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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.23 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

Construir, comunicar, transmitir: um caminho possível para o analista em uma equipe multidisciplinar

 

Construction, communication, transmission: a possible path for a psychoanalyst in a multidisciplinary team

 

 

Wilian Donnangelo FenderI; Maria Lívia Tourinho MorettoII

IUniversidade de São Paulo - São Paulo/SP - wfender11@gmail.com
IIUniversidade de São Paulo - São Paulo/SP - liviamoretto@usp.br

 

 


RESUMO

Comunicar sobre um tratamento psicanalítico apresenta dificuldades. Desde Freud, transformar o material das sessões em um material comunicável e transmissível é um desafio. Comunicar para uma equipe em um hospital algo que acrescente ao tratamento também se faz tarefa árdua. Deste impasse, o presente artigo tem como objetivo apresentar a relação que pode se estabelecer entre a construção do caso clínico, sua comunicação e a transmissão que pode resultar deste processo, entre pares ou no contexto de uma equipe multidisciplinar. Nossa hipótese é que o analista, ao apropriar-se da noção de construção do caso clínico em psicanálise e de seus efeitos, pode realizar mais facilmente a comunicação. Para isso, apresentaremos uma leitura de como essas relações são encontradas no caso clínico médico, no caso clínico em psicanálise e na construção do caso clínico como trabalho em equipe nas instituições. Por último, discutiremos a comunicação do caso com base no que foi anteriormente exposto, apoiando-nos na noção de transmissão da psicanálise para então lançar uma proposta a fim de atenuar o impasse levantado. Concluímos que, para comunicar para a equipe, é preciso um refinamento além do que se alcançou com a construção do caso e com o saber que daí resultou.

Palavras-chave: construção; caso clínico; transmissão; comunicação; psicanálise.


ABSTRACT

Communicating a psychoanalytic treatment has its difficulties. Since Freud, converting the material from sessions into a communicable and transmissible material is a challenge. Communicating something important to the treatment of a patience to a hospital team is also tough. Given this conundrum, the object of this article is to present the relation between the construction of the clinical case, its communication and the transmission that can result from this process, between peers or in the context of a multidisciplinary team. Our hypothesis is that the analyst can more easily communicate by assimilating the notion of psychoanalytic construction of a clinical case. To that end, we will present an interpretation of how these relations are found in the clinical case in medicine, the clinical case in psychoanalysis and the construction of a clinical case as a team endeavor in institutions. Lastly, we will discuss the communication of the case based on what was previously presented and on the transmission of the psychoanalysis, ending with a proposition about how to attenuate the conundrum identified. Our conclusion is that, in order to communicate with a team, a refinement beyond that obtained with the construction of the case and the resulting knowledge is required.

Keywords: construction; clinical case; transmission; communication; psychoanalysis.


 

 

Introdução

Desde que a psicanálise foi inventada por Freud no final do século XIX, a comunicação de como ocorre o tratamento por ela proposto, bem como de sua eficácia terapêutica, enfrenta desafios. Falar sobre o que ocorre nas sessões psicanalíticas não é tarefa simples. O que comunicar? Como fazê-lo? Compartilhar com um colega os avanços de um tratamento, aquela lembrança esclarecedora e terapêutica que o paciente tem após uma intervenção, ou uma sessão repleta de associações importantes para a condução do caso é um exercício árduo e muitas vezes frustrante, uma vez que nem sempre o interlocutor apreende o que se quer transmitir. Consideramos que esse desafio existe porque para comunicar algo sobre as sessões, pela fala ou pela escrita, é preciso realizar um trabalho diferente daquele realizado pelo analista na sessão analítica.

Observamos a mesma problemática em outro contexto. Desde que os psicanalistas passaram a integrar o meio hospitalar e as equipes de saúde, instaurou-se uma necessidade de diálogo entre duas vozes substancialmente diferentes: a voz que representa o saber médico e a voz que porta o saber psicanalítico. Esse diálogo ocorre, por exemplo, quando um analista membro de uma equipe multidisciplinar é convocado de tempos em tempos às reuniões de equipe ou interconsultas, a fim de comunicar sobre os casos que atende e assim contribuir com o tratamento do paciente internado. Diante de uma interpelação da equipe tal qual: "o que a psicologia tem a dizer sobre esse caso?", observa-se novamente a dificuldade de uma comunicação que não seja um mero relato da história do paciente, uma vez que, na maioria das vezes, o simples relato da história não contribui em nada para a condução do caso.

Em vista desses impasses, a construção do caso clínico tem sido investigada e proposta como uma maneira de auxiliar o psicanalista no diálogo entre os saberes concernentes à instituição hospitalar, bem como na comunicação do caso e na transmissão da psicanálise - noções não idênticas, como discutiremos mais adiante. Dessa forma, em razão do impasse que apontamos, o presente artigo tem como objetivo apresentar a relação que pode se estabelecer entre a construção do caso clínico, sua comunicação e a transmissão que pode resultar deste processo para os pares do psicanalista ou membros de uma equipe multidisciplinar em hospitais. Temos como hipótese que o analista, ao apropriar-se da noção de construção do caso clínico em psicanálise, pode realizar mais facilmente a comunicação da qual falamos, e assim transmitir a psicanálise, a partir do efeito resultante desse processo.

Para isso, apresentaremos uma leitura de como essas relações podem ser encontradas ao longo da história dos casos clínicos em psicanálise. Isso implica realizar um percurso desde a passagem do quadro clínico da doença para o caso clínico médico, até alcançarmos os casos clínicos freudianos e, posteriormente, as contribuições lacanianas para os mesmos. Em seguida, nos debruçaremos sobre a metodologia da construção do caso clínico aplicada nas instituições de saúde, extraindo daí as mesmas relações. Por último, discutiremos a comunicação do caso com base no que foi anteriormente exposto, apoiando-nos em algumas ideias relativas à transmissão da psicanálise, para então terminarmos lançando alguns elementos ao impasse levantado acerca da comunicação pelo analista a uma equipe multidisciplinar.

Do quadro da doença ao caso clínico médico

A noção de caso clínico surge na passagem da denominada medicina das espécies para a medicina hospitalar, dentro de um processo maior que Foucault (1980/2008) denominou como o Nascimento da Clínica, também título de uma de suas obras. Antes disso, o termo que designa melhor a maneira como o doente era abordado é o quadro das doenças (Barroso, 2003).

Até meados do século XVIII, o discurso médico, inserido em uma matriz epistemológica naturalista e classificatória, pretendia a classificação das doenças por meio da observação. Era uma ciência pelo exercício e por decisões do olhar: ver, isolar traços, reconhecer os padrões idênticos e os diferentes. Esse processo, somado ao raciocínio, determinava o conhecimento científico em questão, como descreve Foucault (1980/2008).

Ou seja, nessa maneira de abordar o doente, ele é levado em conta para ser colocado entre parênteses. A subjetividade não importa, mas sim um saber sobre o geral. As doenças eram estudadas em sua singularidade; contudo, este singular ficava longe de constituir um caso. Para Foucault (1980/2008, p.14): "Significava, antes, as variedades qualitativas das doenças a que vêm se acrescentar, para modelá-las em segundo grau, as variedades que os temperamentos podem apresentar".

Foi somente décadas à frente, em um período em que a medicina passou a se institucionalizar nos hospitais, que encontramos o que podemos chamar de caso clínico médico. Foi preciso construir um saber sobre as doenças, de maneira que fosse possível transmitir esse conhecimento. Ou seja, com a necessidade de se ensinar a medicina, foi inevitável que um corpo de saber sobre as doenças passasse a ser constituído no que veio a se configurar como a medicina pedagógica, como nos apresenta Barroso (2003). O caso clínico médico nasce, então, da necessidade de se ensinar. Ainda que seja preciso diferenciar ensino e comunicação, podemos considerar que o caso clínico nasce da também necessidade de comunicar o que já era sabido. Uma comunicação que descrevia a patologia, mas também aquele que a apresentava.

É o que observamos na definição de Foucault (1980/2008) de caso clínico, a saber, um conjunto de processos patológicos e suas reações que se desencadeiam de modo único em um organismo. Na mesma esteira, Dunker (2011) define o caso clínico médico como a questão a ser decidida e tratada, mas também como o conjunto de fatos que compõe a história da doença e do tratamento. Assim, o surgimento do caso clínico na medicina implica algo a mais que a descrição do quadro da doença, acrescentando a este a construção de um corpo de saber a ser comunicado e, assim, transmitido entre seus pares. Observemos, no entanto, que a construção de um caso, neste momento, ainda tem sentido diverso do que trabalhamos em psicanálise.

O caso clínico em Freud

É somente com Freud que podemos observar um processo de construção sendo aplicado aos casos. Para Barroso (2003), mesmo que Freud tenha mantido inicialmente em seus textos certa influência classificatória advinda de seus grandes mestres pertencentes às tradições científicas da neurologia, isso não impediu que o psicanalista começasse a se distanciar de sua origem. Na coleção de casos clínicos em Estudos sobre a Histeria (Freud, 1895/2017), a preocupação do autor em investigar a origem dos sintomas recolhendo fragmentos da história da paciente, e não apenas visando classificar o quadro, já denota esse afastamento epistemológico.

Para Barroso (2003), o fator decisivo nessa passagem do quadro da doença ao caso clínico psicanalítico foi o encontro de Freud com o psiquiatra francês P. Charcot na França em meados de 1890. Freud propôs uma construção em busca da etiologia particular de cada caso, enquanto Charcot realizava apresentações das pacientes histéricas a fim de demonstrar sempre o mesmo funcionamento psíquico. O que vamos observar nos casos clínicos freudianos publicados nos anos seguintes é exatamente algo diverso de uma mera apresentação da doença. Observamos a descrição dos sintomas, a busca por sua causa (etiologia) e os procedimentos de tratamento, intercalados com o relato da história de vida do doente, estabelecendo assim uma estrita conexão entre ambos. Ou seja, realizando uma grande construção.

Apesar de não ter publicado nenhum texto sobre a construção de casos clínicos, Freud (1937/2018) dedicou um texto à noção de construção em análise, que mantém estrita relação com o que também é alcançado com a construção de casos. Façamos um rápido desvio para examinar essa noção. A construção difere da interpretação. Enquanto esta trata um elemento isolado, como um ato falho ou um sonho, a construção visa recolher indícios deixados pelo paciente nas sessões para compor um fragmento que foi esquecido, tal qual uma cena infantil. Um trabalho, de acordo com o autor, semelhante ao de um arqueólogo que reúne os escombros para recompor uma cidade soterrada.

Da comunicação dessa construção para o analisando, decorrem alguns efeitos importantes. Freud (1937/2018) enfatiza que a exatidão de uma construção realizada e comunicada pode ser verificada de maneira mais produtiva não mediante respostas como o "sim" ou "não" do paciente, mas com confirmações indiretas, como por exemplo em situações nas quais o analisando traz um material com conteúdo aparentemente divergente que no entanto confirma a construção, quando o analisando responde com algo semelhante a "não havia pensado nisso antes", ou quando o analisando piora seu quadro atual ou quando passa a apresentar fortes resistências. Outro efeito que devemos enfatizar é a similaridade que passa a existir entre uma construção e o delírio na psicose. Sabemos que o delírio é um reinvestimento da realidade com objetivo de cura, já que algo da realidade não suportada foi deixado para fora. Dessa forma, a construção, nesse caso mais próxima a uma desconstrução, teria como objetivo liberar as desfigurações aplicadas a um fragmento de verdade histórica esquecido.

Temos, assim, três dimensões da noção de construção em análise que serão muito importantes para pensarmos a construção de caso: a verossimilhança alcançada pela reconstrução tal qual a de um arqueólogo, o critério de eficácia pela confirmação indireta e a aproximação com o que não pode ser lembrado. Para Dunker (2011, p.541, parênteses nosso), "essas três dimensões no método de tratamento (construções em análise) são também aplicáveis ao método de investigação (construção do caso clínico)".

Em suma, na construção dos casos clínicos freudianos observamos a aplicação da noção de construção, atravessada por influências de seus mestres e uma nova postura de Freud em relação à psicopatologia. Dunker (2011) indica que essas influências vêm de duas grandes tradições: uma mais descritiva e clínica, que vai de Charcot a Kraepelin, e outra chamada de psicoterapêutica - composta pela prática confessional e a literatura de testemunho, em que a ideia de conversão (transformação) é central -, que passa por Pinel e vai de Mesmer a Liembeaut. Para o autor, ainda, essas duas tradições se misturam sob o terreno do romance e, mais especificamente, do romance policial, contemporâneo de Freud. Nele, o modo de contar a história por meio de um mistério central, como nos contos de Arthur Conan Doyle em suas histórias de Sherlock Holmes, seria análogo aos casos clínicos freudianos. Aqui se encontra a primeira semelhança com a noção de construções em análise que apresentamos acima: o efeito de verossimilhança, ou um "efeito de verdade", que possuem os casos clínicos freudianos.

Do ponto de vista formal, observamos nos casos clínicos freudianos, principalmente nos mais longos, determinadas estratégias de composição literária e formas de apresentação do material. Zanetti e Dunker (2018) citam, entre outros exemplos, a exposição em duas partes, uma mais descritiva e outra mais interpretativa, o trabalho com fragmentos e indícios, o detalhamento dos primeiros movimentos do caso, o suspense, e a revelação de elementos de maneira gradual.

A preocupação com como comunicar um caso parece estar presente desde o início da psicanálise. No prefácio do caso Dora (Freud, 1905/2017), o autor explicita que a publicação de seus casos clínicos era, à época, uma tarefa problemática. As dificuldades eram "em parte de ordem técnica, e em parte decorrente[s] da própria natureza das circunstâncias" Freud (1905/2017; p.174). Essas dificuldades seriam consideráveis, de acordo com o autor, para um médico que conduziria seis ou até oito tratamentos psicoterapêuticos de uma vez, sem poder tomar notas durante as sessões para evitar a desconfiança no paciente e para não perturbar a si mesmo na apreensão do material que lhe chega pela escuta. Um pouco adiante no texto, Freud explica o que fizera para superar as dificuldades de comunicação:

"[...] informarei de que modo, neste caso clínico, venci as dificuldades técnicas para a sua comunicação. [...]. No caso que segue, dois fatores vieram em meu auxílio: primeiro, a duração do tratamento não se estendeu por mais de três meses; segundo, os esclarecimentos se agruparam em torno de dois sonhos - no meio e no final da terapia - anotados logo depois da sessão, e que forneceram um apoio seguro para a trama de interpretações e lembranças a eles ligados".

O autor acrescenta que "a história clínica mesma redigi de memória, após o fim do tratamento, enquanto minha lembrança estava ainda fresca e avivada pelo interesse na publicação" (Freud, 1905/2017, p.177). O registro não é absolutamente fiel em termos fonográficos, já que escrito de memória, mas mesmo assim, reivindica "alto nível de confiabilidade, pois nada de essencial foi alterado, exceto alguns lugares, nomes e a ordem dos esclarecimentos em prol da coerência" (Freud, 1905/2017, p.178).

De qualquer forma, temos que as dominantes discursivas de um caso, juntamente com suas estratégias formais e literárias, acabam por desempenhar uma importante função de transmissão. Esse era o objetivo de Freud com os casos clínicos. Que transmissão seria essa? Para Freud (1905/2017, P.176, grifo nosso), ao construir um caso clínico se está contribuindo para a transmissão referente à psicopatologia e não criando um texto para o prazer literário, como supunham certos médicos:

"Bem sei que nesta cidade, ao menos - existem muitos médicos que (coisa bem revoltante) não veem em tal história clínica uma contribuição à psicopatologia das neuroses, mas um roman à clef (novela ou romance a depender da tradução) destinado à sua fruição particular."

Para Dunker (2011), mesmo que as modalidades discursivas que compõe um caso clínico - como expusemos acima - constituam um novo gênero literário, o caso clínico faz parte de um sistema de transmissão próprio.

Partindo das dificuldades técnicas de Freud em comunicar o caso, ou seja, em construí-lo para tal, concluímos que, superadas essas dificuldades, na melhor das hipóteses, transmite-se algo em torno da psicopatologia. Dessa lógica, podemos também considerar que, ao realizar essa comunicação transmite-se também a psicanálise, já que é o método para a abordagem dessa psicopatologia. A construção do caso e sua publicação (podendo implicar aí a comunicação e a transmissão) permitem o prolongamento do discurso psicanalítico (Dunker, 2011), ainda que a publicação não corresponda à transmissão.

Lacan e a construção do caso clínico

Lacan não publicou casos clínicos além do caso Aimée que trabalha em sua tese de doutorado Lacan (1932/1999). Porém, temos os casos clínicos que Lacan retoma, sugerindo uma maneira de leitura - e, por consequência, construção - diversa. Se com Freud podemos assumir que a construção do caso é a montagem de sua trama enquanto romance, com Lacan a construção do caso seria a construção de sua estrutura, tendo o conto como modalidade literária e o mito como modalidade narrativa, conferindo assim a possibilidade de pensar os casos de maneira estrutural.

De acordo com Dunker (2011), a construção do caso clínico pensada por Lacan seria a construção da lógica do caso e não do objeto em si e de suas qualidades. Isso, pois, de acordo com o método estrutural proposto por Lévi-Strauss, a maneira de se descrever a forma lógica de um objeto deve conter uma linguagem superior à linguagem que seria usada para descrever o objeto em si. Como retomaremos adiante, essa maneira de pensar o caso clínico tem influência direta no processo entre as sessões psicanalíticas e a sua comunicação, ou seja, sobre o caso. Dessa maneira, quanto mais versões puderem ser escritas sobre um caso, mais claras se tornam as constantes estruturais (mitemas).

Isso, pois, diferentemente da construção do caso clínico freudiano, o caso clínico com Lacan se preocupa mais com a consistência interna - a montagem lógica de sua estrutura - do que com a construção de uma trama - romance - em que a criação de um mistério, particular àquele caso, é mais uma ferramenta de transmissão. Dessa maneira, o método estrutural de Lacan exclui a dimensão da verdade, ou seja, o efeito de verossimilhança (Dunker, 2011).

Há outro fator importante na construção de casos clínicos do ponto de vista lacaniano. Seguindo com Dunker (2011), a reserva de Lacan em escrever casos não se deve somente ao limite do método estrutural para a escrita, mas também à problematização de como transmitir a psicanálise com uma maneira própria à experiência de análise. Para o autor, o passe, proposto por Lacan, seria uma tentativa de cobrir essa problemática, já que consiste no relato do percurso da análise de um analisante a dois outros analistas em formação que então transmitem a um júri. Ou seja, uma maneira de transmissão em que a dimensão da verdade pudesse existir sem estar condicionada ao triunfo terapêutico ou às regularidades da técnica ou da clínica.

Notamos, tanto em Freud quanto em Lacan, que a construção do caso clínico está inevitavelmente relacionada à transmissão. Ou seja, construir um caso, tendo em mente uma posterior comunicação deste, nos traz a problemática da transmissão.

Até aqui, trouxemos o caso clínico pensado por Freud e Lacan enquanto texto a ser publicado, bem como problemáticas de sua transmissão. No entanto, principalmente nas últimas três décadas de produção em psicanálise, a construção do caso clínico vem sendo pensada pelos psicanalistas como um método de trabalho em equipe no contexto das instituições de saúde. Veremos adiante que, apesar de estarmos falando de princípios semelhantes, sua aplicação revela particularidades, tanto em termos da construção quanto em termos da transmissão.

A construção do caso clínico enquanto método de trabalho nas instituições de saúde

A construção do caso clínico nas instituições de saúde, principalmente nas instituições de saúde mental - contexto que detém a maior parte das publicações na área -, se dá como uma via de trabalho realizada pelo psicanalista em conjunto com a equipe. Essa ideia surge em meados da década de 90, centralizada pelo psiquiatra e psicanalista italiano Carlo Viganó, dentro do contexto da reforma psiquiátrica, da luta antimanicomial e do crescimento do mercado farmacológico. Em trabalhos publicados a partir deste período, Viganó (1999, 2003, 2010a, 2010b) apresenta a construção do caso clínico nas instituições como uma possibilidade de fazer frente à vertente psiquiátrica puramente organicista, preocupada mais com a eliminação dos sintomas do que com o tratamento do paciente em si.

A partir da proposta da construção do caso em equipe, a singularidade de cada caso torna-se o cerne do tratamento. Para isso, operadores teóricos e clínicos da psicanálise como a demanda (Viganó, 1999 e 2003), a transferência (Viganó, 2010a), sintoma e tempo lógico do sujeito e do tratamento (2010a e 2010b) estariam a serviço da construção do caso clínico realizada pelo analista. Para poder trabalhar com estes operadores, o analista precisa recolher de todos os protagonistas do caso, a saber, o paciente, os familiares, a instituição, a equipe de saúde, os elementos de suas narrativas que possam ser cotejados, a fim de elucidar seu ponto cego, ou seja, o que não é relatado pela fala. Este é um procedimento que pode ser dividido em etapas, que podem incluir apresentações pela equipe ao analista - e vice-versa - de suas narrativas particulares acerca do caso, após as quais novas formulações são realizadas e comparadas com o que o analista já recolhera do paciente nas entrevistas psicanalíticas.

Com o recolhimento das narrativas e de seu cotejamento, a construção é realizada, alcançando certa "construção formal [...] em que os conceitos são conectados logicamente" (Viganó, 2010a, p.2). Assim, a construção de um caso parte, inevitavelmente, do relato da história do sujeito. Porém, é importante enfatizar que quando falamos de um caso clínico construído, falamos de algo que parte dessa história para transformar-se em caso clínico. Tais conceitos conectados logicamente, como denomina o autor, já estão associados ao caso. Figueiredo (2004) propõe um binômio (história - caso) para pensar essa transformação. Para a autora, um relato repleto de detalhes, cenas e conteúdos é a história. Já o caso seria o produto do que se extrai das intervenções do analista na condução do tratamento e do que é decantado de seu relato. Portanto:

"a história pode ser fatigante se muito detalhada e o caso será morto se for reduzido apenas a uma fórmula [...], (assim) uma formalização necessária do relato não se reduz a uma teorização formal nem a uma elaboração de saber sobre os problemas do paciente. Pelo contrário, trata-se de colocar em jogo os significantes do sujeito, suas produções com base em suas elaborações em análise e a reposta do analista em seu ato [...] resultando assim em uma composição esquemática". (Figueiredo, 2004, p.80)

Ocorre assim que o caso clínico, além de provir da história do paciente, é atravessado pela história do tratamento. O que decanta desse atravessamento, marcado pelo ato do analista e sua condução, é também algo que pode, a posteriori, compor o caso. Ou seja, o sujeito que chega ao consultório de psicanálise ou que é atendido nas instituições de saúde não configura, ainda, um caso, mesmo que compareça a todas as sessões. Para que o sujeito se torne um caso é necessária uma torção entre o que o sujeito relata e o que está em seu discurso. Para Figueiredo (2004), é ao realizar essa torção que se pode inferir a posição subjetiva, recuperando através do dito (enunciado) seu dizer (enunciação).

Figueiredo (2004) e Bursztyn e Figueiredo (2012) trabalham com os elementos das narrativas que nos auxiliam a inferir o sintoma e com ele o desejo inconsciente não realizado e a parcela de Real aí imbricada. Para as autoras, seguir nessa direção nos possibilita construir o caso a partir desses elementos e orientar assim a condução do tratamento. "O sujeito não vai sem sintoma e o sintoma não vai sem sujeito" (Figueiredo, 2004, p.77). Sobre esse ponto, Viganó (2010b) acrescenta que ao realizar essa desestruturação do sintoma na construção de um caso clínico obtém-se o efeito de uma "desconstrução transmissível" (2010b, p. 478), ao se extrair do sintoma "esse algo como causa de desejo, que através da ressonância da palavra, encontramos no mensurável o não mensurável" (Viganó, 2010b, p.477).

Queremos acrescentar a este ponto nossa consideração de que, realizada a construção do caso, ou seja, no momento em que se torna possível conectar os conceitos teóricos e clínicos logicamente - conectar o sintoma à demanda e à transferência, por exemplo - se estará construindo um caso e, dessa forma, possibilitando uma transmissão. Cremos que relacionar esses elementos teóricos e clínicos de uma maneira lógica para aquele caso tem como efeito a produção de um saber para o analista, que pode então comunicá-lo e transmiti-lo.

Viganó (1999) nos fornece um exemplo de um trabalho em equipe de construção que a partir de uma comunicação se tornou uma transmissão, auxiliando assim a condução de um caso, ainda que o autor não explicite de tal maneira. Em uma instituição psiquiátrica, um jovem com diagnóstico de psicose havia fugido. A equipe se reuniu e realizou então uma construção, ordenada em dois momentos: no primeiro, a equipe constatou que, para o paciente, na instituição só havia muros dos quais era preciso fugir. Ou seja, o interesse estava para fora. No segundo, elaborou-se um projeto: "vamos até a cidade procurá-lo e dizer que existimos". Combinaram, assim, que os operadores o procurariam na cidade, mas que não lhe diriam nada ao seu encontro e o deixariam onde estivesse. Os operadores o encontraram, o cumprimentaram, ofereceram-lhe um sorvete e disseram "até amanhã". De acordo com o autor, esta foi uma intervenção de grande efeito, elaborada a partir de uma construção. O jovem retornou à instituição no mesmo dia, passando a enxergar a instituição e os operadores como um lugar onde poderia se cuidar, e não como um ambiente de onde era preciso fugir.

Apesar dos conceitos teóricos e clínicos com os quais a equipe trabalhou não terem sido explicitados pelo autor em seu texto, inferimos que o que foi construído, e não interpretado, foi a demanda do sujeito - neste caso direcionada à instituição. A construção, dessa forma, é anterior à interpretação, como mostra Viganó (1999; 2003). A tentativa de interpretar poderia levar a equipe a conjecturar o motivo de sua fuga, assumindo a fuga como um não cumprimento às leis, ou pior, pensando: "fugiu, pois é um psicótico perigoso" (Viganó, 1999, p.47). Nesse caso, um saber de mestre seria sobreposto ao saber recolhido do discurso do sujeito e de suas ações. Observamos assim que, construída a demanda, foi possível uma comunicação com a equipe a fim de transmitir algo da ordem "se ele escapa não é por que é doido ou porque não gosta de nós, é porque ainda não existimos".

Sabemos que nos hospitais, de maneira geral, os analistas são chamados quando o paciente não adere ao tratamento, "dá problema" ou quando é um "paciente difícil". Nas palavras de Moretto e Priszkulnik (2014), o profissional "psi" é chamado para tratar o "lado" do paciente que a medicina não se propõe a tratar. Contudo, ser chamado pela equipe não significa um campo de trabalho para o analista. Para que isso se torne possível, é preciso que o analista realize seu processo de inserção, o que é diferente de integrar fisicamente a equipe. Inserção aqui se refere ao processo de instalação da transferência de trabalho que não é dada a priori. O analista deve apurar os pedidos que lhe chegam, de maneira a averiguar a viabilidade do ato analítico, em razão da presença ou não de uma demanda de saber.

Para Moretto e Priszkulnik (2014), essa demanda de saber depende da maneira pela qual a equipe se relaciona com a subjetividade do paciente, quando alguma manifestação desta surge na cena médica. A equipe pode tanto considerar a subjetividade e querer saber do analista de que forma seria possível compreender melhor aquele caso, como pode querer excluí-la, chamando o analista para apenas resolver a questão e não mais se envolver. Para as autoras, em ambos os casos o analista pode e deve trabalhar. Se no primeiro caso a demanda de saber está posta e ele pode realizar sua inserção com seu ato com o paciente e com a equipe, no segundo caso o analista não deve recuar, e sim sustentar seu lugar de analista nas reuniões de equipe, de maneira a trabalhar a demanda que até então não leva em consideração a subjetividade, para então construir o terreno onde poderá atuar.

São muitos os autores que vêm considerando a construção do caso clínico como uma maneira de realizar o diálogo entre saberes em uma instituição. Além dos já mencionados neste trabalho, temos, entre outros, Alkmin (2003), Borges (2010) e Val (2012). Autores como Dias e Moretto (2016) têm proposto que a construção do caso clínico detém grande poder de transmissão da psicanálise e facilitação da inserção do psicanalista nas instituições, ao transmitir a especificidade da psicanálise em abordar o sofrimento humano, sustentando frente a diferentes saberes uma lógica singular do sintoma e reintroduzindo a dimensão do sujeito na compreensão do caso e na tomada de decisões.

Nessa esteira, queremos acrescentar que, da mesma maneira que Freud se preocupou com a leitura que os médicos fariam de seus casos clínicos, seria também importante nos preocuparmos nas instituições de saúde com a escuta que a equipe pode fazer do que comunicamos a ela. Ou seja, antes de transmitir devemos considerar como fazer essa transmissão, como comunicar. Para isso, propomos um caminho possível ao analista.

Construir, comunicar, transmitir

Consideramos que é preciso construir. Um analista que não constrói seus casos clínicos, mesmo que de maneira breve, rápida e até momentânea, dificilmente pode transmitir algo que não somente algum dado da história. Para Miller (1996, p.98):

"O analista lacaniano deve construir, não há dúvida. Aliás, se existe algo como a supervisão, ela é antes de tudo a supervisão das construções do analista. Não é recomendável dirigir um tratamento sem antes construir e estruturar o caso. Não é impossível conduzir uma análise sem fazer isso, é por esta razão que é muito recomendável fazê-lo."

Fender (2018) elenca os elementos teóricos e clínicos da psicanálise, bem como suas articulações, como a supervisão, por exemplo, que podem ser decantados com o processo da construção do caso clínico. Já citamos alguns anteriormente, como sintoma, demanda, transferência, tempo lógico, estruturas clínicas (diagnóstico), etc. O autor conclui que a construção do caso, mesmo que eleja um ou mais desses elementos e, na melhor das hipóteses, os articule, está sempre orientada para o real de cada caso, ou seja, o impossível de dizer, seu indizível, trazendo assim a marca de sua singularidade.

Ocorre que, para além dos elementos que decantam na construção do caso clínico, temos a elaboração de um saber pelo analista. Da construção se obtém um saber e é este que pode ser por fim comunicado. Como já mencionamos, consideramos que a comunicação está relacionada mais com as conexões feitas entre os elementos que decantam do que eles propriamente ditos. Além disso, há de se questionar o que consideramos por transmissão.

A etimologia nos informa que vem do latim transmitere, que significa enviar de um lugar para outro. O que enviamos de um lugar para outro em termos de transmissão em psicanálise? Para Quinet (2009), o analista não pode transmitir ao seu analisando o saber adquirido sobre seu inconsciente em sua análise pessoal nem o saber que se forma a partir de outras análises que conduz, já que consideramos o caso a caso e a manifestação singular de cada inconsciente. O analista também não pode transmitir o ato analítico, pois este é sempre uma criação particular, impossível de ser generalizada, já que está mais ligado à ética do que a uma técnica. O desejo de analista seria também fruto de um final singular de análise, impossível de se transmitir. Para o autor, o que está em jogo na transmissão da psicanálise, afinal, é o que o analista pode comunicar das análises que conduz. Ou seja, o saber que é produzido a partir da construção.

Se não há esforço capaz de fornecer um número suficiente de significantes para causar em um colega a mesma experiência vivida nas sessões com o analisando -, já que o que se vive na transferência é singular daquela relação e não pode ser transmitido, é possível que a partir do caso clínico construído alguns efeitos semelhantes a essa tentativa sejam alcançados no interlocutor se falamos em termos de uma transmissão de saber, a partir de uma comunicação.

Sabemos, entretanto, que a comunicação de um caso clínico construído depende do interlocutor, problema que Freud já enfrentava quando expôs sua preocupação em relação a como os médicos leriam seus casos. Ou seja, mesmo elaborando um caso, conectando os operadores teóricos e clínicos construídos a partir dos fragmentos e elementos que se decantaram do caso, é preciso considerar como essa construção será comunicada.

Há, assim, uma fenda que se abre entre a transmissão e a comunicação. A primeira não vem necessariamente com a segunda, e sim depende dela. Ou seja, a comunicação varia de acordo com o interlocutor. Estaríamos assim falando da necessidade de produzir diferentes maneiras de realizar uma comunicação mesmo que estejamos tratando de um mesmo saber transmissível, o saber extraído da construção de um caso.

Ora, já observamos esse mesmo impasse nos casos clínicos freudianos. Neles, encontramos uma escrita que não é a totalidade das sessões realizadas, mas sim recortes e estratégias de escrita para a comunicação. No caso Dora, Freud (1905/2017) nos diz ter construído o caso a partir de análises dos dois sonhos cruciais trabalhados em análise. No entanto, o caso poderia ter sido contado de outra maneira, tendo como foco outros operadores teóricos e clínicos, como a demanda, a transferência (que o autor também se debruça um pouco em sua análise), os sintomas, os atos falhos, etc.

Não importa muito que saibamos o resultado, ou a solução do caso enquanto um enigma, mas sim a maneira como ele é comunicado. A transmissão, assim, está mais relacionada ao como (comunicação) do que ao porquê (enquanto solução). Dunker (2011), ao comparar os casos clínicos freudianos com o romance policial, faz reverberar essa hipótese, já que nesse gênero literário, assim como nos casos clínicos psicanalíticos, devemos assumir o problema da impossibilidade de contar a história de maneira linear e por completo. Se assim fosse, não teríamos suspense algum. Dessa forma, no romance e no caso clínico, a solução desse problema se daria pela possibilidade de contar a história novamente, mesmo com o "enigma" já desvendado. Em ambos, espera-se uma fórmula que se repita e que cause uma surpresa no leitor, tocando-lhe com um efeito de verossimilhança, plausibilidade e engenhosidade. Ainda para o autor: "um caso que meramente explicite um conjunto racional de procedimentos que leva a uma conclusão não é bem um caso clínico, mas um relatório que o inclui em uma classe" (Dunker, 2011, p.569).

Assim sendo, este "como", depende do interlocutor. Apresentar um caso clínico construído para os pares psicanalistas pode demandar menos manejos na comunicação, já que se supõe um interlocutor com repertório teórico-clínico similar. Falar de demanda, transferência e Real tem, na melhor das hipóteses, ressonância, o que não ocorre na comunicação com uma equipe multidisciplinar. Com uma equipe, não há como comunicar sobre um paciente utilizando-se apenas dos termos psicanalíticos sem que estes passem por uma espécie de tradução, ou seja, que certa adaptação ocorra.

No exemplo de Viganó (1999) que apresentamos, sobre o jovem que fugiu da instituição psiquiátrica, temos algumas indicações que podem nos ajudar a demonstrar o que queremos. Não foi preciso que o analista comunicasse para a equipe algo como "a paranoia deste rapaz faz com que ele transfira para a instituição a eminente invasão de um terceiro em sua relação, o que o faz fugir". Ainda que o rapaz seja psicótico e paranoico, e que sua transferência e demanda a isso estejam relacionadas, isso possivelmente não surtiria na equipe o mesmo efeito que surtiu a comunicação realizada. Relembremos: "Não existimos para ele, somos uma instituição da qual ele precisa fugir. Vamos tentar mostrar a ele que aqui ele pode se cuidar, não fugir".

Outro exemplo de nossa própria lavra nos parece didático. Não vamos aqui apresentar toda a construção, o que nos demandaria mais tempo. Consideremos uma paciente em estado grave internada na UTI e que não come, não se lava, e não aceita nada da equipe. Fomos chamados para tentar dar conta desse impasse. A equipe estava dividida. Algumas pessoas tinham apenas raiva, outras se preocupavam e entendiam que aquela situação era crítica. Havia assim, certo campo de trabalho. Era uma equipe que eu acompanhava havia três meses, ainda que não estivesse completamente inserido. Mesmo que a maioria dos membros da equipe entrasse em conflito com a paciente "chata e rabugenta", em suas palavras, me era endereçada uma pergunta: "Por que ela não aceita nada, meu deus, como isso é possível?".

Comigo não foi diferente. Somente na terceira entrada em seu quarto que estabeleci um contato, de sofridos 40 minutos. Com raiva em sua voz, após longo silêncio, me pergunta: "O que você quer?". Respondo que não queria nada e repito a mesma pergunta "E a senhora, o que quer?". Ela bufa e continua; "adianta querer alguma coisa? adianta nada". Na entrevista que se seguiu, pude recolher da paciente uma breve história de uma vida de abusos e maus tratos com o marido, até ele fugir e nunca mais voltar. Ocorre que a mesma posição subjetiva da paciente repetiu-se com as irmãs, que, devido à sua frágil condição de saúde, "só mandavam nela". Foi possível então realizar uma rápida construção após o atendimento, com base na transferência que a paciente fez comigo e com a equipe, em sua posição de objeto na relação com o outro e na demanda inconsciente que se repetia de ser obrigada e maltratada. Pode-se ler então as palavras dela própria "adianta querer?" como algo como "adianto meu querer".

Não foi preciso, no entanto, comunicar a equipe nenhum desses termos. Bastou comunicar que a paciente tinha algo que a fazia permanecer em uma posição de receber mais ordens e maus tratos, o que ela estava conseguindo, mesmo que aparentemente demonstrasse não gostar da situação. "O que devemos fazer então?", me pergunta um membro da equipe um tanto quanto assustado. Respondo que acreditava que exatamente essa pergunta dirigida ali a mim, deveria ser feita à paciente. Ou seja, dar-lhe opções de escolha possivelmente a abalaria deste lugar, ao menos que momentaneamente. Foi então que os membros da equipe inundaram a reunião com sugestões diversas.

Se não sabemos exatamente o que foi transmitido à equipe nestes exemplos, sabemos ao menos que houve transmissão, se consideramos que houve uma movimentação da equipe em direção a um querer saber seguido de sugestões da própria equipe para como manejar o caso. Entretanto, nos importa de perto aqui que foi preciso um novo filtro, um novo refinamento, a partir da construção realizada, para que então houvesse uma transmissão para a equipe de saúde.

O lugar de um analista em uma equipe de saúde se dá sempre pelo par dentro/fora. Estamos dentro se pensarmos no estabelecimento de uma transferência de trabalho; estamos fora se pensarmos que nossa posição de saber e de discurso é diversa. Essa oposição dentro/fora não impede um giro discursivo, como nos demonstra Darriba (2019). No entanto, para não incorrer nesse impedimento é preciso sustentar o lugar de analista, a fim de possibilitar campo para o ato, o que pode culminar na inserção (Moretto, 2019).

Concluímos esse trabalho com a aposta de que, assim como na comunicação de um caso clínico pela publicação de um texto, em que se espera que o "caso clínico toque algo de real em nossa existência, tal qual a morte, a lei e o desejo" (Dunker, 2011, p.570), a comunicação a partir de uma construção do caso clínico realizada por um analista em uma equipe multidisciplinar pode, da mesma maneira, tocar na subjetividade daquela equipe. Para isso, cremos que é necessário um refinamento da elaboração de saber anteriormente alcançada pela construção, de maneira que, mesmo evitando-se o uso de uma linguagem própria da psicanálise, sua ética se mantenha, agora sob nova roupagem.

 

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Wilian Donnangelo Fender - Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo e membro do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da Universidade de São Paulo (LABPSI-USP), coordenado pela Profa. Livre Docente Maria Lívia Tourinho Moretto.
Maria Lívia Tourinho Moretto - Professora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, coordenadora do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição da Universidade de São Paulo (LABPSI-USP), Presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar.

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