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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.24 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

 

O lugar da Psicanálise na prática com familiares enlutados na Unidade de Terapia Intensiva

 

The place of Psychoanalysis in practice with family members facing mourning in the Intensive Care Unit

 

 

Gabriel Abbade dos SantosI; Lucas Bondezan AlvaresII

IUniversidade do Oeste Paulista - Presidente Prudente/SP - gabrielabbadedossantos@gmail.com
IIUniversidade do Oeste Paulista- Presidente Prudente/SP - lucasalvares@unoeste.br

 

 


RESUMO

O hospital possui o discurso médico como saber científico hegemônico. Já a psicanálise é representante de uma antinomia radical que busca operar uma escuta não normalizadora. Diante de tal realidade, esse artigo faz reflexão da psicanálise enquanto possibilidade de intervenção no sofrimento, produtor de efeitos singularizantes diante a vivência do luto. A escuta psicanalítica engloba os processos de subjetivação possibilitando intervir no instante de sofrimento dos sujeitos que acabam de vivenciar uma ruptura causada pelo enfrentamento da morte. Esse trabalho compreende que a escuta psicanalítica é capaz de resgatar a subjetividade anulada pela cena hospitalar, criando condições de singularização. Sendo a psicanálise capaz de alinhar a escuta para um campo singularizante a partir de sua ética e prática, encontramos aqui, uma maneira de olhar e acolher o sofrimento das famílias levando em consideração o inconsciente.

Palavras-chave: escuta psicanalítica; luto; hospital.


ABSTRACT

The hospital has the medical discourse as the hegemonic scientific knowledge. Psychoanalysis, on the other hand, represents a radical antinomy that seeks to operate a non-normalizing listening. Faced with this reality, this article reflects on psychoanalysis as a possibility of intervention in suffering, which produces singularizing effects in the experience of mourning. Psychoanalytical listening encompasses the processes of subjectivation, making it possible to intervene in the suffering of subjects who have just experienced a rupture caused by facing death. This work understands that psychoanalytical listening is capable of rescuing subjectivity annulled by the hospital scene, creating conditions for singularization. Since psychoanalysis is capable of aligning listening to a singularizing field based on its ethics and practice, we find here a way to look at and welcome the suffering of families, taking the unconscious into consideration.

Key words: psychoanalytical hearing; mourning; hospital.


 

 

Introdução

Esse ensaio pensa a escuta em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) a partir da psicanálise. Acreditando que a mesma enquanto teoria, ética e técnica subsidiam a escuta qualificada e o acolhimento nesse contexto. Para tal, levantaremos algumas considerações a respeito da especificidade do contexto de morte iminente buscando contribuir com o manejo das demandas psíquicas que surgem na UTI por parte das famílias de pacientes em estado grave e risco de morte anunciada pela equipe, propondo que o manejo desse grupo em questão pode ser auxiliado pela noção de Real em Jacques Lacan relacionada à angústia que é evidente nas famílias de pacientes internados em UTI com risco de morte iminente. Acredita-se que a principal contribuição do dispositivo psicanalítico seja o de escutar livremente, produzindo assim efeitos de singularização diante da angústia presente.

Reconhecer o saber do sujeito como autêntico, parece ser essa a aposta de Lacan ao propor o discurso do analista como aquele que produz no outro o desejo de saber por meio do enigma (Lacan, 1992/1969-1970). Sendo assim, a psicanálise permite escutar e acolher o sofrimento das famílias sem necessariamente dar respostas, respeitando assim a individualidade de cada membro da família.

A resolução nº 07 de 2010 do Ministério da Saúde, que dispõe sobre os requisitos mínimos para funcionamento das UTIs, insere a psicologia como prática assistencial, o que institui o campo de atuação para que o profissional de psicologia atue nesse setor específico. Desse modo, a psicologia na UTI é a disciplina instituída a escutar e trabalhar com o sofrimento da família e do paciente.

Para Foucault (1999), historicamente, conforme o hospital passa a ser ocupado pela medicina, torna-se cada vez mais aparelho de exame, e com o advento da psicologia hospitalar como subproduto da psicologia da saúde, é importante dar atenção à herança do caráter examinador, de modo a não resultar em uma reprodução de normalização e de exame do comportamento para sustentar a ordem médica (Clavreul, 1983). Se para Clavreul, o discurso médico é o avesso da psicanálise, propomos então a psicanálise como teoria e método às práticas propostas e dispostas a escutar o sofrimento psíquico em sua singularidade dentro do ambiente hospitalar, uma vez que permitirá ao trabalhador psicólogo que se curve sem pressupostos normalizantes ou universais, subvertendo o discurso hospitalar.

Algo próximo ao que Moretto (2001) sustenta sobre não responder à ordem médica e sim à ordem do sujeito, mas com a saliência de tomar cuidado para que não se reproduza outra ordem. É como Simonetti (2015) propõe: uma clínica na cena hospitalar que se inclina à outra cena, a cena do sujeito. É importante ressaltar que não se trata de sustentar aqui uma visão na qual a seja restrita ao psicólogo e sim que ela seja incluída na escuta do sofrimento por essa prática profissional, mas não somente. A psicologia, ao ser instituída como especialidade do psiquismo, corre o risco de assumir um viés normalizador e disciplinar tanto do comportamento como do próprio sofrimento, dotado de teorias e técnicas capazes de realizar um manejo-controle.

Ao orientar-se pela psicanálise, o psicólogo se aproxima do que Lacan dá nome de Discurso do Analista, aquele que produz mais enunciação do que enunciado, que agencia causa de desejo no sujeito (Lacan, 1992/1969-1970). De acordo com Costa-Rosa (2011), na Atenção Psicossocial há baixa incidência de éticas que não sejam baseadas numa deontologia, ou seja, ao que se deve ou não fazer, e nesse panorama propõe a ética da psicanálise para além de tais éticas vigentes. Pensar em escutar, acolher e dar suporte psicológico a uma família em sofrimento na beira de um leito de hospital, mais especificamente na UTI, exige o reconhecimento de que esse espaço físico e institucional é dominado e até constituído historicamente a partir do discurso médico, um discurso de mestria que pode ser facilmente reproduzido (Clavreul, 1983; Lacan, 1992/1969-1970).

Pensar a psicanálise como subsídio à escuta qualificada se sustenta no fato de ser ela ao mesmo tempo ética, prática e teoria que inclui o sujeito do inconsciente e assim melhor se alinha à proposta de acolhimento e de escuta, pois é nessa inclusão que se localiza a possibilidade de protagonizá-lo. É no reconhecimento do sujeito do inconsciente que é possível escutar suas diferenças, reconhecer suas necessidades e ir além delas, tornando possível que o mesmo dê ritmo ao seu próprio sofrimento a partir de suas próprias palavras. Levar essa possibilidade às famílias no ambiente da UTI é dar continente para que cada membro da família dê ritmo à sua própria angústia que emerge diante do risco de perder seu ente querido. Buscando compreender essa angústia a partir da teoria lacaniana, podemos compreender que ela: "ocorre quando não se tem significantes que simbolizam o buraco no Real", e por isso convidá-lo a falar, para que então signifique seu buraco (Moretto, 2001, p 22).

 

A Morte e a Dor do Luto: o Encontro com o Real

O encontro com a morte do outro é algo que pode aproximar o sujeito enlutado do Real, isto é, o Real do Inconsciente. Para Lacan (2005/1962-1963), Real, Simbólico e Imaginário equivalem aos registros essenciais da realidade psíquica, o que só se torna possível através da linguagem enquanto fator estruturante do inconsciente. O Real é aquele que "escapa" de ser representado, o "choque com algo", o "impensável que leva à interrogação", algo da ordem do impossível. Já o Imaginário e o Simbólico, outras duas dimensões, sendo a primeira relacionada ao fenômeno da fantasia e a segunda ao que há de mais próximo da experiência analítica (Lacan, 2005/1962-1963, pp. 9-54). Lacan os distingue ao mesmo tempo em que os descreve num embaraço recorrendo ao nó borromeano como representação, e desse modo ao mesmo tempo em que se diferenciam Real, Simbólico e Imaginário se atravessam e se homogeneízam (Lacan, 1974-1975).

Há algo vital no medo da morte, é o que nos protege e permite seguir nossos planos e nossas obras, mas, ao mesmo tempo, algo privativo na medida em que deixamos de viver para não morrer, o que pode ser explicado como um instinto de autoconservação (Kovacs, 1992). Estar diante de um ente querido na UTI que se encontra em estado frágil sob o risco de vir a óbito é angustiante, cabendo ao psicólogo que se orienta pela psicanálise, convidar o sujeito à fala. Um curioso fato e que aqui seja compreendido como uma reflexão, é que só é possível falar sobre a morte enquanto se está vivo. Por mais que se teorize, temos pouco a dizer a respeito da morte, há algo nela do Real.

Para Freud (2010/1917) o luto é um processo no qual a libido que antes se dirigia ao objeto perdido sofre uma descatexia e é aos poucos devolvida ao eu tornando-se possível de ser reinvestida. O Eu fica "livre e desimpedido". Porém tal processo envolve um "doloroso abatimento", uma perda tanto do interesse pelo mundo externo quanto da capacidade de eleger um novo objeto para reinvestimento libidinal. Além disso, a morte é inconcebível, ou seja, é possível dizer que no fundo cada um de nós está convencido de sua imortalidade uma vez que no inconsciente não há nenhuma negação e somente impulsos instintuais. A experiência da perda pode se transformar em sofrimento melancólico, isto é, um empobrecimento do Eu provocado quando a libido, devido a uma identificação narcísica com o objeto perdido é incapaz de ser reinvestida no mundo externo, podendo ser contra investida sob a forma de sintoma (Freud, 2010/1917).

Ao pensar na psicanálise enquanto estratégia para a escuta qualificada é necessário ir além dos sintomas, não os descartando, mas reconhecendo neles o valor simbólico. Perder alguém é uma experiência angustiante que pode levar o sujeito angustiado à fala, mas não só a ela, também ao choro, à raiva, enfim, é algo que coloca o sujeito de encontro com seu sofrimento, e de algum modo com sua própria finitude. Faz-se assim necessária a escuta dessa angústia que muitas vezes no hospital não são acolhidas em sua singularidade, pois o hospital, deixando de lado a "outra cena", o sujeito do inconsciente (Simonetti, 2015). É dando lugar à outra cena a partir da escuta psicanalítica que se possibilita que haja luto, isto é, a elaboração da perda e acolhimento da angústia a partir da articulação simbólica.

Para Lacan, há algo do Real na angústia, isto é, algo da ordem do indizível e do inimaginável, chega inclusive a comparar o silêncio do analista como sendo um exemplo do encontro com o Real (2005/1962/1963, p. 45). A morte pode ser entendida também como um silêncio, não do analista, mas da vida. Está ela relacionada diretamente com a angústia e com a dor, logo com o registro do Real. Para Freud (2010/1926, p. 90) a angústia possui como característica a não presença de um objeto no sentido em que se angustia como uma reação ao "perigo da perda".

Juan-David Násio (1997) dá continuidade às colocações freudianas ampliando a ideia de dor psíquica relacionada à perda de um objeto. Para o autor, quando o objeto em questão é o ser amado, o outro ao qual estamos ligados por um laço afetivo, o que pode se dar familiarmente, há a perda de uma presença do outro em nosso psiquismo e é aí que a dor se instala. Mas é interessante compreender as formas nas quais essa presença do outro pode se constituir no psiquismo humano. Se estivermos falando da presença do outro enquanto ser desejante de si, isto é, a presença real da força do desejo do outro. É essa força que impera de forma desconhecida que incorpora o laço inconsciente com o outro, constituindo assim o real do outro, ou "outro real" (Nasio, 1997):

O real é simplesmente a vida no outro, a força de vida que anima e atravessa o seu corpo. É muito difícil distinguir nitidamente essa força que emana do corpo e do inconsciente do eleito enquanto ele está vivo e me excita, dessa outra força em mim que arma meu inconsciente. Muito difícil, na medida em que essas forças, na verdade, são uma mesma e única coluna energética, um eixo vital e impessoal que não pertence nem a um nem ao outro parceiro. Difícil também porque essa força única não tem nenhum símbolo nem representação que possa significar-lá. É o sentido do conceito lacaniano de "real". O real é irrepresentável, a energia que garante ao mesmo tempo a consistência psíquica de cada um dos parceiros e do seu laço comum de amor. (Nasio, 1997, p. 43).

Quando a presença do outro é marcada pelo Imaginário, estamos diante do que diz à fantasia inconsciente que possuímos desse outro ao qual nos ligamos. Diz respeito ao ideal de objeto que se forma no Eu a partir da catexia, ideal que só é constituído a partir dos atributos presentes nesse Eu e que possibilitam tal construção (Freud, 2010/1917). "O outro imaginário é, pois, simplesmente uma imagem, mas uma imagem que tem a particularidade de ser ela própria uma superfície polida, sobre a qual se refletem permanentemente as minhas próprias imagens" (Násio, 1997, p. 46):

É isto que queríamos dizer: a fantasia, e mais geralmente o inconsciente que ela manifesta, é uma construção psíquica, um edifício complexo que se ergue, invisível, no espaço intermediário e repousa sobre as bases que são os corpos vivos dos parceiros. Assim sendo, quando nos ocorre perder a pessoa do eleito, a fantasia se abate e desaba como uma construção à qual se retira um dos pilares. É então que a dor aparece. (Násio, 1997, p. 49).

Se a força do desejo do outro é em si mesma irrepresentável, o que se torna passível de representação são as variações de tal força. É isso que constitui a "presença simbólica do outro no inconsciente" (Nasio, 1997). Na impossibilidade de simbolizar a força do outro em si, simbolizam-se as oscilações de modo que "o outro simbólico é um ritmo, ou ainda um compasso, ou melhor, o metrônomo psíquico que fixa o tempo da minha cadência desejante". (Nasio, 1997, p. 45).

Vemos que por intermédio dos registros RSI (Real, Simbólico e Imaginário) formulados por Lacan, desenha-se a presença do outro em nosso inconsciente. Nosso "objeto de amor", e entende-se aqui como a pessoa à qual nos ligamos, por laços que sejam de amizade ou família, estão presentes em nosso psiquismo não só a partir de imagens e palavras, mas também de expectativas e sobretudo como aquilo que catalisa nosso desejo. Perder o outro é perder a fonte que movimenta nosso desejo (outro real), mas não a capacidade de desejar, se em nós ainda houver vida. Perder o outro é perder aquilo que estrutura nosso espelho interior e nos conduz a olhar para si mesmos (outro imaginário) e também é o que dá o ritmo desse olhar e desse desejo (outro simbólico). "Isso quer dizer que perdemos a coesão e a textura de uma fantasia indispensável à nossa estrutura" (Násio, 1997, pp. 49-50).

Acolher uma perda através da escuta psicanalítica possibilita continuidade à incerteza, ao mesmo tempo em que fornece continência ao que dela se desdobra. A imprevisibilidade dos quadros incide diretamente sobre esse "outro real", e, logo, no desejo do ser amante (família), mas também no "outro simbólico" alterando o compasso do próprio desejo de cada um dos familiares. O estar diante de um outro que, fragilizado, respira por aparelhos e necessita de cuidados o tempo todo, incide ainda no modo como cada familiar tende a olhar para si. É como se o espelho psíquico de cada membro da família fosse paulatinamente perdendo a capacidade de gerar imagens de si (outro imaginário). Ainda que a presença do outro se constitua como real, simbólica ou imaginária, a perda em si abala o desejo, é ela um encontro com algo do Real sendo a escuta psicanalítica nesse contexto de urgência e de dor, aquilo que acompanha todo abalo psíquico que a situação proporcionará.

A perda em si faz com que os sujeitos se encontrem, a partir do real do outro, com o real de si mesmos e é nesse encontro com o Real que a psicanálise se insere enquanto instrumento de escuta - como uma viabilização do Simbólico, o que é característico do processo analítico (Lacan, 1974-1975). Há na vivência da morte do outro uma demanda de simbolização que configura um potencial, pois é possível que a elaboração dessa experiência seja facilitada por uma escuta fundamentada na ética do desejo.

Por fim, é interessante ressaltar que não há garantias de quais resultados podem ser obtidos por meio dessa escuta, porém, a possibilidade de simbolização se garante a partir dela, sobretudo em um contexto emergencial e breve como o aqui discutido. Podemos então defender que é possível com a escuta psicanalítica acolher os efeitos de angústia que partem do Real da perda, pois a escuta psicanalítica pode dar suporte ao sofrimento das famílias dos sujeitos acometidos, fornecendo um momento de singularização, dentro de um espaço onde o que impera é a submissão da subjetividade aos procedimentos e aos saberes hospitalares que compõem um discurso de mestria, quase que numa própria objetificação dos sujeitos do sofrimento.

 

Demanda e Complexidade Transferencial

A transferência no hospital é complexa e pode se manifestar em múltiplas formas de relação: transferência do paciente para com a equipe, instituição, médico, psicólogo e família (Simonetti, 2011). É importante reconhecer que a transferência também partirá dos familiares, sobretudo nos casos em que visitam diariamente o paciente na UTI, repetindo no médico, na equipe, na instituição e, também no psicólogo que os escutar, sua forma de se relacionar com um outro. Da mesma forma, como uma via de mão dupla, cada membro da equipe pode contratansferir, resultando assim em um campo relacional complexo do qual demandas surgirão. O suporte psicológico à família em UTI possui peculiaridades, às quais podemos nos debruçar em duas: à demanda e à complexidade transferencial. A equipe pode solicitar o profissional "psi" para atender à sua demanda e não à demanda da família, o que se põe como um desafio na interconsulta em equipes multiprofissionais. Lê-se demanda da equipe aqui como sendo a própria dificuldade da equipe em lidar com as emoções e os questionamentos da família para com eles. Pode-se dizer que não só da equipe, mas do hospital como instituição há demandas as quais a partir da ética psicanalítica o analista não poderia atender. Porém, retaliar-las seria arriscado, é preciso acolhê-las, mas de que modo? Para Moretto (2001) há um silêncio necessário por parte do analista para essa demanda:

Sendo assim, não podendo dizer sim nem não, impõe-se a necessidade do silêncio. Silêncio que me remete ao silêncio do analista. Existem situações em que é preciso não dizer nada. Silêncio responsável, no sentido de que ele é uma resposta a essa demanda, que provoca no ouvinte a suposição de saber. Pois bem, suposto o saber, ou, melhor dizendo, colocado o analista nessa posição de sujeito suposto saber (posição esta imposta pelo próprio analista e que de certa forma não deixa de ser uma impostura necessária para que se faça Psicanálise, onde quer que esteja o profissional), descobri que há um lugar para o analista na instituição. E é só a partir desse lugar que ele pode operar analiticamente. Que lugar é esse? (p. 22-23).

Ainda para Moretto (2001), há no hospital uma antinomia radical entre a medicina e a psicanálise, uma vez que a psicanálise se interessa mais pela ordem do sujeito e não pela ordem médica. É importante ter cautela pois a demanda da equipe pode não corresponder à demanda do sujeito, à qual a psicanálise se interessa mais. Propor-se a escutar as famílias diante da perda iminente do ente querido é fazer o avesso do saber médico que tende a explicar a morte de uma maneira biológica e corporal. A psicanálise é o oposto, se propõe não à explicação, mas à viabilização da construção de um saber diante da crise emocional da família.

A psicanálise entra em jogo para viabilizar que o sujeito entre em contato com o desejo através da escuta qualificada e qualquer situação que apareça sob a forma de uma demanda como exemplo a desconfiança, a revolta, o medo, pode ser o ponto de partida para esse trabalho. O hospital é um lugar de construção histórica de um saber-poder biomédico onde, embora a cura sempre tenha sido sinônimo de sucesso, a morte nunca é um fracasso desde que haja para ela algo baseado em seu saber (Clavreul, 1983). O que isso quer dizer é que no campo das biociências não há lugar para a ausência, tanto a vida quanto a morte possuem explicação justificada pela razão. Nem a morte tira o saber médico do lugar de mestre, e o hospital autêntica esse lugar sendo um ambiente de desenvolvimento do próprio. Há de se reconhecer o perigo dessa mestria uma vez que com o desenvolvimento científico-tecnológico a medicina passa a ser perigosa não somente em sua ignorância e ineficácia, mas também com a ascensão de seu próprio saber (Foucault, 2010/1974).

A escuta possui seus contratempos, sobretudo no hospital. Nesse local onde o discurso do mestre/médico impera e toma como seu produto o objeto da doença, a Psicanálise entra em jogo para subverter essa relação (Clavreul, 1983). O autor propõe então que o discurso psicanalítico é o oposto do discurso médico. Em sua leitura, Clavreul considera que a doença é um signo que ao ser validado pelo médico e relacionado a outros signos, formam a síndrome e logo formam a doença. Somos assim sinalizados de que é natural que na escuta haja demanda do lugar de mestria por estarmos no hospital, ambiente onde o conhecimento empírico, baseado em evidências, é hegemônico. Mas, para produzir uma escuta psicanalítica é preciso se abster desse saber. Isso porque entre psicanálise e medicina há uma antinomia, são duas práticas que não respondem a uma mesma ordem e não se sustentam de uma mesma ética (Moretto, 2001). Como coloca Lacan (1992/1969-1970): "o que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem do saber, e não do conhecimento ou da representação" (p.28). Desse modo, escutar psicanaliticamente a angústia das famílias na UTI é trabalhar com a fala de modo a permitir a articulação simbólica por meio da ligação de significantes, provocando assim a produção de um saber autêntico.

A escuta deve ater-se a um real que se manifestará pela via do inconsciente, sob a forma de angústia uma vez que algo dela parte do Real (Lacan, 1974). É a essa angústia, que parte da família, que a escuta qualificada pela psicanálise se curvará, e fica difícil inferir que o dispositivo psicanalítico provocará uma análise no sentido clássico de sua compreensão. É uma situação em que a escuta tem função de acolhimento, de endereçamento de questões interpessoais e intrapsíquicas, é essa a demanda em questão. Não há uma análise propriamente dita, acredita-se que possa haver algo em alguma instância analítico sempre que a ética do desejo estiver em jogo. É essa ética, da falta-a-ser, que subverte o discurso do hospital, médico-mestre, na medida em que não atende a essa demanda com saber dominante sobre o sujeito, e sim provocando neste o desejo de saber de si, desejo de saber-se.

O discurso do hospital é o discurso do mestre e a relação desse discurso para com o discurso médico ao qual se refere (Clavreul, 1983) é de equivalência. A demanda no hospital é velada por seu discurso e para operar com a psicanálise é necessário permitir algo próximo dos Discursos da Histérica e do Analista, pois é onde há a possibilidade tanto de emergir quanto de provocar o desejo de saber, seja pela via da histerização ou pela via do enigma (Lacan, 1992/1969-1970). Por essa via, seria possível captar o sujeito em sua complexidade, isto é, no "a mais" do que demanda, isto é, no seu próprio sintoma-sofrimento. Todavia, a atuação com famílias na UTI, contexto o qual discutimos aqui impõe seus limites, pois muitas vezes o contato com o profissional que se dispõe a acolher essa família é breve e determinado pelo manejo de múltiplas relações transferenciais.

No hospital, a dinâmica transferencial pode ser considerada complexa e nem sempre a equipe multiprofissional arcará com o manejo dessa complexidade. Uma porque ela também demanda e outra porque nem sempre esteve ali inserida pela ordem do sujeito. Tratando-se da transferência como um fenômeno composto pela repetição, ao atermo-nos a ela como "parcela que se dirige não só para o analista, mas para todos os âmbitos da situação presente" (Freud, 2010/1914, p. 151), fica clara a ideia de que algo se repete sem a determinação de um objeto ou situação específica. Desse modo talvez seja possível dizer que a dinâmica transferencial no hospital é complexa, pois é enorme a rede de relações intersubjetivas que nele se encontra. Porém, a partir da escuta psicanalítica é importante reconhecermos transferência como unicamente do sujeito, de modo que se é entendida como "contratransferência" é em última instância a transferência do próprio analista (Lacan, 1960-1961, p. 190).

Não está constitutivamente determinada na inter-relação, mas no mecanismo da repetição que enquanto ocorre envolve um objeto externo, que pode ser aquele que acolhe a família na UTI. "Não bastando com as palavras, o analista paga o lugar que ocupa com seu próprio ser" (Lacan, 1963, pp. 592-593) uma vez que através dessa leitura a sua própria repetição não está ausente na escuta, mas que é preciso dela se abster. Compreender a transferência como uma relação dual, portanto é um erro (Lacan, 1963, p. 613). Para Freud "Referimo-nos a uma transferência de sentimentos para a pessoa do médico, pois não acreditamos que a situação terapêutica possa justificar o desenvolvimento de tais sentimentos". (Freud, 2010/1917, p. 476). Supomos isto sim, que toda essa disposição para o sentimento provém de outra parte, que ela já estava pronta em cada membro da família e, por ocasião do acolhimento é transferida para algum personagem da cena hospitalar.

Encontra-se já em Freud a noção de que a transferência é um fenômeno que não necessariamente é dependente de uma relação dual. A presença do analista a ativa, mas não a determina, o que se sustenta na própria noção de que a disposição à repetição já é algo que se encontra no psiquismo sendo a presença do analista algo que não justifica a ocorrência desse fenômeno. Dizer que o hospital é repleto de dinâmicas transferenciais complexas seria considerar a riqueza de repetições no campo dos cruzamentos de conflitos psíquicos vividos tanto pela equipe multidisciplinar, quanto pelos sujeitos doentes e seus familiares. Mesmo diante de inúmeros sujeitos, interessam aqueles passíveis da escuta e alvo do trabalho de acolhimento e de suporte, logo, mesmo que haja uma complexidade transferencial que se justifica pelo cruzamento de inúmeras subjetividades que compõem a cena institucional ou grupal do hospital, nos interessa a cena singular de cada um que se destina a ser escutado. Eis aqui um desafio, pois escutar uma família diante da possibilidade de perder um ente querido implica escutar esse cruzamento, sem abrir mão da noção de que a transferência se dá por si, isto é, trata-se do singular.

 

Possibilidades a partir da escuta psicanalítica à família na UTI

Na busca por um tratamento o doente: "(...) vem às vezes nos pedir para autenticá-lo como doente (...) que o tratem da maneira que lhe convém, ou seja, aquela que lhe permitirá continuar a ser um doente bem instalado em sua doença" (Lacan, 2001/1966, p. 3). Lacan referia-se à busca pelo médico, por aquele que trata do corpo, o lugar do gozo no qual a medicina instala o signo de uma doença por algo escapar do padrão de normalidade alinhando-se assim ao Discurso do Mestre e propondo uma terapêutica adaptativa a uma realidade serializada (Costa-Rosa, 2011). A psicologia não se distancia muito dessa capacidade de mestria e normatização uma vez que também pode posar da posição de saber mestre e normatizar pensamentos e comportamentos (Benelli et al., 2017).

A partir disso, pensar a escuta psicanalítica à família na UTI exige ir além desses fatores disciplinares da escuta, para que aquele que a escuta não acabe por posar de Outro conselheiro ou cuidador, mas de um outro que a partir de uma renúncia a esse lugar de Outro, possa proporcionar à família um espectro simbólico, isto é, não necessariamente de interpretação e simbolização mas de abertura do inconsciente. É algo como reconhecer no acolhimento o sujeito do inconsciente, e oferecer uma escuta a partir da ética do "fal(t)a-a-ser" e de seu próprio desejo de analista, sendo a partir disso possível ir além do enunciado e não recuar às enunciações, aos questionamentos e à histerização do discurso (Lacan, 1992/1969-1970). É como um não recuar diante do hospital, e por tratar-se desse lugar, não recuar diante do sofrimento familiar diante da perda iminente (Moretto, 2001).

Pela escuta psicanalítica é possível partir do imaginário pleno, estático e não-faltante que se apresenta como verdade para dar o acesso ao saber inconsciente que é singular, a partir do ato analítico: "uma incitação ao saber" (Lacan, 2008/1968-1969, p. 333). É por tal caminho que se torna possível dar outro lugar ao choro, à raiva, à melancolia familiar diante da perda de um ente querido. Acolher é dar o lugar da escuta ao sofrimento, mas só é possível considerar esse movimento como psicanalítico ao conduzir esse sofrimento a uma simbolização autônoma pelo sujeito. Lacan exorta que o analista é convidado a reinventar a psicanálise, e não se trata de fazer uma nova e sim de recriar, fazer-se autor em sua experiência de analista onde opera pelo ato analítico, algo que se dá pela vida dos significantes e não simplesmente dos conceitos (Elia, 1999).

Numa análise, a dificuldade em ter acesso ao inconsciente é vencer a barreira do imaginário, onde há sentido para chegar ao sem-sentido do inconsciente (Santoro, 2006, p. 61). Na realidade aqui discutida, de acolhimento, é certo que o papel da escuta seja provocar a dimensão simbólica a operar na fala do sujeito, porém nem sempre isso pode ser possível, há um potencial simbólico que pode vir a surgir, mas dificilmente será o bastante para equivalê-la a posteriori ao que pode vir a ser uma análise. É como propõe Decat de Moura (2000, p. 13), algo como "produzir efeitos de ordem analítica em situações não analíticas". O que qualifica a escuta a partir da psicanálise é justamente o reconhecimento de um sujeito a advir em si próprio. Tal situação só se torna possível a partir de um discurso analítico, o qual deve: "se encontrar no polo oposto a toda vontade, pelo menos confessada, de dominar. (...) afinal, é sempre fácil voltar a escorregar para o discurso da dominação, da mestria" (Lacan, 1992/1969-1970, pp. 65-66). A psicanálise movida pela "incitação ao saber" destitui a ideia de "setting analítico" e amplia as possibilidades de operar sua escuta. Passa-se do "setting" à "esfera da ética" (Quinet, 2009, p. 8).

Sustentar a psicanálise e sua escuta é automaticamente uma convocação a reconhecer que o poder de uma relação analítica dirige o caso e não o sujeito e estendamos essa colocação lacaniana para defender que o poder dirige a escuta e não a fala (Lacan, 1958). Assim, há um reconhecimento e um cuidado guiado por uma ética, para que essa relação de poder não produza efeitos não subjetivantes.

O dispositivo psicanalítico possui elementos flexíveis que é possível inverter lógicas e mudar posições discursivas (Checchia, 2010). A escuta psicanalítica ao mesmo tempo em que reconhece o poder do analista, o convoca a renunciá-lo, de modo a não ocupar no discurso um lugar de Mestre e sim um lugar de "ignorância-douta", que é capaz provocar desejo no sujeito. Um lugar de mais enunciação e menos enunciado, não promovendo Discursos onde se sabe-tudo (Discurso do Mestre) ou onde de tudo-sabe (Discurso do Universitário), mas sim, a partir da histerização do discurso (Discurso da Histeria) um Discurso Analítico capaz que provoca desejo e produz saber no lugar de verdade (Lacan, 1992/1969-1970).

Os princípios éticos, técnicos e teóricos são forças que se entrecruzam na instalação do dispositivo psicanalítico, sendo que o usufruto do poder na escuta dirige à provocação do desejo do sujeito escutado, o que nos lembra algo de quando Lacan diz que o poder dirige o tratamento e não o sujeito (Checchia, 2010). A escuta psicanalítica reconhece e assume o poder do lugar que o analista ocupa, mas em sua ética insiste em dizer: "recuse-o!", e a partir da recusa dá lugar para a diferença, como exemplo na UTI, dá lugar para a histerização do discurso da família, isto é, para o questionamento e o enfrentamento familiar, pois quando a família confronta a equipe multiprofissional a respeito da situação de seu ente querido bem como quando inclusive confronta o fenômeno da morte, demanda que algo seja sabido, e se para Lacan (1992/1969-1970) há algo dessa histerização no Discurso do Analista, é por essa via que a relação da escuta pode encontrar efeitos mais subjetivantes do que estratificantes. Pela via do Discurso da Histeria (DH) a priori, e se possível pelo Discurso do Analista (DA). São esses, discursos avessos ao que Lacan (1992/1969-1970) chama de Discurso Universitário (DU) e Discurso do Mestre (DM), este último representado pelo Discurso Médico sobre o qual foi discutido anteriormente (Clavreul, 1983). O analista assume uma posição de "objeto a" no discurso, e é de seu lado que há saber (S2), saber adquirido na medida em que escuta o sujeito (Lacan, 1992/1969-1970). Nesse discurso, no lugar do analista não há nenhuma pretensão de sujeito, sem contar que ao falarmos de posição do analista, ou lugar do analista, estamos falando de um lugar pelo qual só se pode passar, mas não permanecer (Almeida, 2009). Temos portanto, entre os 4 discursos: DM (Mestre), DA (Analista), DU (Universitário) e DH (Histérica), apenas dois que a partir de Lacan (1992/1969-1970) podem ser considerados psicanalisantes: o DH e o DA. É pela passagem por esses dois discursos que a escuta pode proporcionar situações de subjetivação mais maleáveis, pois proporciona situações de criação e diferenciação a partir do desejo de saber:

Escuto falarem muito de discurso da psicanálise, como se isso quisesse dizer alguma coisa. Se caracterizamos um discurso centrando-nos no que é predominante, existe o discurso do analista, e este não se confunde com o discurso psicanalisante, com o discurso proferido efetivamente na experiência analítica. O que o analista institui como experiência analítica pode-se dizer simplesmente - é a histerização do discurso. Em outras palavras, é a introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica (...) (Lacan, 1992/1969-1970, p. 31).

A escuta psicanalítica a partir do referencial de Freud e Lacan, quando oferecida no ambiente da UTI, permite a angústia e a legitimidade do sofrimento humano, e assim dá ambiência a um outro ambiente, o ambiente da subjetividade que só dá sinais a partir da fala a um outro e através da fala assim se evanesce. Por fim é interessante lembrar que a escuta no hospital é uma escuta oferecida, pois o analista é quem vai até o paciente e mostra a ele que há um lugar onde é possível demandar algo, de certo modo no hospital a oferta cria a demanda (Moretto, 2001). Sendo assim, instalar o dispositivo da escuta psicanalítica na UTI é oferecer às famílias dos pacientes sob o risco de vir a óbito que busquem movidos pela angústia de tal momento, falar sobre a própria, construindo assim um saber autêntico e singular sobre a experiência da perda, ou do adoecimento do próximo.

 

Considerações Finais

Até aqui se discorreu sobre a abertura de possibilidades que a escuta psicanalítica traz para a prática de escutar a família na UTI, contexto marcado pela possibilidade da morte mesmo diante de corpos vivos. A psicanálise pode ser compreendida como dispositivo flexível ao permitir reconstituições subjetivas a partir de um processo analítico e alterações em posições discursivas (Checchia, 2010). É a possibilidade de uma escuta que gira os discursos, passando pelos Discursos do Mestre, da Histérica, do Analista e da Universidade.

Uma escuta guiada pelo dispositivo de Freud-Lacan cria condições para que o sujeito escutado possa ver-se e rever-se, mesmo que em situações em que não se configuram uma análise. Inclusive, a princípio é o dispositivo psicanalítico que leva em consideração o aspecto da subjetivação, uma vez que inclui o sujeito do inconsciente. "O analista tem muita consciência de que não pode saber o que faz em psicanálise. Há uma parte dessa ação que lhe resta, a si mesmo, velada" (Lacan, 2008/1968-1969, p. 342). A partir da abordagem do fenômeno da contratransferência como transferência do próprio analista (Lacan, 1998), coloca-se a escuta em acolhimento numa na direção da singularidade e da própria ética da psicanálise como propõe Lacan, ética do desejo ou da falta-a-ser, na medida em que não atende à demanda (Santoro, 2006). Além do mais, é nos giros discursivos da relação da escuta que o analista no hospital possui com sua escuta um dispositivo capaz de criar condições para que o sujeito articule seus próprios significantes e construa um saber próprio e singular.

É necessário reconhecer que o hospital é um lugar possível de se instalar a escuta psicanalítica, pois a psicanálise ultrapassa as fronteiras do consultório mobiliado uma vez que trabalha com o sujeito falante, esse presente no hospital. Mesmo sendo um trabalho de tempo breve e oferecido, isto é, na maioria das vezes o analista é quem oferece escutar, a escuta psicanalítica se torna possível a partir do ato do analista (Moretto, 2001).

Na brevidade e imprevisibilidade do acolhimento às famílias diante da perda do ente querido na UTI, aberturas podem não ser fechadas e pouco se pode projetar a respeito desse processo. Criar condições analíticas em situações não analíticas como propõe Decat de Moura (2000) a partir da psicanálise de Freud-Lacan, na brevidade da escuta familiar na UTI é reconhecer que no sujeito escutado há um potencial simbólico a ser acessado ou não, e não se trata de acelerar ou forçar esse acesso pois desse modo seria realizar a psicanálise em seu próprio avesso (Lacan, 1992/1969-1970). Para Freud (1996/1937, p. 247), "Se um conflito instintual não está presentemente ativo, se não está manifestando-se, não podemos influenciá-lo, mesmo pela análise". Se estivermos trabalhando em contextos que não são a princípio dessa "demanda de análise", não dá para esperar de maneira instantânea o trabalho de conflitos instintuais profundos. No hospital, o corpo protagoniza tanto o sofrimento quanto o cuidado e é necessário reconhecer esse fator para que uma escuta possa produzir efeito no sujeito. Na beira do leito de uma UTI o ente querido em alguma instância pode compor o enredo da família, e numa situação de morte iminente ou da própria perda eventual, os membros familiares podem experimentar a dor de uma perda, dor essa que possui seus tempos: tempo de ruptura, de comoção e da reação do sujeito (Násio, 1997). Afirmamos aqui que há no mínimo em cada sujeito da família o que aqui se opta por chamar de instância simbólica iminente que em momento algum deve ser o ideal da escuta, deve ao menos ser a consideração de uma possibilidade, pois onde há sujeito há a oportunidade de acessar o simbólico, salvo alguns casos. O analista, a partir de seu "savoir-faire" faz a aposta de que há sujeito onde quer que seja, reconhecendo os impossíveis de cada situação. A brevidade da situação hospitalar talvez não viabilize inclusive que os três tempos da dor: de ruptura, comoção e reação do Eu, sejam experimentados pelo sujeito-família. É muito angustioso correr o risco de perder uma fonte de geração da imagem de si mesmo (presença imaginária do outro), tanto quanto perder aquilo que acende ao nosso próprio desejo e que também dá ritmo e representação a isso (Násio, 1997). É também como correr o risco de perder o objeto ao qual estavam depositados expectativas, fantasias, ideais (Freud, 2010/1917). Estar diante da possível morte do outro é se deparar com o próprio real da finitude de si mesmo. Nessa cena de fragilidade, todo sofrimento é legítimo, não há garantias a serem dadas como exemplo de que a dor da perda passará ou que a angústia e o medo dela têm razão ou sentido. A angústia representa o real e o real não faz sentido (Lacan, 2005/1962-1962). Sustentar o lugar da escuta não é sustentar o sentido, é dar lugar e permissão ao inexplicável. Uma escuta pelo real, na direção do simbólico, é essa a escuta psicanalítica.

 

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Gabriel Abbade dos Santos - Psicólogo.
Lucas Bondezan Alvares - Mestre em Educação nas Profissões de Saúde pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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