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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.23 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

 

O Psicólogo Hospitalar: a percepção de pacientes na clínica cirúrgica

 

The Hospital Psychologist: the perception of patients in the surgical clinic

 

 

Vivianne Rollo AlmeidaI; Myriam Siqueira da CunhaII; Maria Clara Soares SalengueIII; Renata Knorr Ungaretti FernandesIV

IUniversidade Católica de Pelotas (UCPel), Pelotas/RS. - vivianneralmeida@hotmail.com
IIInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense, Campus Pelotas Visconde da Graça (IFSUL/CaVG), Pelotas/RS. - mscpel@gmail.com
IIIUniversidade Católica de Pelotas (UCPEL), Pelotas/RS. - mariaclara.salengue@gmail.com
IVInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul -rio-grandense Campus Pelotas Visconde da Graça (IFSUL/CaVG), Pelotas/RS. - renataungarettiambiental@outlook.com

 

 


RESUMO

Este artigo é resultado de uma investigação que objetivou compreender a percepção de pacientes internados na clínica cirúrgica sobre o papel do psicólogo hospitalar. Para isso, utilizou-se o método fenomenológico-hermenêutico de abordagem qualitativa. Foram pesquisados dois pacientes de um hospital do estado do Rio Grande do Sul. O paciente cirúrgico passa por processos psíquicos de transformação durante o período de internação. O psicólogo hospitalar atua nesse contexto e estabelece relação com o paciente, auxiliando na compreensão dos aspectos que permeiam a hospitalização. A coleta dos dados foi feita por meio de entrevista em profundidade. A análise e a interpretação ocorreram a partir da redução das informações e da construção de uma estrutura da experiência vivida. Nesse processo, foram identificadas três unidades de significado: abertura ao processo dialógico; pare, olhe, escute; perdas sim, ganhos também. Os sujeitos estudados estabeleceram relação de apoio com o psicólogo hospitalar e abertura ao diálogo. Pelo parar e olhar para escutar, pelo espaço construído para que as perdas fossem reconhecidas e fosse possível perceber as brechas e os ganhos. A essência da compreensão do papel do psicólogo hospitalar foi compreendida pelos pesquisados como a capacidade de perceber o sujeito para além do paciente.

Palavras-chave: pesquisa qualitativa; pacientes; hospitais.


ABSTRACT

This article is the result of an investigation that aimed to understand the perception of patients admitted to the surgical clinic, about the role of the hospital psychologist. For this, the phenomenological-hermeneutic method with a qualitative approach was used. Two patients from a hospital in the state of Rio Grande do Sul were researched. The surgical patient undergoes psychic transformation processes during the hospitalization period. The hospital psychologist works in this context and relationship with the patient, helping to understand these aspects that permeate hospitalization. Data collection was carried out through an in-depth interview. The analysis and interpretation occurred from the reduction of information and the construction of a structure of the lived experience. In this process, three units of meaning were identified: openness to the dialogical process; stop, look, listen; losses yes, gains too. The studied subjects established a supportive relationship with the hospital psychologist and openness to dialogue. By stopping and looking to listen, by the space built so that the losses made were recognized and, it was possible to perceive as loopholes and gains, the essence of understanding the role of the hospital psychologist was understood by the respondents, as the ability to perceive the subject beyond of the patient.

Keywords: qualitative research; patients; hospitals.


 

 

Introdução

De que forma o paciente cirúrgico vivencia o processo de internação hospitalar? Há despersonalização e modificações na sua estrutura emocional nesse período? Pode-se pensar em estigmatização do doente, frente à nova situação, implicando reformulação de valores, crenças e conceitos? O que se revela desse processo são angústias, medos e conflitos surgidos durante a internação. A vivência da hospitalização leva o paciente a se ver em uma nova condição, ainda não experimentada, de vulnerabilidade física e psíquica. Emergem, assim, sentimentos desconhecidos, provocados por um contexto não habitual que passa a fazer parte da rotina de internação. Nesse contexto, o psicólogo hospitalar ganha espaço na equipe multidisciplinar.

Partiu-se da questão: qual é a percepção que o paciente cirúrgico tem do papel que exerce o psicólogo hospitalar? Para responder a essa pergunta, o estudo teve como objetivo compreender a percepção que os pacientes da clínica cirúrgica têm sobre o papel do psicólogo hospitalar, baseados nas experiências vividas, nessa relação, durante o período de internação. Esse recorte foi adotado por se considerar a clínica cirúrgica um setor hospitalar voltado à realização de procedimentos invasivos (como os cirúrgicos), que podem gerar traumas psicológicos em decorrência das modificações no corpo e na mente dos pacientes internados.

Para lidar com essa dimensão afetiva/emocional, a Psicologia Hospitalar é a especialidade da Psicologia que disponibiliza o saber psicológico para doentes, para familiares e para os profissionais da equipe de saúde, a fim de resgatar a singularidade do paciente, suas emoções, suas crenças e seus valores (Bruscato, 2004).

Não se trata, portanto, de simplesmente se transpor o modelo clássico de trabalho psicológico e psicoterápico desenvolvido no consultório para o hospital, mas do desenvolvimento de teorias e técnicas específicas para a atenção às pessoas hospitalizadas. Em sua grande maioria, apresentam demandas psicológicas associadas ao processo doença-internação-tratamento, tanto como processos determinantes quanto como reações que podem agravar o quadro de base desses pacientes, e/ou impor sequelas, dificultando ou mesmo inviabilizando o processo de recuperação (Sebastiani & Maia, 2005).

Para Simonetti (2004), "a Psicologia Hospitalar é o campo de entendimento e tratamento dos aspectos psicológicos em torno do adoecimento" (p. 15). Segundo o autor, o objeto da psicologia hospitalar se refere aos aspectos psicológicos e não às causas psicológicas. A psicologia hospitalar não trata apenas das doenças com causas psíquicas, mas sim dos aspectos psicológicos de toda e qualquer doença. Dessa forma, toda doença apresenta aspectos psicológicos, toda doença encontra-se repleta de subjetividade e, por isso, pode-se beneficiar do trabalho da psicologia hospitalar. Simonetti (2004) afirma que, diante da doença, o ser humano manifesta subjetividades: sentimentos, desejos, pensamentos e comportamentos, fantasias e lembranças, crenças, sonhos, conflitos e o estilo de adoecer. Esses aspectos podem aparecer como causa da doença, como desencadeador do processo patogênico, como agravante do quadro clínico, como fator de manutenção do adoecimento, ou ainda como consequência desse adoecimento. Nesse sentido, o objetivo da psicologia hospitalar é a elaboração simbólica do adoecimento, ou seja, ajudar o paciente a atravessar a experiência do adoecimento à medida que trabalha sua subjetividade.

A fim de obter maior compreensão sobre como se estabelece o encontro do profissional psicólogo com o paciente cirúrgico e olhar para a maneira como essa relação acontece e é construída, a seguir, apresentam-se os reflexos do adoecimento na vida dos pacientes e do período de hospitalização e, em contraponto, os grandes potenciais que nascem dessa relação.

 

Relação Paciente Cirúrgico - Psicólogo Hospitalar

Procedimentos que exigem deixar o ambiente habitual da casa, a rotina com a família e com os amigos, geram desconforto e desestabilidade, pelo menos nos primeiros momentos. Há mudança do espaço físico de costume, perda da liberdade e deslocamento do papel de sujeito agente das suas ações para o lugar de paciente.

Diante de um diagnóstico ou da inexistência dele, a entrada para um leito hospitalar demanda novas configurações de ser humano, de valores morais e existenciais. Isso exige estruturar e viver a ideia de estar hospitalizado.

Em relação à totalidade do sujeito, em um processo de hospitalização, a realidade do surgimento de uma determinada patologia estabelece novos parâmetros à existência paciente. O paciente, nesse contexto, percebe que, junto às questões da doença, advém uma bagagem carregada de uma história de vida. É relevante a maneira com que o paciente irá tratar do processo de hospitalização, no qual se encontrará em extrema fragilidade diante da própria conceituação que faz de si mesmo em termos de realidade existencial (Angerami, Trucharte, Knijnik & Sebastiani, 2010).

O paciente é uma pessoa que perde sua condição de agente, para se tornar meramente passivo em um processo de total cerceamento de suas aspirações existenciais. Nesse contexto, ganha ênfase a conquista de espaço do psicólogo hospitalar, pela possibilidade de servir de suporte e apoio, considerando as possibilidades de desequilíbrio e desestrutura do paciente. É por meio da inserção nesse campo de trabalho que o profissional de Psicologia permitirá que o indivíduo tenha a possibilidade de ter sua fala reconhecida. O valor da escuta, junto com sonhos e ilusões, permeia o leito dos internados. Por meio de compreensão da existência em toda sua multiplicidade que é mostrada a possibilidade de humanização diante da dor e do sofrimento (Angerami, Trucharte, Knijnik & Sebastiani, 2010). O psicólogo hospitalar, nesse contexto, dá voz à subjetividade do paciente, escuta o sujeito falar de si, da doença, das pessoas, da vida e da morte, do que ele quiser e decidir falar. É momento de ouvir com a intenção de acolhida, de continência (Moretto, 2001). Tem importância por não estabelecer uma meta ideal a alcançar, acionando um processo de elaboração simbólica do adoecimento, construindo um diálogo. A proposta é contribuir na travessia do adoecer, sendo um ouvinte privilegiado (Simonetti, 2004).

Frente à rotina carregada de demandas dos internados, muitas vezes não há espaço para questões que envolvem o bem-estar psicológico dos acompanhantes/familiares, muitas vezes, também fragilizados pela internação. Ismael e Santos (2013) ressaltam que frente às famílias e aos pacientes de longa permanência, é fundamental acolhimento e comportamento empático, pois o psicólogo pode oferecer um espaço para que ambos relatem medos, incertezas, angústias, sentimentos e pensamentos exacerbados com a hospitalização.

Assim, o Psicólogo Hospitalar entra em cena, com a possibilidade de permitir que o sujeito adoentado repense e reconstrua as questões que permeiam o processo de hospitalização. Será, portanto, uma busca incessante por criar situações dentro da rotina hospitalar para que o sujeito seja escutado nas suas dores psíquica e física.

Angerami, Trucharte, Knijnik e Sebastiani (2010) relatam que a partir da Psicologia Hospitalar a Psicologia redefine conceitos para entender o processo de somatização, suas decorrências, episódios e efeitos. O papel da psicologia hospitalar nasce com propósito de renovar a esperança de que exista um entendimento para além do físico, que a dor seja percebida em suas diferentes matrizes de forma mais humana e que o contexto permita que sejam realizadas escutas de angústias, sofrimentos, medos etc.

Quando se trata do papel da psicologia no âmbito cirúrgico, Pfeifer (2019) pontua que a cirurgia é uma intervenção realizada no corpo que modifica a imagem corporal do sujeito. Isso exige reconstrução de imagem e de identidade, produz reverberações psíquicas que carecem de acompanhamento psicológico durante o processo.

 

Metodologia

Tendo em vista os objetivos e a questão de pesquisa, a opção metodológica foi pela pesquisa fenomenológica hermenêutica, de abordagem qualitativa, conforme apresentada por Van Manen (2018). Esse método de pesquisa exige que o pesquisador deixe de lado tudo o que ele supõe conhecer sobre o fenômeno. Isso implica a suspensão de qualquer hipótese que antecipe a realidade a ser investigada (Gil & Yamauchi, 2012).

A fim de investigar, descrever e interpretar experiências vividas, foram entrevistados dois pacientes cirúrgicos, que durante a internação estiveram em atendimento com o psicólogo hospitalar por, no mínimo, 15 dias. Como movimento prévio, o projeto de pesquisa gerador deste estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Católica de Pelotas (UCpel), com parecer de nº de parecer 1.243.529.

A coleta de dados foi feita por meio de Entrevista em Profundidade (Seidman, 2019), que se constituiu em uma sequência de três etapas com cada participante, variando entre uma hora e quarenta minutos cada uma. As entrevistas restringiram-se em um primeiro momento a conhecer a trajetória de vida dos participantes, no segundo momento em descrever a vivência da relação estabelecida durante a internação com o psicólogo hospitalar e, por fim, a reflexão sobre o significado dessa experiência, sendo a entrevista direcionada a estabelecer congruência entre a experiência e os significados a ela atribuídos.

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas após cada encontro. O grande desafio foi construir a essência do que os dados revelaram, reduzindo-os, a fim de alcançar a elaboração do texto. A estrutura da experiência foi os temas psicológicos que emergiam das unidades de significado, definidoras da essência da experiência dos sujeitos, encontrada nas transcrições de conversações gravadas, nos materiais das entrevistas e nas reflexões sobre os protocolos gerados (Giorgi & Sousa, 2010).

 

A Experiência Vivida e Seus Significados

Para apresentação e análise dos dados que seguem, foram escolhidos nomes fictícios, aqui chamados de João e Pedro, garantindo-se, assim, sigilo do nome e identidade dos participantes da pesquisa.

A Trajetória de João

João tinha 32 anos, sendo o mais velho de três filhos. Na sua infância, os pais trabalhavam como prestadores em serviços de limpeza, o que satisfazia suas necessidades básicas de saúde, de alimentação e de moradia. Com os irmãos, auxiliava a mãe na execução das tarefas de limpeza. Tendo o pai como referência, quando o assunto é trabalho. Morou com os pais até o seu casamento. Desse casamento tem um filho.

Cresceu em um bairro periférico da cidade, costumava jogar videogame, corrida de pneus. Até os 16 anos jogou futebol de campo, passando por clubes na cidade. Nessa época, trocou as brincadeiras pelo trabalho, por razão financeira. Voltou a estudar e concluiu o quinto ano.

É bastante conhecido por seu bom humor e extroversão. Quando o assunto é sentimentos, prefere guardá-los para si, considera-se muito reservado. Começou a fazer uso de tabaco aos 11 anos e fuma até hoje. Passou a usar álcool diariamente, por isso, procurou ajuda em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Droga. Entre idas e vindas ao tratamento, hoje faz uso de medicação e frequenta semanalmente o local.

Recentemente, trabalhava em serviços gerais de uma obra. Sua equipe de trabalho era composta por mais dois homens e, durante a execução de uma tarefa, sofreu uma descarga elétrica de alta tensão da rede elétrica. João esteve na Unidade de Tratamento Intensivo. Depois, junto com seus colegas de trabalho, que também sofreram o acidente, foi encaminhado para um leito na Clínica Cirúrgica. O contato com o Psicólogo Hospitalar ocorreu durante rotina do Serviço de Psicologia.

A Trajetória de Pedro

Pedro tem 18 anos, é o filho mais velho e tem uma irmã. Durante a infância, o pai trabalhava em um engenho, e voltava em casa de dois em dois meses. Sua mãe, quando tinha alguém para cuidar de Pedro, trabalhava em atividade na safra de alimentos. Cresceu em um bairro periférico da cidade, porém sempre teve as necessidades básicas satisfeitas. Os pais se separaram quando tinha de 14 para 15 anos. Passou por cinco escolas diferentes, estudou até o 1º ano do Ensino Médio, quando deixou de estudar e optou pelo mercado de trabalho, por razões financeiras, a fim de ajudar a mãe com os gastos. Pretende ainda concluir os estudos e fazer um curso superior.

Apesar de ter muitos amigos, nos momentos de dificuldade prefere ficar sozinho, sem compartilhar sentimentos e pensamentos. Com a separação conflituosa dos pais, passou a morar com a avó, porém mantém contato com o pai e a mãe da mesma forma.

Trabalha desde os 16 anos e, ao realizar os serviços gerais em uma obra em serviços, sofreu um acidente de trabalho. Pedro esteve na Unidade de Tratamento Intensivo. Depois, junto com os colegas de trabalho, que também sofreram o acidente, foi encaminhado para o leito da Clínica Cirúrgica. O contato com o Psicólogo Hospitalar ocorreu durante rotina no Hospital.

As Experiências Vividas de João e Pedro

João sofreu acidente no trabalho, uma descarga elétrica, que lhe trouxe falha na memória sobre o fato e os detalhes. Como o acidente foi considerado muito grave, devido à medicação utilizada, não esteve consciente e lúcido por toda internação.

Para saber o que havia acontecido e o motivo da hospitalização, precisou ir "juntando partes" dos comentários feitos pelas visitas e pelos profissionais que o atenderam. Eram comentários sobre as queimaduras, entre as pessoas que naquele ambiente circulavam. Os atendimentos foram realizados no leito, algumas vezes, solicitado pelo próprio paciente. No início, João resistia a falar sobre o acidente, a internação e suas questões internas, mas à medida que o tempo passou, foi se estabelecendo uma relação semanal com o psicólogo. Relata que, depois que começaram os atendimentos, seus dias passaram a ser diferentes.

Pedro sofreu o mesmo acidente de trabalho de João. Para ele, o ambiente hospitalar era desconhecido. Contou que precisou ir "juntando" as informações para entender o que havia acontecido. Quando narra que estabeleceu consciência e lucidez, sentia o corpo queimado, tentou levantar-se da cama, porém, não encontrou forças.

Pedro foi apresentado ao psicólogo hospitalar no período pré-operatório. Quando um colega de quarto solicitou atendimento, foi também atendido. Então, passou a fazer parte de sua rotina semanal no hospital.

O sujeito Para Além do Paciente

A análise e interpretação dos dados coletados sobre as experiências vividas na relação do paciente cirúrgico com o psicólogo hospitalar seguiu o roteiro de Giorgi e Sousa (2010). A partir da redução das unidades de significado, buscaram-se aquelas que permitiram extrair a estrutura da experiência vivida pelos participantes. Nesse processo, emergiu o tema "o sujeito para além do paciente", articulado por três unidades psicológicas: "abertura ao processo dialógico"; "pare, olhe, escute" e "perdas sim, ganhos também", que expressam os olhares e visões dos pacientes sobre a atuação do psicólogo hospitalar.

No processo de análise dos dados, algumas declarações foram relevantes para compreender a essência dos diversos aspectos, diante da relação estabelecida entre paciente e psicólogo hospitalar. Ismael e Santos (2013) afirmam que o psicólogo deve buscar juntamente com o paciente essa construção, dizem que é preciso criar a condição para que, nesse espaço, seja possível se confrontar com questões que ao longo da própria história não foram possíveis, percebendo-as e descobrindo maneiras que as tornem mais suportáveis. Sendo assim, Simonetti (2004) relata que, no hospital, o psicólogo precisa sair da posição de neutralidade e passividade, características da psicologia clínica e adotar uma posição ativa. Essa mudança de abordagem no seu trabalho é um dos grandes desafios da Psicologia Hospitalar.

Abertura ao Processo Dialógico

O paciente, ao ser internado, traz consigo a necessidade de ser cuidado, tanto pela equipe hospitalar, quanto por acompanhantes ou familiares. Nas falas, João e Pedro, trazem a percepção sobre os ganhos com o acompanhamento de familiares:

"Às vezes, a gente estava para cima e a família para baixo. Matematicamente deixava a gente para baixo também. E, às vezes, ao contrário também. Então era uma conversa de dois lados, quando um afundava, precisava do psicólogo (João). A gente passou (ele e a mulher) a não precisar brigar mais. Ela nos ensinou a conversa acontecer e um convencer o outro da melhor coisa a fazer. Porque eu não sabia como falar para ela, eu aprendi com a psicóloga a colocar na prática a conversa e a explicação do que era melhor" (João).

Os atendimentos realizados também aos familiares de João, durante o período de internação, demonstraram o suporte e o manejo no cotidiano hospitalar. Pedro sempre se mostrou reservado com seus pensamentos e sentimentos, mas, ainda assim, colocou em destaque a relevância de os próprios pais terem sido atendidos nesse momento e os reflexos disso para si:

"Porque conta muito o que os nossos familiares estão sentindo. Ajuda a família a se organizar, em um clima tenso que nem uma notícia dessas, todo mundo se perde, não sabe o que fazer. Ajuda bastante a família a organizar suas coisas" (Pedro).

"Aí o psicólogo vai lá e coloca as coisas no lugar, seguraria essa barra junto, tiraria a tensão e ajudaria a pensar no melhor a fazer agora. Ver meus pais, atendidos, eu já ficava melhor, é como um reflexo, "onde" um está bem e o outro se contamina com aquela sensação boa. O mesmo com a coisa ruim, então facilita muito" (Pedro).

De acordo com João e Pedro, existe uma relação direta entre o bem-estar psíquico dos familiares e o deles próprios. É necessário que ocorra simetria do bem-estar do paciente e de seus familiares.

Portanto, há uma desorganização no cotidiano do indivíduo e daqueles que o acompanham, principalmente os familiares. O psicólogo, como agente facilitador do diálogo, das possibilidades e da explicação aos pacientes e dos familiares, separadamente, favorece a relação entre ambos.

Nesse cenário, é indispensável considerar a representação familiar do processo de hospitalização e o que ela propicia aos pacientes e membros da família. Vale ressaltar que a família é considerada uma estrutura social básica, com delimitação de papéis e diferenças específicas, entretanto, relacionadas. Para que haja funcionamento adequado na estrutura familiar, espera-se diferenciação de papéis.

Cabe-nos pensar como manter o funcionamento adequado em um momento crítico, como a hospitalização (Ismael & Santos, 2013). Há necessidade de organizar essa estrutura de modo que funcione nesse momento. Portanto, "a efetivação do acompanhamento psicológico pressupõe a tarefa de assistência ao paciente e à família" (Romano, 2002). Assim, não se pode perder de vista a importância da força afetiva da família. Ela representa os vínculos que o paciente mantém com a vida e é, quase sempre, uma importante força de motivação na situação de crise.

Para possibilitar o processo dialógico, Simonetti (2004) afirma que o foco da Psicologia Hospitalar é o aspecto psicológico em torno do adoecimento. Esses aspectos estão "encarnados" no paciente, na família e na equipe de profissionais. Nesse contexto, a Psicologia Hospitalar estabelece como objetivo de trabalho não só a dor do paciente, mas também a angústia declarada pela família. Além de considerar as pessoas individualmente, também se ocupa das relações entre elas, constituindo-se em uma psicologia de ligação, com a função de facilitar os relacionamentos entre pacientes, familiares e médicos.

Também existem dificuldades evidentes enfrentadas pelos participantes quando a questão é o diálogo e a comunicação com os profissionais. A sensação, conforme relatada abaixo, é de desconhecimento e de dúvidas. O psicólogo entra nessa rotina, como possibilidade de permitir melhor entendimento e descrição da real situação clínica, com disponibilidade para o diálogo simétrico. "Elas eram nossos tradutores. Se nós íamos pegar um laudo médico, vinha cada palavra que eu não fazia nem ideia, e elas pegavam aquilo, e já nos diziam o que queriam dizer. Colocavam isso na nossa linguagem" (João).

João e Pedro expressam a visão frente à possibilidade de ter alguém que percebe o não dito, o desconhecido e o incomunicável. Demonstram o conforto que a transformação de antes desconhecida em uma comunicação simples e direta, momento em que a linguagem adequada faz diferença. "Ajuda que dão para a gente se comunicar com o médico. Tem coisas que eu não fazia nem ideia de que o médico estava me dizendo. Quase que eu ter que entender inglês, que eu não sei nada" (Pedro).

Dessa forma, o psicólogo hospitalar abre espaço para tornar a linguagem clínica acessível ao paciente. É na conversa, na linguagem, que ocorre a identificação entre psicólogo hospitalar e paciente cirúrgico. Nesse sentido, Simonetti (2004) explica que essa é a porta de entrada para um mundo de significados e sentidos.

Uma das maiores preocupações da Psicologia hospitalar é entender os sentidos e revelações atribuídos ao sintoma e à hospitalização. O Serviço de Psicologia ganha espaço à medida que busca tornar esse contexto menos adverso, frente à rotina de medicamentos, de exames, de consultas médicas, entre outros procedimentos que fazem parte do ritual do cuidado.

Muitas vezes não era preciso ter uma questão única e específica para trabalhar nas conversas e encontros com o psicólogo hospitalar, bastava saber que tinha a chance de trocar a angústia e a tristeza por diálogos gratificantes. Nos relatos de Pedro, a visita do psicólogo hospitalar permite mudança, isso significa um esvaziamento na turbulência inicial. "Mas, no dia a dia, mudava todo ambiente que a gente vivia quando o psicólogo chegava ao quarto (...). Era bom ter psicólogo. Tem muita diferença entre ter e não ter um, entre os profissionais" (Pedro).

Nesse contexto, a atuação do psicólogo hospitalar é vista pelos participantes como abertura ao diálogo, seja no âmbito familiar, com a equipe ou sobre a própria internação.

Pare, Olhe, Escute

Em situação de adoecimento e internação, o paciente recebe cuidados por vários profissionais, cada um com sua função. Porém, o psicólogo hospitalar percebe o paciente cirúrgico além do diagnóstico clínico. Nas falas abaixo, é destacada essa percepção, pelos próprios sujeitos da pesquisa: "(...) Não nos julgavam por ter aquela coisa aberta, com cheiro ruim (...). Quando tu encontras pessoas que fazem o serviço como elas, é diferente" (João).

Nesses relatos, o conforto e a confiança, durante os encontros, permitiram espaços para os sujeitos vislumbrarem possibilidades para além da realidade objetiva vivida. No ambiente hospitalar, o psicólogo busca empatia e disponibilidade para a escuta. Pedro relata sua visão sobre o modo de ser dos profissionais da psicologia. "O psicólogo era disponível, para falar qualquer coisa, as pessoas confiam neles. No hospital era de se ver a facilidade que eles tinham de nos ouvir, ouvir meus amigos, entendendo até. Eles deixavam nós falarmos do que queríamos" (Pedro).

O ambiente hospitalar desenha-se como um dos espaços que a Psicologia dispõe, no qual prevalecem preceitos de compreensão do fenômeno humano. Uma maneira singular de atenuar a dor daquele que sofre no leito hospitalar. Quando o sujeito se depara com a doença, sua subjetividade sofre transformações. Nas falas, João manifesta as formas como enfrentava a angústia a partir das intervenções da psicologia. "(...) É importante para angústia sair, para as coisas ruins irem embora e ficarem as boas quando se conversa (...). Elas tinham o segredo da palavra, a tranquilidade da explicação. Elas se colocavam no nosso lugar" (João).

Para Pedro, as conversas com o psicólogo hospitalar representam o espaço de fala que lhe era concedido:

"(...) O tratamento, o jeito das palavras, é muito diferente de uma pessoa que não é dessa área. Elas tinham mais facilidade para fazer a gente aceitar as coisas, fazer as coisas ruins saírem de nós (...). Não tem outra pessoa que consegue chegar ao que o psicólogo consegue nas conversas, nos olhares" (Pedro).

Simonetti (2004) refere como as conversas ocorrem entre paciente e psicólogo hospitalar. Ao escutar, o psicólogo "sustenta" a angústia do paciente tempo suficiente para que ele possa elaborá-la simbolicamente. A elaboração simbólica permite ao paciente fazer a travessia da experiência do adoecimento.

Ismael e Santos (2013) expõem que é nesse sentido que os profissionais precisam manter postura de disponibilidade, identificando e entendendo as necessidades dos pacientes, reconhecendo o sujeito para além do paciente, a pessoa para além do diagnóstico.

Perdas Sim, Ganhos Também

Nesse processo vivenciado pelo paciente, relatos do histórico pessoal se unem ao viver o adoecimento e a internação. O psicólogo hospitalar cria espaço de abertura para novas perspectivas frente à situação atual e futura.

Um acidente, foi algo inesperado, foi preciso um tempo para reconstruções e reflexões sobre a vida pós-internação. João narra diálogos que se refletiram no período pós-hospitalar:

"Faziam eu ver o meu futuro depois do que tinha acontecido (...). Hoje eu olho e parece que me lembro delas conversando comigo (...). Às vezes estou na rua distraído e vou me lembrando delas conversando, eu penso que está doendo e lembro do que me falaram, e alivia" (João).

Já para Pedro, um jovem, as perdas foram representativas, principalmente pela impossibilidade de continuar praticando uma das atividades que mais gostava, jogar futebol. Nas conversas com o psicólogo, Pedro conta sobre o estímulo para que desse novo sentido às suas perdas:

"Diante daquela situação tão difícil que é viver lá dentro, olhar para ti e te ver naquele estado. Elas nos faziam olhar para frente, para o que a gente podia ainda viver, que a gente tinha perdido algumas coisas, mas ainda tinham outras, a parte positiva de sobreviver depois do acidente". (Pedro)

"Quando entrava o psicólogo e começava a conversar, eles nem tinham hora marcada. Mas, às vezes, faziam coisas que nem o remédio para passar a dor tiravam, como a dor no peito. Eles abriam espaço para as coisas boas virem. As coisas que elas falavam, mesmo que não fossem para mim e fosse para o colega do lado, eu gravei, eu sei a palavra certa delas e o sorriso no rosto do meu amigo na hora da internação" (Pedro).

Um dos pontos primordiais para que o psicólogo hospitalar possa auxiliar o paciente internado é a percepção do momento em que a doença ocorreu, a fase do desenvolvimento que o paciente se encontra e as características da doença (Ismael & Santos, 2013). O psicólogo hospitalar parte da situação do indivíduo, para abrir espaço, quando o próprio sujeito permitir, para o caminho da construção de estratégias de enfrentamento. Embora as situações que os levaram à internação não tenham sido modificadas, o psicólogo hospitalar contribuiu para a percepção sobre a vida e as possibilidades de mudança, para enfrentar as perdas e reconhecer os ganhos possíveis.

 

Considerações Finais

Neste estudo conhecemos a trajetória de vida de João e Pedro. Ambos tiveram infância perto da família, rodeados por amigos e bons vínculos. Durante a adolescência, João apresentou características mais extrovertidas, Pedro relatou postura mais "reservada" e contida, apesar de ter um vasto circo de amizades. Na vida adulta, os dois construíram espaço para o campo de trabalho, deixando os estudos para segundo plano.

O motivo que os levou à internação hospitalar foi um acidente de trabalho, e o encontro com o psicólogo hospitalar ocorreu em uma rotina na Clínica Cirúrgica. A partir de então, passaram, semanalmente, a manter contato com o psicólogo.

Foram pouco a pouco estabelecendo vínculo, e em meio às situações difíceis, criou-se um espaço para o diálogo com os psicólogos.

A partir das unidades de significado "abertura para um processo dialógico," "pare, olhe, escute", "perdas sim, ganhos também", emergiu o tema "o sujeito para além do paciente".

Os sujeitos relataram suas experiências, suas visões da relação com o psicólogo hospitalar e atribuíram sentido a essa vivência. Os resultados obtidos com este estudo indicaram que João e Pedro estabeleceram relação de apoio com o psicólogo hospitalar, possibilidade de trocas e construções com esses profissionais em diversos aspectos. Pela abertura ao diálogo, pelo parar e olhar para escutar, pelo espaço construído para que as perdas fossem reconhecidas, mas que, sobretudo, fosse possível perceber as brechas e os ganhos, é que a essência da compreensão do papel do psicólogo hospitalar é traduzida, pelos sujeitos pesquisados, como a capacidade de perceber o sujeito para além do paciente.

Longe de se exaurir o tema, este estudo cria brechas para reflexão. Aqui, olha-se para um recorte pontual, para uma das faces dessa área que, a cada dia, abre, ocupa espaços e expõe sua relevância no bem-estar psíquico e físico dos que carecem de cuidado.

 

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Vivianne Rollo Almeida - Psicóloga e especialista em Atenção à Saúde Oncológica e especialista em Psicologia Hospitalar.
Myriam Siqueira da Cunha - Formada em Direito e Filosofia, especialista em Metodologia do Ensino, mestre e doutora em Engenharia de Produção, docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia.
Maria Clara Soares Salengue - Psicóloga, especialista em Psicologia Educacional e Psicopedagogia, mestre e doutora em Educação, docente e coordenadora do Serviço de Psicologia (Serviço-Escola) da UCPEL.
Renata Knorr Ungaretti Fernandes - Tecnóloga em Gestão Ambiental pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense/Campus Pelotas-Visconde da Graça.

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