuidado. O bebê quer ser alvo de afeto, de carinho e de amor, ou seja, deseja ser o desejo do Outro. Aos poucos, a partir da dinâmica dos cuidados maternos, ele passa a supor o que o outro quer dele e reagir frente a isso. Lacan define o objeto de desejo como sendo o significante, significante de uma relação que indefinidamente terá efeitos na vida do sujeito. Neste contexto, trata-se da incidência do significante mestre na relação mãe-bebê. A partir do estabelecimento do circuito da demanda, abrem-se precedentes para que a criança deseje ser o desejo de sua mãe, e dela receba os cuidados essenciais embalados por amor. A pergunta, inconsciente, que permanece para o bebê atingir este fim é "o que o outro quer de mim?".

Com a passagem do tempo, esta relação dual mãe-bebê muda. A criança cresce, se desenvolve e passa a fixar o olhar, a interagir mais com o mundo, outros alimentos são introduzidos em sua alimentação. Para a mãe, a rotina anterior ao nascimento vai aos poucos retornando, outras necessidades vão se impondo e ela deixa de estar tão disponível para a criança. O pai surge nesta equação. A mãe apresenta o pai na relação com o bebê, que fará o corte e colocará à criança a questão da falta: não é possível ser tudo para a mãe; existem outras coisas e pessoas no mundo que também são alvo de seu interesse e satisfação. A impossibilidade de ocupar este lugar de completude do desejo materno traz a percepção inconsciente da falta como característica da condição humana. Psiquicamente, se é impossível ser o objeto que completa o desejo materno, perde o sentido buscar ser o desejo deste outro. A pergunta essencial se transmuta, "se não sou o desejo do outro, quem sou eu?". Esta questão é a essência do ato de desejar.

A fantasia é o desdobramento do desejo, como uma forma pela qual a pergunta essencial será respondida. Nela, persistirá a tentativa de permanecer no lugar de falo materno e tamponar esta falta. Se antes a criança buscava responder aos anseios da mãe, neste segundo momento trata-se de almejar o que é compreendido como culturalmente desejado. O processo de constituição do sujeito como desejante, pela perspectiva do desenvolvimento, ocorre desde o nascimento e finaliza na adolescência. Nos atendimentos clínicos realizados no período da residência, nos deparamos com os percalços que ocorrem nesta trajetória. Na clínica com crianças, durante as entrevistas iniciais com os pais e com a criança, cabe ao praticante escutar como está se constituindo este caminho, do nascimento da criança como ser desejante. Lacan (1969/2003) define a família como fundadora da subjetividade da criança, em consequência de um desejo não anônimo dos pais por ela. Na escuta das queixas iniciais, é possível identificar indícios de como se deu a construção do lugar do filho em questão, a partir dos modos de incidência no universo da linguagem de cada um dos pais. Este lugar sintetiza a história e a dinâmica desta dupla e em como esta criança foi investida de cuidados.

Para o psicanalista, o diagnóstico na infância e na vida adulta visa identificar a posição do sujeito frente ao desejo. Entretanto, pelas características de cada período de vida, são posições distintas do sujeito frente ao Outro em cada momento. A criança é um ser em desenvolvimento, e seu processo de constituição psíquica está em aberto. No período da infância, é necessário que os adultos ofereçam, além dos cuidados básicos às crianças, um olhar que as humanizará carregado por um desejo particularizado, que é pedra angular para o surgimento da subjetividade. Como, estruturalmente, os caminhos libidinais ainda estão sendo traçados, a relação com o desejo e com o gozo é de um estatuto diferente, comparado ao do adulto. Em virtude de tais características, o diagnóstico com crianças incide sobre uma estrutura mais maleável. Na vida adulta, o psiquismo já está formado e já existe uma cristalização dos caminhos libidinais, das fixações e dos modos de gozo.

Diagnosticar, portanto, significa reconhecer, por meio da transferência, a posição do sujeito frente ao Outro. Na infância, este posicionamento é maleável, reflexo da forma como vem se constituindo a organização do desejo frente à castração, ou em outras palavras, em como a criança vivencia a operação da separação. Para Dolto (2008), castração é o processo pelo qual um ser humano significa a outro que a realização de um desejo, em certa modalidade de prazer, é proibida pela Lei. A castração é sinônimo da incidência da Lei simbólica, ou ocorrência da metáfora paterna. A estruturação subjetiva, de acordo com Lacan (1969/2003), é função da família por intermédio do exercício da função materna e metáfora paterna. Sobre a primeira, cabe oferecer um lugar à criança "na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas" (p. 369). Ao pai ou àquele que cumpre esta função, cabe a instauração da Lei do desejo pela instituição do corte da relação dual mãe-bebê, privando a criança de seu objeto de desejo, e a mãe de seu objeto fálico.

Refletir sobre as especificidades do diagnóstico é essencial para a condução do processo analítico. Ainda que o trabalho realizado nos diferentes períodos da vida seja distinto, ter conhecimento sobre o desenvolvimento infantil e a forma como ocorre a construção da subjetividade e o desejo é fundamental no trabalho com psicanálise. Neste sentido, pensando na infância e na relação entre a criança e seus pais, a dinâmica entre eles pode ser determinante para o surgimento e manutenção de adoecimentos. De acordo com Lacan (1969/2003), "o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar…. se define, neste contexto, como representante da verdade" (p. 369). O sintoma da criança tem muito a dizer sobre o funcionamento de uma família, e pode não só estar respondendo ao funcionamento do casal parental, e sim ao desejo da mãe, quando a incidência da função paterna falha. Sobre isso, o autor relata sobre as dificuldades no tratamento de crianças, quando o sintoma prevalente está respondendo ao desejo da mãe:

A articulação se reduz muito quando o sintoma que vem a prevalecer decorre da subjetividade da mãe. Aqui, é diretamente como correlata a uma fantasia que a criança é implicada. A distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que normalmente é assegurada pela função do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna "o objeto" da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. A criança realiza a presença... como objeto a na fantasia. Ela satura, substituindo-se a esse objeto, a modalidade de falta em que se especifica o desejo (da mãe). Ela aliena em si qualquer acesso possível da mãe à sua própria verdade. (p.369-370)

Ao citar o sintoma na criança como resposta à subjetividade da mãe, Lacan fala sobre os casos em que os sintomas somáticos emergem. Segundo ele, tal manifestação do conflito infantil no corpo oferecem a máxima garantia à mãe de desconhecimento de seu próprio desejo, de tamponamento de sua verdade. Este ponto da obra lacaniana foi de encontro a alguns achados na clínica psicanalítica com crianças com dermatite atópica e suscitou a seguinte questão: seria a doença somática da criança sempre um reflexo da verdade materna manifestada em seu corpo? Refletir sobre este questionamento na clínica com crianças envolve também pensar nos adoecimentos somáticos nos adultos, e consequentemente na condução de uma análise. A partir desta pergunta, surgiu a que fundamenta este trabalho: como realizar o diagnóstico diferencial entre sintoma e fenômeno psicossomático?

 

Psicanálise e Hospital: demanda da equipe e ética do desejo

O atendimento de crianças e adolescentes no ambulatório de dermatologia infantil do Hospital de Clínicas trouxe como questão o estatuto da dermatite atópica como doença de base dos pacientes atendidos, para a psicanálise. Para a medicina, trata-se de uma enfermidade influenciada por diversos fatores, como os alérgico-irritativos, os físicos, os infecciosos e os emocionais (Gascon et al, 2012). Se para a medicina é uma patologia e necessita ser tratada como tal, para a psicanálise, de que forma as lesões podem se colocar: como sintoma ou fenômeno psicossomático?

A fim de caminhar na direção da realização de um diagnóstico, um dos pontos colocados como necessários para o estabelecimento e andamento da clínica psicanalítica dentro de um hospital geral foi administrar a demanda por cura da doença, tanto da equipe quanto das famílias, nos casos em que o quadro da dermatite era muito grave. A experiência da residência impõe situações como essas. O primeiro contato com os pacientes da dermatologia ocorreu a partir de um chamado da equipe médica para acompanhar dois casos de crianças internadas. Se há suspeitas de que a dinâmica familiar está impactando no tratamento ou que existem indícios de outros problemas, não orgânicos de ordem psicológica ou social, influenciando no surgimento ou manutenção da doença, a psicologia é chamada a intervir visando a colaborar na elucidação dessas questões.

A demanda pelos serviços do psicólogo em um hospital geral é de cura da doença pela via do tratamento dos aspectos emocionais atrelados ou decorrentes da enfermidade. O hospital se caracteriza como local que, por excelência, busca promover e recuperar a saúde dos indivíduos. O objetivo do trabalho do psicanalista, por sua vez, é de oferecer uma escuta diferenciada ao paciente, dando-lhe o lugar de sujeito, escutando o que ele diz e o que vai além do que é dito. Ao acolher as demandas, sem responder a elas, oferta um espaço vazio para que o paciente permaneça demandando em direção a um saber inconsciente, sobre seu desejo (Machado & Chatelard, 2013). Demanda e desejo não necessariamente coincidem, e nem sempre o paciente tem o desejo de ser curado.

Para os pacientes que se encontram internados ou de alguma forma vinculados ao hospital, saber mais sobre o próprio desejo pode auxiliar na compreensão de que deste desejo pode estar implicado no processo de adoecimento. Poder entrar em contato com suas verdades inconscientes, conhecê-las e ter espaço para falar sobre elas pode auxiliar no processo de cura das enfermidades. Esta direção de trabalho só é possível em um contexto em que o psicanalista busque atuar guiado pela ética do desejo. Ainda que tal caminho seja radicalmente diferente ao dos pedidos da equipe do hospital, que habitualmente solicitam por ações que acalmem a angústia do paciente e intervenham diretamente na cura do sintoma médico, ele tem afinidades com os objetivos de um hospital. A atuação do psicanalista no ambiente hospitalar, portanto, implica em lidar com a forma como se apresenta esta demanda da equipe, e requer a sustentação de uma posição desafiadora para os profissionais em questão.

A experiência na residência em psicologia no PASCA – HC/UFPR perpassa a construção deste lugar. Além do aprendizado sobre o que é a clínica psicanalítica em suas particularidades dentro de um hospital geral, trabalhar com a demanda da equipe e a natureza das doenças encontradas neste contexto, são fatos que a todo momento colocam à prova a ética da psicanálise, na atuação do praticante. Sustentar este lugar significa questionar constantemente a própria atuação e lidar com os limites do possível nestes casos.

No período da residência, o primeiro caso de dermatite factícia (lesão cutânea autoinduzida) atendido se mostrou uma tarefa desafiadora, porque havia a suspeita de Síndrome de Münchausen por procuração. A evolução rápida dos sintomas, que inicialmente se apresentavam como lesões cutâneas, e durante a internação foram acrescidos de dores corporais e vômitos, trouxe muitas preocupações quanto ao bem-estar do paciente em questão. Administrar a demanda pela cura do sintoma médico é uma constante na atuação do psicanalista no hospital. Atender a criança e acompanhar nos atendimentos qual seria o estatuto destes sintomas em questão para ela, identificar qual a demanda endereçada ao psicanalista e o que vai constituir-se como um sintoma psicanalítico, engloba fazer esta separação do discurso médico.

Nesta perspectiva, a transferência é o motor que possibilitará o trabalho do psicanalista. A relação transferencial, quando bem estabelecida, proporcionará as bases para a clínica e também será o fio condutor para a realização do diagnóstico. Nos casos de dermatite atópica, o diagnóstico diferencial entre sintoma e fenômeno psicossomático se mostra bastante importante para o andamento dos atendimentos. Entretanto, Lacan (1975) aponta para alguns perigos da busca de categorizar a experiência analítica:

(…) quando temos um caso, o que chamamos um caso, em análise, ele [Freud] nos recomenda não colocá-lo antecipadamente numa categoria. Gostaria que escutássemos, se vocês me permitem a expressão, com total independência a respeito de todos os conhecimentos adquiridos por nós, que sentíssemos o que temos a ver, a saber, a particularidade do caso. É muito difícil, porque o próprio da experiência é evidentemente preparar categorias. É muito difícil para nós analistas, homens e mulheres, com experiência, não julgar um caso que está começando a funcionar e elaborar sua análise, sem lembrar em relação a ele outros casos. Qualquer que seja nossa pretensa liberdade – pois nessa liberdade é impossível acreditar – é claro que não podemos varrer com o que é nossa experiência. Freud insiste muito sobre isso e se fosse compreendido, talvez isso implicasse em um modo diferente de intervenção – mas não foi compreendido.

Avisados dos riscos de se engessar a experiência clínica por uma pretensa busca por compreender aquilo que se apresenta aos olhos do praticante, o conhecimento sobre as categorias se mostra relevante para a experiência de trabalho com psicanálise, em virtude de auxiliar na direção de cura. O que é, então, sintoma? O que se configura, portanto, como fenômeno psicossomático?

 

Sintoma, de Freud a Lacan

A busca por compreensão sobre o sintoma, para a psicanálise, foi o que deu início ao seu próprio surgimento, a partir do trabalho de Freud com as pacientes histéricas. Naquele momento, Freud se viu na seguinte situação: como entender e explicar uma "doença" que não tem causa orgânica?

Para responder a esta pergunta, o pai da psicanálise percorreu diversos caminhos, com diferentes formas de escuta e intervenção com suas pacientes: utilizou o método hipnótico, fez uso da sugestão para dar fim aos sintomas desviantes, até chegar ao método da associação livre. Os pacientes muito ensinaram a Freud sobre a psicanálise ao longo de toda sua obra. Os impasses posteriormente encontrados na clínica também o desafiaram a ir além. A fala dos pacientes, ainda que tomada de diferentes formas ao transcorrer desta trajetória, sempre teve importância central para a psicanálise. É somente por meio dela que é possível ter acesso ao que há de mais particular: a relação do paciente com seu inconsciente.

Ao longo de sua obra, Freud foi reformulando a compreensão de sintoma. Maia, Medeiros e Fontes (2012) fazem uma retrospectiva da trajetória do conceito, que possui três momentos: a formulação antes de 1900, a do período entre 1900-1920 e aquela após 1920.

Os autores retratam que no primeiro momento, que data de antes de 1900 e é o início da experiência com as pacientes histéricas, Freud aos poucos constrói a ideia de que o sintoma é reflexo de um conflito psíquico gerado por uma fantasia, que não é lembrada quando o paciente se encontra em estado de vigília. Inicialmente, a escuta de suas pacientes o fez entender que a neurose era reflexo de uma experiência sexual real, prematura e traumática, que não é significada no momento de sua ocorrência e sofre recalcamento; posteriormente, quando em algum momento de vida tal lembrança vem à consciência, há um novo esforço em recalcá-la, por ser tratar de uma verdade insuportável. Este recalcamento dá origem ao sintoma primário. A representação psíquica da pulsão é tornada inconsciente, mas não o afeto associado a ela, que permanece livre causando dor ao sujeito. O sintoma primário traz estabilidade parcial ao psiquismo. No entanto, o retorno do material recalcado dispara um novo conflito psíquico, e novos sintomas surgem, associados ao sintoma primário. Este conjunto de novos sintomas Freud definiu como o adoecimento neurótico propriamente dito. A descrição da formação do sintoma é relatada no Rascunho K, que Freud endereça a Fliess (Freud, 1896/1996).

Diante dos fatos observados nos atendimentos dos pacientes e devido à sua própria auto-análise, Freud se viu impelido a abandonar a teoria da sedução generalizada e supor que o conteúdo que surgia na fala das histéricas se tratava de fantasias. O trauma, que dava origem à neurose, deixa de ser compreendido como um acontecimento real e passa a ser entendido como uma interpretação fantasística dos acontecimentos. Esta ideia, posteriormente, Freud formula como sendo a fantasia traumática, que é tida como real pelo paciente, e que faz parte de sua realidade psíquica. A fantasia traumática será a base de produção dos sintomas dos pacientes. Por fim, Freud também percebe a impossibilidade de domar o inconsciente: se antes acreditava que trazer à tona os conteúdos traumáticos possibilitaria sua elaboração e a cura definitiva das neuroses por meio de uma captura do inconsciente pela consciência, ele descobriu na prática que isso não seria possível. As limitações do tratamento analítico pela impossibilidade de subjugar o inconsciente e o reconhecimento da existência de fantasias, não situações reais de abusos, como produtoras de sintomas são relatadas na carta 69, a Fliess (Freud 1897/1996). Estas constatações levaram Freud a um avanço na conceituação de sintoma.

Em seguida, Maia et al (2012) retratam o segundo momento do conceito de sintoma para Freud. Entre os anos de 1900 e 1920, por influência das ideias de seu escrito que funda a psicanálise, A Interpretação dos Sonhos (1900/2001b), Freud relaciona as descobertas sobre a função dos sonhos com as do sintoma que, em última instância, reflete as leis do funcionamento do inconsciente. O sonho é a realização de um desejo de ordem sexual, assim como o sintoma. Em ambos, a ação dos mecanismos inconscientes de condensação e deslocamento torna nebulosa a percepção de realização do desejo. Tanto no sonho quanto no sintoma, o desejo é representado como uma mensagem a ser decifrada.

Freud relata que o sintoma advém da reconciliação de duas forças que entraram em choque: de um lado, o desejo inconsciente representado pela libido que clama por realização, do outro, o ego, que tem acesso à consciência e que administra a relação com a realidade, que impede sua satisfação (Freud, 1917/2014). À época, Freud ainda não havia formulado os conceitos de Superego e Id, que datam de 1923 (Freud, 1923/2011). O sintoma é resultado da distorção do desejo inconsciente inicial, tornado aceitável pela realidade.

Se antes de 1900 Freud já havia percebido que domar o inconsciente era uma tarefa impossível, isso não necessariamente se refletiu na sua forma de levar a clínica neste período que foi até 1920: por meio da associação livre, os pacientes falavam sobre aquilo que se passava em seus pensamentos, fala esta que Freud atribuía estar vinculada ao sintoma. No entanto, a força com a qual os pacientes estavam ligados aos seus sintomas e a grande dificuldade com que abriam mão destas formas de satisfação, quando conseguiam fazê-lo, fez com que Freud repensasse sua teoria. Como seria possível que o aparelho psíquico, regido pelo princípio do prazer, pudesse lidar com o desprazer e sofrimento do sintoma? A partir de tais achados da clínica, Freud passou a rever as ideias de um psiquismo que funcionaria pela égide do princípio do prazer em relação com o princípio da realidade, que buscasse manter a homeostase do sistema.

A terceira conceituação de sintoma para Freud, de acordo com os autores, se dá a partir de 1920, com a publicação que define a existência da pulsão de morte, Além do Princípio do Prazer (1920/2019). Nesta obra, onde a psicanálise mais se aproxima da biologia, Freud defende que os seres humanos possuem uma tendência ao estado inanimado, o nada de onde todos partem e a partir dele a vida se inicia, e o nada para onde todos migram, com a inevitabilidade da morte. Esta tendência do psiquismo pode ser entendida como o equivalente aos processos orgânicos: da mesma forma que as células do corpo têm um tempo de vida e passam a se degradar e morrer, a pulsão de morte exerce uma função homóloga, enquanto representação psíquica desta necessidade de finitude. Em uma análise, a pulsão de morte se expressa como resistência e compulsão à repetição. Freud percebeu na clínica que interpretar o significado dos sintomas não era suficiente e muitos pacientes permaneciam com dificuldade de abrir mão deles. Neste terceiro momento de sua obra, a partir dos achados clínicos e dos avanços teóricos subsequentes, Freud reformula a definição de sintoma e chega ao conceito definitivo de sua obra, que apresenta duas facetas: uma na qual permanece a ideia do sintoma como uma solução de compromisso, em que existe uma mensagem a ser decifrada, que Freud não abandona; e a outra, que diz sobre uma satisfação pulsional que persiste à interpretação, com um resto não analisável que insiste com uma satisfação que abriga o sofrimento.

Maia et al (2012) também fizeram um apanhado sobre o sintoma na obra de Lacan, que passou por três formulações, como em Freud: o sintoma como mensagem endereçada ao Outro, como gozo, e como produção criativa e possibilidade de reinvenção do sujeito. Para este trabalho, iremos nos atentar às duas primeiras formulações.

De acordo com Figueiredo e Machado (2000), na primeira clínica de Lacan, que data do início de seus trabalhos até meados dos anos 60, o sintoma foi definido como uma mensagem em forma de metáfora a ser decifrada na fala endereçada ao analista, tendo por base a relação transferencial. Lacan, que tem como formação inicial a Psiquiatria, conserva uma estreita relação com ela durante toda sua obra: partindo da nosografia psiquiátrica, ele buscou destilar das descrições de doenças a estrutura do sujeito, procurando detectar na fala do paciente aquilo que organiza seu modo de lidar com a castração. Neste momento, o Simbólico era entendido como o registro que organizava a estruturação do psiquismo humano, por meio da captura da cadeia significante. O inconsciente lacaniano é estruturado como linguagem, como o lugar do Outro, portanto, o sintoma como formação do inconsciente é uma mensagem forjada deste conteúdo que só pode ser decifrado a partir da compreensão de como se estrutura este Outro.

Com o avanço dos trabalhos a partir de 1964 e com o aprofundamento de seus estudos na área da topologia, Lacan, como Freud, se deparou com os limites da possibilidade de significação do sintoma. Ainda que a linguagem ofereça múltiplas oportunidades de ressignificação, um limite se impõe (Maia et al, 2012). Sobra um resto não assimilável da pulsão que exige satisfação e é refratária a qualquer tentativa de ser significada, o que Lacan definiu como o Real que se impõe, o impossível. O sintoma se constitui como resposta à falta do Outro, da linguagem, sendo uma tentativa de tamponamento deste buraco. O sujeito, por sua vez, também se estrutura a partir da percepção de ser faltante: ao outro materno falta, então a ele também. A falta é, portanto, um dado de estrutura, do sujeito e da linguagem (Figueiredo & Machado, 2000). O sintoma vai ser reflexo da falta própria da estrutura, contendo em si a representação da verdade do sujeito. O resto não assimilável e significável do sintoma vai ser definido por Lacan como gozo, que contém em si uma satisfação por meio do sofrimento e vai ser o modo pelo qual a pulsão de morte se satisfaz (Maia et al, 2012). Enquanto o sintoma abriga a vida por se configurar de forma a responder a uma falta essencial do sujeito, o gozo abriga a morte, já que direciona ao caminho da destruição por meio de uma satisfação impossível, pela via do sofrimento.

O sintoma, portanto, se localiza pairando entre a ordem do simbólico e do real. É uma formação do inconsciente passível de interpretação, ainda que até certo ponto, devido aos limites de significação da pulsão. O sintoma revela a verdade do sujeito, seu desejo. Por se apresentar como uma formação que responde à falta estrutural do Outro, como tentativa de tamponar esta falta, denuncia o limite do recobrimento do real pelo simbólico. Esta tarefa que insiste em direção ao impossível da significação se revela como o gozo inerente ao sintoma, e ainda que traga sofrimento ao sujeito, se sustenta porque, acima de tudo, é fonte de satisfação. O trabalho com o sintoma em um processo analítico possibilita ao sujeito ter acesso à sua verdade e ressignificar seus modos de incidência na linguagem. Alterando a relação com o Outro, as modalidades de gozo podem se transformar, abrindo um caminho para que a relação com o mundo e com o desejo não seja adoecedora.

 

Fenômeno Psicossomático

Sintoma e fenômeno psicossomático são formações do inconsciente que apresentam uma importante diferença no que concerne ao manejo na clínica: enquanto o sintoma é passível de interpretação e é regido pelas leis do deslocamento e condensação, o fenômeno psicossomático se manifesta como uma escrita enigmática no corpo que apenas evoca o significante, não tendo um significado constituído para o sujeito (Lacan, 1975). Myssior (2007) comenta que a lesão psicossomática não é passível de interpretação porque remete à uma inscrição sem mediação do simbólico, que parte do registro imaginário e é gravada diretamente no corpo. Em seus escritos, a autora relata sobre as possíveis origens da lesão psicossomática e resgata os escritos de Lacan, destacando a estruturação narcísica do FPS, mais especificamente como um acidente no período do autoerotismo. A libido, que neste momento da estruturação psíquica do sujeito é investida no eu, na lesão psicossomática parece ter sido investida e fixada em forma de bloco no corpo, sem mediação da palavra.

Nicolau (2008) retoma a conceituação de psicossomática em Lacan a partir das obras "O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise" (1978/1995), "As psicoses" (1981/1997) e "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise" (1973/1996). Tendo por base os textos do autor, ela esclarece que o fenômeno psicossomático é produzido pela ausência de afânise do sujeito, ou seja, pela inexistência de intervalo entre os significantes primordiais, S1 e S2. Neste processo, o recalque originário do significante fálico não ocorre: falha o processo em que o desejo da mãe é substituído pelo Nome-do-Pai, ocasionado pela cristalização do par. A castração, processo que permite à criança ascender à rede simbólica e metaforizar o desejo do Outro, não acontece e o sujeito permanece no lugar de falo, ficando preso ao discurso do outro e impossibilitado de alcançar a condição de desejante. Se esta operação de substituição de S1 por S2 inaugura o deslizamento da cadeia significante, implica na queda do objeto a (objeto de causa do desejo) e no nascimento do sujeito, no fenômeno psicossomático, o engessamento da função materna e metáfora paterna paralisa o processo. A hiância entre significantes dá precedência à emergência do sujeito. Sem o processo de separação, o sujeito permanece alienado ao desejo da mãe. O estabelecimento de relações de objeto fica seriamente prejudicado em virtude da permanência do objeto a. A incidência do discurso do Outro vem como impositiva ao sujeito, e sobre isso, Myssior (2007) diz:

Se há uma forte imposição sobre a criança num tempo muito precoce da constituição, encontra-se aí um sujeito sem defesas, sem compreender o que se demanda dele. Sem conseguir subjetivar o que diz a mãe, ocorre uma fixação de certas palavras, que se aglomeram em bloco, sem intervalo, congelando-se numa holófrase, cujo efeito poderá se marcar, imprimindo-se sobre o corpo de forma totalmente enigmática: como lesão. Quando não é possível perguntar pelo desejo do Outro, a criança não pode se articular à falta. (p.60)

A desarticulação ao campo da falta muito aproxima o fenômeno psicossomático da categoria das psicoses. Nicolau (2008) cita o seminário "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise" (Lacan, 1973/1996) para relatar que a holófrase do par S1 e S2 está implicado no surgimento do fenômeno psicossomático, da psicose e das debilidades mentais porque paralisa o deslizamento da cadeia, incidindo sobre o processo do nascimento do sujeito e do desejo. No entanto, embora haja esta condição em comum, a posição subjetiva em cada um dos casos é diferente. Se na psicose a metáfora paterna se mostra ausente e impede a operação da separação, no FPS a falha do Nome-do-pai não é total, incidindo apenas sobre uma parte específica do corpo e do discurso, livrando o sujeito da psicose.

Ainda sobre o fenômeno psicossomático, Lacan (1975) afirma que a lesão no corpo se apresenta como algo da ordem do escrito, uma escrita que se coloca como um enigma. Esta forma de escrita, hieroglífica, precisa ter seu sentido construído para passar ao campo do interpretável, ascendendo à categoria de sintoma, se possível. Esta passagem se daria por intermédio da revelação do gozo específico que está presente na fixação do fenômeno psicossomático. Nicolau (2008) aborda alguns teóricos que tratam das origens e dos desdobramentos do FPS, e diz:

Com toda essa profusão de teorias, embora tenhamos encontrado algumas explicações, não encontramos nas teses examinadas uma resposta para os impasses clínicos, diante de um sujeito entregue a um gozo mortífero, concentrado em seu corpo. O que Lacan nos ensina é que precisamos considerar uma perda de gozo, indicando a condição do sujeito como falta-a-ser, para que o sujeito exista nas entrelinhas da rede significante. Quando o sujeito está petrificado por sua doença, seu corpo se torna fonte ilimitada de gozo, apontando para um corpo onde a palavra desertou, não havendo uma escrita legível. Tomado desta maneira, o órgão funciona como sendo de um outro, feito para gozar como se pertencesse a esse outro. Pensamos, a partir daqui, a possibilidade de formular articulações entre corpo e gozo para encontrar, na direção da cura, a possibilidade de reduzir este gozo. (p.975)

A autora coloca que gozo e desejo se encontram em pólos opostos. Enquanto o primeiro tem referências a um período anterior ao significante, o segundo remete à existência do Outro para o sujeito, às relações de objeto, ao deslizamento da cadeia significante, por fim, à marca do significante no psiquismo. O fenômeno psicossomático seria reflexo da falta do significante, que por falta do processo de simbolização ou por problemas nesta operação, há fixação do gozo no corpo fora do campo da linguagem.

 

Conclusão

A atuação como residente no Hospital de Clínicas, no contato com pacientes com dermatite atópica do ambulatório de Dermatologia Infantil, possibilitou o surgimento de questionamentos quanto à clínica psicanalítica, sobre a natureza do que se apresenta ao psicanalista: sintoma ou fenômeno psicossomático.

O diagnóstico diferencial nesta clínica perpassa pela ordem da relação com o objeto de estudo da psicanálise, na medida em que o trabalho com o inconsciente se dá por via da fala, que expressará a realidade psíquica do sujeito. O trabalho com a realidade psíquica nos faz questionar o estatuto de verdade da observação fenomenológica daquilo que se apresenta como adoecimento, ou seja, a enfermidade/sintoma como descolado de um contexto de representações subjetivas, como na clínica médica. A realidade psíquica do sujeito abarca o que há de mais singular em sua relação com o mundo: o desejo como aquilo que condiciona a percepção no universo da linguagem, e a fantasia como reflexo do desejo e mediadora da relação entre sujeito e objeto.

O desejo tem um papel central em um processo analítico por ser o que fundamenta o nascimento do sujeito. O diagnóstico em psicanálise é um processo pelo qual o praticante da psicanálise identifica a posição do sujeito frente a castração. Esta, por sua vez, é uma operação que permite o nascimento do desejo no ser humano. Diagnosticar implica também levar em consideração as especificidades não só de cada um em sua singularidade, mas também o momento de vida do sujeito. Na infância, ainda em processo de constituição da subjetividade, a criança está construindo sua posição frente ao Outro.

A relação com os pais na infância pode ser determinante no surgimento de doenças. A doença da criança pode ser uma resposta à verdade do casal parental, ou à subjetividade da mãe. Diante desta última possibilidade, a doença somática na criança dá à mãe um total desconhecimento sobre sua própria verdade. A partir deste fato, surgiu o questionamento se toda doença somática seria uma resposta à subjetividade materna. Diante disso, conhecer mais sobre sintoma e fenômeno psicossomático se mostrou essencial para pensar tal questão.

A experiência como praticante da psicanálise na residência, no atendimento de crianças e adolescente em um hospital, trouxe a necessidade de se pensar na relação com a equipe de saúde e com as famílias diante da demanda de cura das doenças. O atravessamento da demanda por cura é presente a todo momento no trabalho no hospital. Aprender a lidar com esta questão auxilia na prática da psicanálise no contexto hospitalar, já que o trabalho do psicanalista visa caminhar com o paciente em direção a um saber inconsciente, sobre seu desejo.

Ainda que as definições de categorias como diagnóstico, sintoma e fenômeno psicossomático sejam fundamentais para a condução da clínica, é importante que elas não engessem a experiência dos atendimentos.

Sobre a definição de sintoma, de Freud a Lacan, o conceito passou por três fases na obra de ambos. Em Freud: o sintoma como reflexo psíquico de uma fantasia de origem sexual (antes de 1900); sintoma como solução de compromisso, que visa a realização de um desejo (entre 1900 e 1920); e sintoma como solução de compromisso e satisfação pulsional que persiste à interpretação e abriga sofrimento (após 1920). Em Lacan, o sintoma é primeiramente visto como mensagem endereçada ao Outro, como gozo e, por fim, como produção criativa e possibilidade de reinvenção do sujeito.

Por fim, a definição de fenômeno psicossomático como reflexo da holófrase dos significantes primordiais, função materna e metáfora paterna, que tem efeitos na instituição da cadeia simbólica. A falha nesta operação interfere no nascimento do sujeito, do desejo, que fica preso ao discurso do outro, sem possibilidade de metaforizá-lo. Sem o significante, a incidência do discurso do outro se dá diretamente sobre o corpo. A possibilidade de trabalho com o fenômeno psicossomático se dá por via da identificação do gozo implicado na lesão no corpo. Por essa via, é possível que o fenômeno psicossomático possa ascender à categoria de sintoma e, assim, se tornar interpretável. É necessária, portanto, que o paciente construa um sentido para sua lesão, por meio do trabalho analítico.

 

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1 Psicóloga especialista pelo Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Atenção à Saúde da Criança e do Adolescente – UFPR e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente - UFPR, nathy.ly@gmail.com.
2 Psicólogo integrante do Serviço de Psicologia da Unidade Multiprofissional do CHC-UFPR e preceptor do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Atenção Hospitalar no Eixo de Concentração de Atenção à Saude da Criança e do Adolescente, mvzportela@gmail.com.

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