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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.23 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

Impedimentos e conquistas do sentido de self no envelhecer: notas clínicas

 

Constraints and achievements of the sense of self in aging: clinical notes

 

 

Fernando Genaro Junior

Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Grupo Winnicott BH. Rede Longevidade - Belo Horizonte/MG. - E-mail: fernando.genaro@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho consistiu em investigar e refletir, sob o ponto de vista clínico, a respeito de alguns dos impedimentos e conquistas do sentido de self típicos do envelhecer. Empregamos o método clínico compreensivo de Trinca, para análise de cinco notas clínicas. A fim de tecer considerações sobre tais aspectos, utilizou-se da teoria psicanalítica winnicottiana e das contribuições de Safra. Como resultado, apresentamos os desdobramentos de estados de ressentimento e dissociação, como formas de impedimento psíquico, no processo de envelhecimento, quando confrontado com intensas revisões sobre o sentido da própria vida e de self. Isso emerge como necessidade de vivenciar os vários aspectos relacionados ao perdão. Além disso, observamos que o sentido de self na pessoa idosa é atribuído às futuras gerações como uma das suas maiores conquistas. As preocupações antes enfatizadas no "eu" passam para um "nós" como sentido de self: o coletivo, o social, o bem-estar do mundo.

Palavras chave: envelhecimento; impedimentos; conquistas; self; psicanálise


ABSTRACT

This paper proposes to investigate the constraints and achievements of the typical sense of self in aging from a clinical approach. Following the Trinca's comprehensive clinical method, we analyze five clinical notes. We work in a Winnicottian perspective and in dialogue with Safra's contributions. As a result, we present the unfolding states of resentment and dissociation as psychic constraint in the aging process, when confronted to intense revisions on the meaning of life and self. It emerges as a necessity to experience the various aspects of forgiveness. Moreover, we observed that the elderly's sense of self is attributed to future generations as one of its main achievements. The concerns previously emphasized on the "me" change to an "us" as a sense of self: the collective, the social, the welfare of the world.

Keywords: aging; constraints; achievements; self; psychoanalysis


 

 

"se eu tiver uma vida razoavelmente longa, espero encolher e tornar-me suficientemente pequeno para passar pelo estreito buraco chamado morte" (D.W. Winnicott, 1971/2005, pp. 249)

 

Introdução

O presente trabalho foi originalmente apresentado na abertura do VIII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Literatura cuja temática central foi abordada sob o título "Vicissitudes do Envelhecer", promovido e realizado pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 2019 (Fafich-UFMG). Portanto, o manuscrito sofreu modificações necessárias para publicação no formato de artigo na perspectiva de relato de experiência.

Através de cinco notas clínicas recolhidas da prática do autor no contexto da saúde pública e privada, com diferentes pacientes idosos, o artigo lança algumas reflexões a partir da perspectiva da psicanálise winnicottiana e pós-winnicottiana, relativas a impedimentos e conquistas do sentido de self próprios do processo de envelhecimento.

Optamos por iniciar dando voz aos idosos atendidos, assim recorremos às próprias notas clínicas, que servirão como campo fecundo para apontamentos e reflexões durante todo trabalho.

1) "Estou apavorada, o tempo parou pra mim, não me conformo que cheguei até aqui (87anos)! Tenho a impressão que ainda tenho 15 anos, não tenho como morrer?" (SIC)

Fala frequente nas sessões de Sra. Joana (os nomes empregados nas notas clínicas são fictícios a fim de preservar a identidade de seus depoentes, conforme as prerrogativas éticas em voga). Chegou ao ambulatório de psicologia encaminhada pelo seu médico geriatra, apresentava fortes crises de despersonalização, se recusava de forma muito ressentida a habitar seu corpo, agora velho, e com isso dissociava-se de maneira a desenvolver diferentes manifestações psicossomáticas. Vivia o corpo como uma entidade à parte, um corpo estranho.

2) "Tenho essa ferida há mais de 15 anos, como não consigo mais andar e cuidar da casa, então tive que vir morar com meu filho, mas odeio ter que depender! Acho que a ferida até piorou..." (SIC)

Aos 81 anos Sr. Marcelo chegou ao consultório acompanhado pelo seu filho. O filho/cuidador procurou atendimento pela intensa carga de ambiguidade apresentada pelo pai nos cuidados dispensados a ele. Ora Sr. Marcelo recebia bem os cuidados do filho, ora se revoltava, e além de dificultar os cuidados, ele agravava o ferimento (com risco de amputação), como por exemplo: em momentos de raiva raspava a ferida na perna com faca de cozinha, passava ervas, borra de café, contaminando o ferimento.

3) "Me preocupo demais como vão ser a vida das novas gerações; tenho preocupação de como serão as condições de vida dos meus netos, a política, a natureza... estranho essas minhas preocupações, em casa quando falo, acham que estou deprimindo..." (SIC)

Sr. João, aos 68 anos, procurou atendimento por conta própria, sentia-se angustiado, preocupado com o futuro, estranhava-se achando que talvez pudesse estar deprimido como em um episódio aos 40 anos. Sentia que não havia espaço em casa para conversar sobre o assunto; os familiares achavam que falar sobre a morte e a vida futura sem ele era mórbido demais.

4) "Sou muito magoada com o que a vida me deu, ou melhor, não me deu!! Não sinto que nada valeu, desde meu nascimento a vida tem sido só dor... Agora sou velha, o tempo encurtou pra mim!? E agora pra "ajudar", até a minha memória estão roubando de mim" (SIC)

Sra. Vera, 72 anos, chegou para acompanhamento após diagnóstico inicial de demência realizado por sua médica geriatra; apresentava um histórico de vida marcado por experiências de abandono, humilhação e violência. Organizou seu modo de ser baseado no ressentimento, sentia-se profundamente lesada pela vida.

5) "Na minha vida sempre cumpri meus deveres, construí muita coisa boa, sempre pelo trabalho. Filhos estão encaminhados, tenho netos... Agora cuido da minha dona com Alzheimer, e há 3 anos minha boca fica salgada, verte sal, o senhor acredita? Os médicos já me viraram do avesso, não tenho nada, ao mesmo tempo tenho!" (SIC).

Sr. André, 88 anos, chegou encaminhado por sua psiquiatra, que tinha dúvidas sobre seu diagnóstico. Já havia passado por outros especialistas para excluir hipóteses como câncer, alterações hormonais, alergias; fazia uso de antidepressivos, mas sua boca continuava salgada. Nas sessões surgia uma história de vida marcada pela rigidez, baseada no dever e no trabalho (começou a trabalhar aos 10 anos), sem flexibilidade, sem afetos, sem prazer. Uma vida excessivamente pragmática e sem sentido, conforme o próprio Sr. André constatava.

Podemos observar que as notas parecem guardar aspectos significativamente singulares, biográficos, dos seus depoentes, ao mesmo tempo em que podem ser reunidas, a fim de nos oferecer indicativos a respeito de alguns impedimentos e conquistas no sentido de self nessa etapa de vida.

 

Método

As notas clínicas foram submetidas à análise qualitativa segundo o método clínico-compreensivo proposto por Trinca (1984), inserido nos parâmetros oferecidos pela teoria winnicottiana sobre o processo maturacional e contemporâneos como Safra. Neste mesmo percurso metodológico, cabe assinalar alguns pressupostos básicos que norteiam este estudo. O processo de investigação de tipo compreensivo proposto por Trinca (1984) apresenta-se de maneira peculiar no campo de pesquisa em psicologia clínica, contemplando: a) maior abertura para referenciais teóricos diferentes (de base psicanalítica); b) indicado para estudo de casos; c) por propiciar uma visão global do indivíduo humano, abrangendo dinâmicas intrapsíquicas, intrafamiliares e socioculturais, como um conjunto de forças em interação, que podem resultar em dissociações no self.

Desta forma, tal proposta metodológica possui um método próprio, o qual é estruturado a partir de alguns preceitos básicos, os quais seguem: a) tem como objetivo elucidar o significado das perturbações; b) ênfase na dinâmica emocional inconsciente; c) busca de compreensão psicológica globalizada do paciente; d) seleção de aspectos centrais e nodais; e) predomínio do julgamento clínico; f) subordinação do processo diagnóstico (compreensivo) ao pensamento clínico; g) uso de métodos e técnicas de exame fundamentados na associação livre.

Além de fatores estruturantes, como acabamos de verificar acima, o processo de tipo compreensivo visa a explorar de forma globalizada diversos fatores da vida do indivíduo. Para isso, conta com cinco principais referenciais teóricos os quais contemplam estudos em diferentes áreas do conhecimento que favorecem a compreensão geral do indivíduo, como seguem: a) estudos sobre os processos intrapsíquicos; b) estudos sobre os processos de desenvolvimento e maturação; c) estudos sobre a dinâmica familiar e sua interação com a vida psíquica do paciente.

Assim, acreditamos que o método compreensivo baseado no pressuposto psicanalítico mostra-se indicado para este trabalho, tendo em vista sua abertura e possibilidade para uma compreensão da temática clínica em estudo, em que prevalecem aspectos relacionados ao processo maturacional do indivíduo, considerando o impacto das influências ambientais no sentido de self no processo de envelhecimento.

A clínica do envelhecimento e suas pluraridades subjetivas

Em trabalho anterior (Genaro Junior, 2013; 2018) baseado no referencial teórico e clínico do psicanalista inglês D. W. Winnicott, e nas contribuições de Gilberto Safra (IP-USP), ousamos propor a tese de uma clínica do envelhecimento. Tal proposta visa reconhecer o que seria próprio desse momento de vida a fim de não cairmos num reducionismo, em que tudo já estaria determinado na primeira infância, e/ou pelos quadros orgânicos funcionais.

Aprendemos com Winnicott (1988/1990) que o ser humano não se constitui sozinho de forma isolada, ao ponto de afirmar de forma radical que "não existe essa coisa chamada o bebê", a não ser que alguém cuide dele. Ao longo da sua obra, Winnicott está preocupado com os níveis de dependência de outrem, demandados pelo ser humano ao longo da vida, do nascer ao morrer, bem como sobre "o que versa a vida?". Dedicado a investigar como o indivíduo, poderia ou não, criar sentidos a sua própria vida, fazendo valer ou não a pena em ser vivida (nesse sentido sem qualquer alusão à uma vida perfeita, ou "cor de rosa"). O autor apenas aponta o quanto a vida humana necessita ser criada e recriada incessantemente de forma pessoal para ter sentido e para valer a pena. Vamos observar como os cuidados iniciais na primeira infância vão demandar maior complexidade ao longo da vida dos anos, uma vez que o sentido de self sofre transformações, ou seja, o self é um constante devir relacional - inter-humano. A noção de saúde psíquica para o autor, por exemplo, é sinal de maturidade pessoal, que surge a partir do viver uma vida que faça sentido. Eis aqui uma noção que aparece em toda sua obra, através dos conceitos de criatividade, brincar e transicionalidade (Winnicott, 1971/1975).

Mas o que poderíamos reunir de comum a partir dessas notas clínicas? O que se poderia reconhecer como conquistas e/ou impedimentos para se viver o envelhecimento? Em resposta, recorro a uma afirmação do próprio Winnicott: "se eu tiver uma vida razoavelmente longa, espero encolher e tornar-me suficientemente pequeno para passar pelo estreito buraco chamado morte" (Winnicott, 1971/2005, p. 249).

O tema da morte está presente desde seus primeiros artigos, em que já apresentava, ainda que de forma embrionária, o que viria a se tornar a sua teoria, como a conhecemos hoje. O autor sempre esteve muito atento para que as experiências clínicas com os seus pacientes estivessem sempre sob o domínio do gesto criativo deles, portanto de forma pessoal, o que nasce a partir de alguma necessidade singular do indivíduo - não por submissão à realidade. Vamos observar isso já no celebre "jogo da espátula" (Winnicott, 1941/2000) em que o autor reconhece o fator tempo como elemento importante para o desenvolvimento humano, o que se assemelha ao tempo da vida: nascer, viver e morrer; as sessões, como experiências completas, passariam por períodos de hesitação, uso e descarte objetal. Assim, é fundamental permitir que o gesto do paciente crie o final da sessão, para que haja um trabalho de construção da finalização da análise e do morrer, como parte da saúde.

A partir da afirmação pessoal sobre a morte, Winnicott (1971/2005) nos fala de um tipo de crescimento que é "para baixo", o que ele denominou de "growing downwards", fazendo referência a sua teoria do amadurecimento pessoal. Cabe esclarecer que ao desenvolver essa teoria, Winnicott não se propôs a fazer uma psicologia do desenvolvimento em uma sucessão de estágios a serem vencidos. Apenas reconheceu que o self é devir, e por isso busca continuamente sentido de existência pela experiência significativa com outrem; teoria não-linear e não pré-determinada.

A partir de Winnicott, identificamos no envelhecer um aspecto específico: a desconstrução de várias facetas do self como um "crescimento para baixo" que demandará revisão do sentido de self, o que denominamos "uma espécie de necessidade de balanço existencial ao vivido" (Genaro Junior, 2013; 2018; Safra, 2006). O envelhecimento é marcado por mudanças intensas em diferentes áreas da vida, como se lê nos relatos acima; são vividas de formas radicalmente singulares, tais como: revisão da vida laboral, filhos que se casam e/ou cônjuges e grandes amigos que falecem, como também uma maior consciência da finitude. Safra (2006) enfatiza que há também uma desconstrução vivida no próprio corpo: os sentidos e funções não são mais os mesmos, o corpo não responde com agilidade de antes, a vida sexual se reposiciona, várias desconstruções começam a surgir.

É nesse campo que identificamos que só parece viável envelhecer e morrer para aqueles que puderam acontecer enquanto sentido de existência, isto é, ter vivido a vida com um sentido pessoal. De outro modo, o processo de envelhecimento, bem como a própria possibilidade de morrer, tendem a se tornar agonia, aflição, adoecimentos. Em termos da saúde física observamos o surgimento de epidemias: depressivas, demenciais, insônias, iatrogenias... Nesse contexto observamos a necessidade de contar com um lugar/ambiente humano que se dedique e auxilie o processo de envelhecer, bem como o próprio morrer como sentido de self. Contar com alteridades que possam não só testemunhar o vivido, mas favorecer a revisão e o destinar a vida - são muitas e diversas despedidas.

Nesse tempo de balanços sobre o sentido da vida, vivida ou não como realização de si, em consequência um diálogo contínuo com tantos lutos é que Safra (2006) aponta uma das necessidades fundamentais no envelhecimento: a de viver diferentes aspectos do perdão. Diante da maior consciência do que é o tempo e a finitude, o perdão surge como necessidade, e uma via possível nesse momento de vida para que algo novo possa surgir. Trata-se da possibilidade de perdoar a si mesmo, os outros, planos que não aconteceram, e/ou outros que não saíram como desejados; perdoar a própria vida. Importante ressaltar que o perdão surge clinicamente como uma necessidade humana, sem qualquer relação externa (religiosa, dogmática/institucional). A vivência do perdão pode abrir um novo espaço e tempo para se viver o não vivido, bem como reposicionar aquilo que não pôde acontecer, e/ou aquilo que ficou impedido. Contudo, o perdão, parece ser necessário para que se possa destinar a vida, e não perder de vista o horizonte de futuro, ainda que esse seja a própria morte - o poder "encolher" como nos afirma Winnicott. Assim contemplado, com o perdão, verificamos a obtenção da preservação da memória, da história - gesto reparador a toda uma vida.

A respeito dessa responsabilização madura nesta fase de vida, lugar de humildade face a si mesmo e ao mundo, Winnicott diz que as pessoas maduras aceitam o que são, e aceitam "a história de seu amadurecimento pessoal, juntamente com as influências e atitudes locais; elas têm de continuar vivas, e vivendo, tentar se relacionar com a sociedade de modo a haver contribuição nos dois sentidos" (Winnicott, 1964/1999, p.189). Tal aspecto é absolutamente distinto de qualquer concepção de submissão e/ou consolação diante da vida; tudo se passa sob o registro do gesto criativo.

Análise sobre as notas clínicas: uma perspectiva compreensiva

Diante da pluralidade dos balanços existenciais que as pessoas idosas vivem, que podem ocorrer de maneira mais consciente e/ou sintomática, um dos entraves complexos nesse tempo da vida é a presença do ressentimento, como nos mostra a Sra. Joana que vivia a mudança do corpo e da vida como uma grande injustiça; o Sr. Marcelo que de forma ambígua desejava ser cuidado, mas sentia-se profundamente desqualificado e ofendido pela necessidade de dependência; e a Sra. Vera, que não havia conhecido qualquer experiência afetiva positiva, havia nascido de uma experiência de violência e se percebia nela detida, sem aparente saída ou reposicionamento via elaboração do trauma vivido repetidamente. Histórias distintas, mas diante do saldo negativo, e das lesões narcísicas, não raro, às vezes de todo um percurso de vida, o ressentimento surgiu como paralisação do sentido de si, um estancamento do sentido da vida.

No meio psicanalítico é consenso que a problemática do ressentimento está diretamente ligada à esfera narcísica. Desse modo, o ressentido torna-se quase, senão, impossibilitado de viver as facetas do perdão - sua condição psíquica é vivida como danosa (Khel, 2004). Um entrave complexo, uma vez que o ressentimento dificulta a introjeção e a incorporação do amor, portanto qualquer investimento dessa natureza torna-se estéril. Assim sendo, o indivíduo ressentido se torna impedido de renunciar a si mesmo (encolher) em direção ao perdão; ainda se vitimiza, consciente ou inconscientemente, detendo-se numa experiência passada, seja por culpa ou por desejo por vingar-se - apega-se à mágoa quase como a um ente. Em consequência, não consegue ser responsável por seu gesto, ao contrário, perde-se de vista o gesto criativo, assim como por seu próprio destino - o perdão fica impedido, assim como o não-perdão, como chance de posicionamento diante do mal vivido (o que demandaria um trabalho pelo negativo).

A situação do Sr. André nos apresenta um impedimento muito frequente na clínica com os idosos, as dissociações afetivas que surgem a partir afrouxamento das defesas intelectuais com o advento da redução da vitalidade corporal. Assim, aquilo que deveria ser vivido como experiência no campo afetivo, surge de forma protética como fazer pragmático (dever). Nessa situação clínica, o sal na boca denunciava a ausência de ternura e de relações significativas ao longo da vida. Uma vida edificada, impecável, mas sem "gosto" pessoal! Num certo sentido, a doença da esposa o "salvava"; dava-lhe o que fazer. Por outro lado, sem fazer para esposa, não sabia o quê "fazer" da própria vida - sem sentido.

Sr. André "amadureceu" precocemente aos 10 anos, deixando seu anseio pelo outro de fora (dissociado). Assim, a perspectiva afetiva em sua vida ficara ausente, o impossibilitando de contemplar a sua existência. Achava estranho que pessoas ficassem conversando (relacionando-se) depois das suas "obrigações". Nesse período de atendimento, sonhava frequentemente que estava viajando de avião com todos os seus colegas de trabalho, seus chefes. Todos já haviam morrido, mas nos sonhos estavam vivos e conversando com ele: para onde você está indo viajar? Sr. André se assustava ao se deparar com um caixão, com um morto, no lugar de seu assento nesse avião. Ele vivia em vigília a própria situação do sonho: suas angústias de qualidade claustrofóbica denunciavam um morto/vivo que funcionava bem, mas sem poder contemplar a vida.

O vinho que gostava de tomar já não era possível, o gosto ficou todo alterado, "gosto de barro" (SIC). A semântica oral, bem como sua oralidade haviam se organizado pelo pragmatismo - desconectado das experiências de dependência afetiva. Sua primeira crise havia ocorrido aos 60 anos, com a aposentadoria; perdera o seu fazer abruptamente e à época fora tratado com antidepressivos e o sintoma de "sal na boca" remitiu. No entanto, na atualidade, nenhuma medicação lhe podia ajudar. Sentia-se um morto/vivo, preso em seu caixão existencial do qual, para abrir a tampa e sair, fazia-se necessário resgatar a infância sem alegria e assim recuperar algum açúcar/afeto numa relação com alguém - essa foi a tônica dos seus balanços existenciais na análise.

Safra (2006) considera que para a pessoa idosa o sentido da vida se reposiciona, não somente a partir da mutação do sentido de self do "eu" para "nós" como na vida adulta, mas fundamentalmente pela esperança que fica depositada, agora, naqueles que virão, na futura geração como, como por exemplo, os netos, mas não somente. O autor destaca que um dos anseios fundamentais nesse momento da vida é poder contribuir de alguma forma para a comunidade/sociedade, para além do "nós", uma espécie de responsabilidade madura, uma ética pessoal. Nesse contexto, o sentido da vida fica reposicionado em alguns aspectos: 1) o comprometimento com o meio ambiente, com o espaço cultural; 2) a responsabilidade não mais como uma moralidade a partir de si mesmo, mas que surge de uma ética própria - muito diferente de aceitar regras - torna-se uma responsabilidade pela humanidade; 3) consciência política, numa tentativa de responder ao mal-estar público, uma consciência de "nós" amplificada para o mundo, isto é, o outro não é mais aquele que estaria do meu lado, mas aquele que virá no futuro (Safra, 2006).

Sr. João nos mostra, por meio das suas preocupações, que havia conquistado o sentido de self no curso de seu envelhecer realizando o "encolher", como dizia Winnicott, e associava isso num primeiro momento ao seu receio de estar deprimido. Seu estranhamento por suas preocupações assinalava que, daí para frente, o sentido de self havia se alterado, o que redundou mais adiante na criação de um projeto de trabalho voluntário com crianças de uma comunidade do bairro. Em sua fala, nas últimas sessões, explicitava, sem qualquer tom depressivo ou mórbido, que morrer em paz já era possível, sentia a morte como último gesto pessoal que estaria por vir.

 

Considerações finais

Ao longo do trabalho buscamos destacar alguns dos principais impedimentos e conquistas no sentido de self, advindos do processo de envelhecer, compreendendo que para Winnicott (1988/1990) não há etapa da vida que não demande transformação, revisão do sentido de self, uma vez que self é processual e, portanto, devir. Assim, testemunhamos enquanto clínicos no campo da saúde do idoso, que ao revisitar o sentido da vida no envelhecer este pode resultar em estados de ressentimento, estacando não só o processo maturacional, mas o próprio sentido de self em tempo passado, bloqueando o novo, sem perspectivas de futuro. Outro obstáculo é o surgimento de dissociações que emergem de experiências traumáticas devido às quedas de defesas racionais, as quais servem frequentemente como efeito de prótese, no lugar da falta de experiências constitutivas de ordem afetiva com outrem, impedindo o devir como sentido pessoal no percurso da vida.

Sob tal perspectiva, Safra (2006) contribui ampliando o sentido winnicottiano do "crescer para baixo" para uma nova concepção de alteridade nesse momento de vida, em que o outro, para o idoso, é aquele que virá depois como sentido de self. Bastante distinto da idade adulta em que o outro era aquele que estaria ao nosso lado. Há uma inquietação genuína com o futuro da humanidade, com as gerações futuras. Tais sentidos, que são vividos de maneiras singulares por processos de envelhecer, e nesse âmbito parecem indicar ser conquistas essenciais para o acolhimento do envelhecer e da própria morte como um gesto pessoal, e não como um fracasso e/ou interrupção da vida.

Para concluirmos nossa reflexão, oriunda da prática clínica com as pessoas idosas, reconhecemos que tal práxis busca oferecer lugar humano, com vistas a recuperar e/ou instaurar o sentido pessoal das vidas a partir das próprias histórias, a fim de revê-las, findá-las com a necessária dignidade e diante do rosto humano. Conquistar tal "encolhimento" do self como proposto por Winnicott, nesse "crescimento para baixo" é favorecer diversas despedidas como um gesto pessoal, e com isso, sem a presença de ressentimentos e dissociações.

A título de encerramento, recorremos as palavras de Safra (2005):

"a clínica revela que não poder morrer também é fonte de angústia. É terrível não poder finalizar algo que se iniciou. [...] A morte, assim como o nascimento, necessita ocorrer em comunidade para que aconteça a dignidade do nascer e do morrer [...] O ser humano faz a experiência da solidão. Trata-se de uma solidão também originária, uma vez que o nascer e o morrer são experiências solitárias. Eis o paradoxo da condição humana: estar aberto ao outro, e ao mesmo tempo, originalmente é só. [...] O outro assume a condição de testemunha e interlocutor. A solidão originária deve ser testemunhada, somente assim poderá ser vivida." (Safra, 2005, p. 24-33)

Safra destaca um princípio ético, como Ethos, fundamental para prática clínica, a condição de testemunhar e estabelecer comunicação não invasiva a partir da solidão da vida de cada indivíduo. Através das notas clínicas empregadas, podemos reconhecer que o processo de envelhecer é vivido de forma subjetiva e, portanto, de maneira singular em cada biografia. Assim como a entrada no mundo humano demanda cuidados específicos desde o nascimento, também a saída do mundo requer cuidados próprios. Por meio de diversos lutos e despedidas advindos do envelhecimento; sejam esses para o enfretamento dos impedimentos oriundos dessas revisões de vida, sejam as conquistas do sentido de self que necessitam de integração e apropriação diante de outrem. Afinal, como nos sugere Safra e as reflexões até aqui traçadas, só podem envelhecer e morrer aqueles que um dia se sentiram reais e existentes; do contrário, o envelhecer e o morrer se tornam fonte de agonia impensável.

 

Referências

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Fernando Genaro Junior - Psicanalista, Psicólogo especialista em Psicologia Hospitalar (IPq-HC-FM-USP), Mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP), Doutor em Psicologia Clínica (IP-USP).

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