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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.23 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

O estatuto do corpo no discurso capitalista: um desafio ao psicanalista no hospital

 

The statute of the body in the capitalist discourse: a challenge to the psychoanalyst in the hospital

 

 

Patrícia do Socorro Nunes Pereira LimaI; Jamile Luz Morais MonteiroII; Roseane Freitas NicolauIII

IUniversidade da Amazônia (UNAMA) e Escola Superior da Amazônia (ESAMAZ) -Belém/Pará - patnunespereira@yahoo.com.br
IIUniversidade Federal do Tocantins (UFT) - jamile@uft.edu.br
IIIUniversidade Federal do Pará (UFPA) - Belém/Pará - rfnicolau@uol.com.br

 

 


RESUMO

Pretendemos discutir o estatuto do corpo no discurso capitalista e seu atravessamento quanto ao lugar do psicanalista na instituição hospitalar. Para tanto, propomos um estudo teórico baseado em Freud e Lacan. Apresentamos, primeiramente, a noção de corpo para a psicanálise, ressaltando que ele não se restringe à materialidade orgânica e ao aspecto anátomo-fisiológico, tal como passou a conceber o discurso biomédico moderno, predominante no hospital. Neste contexto, abordamos os atravessamentos discursivos em relação ao lugar do psicanalista, principalmente no que concerne ao discurso capitalista, à luz da teoria dos discursos de Lacan (1969-1970/1992). Por fim, remetemos aos desafios do psicanalista no hospital, a considerar sua posição diante dos imperativos discursivos dominantes.

Palavras-chave: corpo; discurso capitalista; psicanalista; psicanálise; hospital.


ABSTRACT

We intend to discuss the statute of the body in the capitalist discourse and its crossing as to the psychoanalyst's place in the hospital institution. To this end, we propose a theoretical study based on Freud and Lacan, where we first present the notion of the body for psychoanalysis, emphasizing that it is not restricted to organic materiality and the anatomo-physiological aspect, as it came to conceive modern biomedical discourse, predominant in the hospital. In this context, we address the discursive crossings in relation to the psychoanalyst's place, especially with regard to capitalist discourse, and in the light of Lacan's theory of discourses (Lacan, 1969-1970/1992). Finally, we refer to the challenges of the psychoanalyst in the hospital, to consider his position before the dominant discursive imperatives.

Keywords: body; capitalist discourse; psychoanalyst; psychoanalysis; hospital.


 

 

O trabalho do analista no hospital leva a interrogações sobre como sustentar uma clínica do sujeito do inconsciente no espaço em que predomina o saber médico e onde o que se apresenta à intervenção, é o corpo. Desta forma, questionamos: como o analista pode estabelecer sua função nesse contexto, que é dar espaço à experiência?

Tal inquietação reflete o aspecto que toca à importância da permanência da psicanálise no hospital, espaço administrado por saberes e práticas estabelecidas. Nesse sentido, é preciso marcar a diferença da posição médica e psicanalítica em relação ao saber. A posição médica responde ao sofrimento com um saber universalizado e se dirige ao paciente equipada com protocolos pré-estabelecidos em nome de uma cientificidade. A psicanálise, em contrapartida, trata do particular de cada um, dirigindo-se ao sujeito do inconsciente que, ao se estruturar no encadeamento significante, produz um saber que se impõe como um impossível de todo apreender. Essa diferença de concepções sobre o saber e das formas de com ele operar implica em posições distintas do profissional na equipe.

Ao discutir sobre o lugar da psicanálise na medicina, Lacan (1966/2001a) a localiza na posição de marginal. A psicanálise neste enquadre surge como uma simples ajuda exterior, ao lado dos profissionais da equipe multidisciplinar, como o terapeuta ocupacional, o fisioterapeuta e outros não médicos. O autor ressalta, por outro lado, a emergência de um aparelhamento discursivo cientificista que coloca o homem, inclusive o médico, em um lugar de subordinação. Nas palavras de Lacan (1966/2001a):

(...) O médico nada tem de privilegiado na organização desta equipe de peritos diversamente especializados nas diferentes áreas científicas (...) O médico é requerido em sua função de cientista fisiologista, mas ele está submetido ainda a outros chamados. O mundo científico deposita em suas mãos o mundo infinito daquilo que é capaz de produzir em termos de agentes terapêuticos novos, químicos ou biológicos. Ele os coloca à disposição do público e pede ao médico, assim como se pede a um agente distribuidor, que os coloque à prova. Onde está o limite em que o médico deve agir e a quê deve responder? A algo que se chama demanda? (Lacan, 1966/2001a, pp.9-10).

Quando afirma que a figura do médico também não sai imune às amarras de um saber científico que se pretende totalitário, Lacan (1969-1970/1992) vislumbra não apenas o que está no nível de um discurso sem palavras, como ressaltou, mas, além disso, aponta para a perigosa parceria entre aquilo que se produz na universidade, e o capital. Sendo assim, pretendemos abordar neste artigo o que está em jogo na dimensão do discurso, visando estabelecer qual o estatuto do corpo no que Lacan (1972), na "Conferência de Milão", denominou de discurso capitalista, analisando quais os seus efeitos para a práxis do psicanalista no hospital. Essa discussão é de suma importância, não somente para os psicanalistas que atuam na instituição hospitalar, como também para todos os profissionais que nela estão inseridos, a contar com o próprio médico, que se vê servo deste discurso, procurando dar conta de uma demanda impossível de ser toda acolhida.

De acordo com Clavreul (1983), o distanciamento que marca a relação médico-paciente é efeito do discurso ao qual o médico está submetido. Para o autor, o que funda a relação médico-doente é a exclusão das posições subjetivas de um e de outro. No paciente, o que resta da subjetividade está relacionado ao medo e à angústia que podem vir a lhe fazer recusar os exames e os tratamentos médicos. No médico, reflete-se a tentativa de evitar prejudicar a neutralidade necessária ao diagnóstico e ao tratamento, que deve levar em consideração apenas os imperativos terapêuticos nas decisões a serem adotadas. Ou seja, assim como o paciente, o médico também é destituído de sua subjetividade, o que é exigido pela ordem médica, em nome da objetividade e do saber.

Dito de outra forma, entendemos que o desafio do psicanalista neste espaço, mais do que se posicionar no lugar de dar voz ao sujeito, comumente resumido a um corpo, é compreender os lugares que estão postos no discurso, de tal modo que consiga manejar a transferência não só com o sujeito que ali recebe assistência, mas também entre os profissionais de saúde, que são posicionados como alguém que não pode falhar, pois o que está em jogo são as vidas e a saúde de quem exige cuidados. Isto posto, seguiremos nosso percurso, primeiramente, salientando como a psicanálise concebe o corpo e, posteriormente, avançamos no cerne de nossa questão, a saber: o estatuto do corpo no discurso capitalista e seu efeito na prática do psicanalista no hospital.

 

O corpo entre a medicina e a psicanálise

Ao remetermos à noção de corpo, de forma inequívoca, somos levados a pensá-lo apenas na sua dimensão orgânica e material, ideia predominante nas raízes da medicina moderna, que teve sua emergência no final do século XVIII e início do século XIX, tal como nos pontua Foucault (1963/2008) em "O nascimento da clínica". Este corpo passa a ser objeto de estudo da medicina anátomo-patológica. Sob o olhar inquisidor do médico, o corpo é entendido cada vez mais pelo viés fisiológico, concebido como um conjunto de órgãos e tecidos, com funcionalidades próprias. Neste contexto, o corpo, ou melhor, o corpo organicamente debilitado, deixa de ser objeto de angústia para o homem para se tornar objeto de teorização científica.

Para a medicina moderna, só podíamos ter acesso ao corpo sabendo como ele funciona internamente, isto é, apenas conhecendo o seu estado fisiológico é que seria possível detectar todas as perturbações do estado patológico (Canguilhem, 1966/2009). Foi especialmente através de uma filosofia positivista Comteana, do predomínio do caráter fisiológico em detrimento do patológico e de uma destituição da fala do doente sobre sua enfermidade que se estruturou o edifício da medicina moderna. Nessa direção, era preciso conhecer o corpo fisiológico para curar a patologia, encarada como um fenômeno fora da norma. Assim, a fundação do discurso biomédico pautou-se no ver o corpo, conhecê-lo e curá-lo. Nessa direção, os profissionais da saúde (fisioterapeutas, psicólogos, enfermeiros) passam a exercer suas funções ancorados nesse discurso, não somente o médico. Este, figura central neste cenário, é mencionado por Canguilhem (1966/2009, p. 83):

Logo, compreende-se perfeitamente que os médicos se desinteressem de um conceito que lhes parece ou excessivamente vulgar ou excessivamente metafísico. O que lhes interessa é diagnosticar e curar. Teoricamente, curar é fazer voltar à norma uma função ou um organismo que dela se tinham afastado. O médico geralmente tira a norma de seu conhecimento sobre a fisiologia, dita ciência do homem normal, de sua experiência vivida das funções orgânicas, e da representação comum da norma em um meio social em dado momento. Das três autoridades, a que predomina é, de longe a fisiologia.

Ao reduzir o corpo à fisiologia, o sujeito e seu lugar de fala são suprimidos em prol de um saber massificado, generalizado a uma norma padrão que dita certa normalidade. Ora, se o corpo é reduzido à fisiologia, qual lugar possível para um corpo que não necessariamente obedece à esta fisiologia, mas sim revela um saber subjetivo, conflitivo e inconsciente?

A psicanálise, com Freud, deu protagonismo aos acontecimentos contraditórios do corpo, posto que este se vincula a um desejo particular e inconsciente, agregando uma economia libidinal capaz de perverter a lógica da fisiologia. Afinal, o que dizer do padecimento histérico que, até nos dias de hoje, insiste em aparecer por meio de suas conversões? E das chamadas doenças psicossomáticas? Não podemos esquecer, como nos aponta Canguilhem (1966/2009), que são os doentes que chamam os médicos, assim como a fisiologia só passou a existir porque antes houve uma medicina clínica e terapêutica, onde "é o pathos que condiciona o logos" (grifo do autor, p.158).

De acordo com Valas (2004) as doenças capazes de calar o imperativo metodológico da ciência biomédica são, justamente, aquelas onde a medicina não dá conta de justificar tomando como base um componente orgânico. Em alguns casos, a única coisa que os médicos podem fazer é denominá-las de psicossomáticas ou de piti (termo comumente usado para as conversões histéricas). As próprias doenças psicossomáticas, por exemplo, podem ser compreendidas como um verdadeiro "fetiche para os ignorantes" (Valas, 2004, p. 113). De modo semelhante, Wartel (2003) nos fala que no momento em que as lesões classificadas como psicossomáticas invadem o terreno da medicina, estas, ao mesmo tempo em que desafiam este campo de saber, demandam de nós, psicólogos e psicanalistas uma explicação para o seu aparecimento. Ora, na medida em que se atribui um fator emocional para determinadas lesões, a medicina lava suas mãos e nos diz que a doença, outrora manifestada como uma condição puramente orgânica, não é tão objetiva assim, já que foge às tendências exatas e previsíveis de seu método científico. A psicanálise surgiu quando Freud decidiu dar voz às histéricas e, com elas teceu importantes teorizações, partir da sua clínica, sobre o estatuto do corpo que foge às leis da fisiologia.

Foi através da escuta aos furos e às falhas no saber médico que Freud encontrou brecha para falar de um corpo erógeno e pulsional, acabando por provocar uma reviravolta na concepção de corpo vigente até então. Este corpo, apesar de se constituir a partir do corpo orgânico e da necessidade, ganha outra significação, sendo visto como um corpo erógeno, marcado pelo desejo e passível de ser representado. Foi na tentativa de compreender a dinâmica da histeria que Freud (1905 [1901]/1996a) passa a considerar não somente o corpo da anatomia, mas também a existência de um corpo carregado de representações imaginárias. Nessa direção, Garcia (2004, p. 81) aponta: "O corpo para a psicanálise é o corpo marcado pelo significante, o que foi mostrado pelas histéricas e recolhido por Freud nos primórdios do século, destituindo a hegemonia do saber médico que o constituía como substância anatômica".

Em "Fragmentos da análise de um caso de histeria", Freud (1905 [1901]/1996a) sugere que o sintoma corporal trazido pela histérica vinha para expressar o seu próprio conflito inconsciente, de origem sexual. Nesse momento, o corpo adquire um lugar especial na teoria psicanalítica, pois é a partir daí que Freud demarca uma ruptura com o saber médico ao afirmar que o corpo da histérica não deveria ser concebido como o corpo da biologia, mas sim como um corpo sexualizado e que, por conseguinte, não obedeceria às leis da anatomia: "(...) A histeria se comporta em sua paralisia e outras manifestações como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento nenhum dela" (Freud, 1893/1996b, p. 206).

Sobre a erogeneidade do corpo, Freud (1905/1996c), nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", aponta para a existência de uma sexualidade infantil que faz com que o corpo do sujeito se constitua e funcione de uma forma diferenciada. Por conseguinte, dar-se-á também outro modo de relação do sujeito com seu corpo, o que permite compreender sua suscetibilidade em sofrer alterações para além de sua estrutura orgânica. Ele observa que o corpo teria como estado original o autoerotismo, assumindo a função de um objeto sexual, uma vez que qualquer parte dele pode ser tomada pela criança como objeto de obtenção de prazer. Destaca que o autoerotismo seria o momento segundo o qual o corpo é fragmentado em zonas erógenas, as quais foram concebidas como uma parte da pele ou da mucosa que, se estimulada, provoca intensas sensações de prazer.

De acordo com Freud (1905/1996c), as etapas psicossexuais de desenvolvimento são fundamentais para a constituição do aparelho psíquico, uma vez que é descobrindo seu corpo por meio de atividades que causam prazer que a criança vai constituindo o seu Eu, deixando de ser apenas um ser de necessidade para também se constituir como um sujeito que deseja.

No texto "À guisa de uma introdução ao narcisismo", Freud (1914/2004a) retoma as considerações feitas nos "Três ensaios" sobre o autoerotismo, onde, como vimos, é definido como uma fase primitiva de obtenção de prazer pelas zonas erógenas, portanto, uma fase caracterizada por um corpo fragmentado. Freud (1914/2004a) afirma que a passagem do autoerotismo para o narcisismo resulta no processo de constituição do Eu. A constituição de um corpo imaginário pela criança se dá através de seu primeiro cuidador (normalmente a mãe). Assim, constituindo-se como um corpo totalizado, ordenando-se em torno da imagem corporal, ele deixa de ser uma matéria orgânica e transforma-se em um corpo pulsional.

Correlato ao narcisismo de Freud, Lacan (1949/1998a) em seu escrito sobre o "Estádio do Espelho", refere-se à constituição do Eu como processo da estruturação do corpo. Essa constituição é estruturante, pois o Eu é antes de tudo um Eu corporal, na medida em que organiza um corpo a partir da promessa de uma unidade. É no percurso em direção à constituição do Eu, como figura de identificação com a imagem vista através do espelho, que a criança experimenta um corpo despedaçado, sem uma unidade corporal. Em um primeiro momento, a criança, diante do espelho, mostra-se surpresa com o outro refletido, confundindo-se com a imagem desse outro, tal como um estranhamento. Ao longo desse processo, ela se reconhece na imagem do outro, assumindo uma integração ao outro. Trata-se da dialética da identificação com esse outro. A partir de então, o Eu começa a se constituir no registro simbólico.

Por outro lado, a questão da erogeneidade do corpo traz à tona o conceito psicanalítico de pulsão, que tem sua origem em fontes de estímulo no interior do organismo, sendo sua manifestação vista como uma força de impacto que pressiona constantemente, fazendo com que nem mesmo as ações de fuga consigam eliminá-la, pois ela é irremovível. Esses estímulos, uma vez excitados, recebem uma pressão de trabalho psíquico em direção ao alcance de sua meta: a satisfação (Freud, 1915/2004b).

O corpo, do modo como é concebido pela psicanálise, é importante tanto para a constituição do sujeito quanto para sua vida psíquica, pois ao mesmo tempo que se constitui pelo corpo, o sujeito pode satisfazer-se dele. É um corpo erógeno que sofre a incidência da pulsão, o que impõe a ele um modo distinto de funcionamento, que experimenta sensações físicas e representa afetos que escapam da dimensão psíquica. O sujeito, em sua constituição, tem seu corpo banhado por representações psíquicas através de seu primeiro cuidador. É este mesmo corpo que, ao sofrer a interdição da linguagem e da cultura, pode ser simbolizado, interpretado e decifrado.

Diversamente, para a medicina, o corpo reduz-se a um pedaço de carne. Segundo Alberti (2008), a ciência médica moderna, aliada ao capital, toma o corpo como "um complexo psicossomático na sociedade, produto da desintegração provinda da intersecção híbrida da biotecnologia, da nanotecnologia (...) dos discursos biológicos e da saúde em geral, que dispersam o corpo" (Alberti, 2008, p. 154). Para a autora, o movimento de segregação do sujeito do campo da ciência deve-se, em grande parte, ao movimento discursivo do capitalismo, o qual apoia-se no discurso da ciência para instalar uma demanda pautada na necessidade da medicação como forma de apaziguar a angústia e a dor que ao sujeito acomete.

Nessa perspectiva, o discurso médico tem uma função silenciadora: a fala do "doente" é ouvida para ser descartada. Os médicos dão pouca atenção ao que dizem os doentes a respeito de seus sintomas, considerando que suas comunicações não trariam algo de valioso. Da mesma forma que o discurso médico não tem como codificar o sofrimento subjetivo do sintoma, o lugar ocupado pelo sintoma na dimensão subjetiva não tem como ser enquadrado em determinadas síndromes. O resultado é a falta de diálogo entre médico e paciente: o doente se cala e se deixa falar apenas pelos seus sintomas (Clavreul,1983).

Moretto (2001) observa que a doença, enquanto objeto da medicina, assegura que o único discurso válido sobre ela seria o discurso médico. A fala do doente sobre sua doença fica desacreditada, pois pode ser contaminada pela angústia e pelo sofrimento. Por outro lado, o discurso médico se apropria da fala do sujeito, transformando os significantes de sua fala em sinais médicos. Entretanto, os sintomas não remetem ao discurso médico, mas ao próprio sujeito. É isso que permite ao analista ouvir o paciente e seu sofrimento, para que ele fale ao invés vez de ser falado sob a forma de sintomas corporais (Clavreul, 1983).

Nas palavras de Moretto (2001), através "de uma função silenciosa" (p. 69), a psicanálise é capaz de resgatar a subjetividade do paciente, convocando que o mesmo fale sobre sua dor. Assim sendo, o sujeito pode deixar a condição de paciente para ser responsável pelo sofrimento que lhe causa, ou melhor, pelo seu desejo. Na instituição hospitalar, o analista se confronta com um desafio, a saber: operar de forma que o sujeito apareça em meio ao corpo biológico que se impõe fortemente neste espaço que, em um nível macro, obedece aos ensejos do discurso capitalista. Por esta razão, refletir acerca deste discurso e como ele atravessa o trabalho do psicanalista na instituição se faz fundamental.

 

O estatuto do corpo no discurso capitalista e o lugar do psicanalista no hospital

A fim de discutir sobre o estatuto do corpo no discurso capitalista, faz-se necessário recorrer à teoria dos discursos elaborada por Jacques Lacan. Veremos que o discurso capitalista surge de uma mutação no discurso do mestre, agenciando uma copulação entre os lugares da verdade e do saber. Lacan (1969-1970/1992) identifica, através dos quatro discursos (do mestre, da histérica, do analista e do universitário), as modalidades de ordenação do gozo no laço social, tomando como referência o que Freud (1930/1996d), em "O mal-estar na civilização", designou acerca da pulsão de morte e aquilo que a acompanha: o supereu e a repetição.

Para Lacan (1969-1970/1992), os discursos são formas do sujeito se inserir no laço social e, portanto, representam o mal-estar deste sujeito, na medida em que, para adentrar na sociedade, é preciso haver uma renúncia pulsional, uma renúncia de gozo. Partindo desse princípio, Lacan desenvolve sua teoria sobre os discursos, inaugurando assim o que ele gostaria que fosse chamado de o campo lacaniano, o campo do gozo.

No Discurso do Mestre, fundamentado na lógica hegeliana do Senhor e do Escravo, o S1 é o agente e ocupa o lugar dominante, de Senhor e mestre que, por conseguinte, vai exigir que o outro (S2) trabalhe e assim produza algo, um resto impossível de ser inscrito no simbólico: o objeto a. Nesse discurso, embora o mestre ordene, ele de fato necessita do saber do escravo, pois é ele quem sabe, cabendo a este fazer somente um esforço: dar uma ordem. Para o mestre só importa que as coisas funcionem, não importa como e nem o porquê, tal como aparece no matema do referido discurso (Lacan,1969-1970/1992, p. 12):

 

 

Conforme Lacan (1969-1970/1992) aponta, o mestre está sustentado por uma verdade, uma verdade que está oculta. Esta verdade ($) diz respeito à própria castração do mestre, que precisa do saber do escravo para produzir. O que o Discurso do Mestre produz é o a, que para o escravo é o mais-de-gozar, um gozo que ele produz apenas para satisfazer o mestre. Na posição de mestre, o agente sempre trata o outro como escravo, exercendo seu poder sobre ele para fazê-lo produzir gozo.

Já no discurso capitalista, Lacan apontou sua emergência em uma Conferência que proferiu em Milão, em junho de 1972, intitulada "O discurso psicanalítico". Nesta conferência, ele escreveu o matema do referido discurso como se segue:

 

 

Ao introduzir o matema do discurso capitalista, Lacan deixa evidente que não estava alheio aos efeitos desse discurso no sujeito e nos laços que estabelece. Como percebemos, o discurso capitalista apresenta uma mutação no discurso do mestre, onde os lugares $ e S1 mudam de posição. Lacan (1969-1970/1992) antevê essa modificação a qual ele chama de capital: "Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista" (p. 178). Depois ele afirma: "Alguma coisa mudou no discurso do mestre a partir de certo momento da história [...] o importante é que, a partir de um certo dia, o mais-de-gozar se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama de acumulação do capital" (p. 189).

Verifica-se no matema do discurso capitalista que o sujeito dividido ($) passa agora a ocupar o lugar que antes, no discurso do mestre, era do significante mestre (S1). Além disso, observa-se a flecha que, do lado sujeito, ao invés de partir de baixo para cima, segue o percurso do Sujeito ($) ao (S1). O que também chama atenção no discurso capitalista é a supressão da barreira da impotência e da interdição do gozo. Trata-se de um discurso que tenta fazer parecer que tudo pode. Por este motivo, afirma Lacan (1971-1972/2001b) que é um discurso que agencia um aparelhamento de gozo que recusa a castração, promovendo um acesso a uma verdade totalitária, sem furos.

No discurso capitalista, o inconsciente, como trabalhador ideal, está não mais a serviço do senhor antigo, mas sim do senhor chamado capital. O capital tornou-se o significante-mestre (S1), ocupando o lugar da verdade no discurso. O S1 dirige-se ao saber (S2) que, no lugar do outro, está a serviço do mestre-capital, dispondo de sua força de trabalho, de seu saber-fazer, para produzir mais-de-gozar, mercadorias, "gadgets". Este objeto mais-de-gozar aparece como mercadoria a ser consumida pelo sujeito, o qual, dialeticamente, também é consumido pelas mercadorias. Segundo Quinet (2006), o discurso capitalista, exclui o outro do laço social, visto que:

O sujeito passa a se relacionar somente com as mercadorias, suprimindo assim a alteridade própria do discurso. Nesse panorama, o sujeito ($) é reduzido a um consumidor comandado pelo significante mestre capital (S1), que agencia o saber científico (S2) para a produção de mercadorias (gadget) para serem consumidas. O corpo, neste contexto, surge como mais uma mercadoria a ser consumida pelo sujeito (Quinet, 2006, p. 39).

Neste sentido, podemos afirmar que o discurso capitalista tenta forjar um corpo em seu estatuto real, em um ponto onde ele seja o mais orgânico, concreto, fragmentado, estratificado. Trata-se de um corpo como objeto de um gozo sem limites, esvaziado de um saber possível e incorporado de significantes mestres que se pretendem totalitários.

O corpo passa, então, a ocupar o lugar de mais um "gadget", produzido pela ciência copulada com o capital. Não por acaso testemunhamos avanços tecnológicos e científicos na área da medicina e genética, que agregam desde procedimentos mais simples como a harmonização facial, como as cirurgias de redução de estômago, as cirurgias plásticas, a inseminação artificial, cirurgias para mudanças de sexo, entre outros inúmeros procedimentos que prometem fazer a relação sexual existir ou, em outras palavras, incitam a ideia de que "tudo posso quando posso comprar".

No consultório do psicanalista, o corpo está cada vez mais em pauta. Ele aparece em formas de sintomas psicossomáticos, de transtornos de pânico, através das insatisfações quanto a sua forma e daí em diante. No hospital, quando um psicanalista é convocado, é porque o corpo resiste a este discurso que tenta reduzi-lo ao gozo. É quando os exames não explicam certa enfermidade ou mesmo quando a medicação que tanto funcionava, passa a não oferecer grandes resultados. Aliás, é justo esperando por resultados, pelo furor que a medicina emerge no discurso capitalista como aquela capaz de tudo curar. Ao conceber o corpo como objeto próprio de seu fazer, como um elemento fetiche que clama por ajuda, é que os próprios médicos também se mostram objetos do discurso capitalista e se esquecem que eles também são sujeitos.

Quando, por outro viés, aludimos ao discurso do psicanalista, queremos apontar que este discurso só seria possível pelo fracasso do discurso capitalista, apesar de todas as tentativas de foracluir a falta e a castração; pois é o analista que acolhe os fracassos e o que nem sempre pode ser dito em palavras ou expressado pelo corpo. No Discurso do Analista, sabemos que ele não deve ocupar o lugar do mestre, mas sim a posição do objeto a, como aquele que agencia o discurso. Esta posição que revela um efeito de rechaço, de resto da operação da linguagem.

Embora nos outros discursos exista o objeto a em sua mostração, é somente no Discurso do Analista que ele ocupa uma posição privilegiada, oposta à vontade de dominar. Em relação à sua posição no discurso, Lacan (1969-1970/1992, p. 39) observa que o analista: "(...) se faz causa de desejo do analisante". Ao fazer semblante e não responder à demanda, ele abre a possibilidade de o sujeito produzir encadeamento e construir um saber sobre sua verdade. Assim, é da proposta de silêncio do agente do discurso que incorrerá o caráter subversivo do Discurso do Analista. Ou seja, ao tratar o outro como sujeito ($), o analista possibilita que este manifeste sua singularidade, seu S1 (seu significante mestre), que é o que se produz no Discurso do Analista. Neste discurso, o sujeito ($) é ativo, inventivo, pois é ele quem trabalha.

No Discurso do Analista, o S2 (saber) ocupa o lugar da verdade. Contudo, é uma verdade falha, não totalitária, posto que não completa: é uma meia verdade. O analista, ainda que assumindo o lugar do objeto a, de causa de desejo, também faz semblante de saber, sustentando, em parte, a demanda de saber que o outro, sujeito, dirige a ele. Como nos coloca Lacan (1964/1998b) no "Seminário Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise", é o sujeito suposto saber que é o motor da transferência. É esta suposição que vai garantir que o discurso possa se impor. O analista no lugar de agente do discurso opera como objeto e não faz uso do saber para exercer domínio sobre o outro, não dominando o outro nem pelo saber e nem pelo poder, como acontece no Discurso do Mestre.

Na instituição, a psicanálise se insere de modo subversivo ao vigente, que coloca o sujeito como objeto de tutela. Considerá-lo assim implica em abordá-lo de forma autoritária, acreditando possuir um saber a priori sobre ele. O saber inconsciente não pode ser transmitido pelo Outro, como pretende o discurso vigente, que coloca o sujeito em uma posição passiva, de mera receptora de conhecimento (Besset, 2005). Desta forma, "ao recusar o lugar de quem sabe sobre o sujeito e aquilo que o causa, o analista abre a via de um percurso" (Besset, 2001, p. 161).

A teoria dos discursos de Lacan possibilita ainda uma análise estrutural da instituição, do lugar que os diferentes sujeitos ocupam nessa estrutura e das forças que dirigem seu funcionamento. É esta teoria que permite ao psicanalista ter ao seu alcance uma consistência teórica advinda do próprio campo da psicanálise, que possibilite a ele examinar e dialetizar sua função na instituição.

A psicanálise na instituição hospitalar é uma práxis que exige uma sustentação teórica, ética e uma posição em que o analista possa ocupar o lugar de agente no discurso que lhe concerne, único que possibilita o giro no discurso capaz de fazer surgir o inconsciente. Além disso, a teoria dos discursos permite analisar a forma como circulam os outros discursos na instituição de saúde e as ressonâncias que o discurso psicanalítico poderá provocar no discurso médico.

Sobre a entrada do psicanalista na equipe de saúde de um hospital, Moretto e Priszkulnik (2014) ressaltam que ingressar na instituição de saúde não significa sua inclusão, assim como, o lugar do psicanalista na equipe de saúde não corresponde a uma vaga no quadro funcional desta instituição, pois esse lugar precisa ser construído para que o psicanalista possa operar, sendo sua inserção parte do processo de construção desse lugar.

Corroborando com as autoras acima citadas, Carvalho e Couto (2015) pontuam que a possibilidade de alcançar essa posição no hospital está diretamente ligada a forma que o psicanalista responde às diversas demandas que lhe são dirigidas, um lugar possível como efeito de operar uma escuta específica. O trabalho do psicanalista no hospital se faz na articulação da clínica com a teoria, na transmissão do saber que ali se constrói e na fundamentação de sua prática.

O psicanalista inserido na equipe de saúde deve sustentar o ato psicanalítico e sua posição diante dos discursos que lá circulam, bem como, as consequências desse discurso na instituição. Identificar os diversos discursos que circulam no hospital possibilita o giro do discurso e favorece a escuta, as intervenções e o posicionamento ético da psicanálise.

 

A posição doente e a possibilidade de implicação do sujeito

Sobre a posição do doente para a medicina, Lacan (1966/2001a) observa que as funções do corpo humano sempre foram objeto de experimentação. O objeto da medicina é a doença e o interesse dos médicos é o corpo doente, não exatamente o sujeito doente, assinala Clavreul (1983). Por sua vez, como observa Moretto (2001), o doente em busca de alívio e na luta pela vida, submete-se ao discurso médico, ocupando a posição de objeto de investigação médica, perdendo assim seu referencial próprio e identificando-se com sua doença.

O psicanalista toma o paciente como sujeito, sustentando esse lugar na posição de outro. O analista faz semblante de objeto para fazer emergir a verdade do sujeito e essa verdade só pode ser construída pelo sujeito quando ele fala, na medida em que esta produz significantes que o determinam. O psicanalista tem o dever ético de criar condições para fazer emergir o sujeito. Ou seja, possibilitar que o paciente possa se reconhecer naquele que sofre, construir um saber sobre seu sofrimento e, portanto, sobre si mesmo.

O analista na posição de agente do discurso precisa considerar a relação entre a demanda e o desejo do sujeito. De acordo com Lacan (1966/2001a), há uma falha entre a demanda e o desejo, visto que a demanda de um sujeito, por vezes, pode ser diametralmente oposta ao que ele deseja. Assim, ao demandar ao médico a cura de seu sofrimento, o paciente pode, na verdade, estar apontando na direção oposta de permanecer na condição de doente, em busca de ser autenticado nesse lugar. Situações como essa podem ser vistas no cotidiano de um hospital, quando o paciente apresenta uma expectativa de obter um diagnóstico que nomeie sua angústia. Antes mesmo de querer saber das possibilidades de tratamento e cura ele demanda do profissional um diagnóstico que venha validar seu sofrimento.

Lacan (1966/2001a) observa que a única posição em que o médico pode se manter é de alguém que responde a uma demanda de saber. Já o psicanalista não responde a essa demanda, mas acolhe essa demanda na posição de causa de desejo, operando a partir deste lugar pela via da transferência. Isso significa que, diferentemente do médico, o analista faz semblante de saber, uma vez que é suposto nele um saber. Tal suposição é o motor da transferência e do tratamento, visto que é através dela que o analista opera a fim de dar lugar ao sujeito do inconsciente, que detém um saber que lhe é próprio.

Sobre o saber médico, Clavreul (1983), observa que é em nome desse princípio que o médico se acha justificado a ocupar o lugar de mestre absoluto, não podendo ninguém duvidar de que ele sabe, nem ele mesmo. É importante destacar que é pela via do discurso médico que o paciente chega à instituição de saúde, surgindo com isso, a oportunidade de lhe ser oferecida escuta. Porém, a demanda pelo psicanalista pode se dar de forma peculiar, conforme Clavreul observa (1983, p. 147):

Não é (...) surpreendente que o recurso ao psicanalista geralmente se faça em último caso, depois de todas as outras tentativas terem fracassado, e nas piores condições (...)O psicanalista consultado nessas condições é uma espécie de mágico moderno, o qual permitimo-nos supor que possui receitas inexplicáveis, mas talvez eficazes.

Diante disso, o analista na instituição hospitalar, geralmente chamado como uma das últimas alternativas, vê-se confrontado com um desafio cotidiano: aquela última esperança e que possui uma receita mágica para apagar o fogo. Daí a importância da oferta do seu ofício, o que nos remete a frase de Lacan (1958/1998b) "Com a oferta, criei a demanda" (p. 623), fazendo analogia da oferta de análise com a prática do comércio comum. Em outro texto, Lacan (1975/2016) dirá ainda que: "Procuro fazer que esta demanda os force (aos analisantes) a fazer um esforço, esforço que será feito por eles" (p. 49). Diante do que propõe o autor, entendemos que, mesmo diante da oferta de escuta do analista, a solicitação de atendimento por parte da equipe de saúde exige um esforço e o analista, em troca, deve responder a esse esforço com seu trabalho especializado, embasado na teoria psicanalítica e sustentado pela ética do desejo. Portanto, a oferta de escuta está do lado do analista, mas a demanda e o desejo de análise estão do lado do paciente.

Cabe agora questionar: como se dá essa oferta de escuta dentro do hospital? Sabemos que no consultório é o paciente que vai até o analista em busca de atendimento, mas, no hospital essa relação se inverte: é o psicanalista que vai ao leito do paciente, seja na enfermaria, no CTI e até mesmo nos corredores do hospital. Algumas vezes a escuta do paciente e/ou familiar se dá nos corredores do hospital por escolha destes, para ficar longe dos demais pacientes e ter alguma privacidade. No horário de visitas no CTI, o analista oferece escuta aos familiares do paciente e isso se aplica também ao familiar-acompanhante na enfermaria em situações que se mostrem necessários durante a internação e por ocasião de óbito do paciente.

Com essa oferta abre-se a possibilidade para a equipe de saúde encaminhar o paciente para atendimento. Alguns atendimentos ocorrem dessa forma, o que pode se tornar de fato uma demanda do paciente ou não. Entretanto, de acordo com Moretto e Priszkulnik, (2014), o encaminhamento para o analista na instituição de saúde traz em si uma postura frente a subjetividade que pode determinar o tipo de demanda feita ao analista nesse espaço, ressaltando que o encaminhamento não é necessariamente uma demanda no sentido analítico, haja vista que procurar um analista não é, exatamente, desejar uma análise. Quando esse encaminhamento surge, é preciso considerar a subjetividade, isto é, uma demanda de querer saber sobre isso. Só assim é possível dizer que o psicanalista foi inserido na equipe, abrindo possibilidades de se fazer um trabalho com o paciente e com a equipe de saúde. Então, se há demanda de trabalho, significa que o analista está inserido na equipe, assim como, compreender essa demanda, é essencial também para definir a direção da intervenção.

De todo modo, no ambiente hospitalar cabe ao psicanalista tanto fazer a oferta de escuta quanto responder a essa demanda (seja do paciente ou da equipe de saúde) de forma precisa, ética e sustentada pelos princípios psicanalíticos, conforme já mencionado. Alberti (2008) salienta que é a teoria psicanalítica que justifica o ato psicanalítico. O analista, resultado de sua própria análise, é advertido que pode alavancar o giro no discurso que irá dialetizar as posições muitas vezes fixadas na dinâmica de uma instituição. Mesmo diante de tantos impasses e especificidades, não se deve recuar ao que é apresentado pela instituição hospitalar. Trabalhar em conjunto com a equipe de saúde, visando uma prática interdisciplinar produz um espaço de trocas que exige do psicanalista um novo reposicionamento. O hospital não pode ser pensado como um lugar de impossibilidades apenas pelos atravessamentos que ali ocorrem, mas também como um espaço necessário, apesar das exigências e peculiaridades.

Portanto, a psicanálise convoca subjetividade do paciente, possibilitando que o mesmo fale sobre sua dor. Dessa maneira, o sujeito pode deixar a condição de paciente para se responsabilizar pelo sofrimento que lhe causa, pois é no momento que o discurso médico exclui a subjetividade que ele abre espaço para a psicanálise. Moretto (2001) aponta que o discurso psicanalítico, ao romper com a ciência, é o único capaz de se aproximar ao que há de mais singular e de fornecer as articulações onde o desejo se inscreve, restituindo, assim, o lugar de sujeito que a ciência lhe destituiu.

O psicanalista no hospital está diante do desafio de construir novos dispositivos clínicos, a fim de formalizar sua práxis, mantendo o seu rigor ético e singular, não somente a ética do analista em relação ao sujeito e sua singularidade, mas também a ética do discurso psicanalítico dentro da instituição (Elias & Costa-Rosa, 2015). Cabe levantarmos a questão da resistência por parte da equipe de saúde em relação à circulação do discurso da psicanálise, competindo ao analista avançar até onde seja possível levando em consideração ao que Lacan (1959-60/2008) adverte em termos dos limites da análise: "os limites éticos da análise coincidem com os limites de sua práxis" (p.32).

 

Considerações finais

À guisa de concluir, compreende-se que cabe ao analista construir um lugar para além da posição marginal que lhe é endereçado no hospital, podendo ser um aliado do médico não só para fazer resistência diante do discurso capitalista na instituição, mas para atuar onde o saber médico falha. O sujeito, acometido de uma patologia orgânica, é afetado por sua posição desejante, podendo esta determinar o seu adoecimento e também sua recuperação. Escutar o paciente na sua singularidade, ouvir seu discurso para além do que ele diz, identificar os significantes que marcam sua história e o que está para além de seus sintomas físicos e de sua doença, é um ato clínico que aponta para o sujeito em questão.

Entretanto, é necessário que o psicanalista esteja ciente dos lugares discursivos que atravessam sua atuação, especialmente no que tange ao estatuto do corpo no discurso capitalista e como ele influencia o "modus operandi" do saber médico no hospital. Abordamos como o corpo é visto por este saber que, muitas vezes, atenta-se apenas para sua materialidade orgânica, seus desvios fisiológicos, a partir de uma norma padrão que não considera, seja sua normatividade vital, como nos diz Canguilhem (1966/2009), seja a economia pulsional que ele carrega, tal como a psicanálise nos ensina.

A psicanálise no hospital tem como princípios fundamentais o compromisso do analista com sua formação, a responsabilidade ética com a práxis analítica e o lugar que ocupará na instituição de saúde, na qual o discurso predominante é o discurso médico. Entende-se que a atuação do analista só será possível tendo claro a dimensão da clínica psicanalítica e a dimensão institucional no qual está inserido. Para isso, precisa saber recuar diante dessas demandas e manejar as situações que não cabem sua atuação, o que exige do profissional não só se posicionar, mas saber fazer diante dos desafios que lhe surgem, vinculados à sua formação e a formalização da práxis analítica.

Nesse sentido, podemos afirmar que, o que torna a psicanálise necessária no hospital é o fato do inconsciente estar em todo lugar, acompanhando o sujeito especialmente em situações de sofrimento intenso. A importância do analista no hospital está no lugar que ele ocupa: o de causar a produção de um saber inconsciente, vindo de Outra cena, do estranho familiar que é próprio ao sujeito e que insiste em aparecer e ser simbolizado de alguma maneira. Por fim, dizemos que a existência do inconsciente convoca a presença do psicanalista no hospital que, com seu desejo de analista, opera na direção da cura, particularmente "no que diz respeito à eleição possível que se abre para o analisando" (Rabinovich, 2000, p. 7).

 

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Patrícia do Socorro Nunes Pereira Lima - Psicóloga e Psicanalista. Docente do curso de psicologia (UNAMA e ESAMAZ). Mestre em Psicologia (UFPA).
Jamile Luz Morais Monteiro - Psicóloga e Psicanalista. Profª Adjunta do Curso de Psicologia (UFT). Doutora em Psicologia Social (PUC-SP). Mestre em Psicologia (UFPA). Especialista na modalidade Residência Multiprofissional em Saúde na área de concentração em Oncologia.
Roseane Freitas Nicolau - Psicanalista. Doutora em Sociologia (UFC) e Pós-Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Psicóloga, Profª da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA, membro da Escola Letra Freudiana e coordenadora do GT da ANPEPP "Psicanálise, Política e Clínica".

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