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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.24 no.2 São Paulo jul./dez. 2021

 

Morte, sofrimento e representação: uma análise psicodinâmica sobre intensivistas*

 

Death, suffering and representation: a psychodynamic analysis about intensivists

 

 

Samuel Fernando BrasilI; Juliana Eschiavoni BarbozaII; Rodrigo Jorge SallesIII; Danuta MedeirosIV

IUniversidade de São Paulo - São Paulo/SP - E-mail: sfbrasil3@gmail.com
IIUniversidade São Judas Tadeu - São Paulo/SP - E-mail: julianaeschiavoni@hotmail.com
IIIUniversidade São Judas Tadeu - São Paulo/SP - E-mail: rodrigojsalles@hotmail.com
IVFaculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Extrema - São Paulo/SP - E-mail: danutamedeiros@gmail.com

 

 


RESUMO

Esse estudo buscou analisar os recursos defensivos de profissionais de terapia intensiva, como eles lidam com a morte e com o sofrimento de seus pacientes. Participaram do estudo 10 intensivistas da Oncologia, que atuam em um hospital privado na cidade de São Paulo/SP. Os participantes responderam a uma entrevista semiestruturada que foi analisada a partir da análise de conteúdo, e ao Questionário Desiderativo (QD) que seguiu a proposta de Nijamkin e Braude (2000). Identificou-se que os intensivistas enfrentam dificuldades para entrar em contato com os conflitos trazidos pela situação de morte simbólica no QD, adotando mecanismos defensivos como repressão e negação. Verificou-se também dificuldades relacionadas à identificação com o sofrimento dos pacientes, falta de preparo e inconformidade com a morte.

Palavras-chave: unidade de terapia intensiva; oncologia; mecanismos de defesa; técnicas projetivas.


ABSTRACT

This study aimed to analyze the defensive resources of intensive care professionals and how they deal with death and suffering of their patients. The study included 10 Oncology intensive care workers from a private hospital in the city of São Paulo/SP. Participants answered a semistructured interview that was analyzed using content analysis, and responded to the Desiderative Questionnaire (DQ), as proposed by Nijamkin and Braude (2000). It was found that intensive care workers have difficulties getting in touch with the conflicts that the situations of symbolic death in the DQ bring forth, adopting defensive mechanisms such as repression and denial. They also showed difficulties regarding the identification with the suffering of the patients, unpreparedness, and non-acceptance of death.

Keywords: intensive care unit; oncology; defense mechanisms; projective techniques.


 

 

Introdução

A história do hospital enquanto instituição se confunde com a compreensão desse espaço na atualidade. Os hospitais surgiram como casas de assistência, onde se cuidava e abrigava os pobres, enfermos e viajantes, por isso a origem da palavra hospital, que vem do termo latim hospes, que significa hospedeiro ou hóspede (Ministério da Saúde, 1944/1965; Sanglard, 2006). Devido à forte influência religiosa, os hospitais, no início, tinham função de caridade e auxílio aos errantes, miseráveis e moribundos, enquanto isso, os mais abastados recebiam cuidados médicos particulares em suas residências (Ministério da Saúde, 1944/1965; Foucault, 1979/1984; Ornellas, 1998).

Para Foucault (1979/1984), até o século XVIII na Europa, não se exercia no hospital uma função terapêutica ou de cura dos doentes; o hospital era um local de morte, separação e exclusão, que fornecia apenas assistência material e espiritual ao sujeito que estava prestes a morrer, era um morredouro e as pessoas que ali trabalhavam tinham por objetivo garantir a salvação eterna. Ainda de acordo com Foucault (1979/1984), com o desenvolvimento da tecnologia e o exercício da disciplina ocorreram mudanças dentro dessa estrutura e do ambiente hospitalar, deixando de ser religioso-leigo e transformando-se em médico-técnico, com caráter de tratamento de doenças e não apenas de assistência aos moribundos.

Mais tarde essas mudanças na concepção do hospital aliadas ao contexto sócio-histórico do século XIX dão origem às Unidades de Terapia Intensiva - UTIs. De acordo com Santos, Almeida e Rocha Júnior (2012), o surgimento da UTI se deu através de Florence Nightingale, uma enfermeira que organizou os doentes em áreas conforme a gravidade de seus ferimentos durante a guerra da Crimeia, entre 1853 e 1856. Dessa forma, com a constatação de que seria mais benéfico para os pacientes críticos serem colocados em uma sala isolada, visando a manutenção da saúde através de uma equipe especializada e com equipamentos específicos, cria-se o conceito de UTI.

A UTI atual, para Santos, Almeida e Rocha Júnior (2012), é vista como um local "frio", "hostil", pela utilização de recursos tecnológicos e auxílio especializado, e repleto de crenças de que haverá o prolongamento da vida do paciente. Mas segundo Vicensi (2016), o fato de que nessa unidade abrigam-se pacientes graves ou terminais faz da morte um elemento presente no cotidiano da UTI e dos intensivistas, assim esse ambiente que fornece recursos para impedir a morte, muitas vezes apresenta-se como um paradoxo para estes profissionais, pois enquanto uns concebem a UTI como local para morrer, outros parecem não aceitar essa condição.

As UTIs podem ser classificadas em I, II e III, de acordo com necessidade de assistência da localidade onde estão inseridas e são divididas conforme a faixa etária, sendo UTI Neonatal, UTI Pediátrica, UTI Adulto e além dessas existem as UTIs especializadas, que são voltadas aos atendimentos por determinada especialidade ou a um grupo específico de doenças (Ministério da Saúde, 1998). Apesar das classificações e das diferentes especialidades das UTIs, os desafios e as dificuldades no tratamento de pacientes graves ou terminais estão presentes em todas elas, porém nas UTIs especializadas em Oncologia podem existir desafios ainda maiores.

De acordo com Mendonça, Moreira e Carvalho (2012), a assistência aos pacientes das UTIs Oncológicas, que em grande parte são portadores de câncer em estágio avançado e sem possibilidade de cura, traz mais dificuldades e repercussões para o trabalho dos intensivistas. O câncer que culturalmente é associado a aspectos negativos e ameaçadores como a dor, sofrimento e terminalidade, pode fazer com que os profissionais da saúde que atuam no tratamento de pacientes oncológicos sintam-se impotentes diante dos limites dos recursos pessoais e científicos disponíveis (Silva, 2009).

Além disso, de acordo com Hercos, Vieira, Oliveira, Shimura e Sonobre (2014), a especialidade oncológica é estressante para os profissionais da saúde por demandar cuidados de alta complexidade ou cuidados paliativos e apresentar com frequência situações de contato com a morte, trazendo ainda mais dificuldades para esses especialistas. O propósito da UTI é oferecer suporte fisiológico, monitoramento intensivo e constante para suprir falhas orgânicas agudas e reversíveis aos pacientes que necessitam, porém, nos casos de câncer, mais de um terço dos pacientes em estágio avançado ou terminal são admitidos nas UTI, e desses que entram em terapia intensiva mais da metade morre após a admissão nessas unidades (Ferreira, Vieira & Tonon, 2010).

Enquanto os aparatos tecnológicos presentes na UTI parecem reduzir o espaço da certeza da finitude e muitos profissionais da saúde são formados para impedir a morte a todo esforço, como se ela não fosse algo natural do curso da vida, alguns profissionais têm dificuldades para lidar com a morte de seus pacientes (Silva, Valença & Germano, 2010). De acordo com a literatura, os profissionais da saúde muitas vezes chegam a substituir a palavra morte por sinônimos e eufemismos como falecimento, óbito, "bateu com as dez", "foi morar com Deus", entre outros, na tentativa de distanciarem-se do sofrimento (Zorzo, 2004).

Para Kovács (1992/2008), a morte de seus pacientes pode colocar o profissional em contato com o medo de sua própria finitude. Assim, tratando-se de profissionais de terapia intensiva, é possível compreender, que ao encontrarem dificuldades para lidar com a morte, alguns intensivistas podem se relacionar de forma fria e distante, mas em seu interior reservam e acumulam sentimentos de culpa, insatisfação, fracasso e negação (Silva, Valença & Germano, 2010).

De acordo com Kovács (1992/2008), todo sujeito traz dentro de si uma representação do que é a morte, constituída ao longo de sua vida por transmissão cultural, familiar, religiosa ou por investigação pessoal, isto é, por seus meios o sujeito dará para morte qualidades, personificações e formas, para que possa simbolizar a morte. Além disso, durante todo o processo da vida passamos por vários tipos de mortes, desde a perda do corpo infantil à perda de um ente querido. Segundo Pitta (1990/2003), o homem moderno tenta negar e afastar a morte de sua vida cotidiana, escondendo-se atrás de um saber técnico utilizado como refúgio dos seus sentimentos de impotência.

Para Kovács (2005), negar a morte é uma forma de não entrar em contato os efeitos dolorosos que ela pode produzir. Freud (1915/2010) afirma que a morte é o desfecho inevitável e necessário de toda vida, é um fato natural e incontestável, porém no inconsciente duas atitudes se opõem e conflitam em relação à morte, a primeira a admite como aniquilação da vida e a segunda nega e a trata como irreal, manifestando na realidade na atitude frente à morte a tendência a evitá-la. Para Kovács (1992/2008), com frequência, profissionais escolhem a área da saúde para lutar contra a morte e a esperança de vencê-la nesta luta semeada no terreno da onipotência, pode dar a ideia de força e controle, mas quando perdem um paciente, estes profissionais podem se culpar e se sentir derrotados pela morte, e então ocultam seus sentimentos a fim de negar e evitar o sofrimento que a morte provoca.

O homem seria pouco capaz de executar suas ações normalmente e ficaria paralisado se a morte estivesse em sua consciência o tempo todo, por isso, a serviço da crença inconsciente de imortalidade e do desejo de onipotência lança mão de mecanismos de defesa, a fim de evitar os conflitos gerados pela morte (Kovács, 1992/2008). Para Kusnetzoff (1982), os conflitos, em grande parte, se desenvolvem no confronto entre duas tendências ou direções; uma que procura descarga e outra que tenta evitá-la, e esse jogo de forças, conforme o autor, seria base inicial dos processos defensivos.

Na teoria psicanalítica, defesa é um dos primeiros conceitos metapsicológicos apresentados do ponto de vista dinâmico. Em seu estudo intitulado 'As Neuropsicoses de Defesa', Freud (1894/1990) apresenta a atitude defensiva como uma resposta a uma representação incompatível, assim, quando o Eu se confronta com experiências ou sentimentos que suscitam afetos dolorosos ou desagradáveis, uma defesa surge contra o possível sofrimento. Dessa forma, a ação defensiva é uma tarefa da qual o Eu se ocupa na tentativa de expulsar, converter ou tratar as representações incompatíveis como não presentes e nesse esforço o Eu consegue enfraquecer essas representações, retirando delas o afeto.

Por essa relação de retirada do afeto, que permite a repressão da associação da representação incompatível com as demais representações do Eu, Freud, ao longo de sua obra, reduziu o uso da palavra 'defesa', passando a utilizar com predominância a palavra 'repressão'. No entanto, no texto 'Inibições, Sintoma e Angústia', Freud (1926/2014) retoma o primeiro termo e considera como vantajoso "a distinção entre a tendência mais geral da "defesa" e a "repressão", que constitui apenas um dos mecanismos de que a defesa se utiliza" (p.50).

De acordo com Kusnetzoff (1982), os mecanismos de defesa são recursos e técnicas evitativas que surgem diante de estímulos ameaçadores ao equilíbrio do aparelho psíquico, suas funções de adaptação, ajustamento e de redução da tensão tendem a evitar os conflitos internos ou externos, mantendo uma função homeostática psíquica. Em Laplanche e Pontalis (1987/2001), encontramos a definição de defesa como um "conjunto de operações cuja finalidade é reduzir, suprimir qualquer modificação suscetível de pôr em perigo a integridade e a constância do indivíduo biopsicológico" (p.107).

No que se refere a utilização de mecanismos de defesa por profissionais de saúde no contexto hospitalar, Medeiros e Pinto Júnior (2006), apontam que situações ansiógenas como sofrimento e a morte presentes no hospital, podem gerar dificuldades de enfrentamento para os profissionais, assim estes se utilizam de defesas para que possam se proteger dos conflitos, cumprir suas funções e executar suas tarefas. Diante disso, considerando que na UTI oncológica a morte está ainda mais presente no cotidiano dos profissionais da saúde e que isso pode representar mais conflitos e ameaças ao equilíbrio psíquico desses profissionais, o objetivo dessa pesquisa foi verificar e analisar os principais conflitos e recursos defensivos adotados por intensivistas no contato com o sofrimento e morte de seus pacientes. Além disso, buscou-se descrever os principais conflitos relacionados ao ambiente de uma UTI oncológica e analisar como os intensivistas compreendem a morte.

 

Método

Desenho do Estudo

Trata-se de um estudo de campo e levantamento, de cunho observacional e corte transversal. Foi realizada uma pesquisa qualitativa e descritiva, que emprega técnicas padronizadas de coleta de dados.

Participantes

Participaram da pesquisa 10 profissionais da saúde que atuam em Unidade de Terapia Intensiva Oncológica de um hospital privado de grande porte em São Paulo/SP - Brasil, maiores de 18 anos e com no mínimo cinco anos de experiência, aqui entendido como tempo necessário para uma experiência profissional mais ampla e um provável contato com a morte no ambiente de trabalho. Por tratar-se de uma amostra autogerada, foram convidados para participar da pesquisa os indivíduos que se enquadravam nos critérios de inclusão e solicitado que estes indicassem outros participantes. Mattar (1996) define que uma amostra autogerada é a solicitação feita a um participante para que indique um conhecido que também faça parte da mesma população para a pesquisa.

Materiais e Procedimentos

O projeto submetido para avaliação e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade São Judas Tadeu, em 15 de maio de 2019 (CAAE:12514319.0.0000.0089) e a coleta de dados foi realizada entre junho e julho de 2019. Após a indicação de um participante, foi estabelecido contato telefônico para verificar seu interesse em participar da pesquisa, em seguida foi realizada a coleta de dados em horário e local de escolha do voluntário, para garantir que se sentisse à vontade e fosse mantido o sigilo de suas respostas, ao final, por se tratar de uma amostra autogerada, foi solicitado que indicasse outro participante, dessa forma ocorreu com todos indicados. Para todos os participantes, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), documento que permite a participação do voluntário na pesquisa, assegurando seus direitos e dos pesquisadores, através das informações sobre os objetivos da pesquisa e somente após sua assinatura se deu a coleta de dados.

Todos os participantes responderam a uma Entrevista Semiestruturada, composta por nove questões elaboradas pelos autores, a fim de levantar informações que qualificassem a amostra e abordassem a temática proposta, em seguida foi aplicado o Questionário Desiderativo, conforme proposto por Nijamkin e Braude (2000). Todas as respostas foram gravadas e após a transcrição do conteúdo os áudios foram excluídos.

O Questionário Desiderativo (QD) é uma técnica projetiva verbal, ainda não validada no Brasil, que possui a finalidade de investigar o grau de estruturação do eu, mecanismos de defesa, traços da personalidade frente à morte simbólica e, também, o funcionamento psicodinâmico e aspectos afetivos do sujeito, entre outros pontos. O QD foi criado em 1946, pelos espanhóis Pigem e Córdoba, e em 1956, Jaime Bernstein fez modificações em sua forma de aplicação, nesta pesquisa optou-se pela utilização da adaptação de Graciela Celener de Nijamkim e Mónica Guinzbourg de Braude, publicado em 2000, uma vez que esta foi a primeira adaptação para o Brasil e introduziu publicações em português relacionadas ao QD (Pinto Junior, Rosa, Chaves & Tardivo, 2018). Sua aplicação consiste inicialmente em seis questões, sendo três escolhas e três rejeições e o porquê da resposta, a resposta escolhida corresponde ao símbolo desiderativo e o seu porquê a expressão desiderativa.

As escolhas e rejeições se enquadram em três categorias: animal, vegetal e reino inanimado, por isso quando respondida a questão "Se não fosse uma pessoa, o que mais gostaria de ser? Por quê?", nas escolhas, e "Se não fosse uma pessoa, o que menos gostaria de ser? Por quê?", nas rejeições. O aplicador elimina a categoria escolhida e elabora uma nova questão, e, assim recebe uma nova resposta, isso se repetirá até o final da aplicação. A consigna do QD coloca o participante frente à morte simbólica e a impossibilidade de ser, fazendo com que ele deva-se imaginar "morto" para se pensar como outro ser não humano, dessa forma, esse instrumento possibilita compreender a capacidade de defesa frente à morte fantasiada (Nijamkin & Braude, 2000).

Embora o QD ainda esteja em processo de validação no Brasil, ele tem sido utilizado em pesquisas que o revelam como uma técnica projetiva muito eficiente para analisar aspectos da personalidade e investigar conteúdos emocionais (Pinto Junior, Rosa, Chaves, & Tardivo, 2018). Dentre os estudos que fizeram uso do instrumento, na literatura brasileira estão Medeiros e Pinto Júnior (2006); Moura Júnior, Godoy e Medeiros (2018); Pinto Junior, Rosa, Chaves e Tardivo (2018), entre outros. Destaca-se a pesquisa de Medeiros e Pinto Júnior (2006), que visando compreender a dinâmica interna dos profissionais de saúde e os mecanismos de defesa utilizados no contexto hospitalar, se serviram do QD e identificaram que os profissionais hospitalares conseguem se adaptar e preservar o equilíbrio psíquico no desempenho de suas funções, utilizando defesas ora mais evoluídas, ora mais primitivas.

Análise dos dados

Os protocolos do Questionário Desiderativo foram analisados seguindo as orientações e instruções propostas por Nijamkin e Braude (2000), dessa forma os dados obtidos foram analisados individualmente e em seguida foi realizada uma análise geral, considerando as respostas de todos os participantes a fim de encontrar elementos convergentes ou divergentes. Buscando uma melhor compreensão do funcionamento defensivo dos intensivistas foram selecionados os seguintes itens propostos pelas autoras para análise: (1) Adequação à consigna (instrução) e Instrumentalização dos Mecanismos de Defesa instrumentais: relativos à primeira e segunda dissociação, identificação projetiva e racionalização, operações mentais necessárias para que o sujeito responda às demandas da consigna e possa lidar com as dificuldades que ela apresenta; (2) Tempo de reação: referente ao lapso que transcorre entre a consigna e o aparecimento da resposta símbolo; (3) Sequência dos reinos: que indica a relação entre o instinto de conservação e os impulsos de morte do sujeito.

Para a análise e interpretação do material coletado por meio da entrevista semiestruturada foi utilizado o método de análise de conteúdo proposto por Bardin (1977/2011), que consiste em uma análise prévia do material com diversas leituras flutuantes para organização e estruturação do conteúdo. Na fase seguinte de exploração ocorre a categorização do material realizando separações no texto e depois reagrupando em categorias temáticas empregando o critério semântico. A análise dos resultados foi realizada a partir da interpretação dos pesquisadores. Tendo em vista uma exposição mais dinâmica para a discussão dos resultados, optou-se pela apresentação das categorias na forma textual, utilizando trechos dos relatos das entrevistas como meio de ilustração da discussão.

 

Resultados e discussões

Caraterização dos Participantes

Participaram da pesquisa 10 intensivistas, 7 do sexo feminino e 3 do sexo masculino, com idades entre 29 e 52 anos, sendo 4 médicos, 3 fisioterapeutas, 2 enfermeiras e 1 farmacêutica, com tempo de atuação que variou entre 5 e 25 anos. Nenhum dos 10 intensivistas teve disciplinas na grade curricular que abordassem temáticas relacionadas à morte e apenas 3 relatam ter tido, ainda que de forma breve e superficial, algum conteúdo relacionado à essa temática, fatores significativos que podem impactar na relação que os intensivistas tem com a morte. Para Combinato e Queiroz (2011), a formação profissional é um importante aspecto que interfere na maneira como os profissionais da saúde entendem e lidam com a morte, de modo que a deficiência na formação acadêmica e profissional pode trazer dificuldades para lidar com a finitude e gerar sofrimento diante da morte de pacientes.

Recursos Defensivos: Uma Análise a Partir Do Questionário Desiderativo

A maioria dos participantes (9) completou a tarefa respondendo às consignas de maneira adequada, porém em algumas respostas esses participantes enfrentaram bloqueios e não souberam responder, sendo necessário o auxílio externo, por meio de indução, para que se completasse a tarefa. Apenas um participante (P1) não completou a tarefa e fracassou totalmente na primeira dissociação instrumental. Segundo Nijamkin e Braude (2000), na primeira dissociação instrumental, ao aceitar o pedido de desidentificar-se da condição humana e identificar-se outros símbolos, o participante demonstra capacidade de discriminar a fantasia da realidade, de modo que o fracasso nessa categoria indica que a consigna foi sentida com um ataque concreto à integridade, provocando um fechamento defensivo e, ainda que na situação simbólica, uma negação da morte. Essa recusa da aceitação promovida pela negação, conforme apontam Fadiman e Frager (1939/1986), tem a finalidade de impedir o reconhecimento de sentimentos específicos, a fim de evitar a tomada de consciência de representações que podem trazer conflitos e sofrimento.

Ainda sobre a primeira dissociação instrumental, 4 participantes (P1, P2, P4 e P9) apresentaram fracassos parciais ao escolherem respostas antropomórficas, caracterizadas pelo não desprendimento dos aspectos humanos, entre essas escolhas estão personagens fantásticos, religiosos ou então humanos. A participante P4 disse que gostaria de ser "Um anjo da guarda. Pela proteção e pela crença de muitos, no momento da dor, acho que muitos creem que existe anjos da guarda que nos protegem". Essa resposta além de indicar uma dificuldade de desvencilhar-se da identidade humana, também evidencia uma estratégia defensiva na escolha de um símbolo onipotente. Para Silva (2009), através das fantasias de onipotência os profissionais da saúde se defendem de sua impotência, fragilidade e limitações frente aos conflitos com os quais se defrontam em seu cotidiano. Nas rejeições, P1 disse que não gostaria de ser "Um corpo sem vida. Acho que essa é a coisa mais difícil da gente elaborar, justamente essa ideia de um dia vir a ser um corpo sem vida", essa resposta demonstra ao mesmo tempo que a consigna foi sentida como um ataque ao sujeito e que houve novamente uma negação da morte. As demais respostas referiram-se ao desejo de permanecer humano.

A segunda dissociação instrumental, refere-se à capacidade do indivíduo discriminar os aspectos valorizados dos rejeitados e, também, no reconhecimento das situações e conflitos que geram uma mobilização dos recursos defensivos (Nijamkin & Braude, 2000). Nessa dissociação instrumental, 4 dos participantes (P2, P7, P9 e P10) apresentaram fracassos e essas falhas puderam ser observadas, por exemplo, na fala do participante P2 que, na escolha, no reino vegetal, incluiu aspectos negativos na justificativa da escolha: "Uma roseira. Porque eu amo rosas, acho ela de uma beleza muito interessante, e eu acho muito legal essa coisa de ter a beleza e o espinho junto". Na rejeição, no reino inanimado, o participante P7 relatou: "Um celular, porque é uma coisa que veio muito para ajudar mas que hoje em dia acho que ele atrapalha muito a vida das pessoas, hoje em dia as pessoas fazem tudo com o celular na mão e elas acabam acho que esquece de ter o convívio de ter", nesse caso atribuindo características negativas a um símbolo que poderia ser visto como positivo.

Culturalmente o câncer está ligado à morte, aspectos negativos e ameaçadores, e a impossibilidade de cura, isso provoca nos intensivistas sentimentos de impotência diante dos recursos científicos e pessoais que, por serem limitados, trazem dificuldades e repercussões para o trabalho dentro da UTI oncológica (Silva, 2009; Mendonça, Moreira & Carvalho, 2012). Isso pode justificar a falha na segunda dissociação, no sentindo que os intensivistas passam por situações conflitantes no seu cotidiano, como por exemplo os tratamentos oncológicos que trazem benéficos e malefícios ao paciente, que fazem existir aspectos valorizados e desvalorizados no mesmo objeto.

A instrumentalização da Identificação Projetiva no QD diz respeito ao processo de simbolização necessário para realizar adequadamente a tarefa desiderativa e vivenciá-la em um nível simbólico, isto é, a capacidade do participante de escolher um símbolo do meio exterior que represente os conteúdos valorizados ou rejeitados do seu mundo interno. Essa capacidade de poder apelar para o repertório de representações e mediar a ação através do pensamento é um importante traço adaptativo (Nijamkin & Braude, 2000). Todos os participantes apresentaram fracasso na instrumentalização da identificação projetiva, ao apresentarem símbolos pouco estruturados ou um emparelhamento entre o símbolo escolhido e os aspectos representados, de modo que a escolha deixou de ser símbolo e passou a ser concretamente o aspecto valorizado ou rejeitado em si mesmo em uma equação simbólica, isto é, o símbolo escolhido confundiu-se com o objeto simbolizado.

Um exemplo dessa equação simbólica pode ser observado na primeira resposta do participante P5 na escolha (reino inanimado): "Com relação a UTI, uma pedra, porque não teria que tomar nenhuma decisão, ia poder ficar quieto no meu canto só ornando". Nessa resposta o participante não consegue distanciar o objeto escolhido do objeto que despertou a carga de afeto e mostra dificuldades para se desvencilhar totalmente da ansiedade provocada pelos elementos ansiógenos da UTI. Esses elementos estão relacionados à morte e podem ser compreendidos como os aspectos paradoxais que existem na UTI, onde ao mesmo tempo em que há crenças de que haverá o prolongamento da vida, também pode ser reconhecida como local para morrer e enquanto uns parecem aceitar a morte outros lutam contra ela a todo esforço (Silva, Valença & Germano, 2010; Santos, Almeida & Rocha Júnior, 2012; Vicensi, 2016).

Além disso, 8 dos participantes (P1, P2, P3, P4, P5, P8, P9 e P10) fracassaram na instrumentalização da identificação projetiva por apresentarem mais de um símbolo em um ou mais reinos nas escolhas e/ou rejeições, configurando o que se denomina "perseveração". Ainda de acordo com Nijamkin e Braude (2000), essa perseveração pode representar uma dificuldade no controle dos impulsos, intolerância frente ao conflito apresentado e evidencia uma atitude defensiva de negação.

Em relação à racionalização, todos os participantes apresentaram falhas para operacionalizar essa defesa, pois em alguns momentos não apresentaram justificativas adequadas para escolha do símbolo, não puderam separar os aspectos lógicos dos aspectos afetivos que atuaram na escolha desiderativa, ou então não conseguiram justificar de forma coerente a escolha do símbolo, como por exemplo, na fala do participante P1, que na rejeição (reino inanimado) relata: "Uma mesa, porque ela estava na minha frente quando eu precisei de um objeto inanimado". De acordo com Nijamkin e Braude (2000), a pobreza dos conteúdos da racionalização, ou a dificuldade para justificar a escolha do símbolo/objeto indicam a utilização de repressão. Segundo Hall, Lindzey e Campbell (1998/2000), através da repressão o sujeito afasta da consciência uma representação que ameace ou cause um alarme indevido. Nesse sentido, a representação ligada à ameaça de morte simbólica provocada pela consigna foi reprimida e empurrada para fora da consciência para evitar o conflito causado por ela.

A participante P4 por sua vez, superdimensiona a racionalização na rejeição do reino animal: "Um peixe-beta, porque ele morre muito rápido, e a gente cria vínculo e ele deixa a gente infeliz. ele morre muito rápido, mesmo sendo bem cuidado", reiterando motivos que justificam, mas não enriquecem sua resposta, além disso, é possível verificar nessa justificativa que existe um emprego da negação em uma tentativa de proteger-se do conflito trazido pela morte, uma vez que segundo Arzeno (1995), nas consignas de rejeições surgem as explicações que enunciam os aspectos que o sujeito mais rejeita ou teme, de modo que é apresentado aquilo contra o qual se deve lutar e defender-se.

Quanto ao tempo de reação frente à consigna, que se refere ao lapso que transcorre entre a consigna para cada reino e o aparecimento da resposta símbolo, 2 (P5 e P10) tiveram tempo reduzido, 1 (P1) teve tempo de reação mais longo em suas respostas e os demais participantes apresentaram a tempo esperado na maioria das suas respostas. O tempo que os participantes levaram para receber o impacto da consigna, elaborá-lo e escolher um símbolo, que em sua grande maioria foi o esperado, indica que embora os intensivistas vivenciem conflitos significativos em relação à morte cotidianamente, na situação de teste eles apresentaram a capacidade de refletir e entrar em contato com a angústia que a consigna provoca.

Em relação à sequência dos reinos escolhidos, é importante ressaltar que existem discussões sobre a sequência esperada e que neste estudo foi considerado, de acordo com referencial de Ninjamkin e Braude (2000), como sequência esperada para as escolhas: 1+ reino animal, 2+ reino vegetal e 3+ reino inanimado. Assim, 5 dos participantes (P3, P4, P6, P9 e P10) responderam seguindo a sequência dos reinos de forma esperada o que indica a preservação da vitalidade e integridade. Os outros 5 apresentaram desvio em suas respostas. Ainda conforme apontam Ninjamkin e Braude (2000), os desvios na sequência esperada indicam que para enfrentar os perigos (experenciados pela consigna), o sujeito necessita desvitalizar-se, apelando como defesa a uma atitude de maior passividade e falta de afeto, o que gera um empobrecimento na capacidade de adaptação.

De acordo com Grassano (1996), a situação proposta pelo Questionário Desiderativo de fantasiar a ideia da própria morte, que provavelmente é a representação mais conflituosa e resistida, produz um impacto emocional intenso no sujeito, dessa forma, o grau de desorganização do participante frente à tarefa depende da tolerância, aceitação ou rejeição frente a este reconhecimento. Nesse sentido, dado as dificuldades de desprendimento dos aspectos humanos diante da sensação de que a consigna os mata e os fracassos na instrumentalização defensiva identificados diante dos impactos emocionais produzidos pela consigna, pode-se compreender de maneira geral que os intensivistas participantes têm pouca tolerância ou rejeitam a ideia de morte.

Reflexões Sobre a Morte Na UTI: Uma Análise De Conteúdo

Baseado na proposta de Bardin (1977/2011), foi realizada a análise de conteúdo das entrevistas dos intensivistas. A partir da análise ressaltam-se três categorias relevantes, são elas: I. Dificuldades diante da morte e do sofrimento dos pacientes; II. Desafios e dificuldades no ambiente da UTI; e III. Entendimento e posicionamento frente à morte.

A categoria I é integrada pelas dificuldades com as quais os intensivistas se deparam quando um paciente morre e os sentimentos e preocupações provocados por essa situação. De acordo com Silva, Valença e Germano (2010), há alguns problemas envolvidos na temática relacionada à morte de um paciente para os intensivistas, tais como a dificuldades da equipe em lidar com o evento da morte, dificuldades em decorrência da identificação com o sofrimento do outro, dificuldades para comunicar a morte aos familiares e inconformidade com a morte do paciente, entre outras. Foi evidenciada na fala de quatro intensivistas (P2, P6, P8 e P9) dificuldades relacionadas à preocupação com a dignidade e o sofrimento vivenciado pelos pacientes em seus momentos finais de vida, questionando-se se neste momento se os pacientes sentem dor ou a falta de algum familiar por perto, como pode ser observado no relato de P6 "a maior dificuldade é você morrer de uma forma digna e sem sofrimento, porque eu sempre penso essa pessoa poderia é morrer de uma forma melhor, de uma forma sem sofrimento".

Segundo Labate e Cassorla (1999), os profissionais da saúde se mobilizam emocionalmente com as situações de seu cotidiano profissional, o que possibilita uma identificação patológica com o sofrimento vivenciado pelos seus pacientes, fazendo com que o seu trabalho seja 'insalubre' no quesito saúde mental. Esse aspecto está presente na fala de todos os intensivistas, de modo que eles se sentem muito afetados com a perda de seus pacientes, dado que há um envolvimento afetivo que pode provocar sentimentos como tristeza e impotência. Por exemplo a fala de P4 "no começo para mim era muito difícil porque eu absorvia muito, a gente trazia isso muito para nossa vida pessoal, aí quando eu saia daqui eu não conseguia tipo me desligar daquilo e aquilo me absorvia muito".

Também há uma preocupação com os familiares dos pacientes, na fala de oito intensivistas (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P7 e P10) em relação a como os familiares irão receber a notícia da morte do paciente, ou como eles irão lidar com a situação posteriormente. Pode ser notado na fala de P5: "é lidar com ter que passar a notícia, e conseguir acolher a família de maneira adequada, sabe? Isso para mim é um momento delicado". A comunicação sobre a morte de pacientes aos familiares constitui uma tarefa difícil e indesejada no hospital, já que a principal função reconhecida e expressa pelos profissionais da saúde é de manter a vida e quando perdem um paciente muitos sentem-se derrotados pela morte, fazendo com que essa tarefa de comunicar possa gerar sentimento de culpa (Kovács, 1992/2008, 2011).

A categoria II é composta pelos desafios e dificuldades que são encontradas dentro do ambiente de uma UTI. O ambiente das UTIs oncológicas provoca diversos desafios e dificuldades aos intensivistas, tanto para lidar com a doença, como com a morte, e até com a equipe. Para Vicensi (2016), os profissionais da saúde não conseguem se familiarizar com a morte mesmo que a vivenciem diariamente e ao se depararem com ela experienciam sentimentos de impotência, fracasso e culpa, ainda que existam algumas variáveis que fazem com que a situação seja vivenciada de forma mais ou menos dolorosa. Em cinco dos relatos (P2, P4, P5, P6 e P10) esteve presente a dificuldade de ter que lidar com a morte cotidianamente, os intensivistas demonstram ter uma preocupação e um desgaste emocional por estar constantemente em contato com a iminência da morte em casos de doenças graves, o que é elencado como uma das grandes dificuldades de se trabalhar em UTI oncológica, em relação a isso P10 relata "você não tem um manual para lidar com a morte".

Mendonça, Moreira e Carvalho (2012) apontam que na UTI, por se tratar de pacientes com doenças de alta complexidade e com baixa possibilidade de cura, existem grandes dificuldades para a equipe médica enfrentar. Como citado anteriormente, Santos, Almeida e Rocha Júnior (2012) entendem a UTI como um ambiente hostil nos dias de hoje, pode-se perceber que esse local faz com que os profissionais sintam a necessidade de serem cuidados para estarem aptos para cuidar de seus pacientes, isso esteve presente no discurso de seis participantes (P2, P3, P4, P5, P7 e P10), trata-se de uma preocupação com seu estado psicológico, para terem condições psíquicas de lidar com as situações que ocorrem na UTI, conforme a fala de P4 "com o tempo a gente aprendeu muito a lidar com a situação, de que a gente precisa estar bem para ajudar quem precisa".

Algumas das consequências de ter que lidar com a morte constantemente na UTI são os procedimentos finais que trazem grande incômodo aos intensivistas, isso está presente na fala de quatro dos entrevistados (P3, P6, P7 e P9), como acompanhar o momento do falecimento do paciente ou os cuidados com o corpo após a morte, de modo que esses profissionais tentam evitar estar nesses momentos. Como pode ser observado no relato de P3 "eu tento não estar tão presente neste momento inclusive, eu acabo me afastando quando eu sei que tá próximo de acontecer". Quando os intensivistas encontram dificuldades para lidar com a iminência da morte eles podem se afastar de seus pacientes agindo com frieza e distanciamento afetivo, entretanto essas atitudes escondem sentimentos de culpa, fracasso e negação (Silva, Valença & Germano, 2010).

Por fim, a categoria III, é constituída dos aspectos relacionados a como os intensivistas entendem e se posicionam frente à morte. Enquanto alguns intensivistas (P2, P3, P4, P7, P8 e P10) entendem que há uma continuidade da vida em outro 'plano' ou de outra forma e que a morte não é o fim, usando aspectos religiosos na tentativa evitar ou amenizar o sofrimento, outros entendem a morte como o fim da vida (P1, P5, P6 e P9) e se posicionam de forma mais tecnicista. Esses aspectos religiosos são empregados na tentativa de negar a existência da morte, como por exemplo a fala de P8 "eu acredito que assim, independente de religião a gente continua, aqui a gente tá só em uma passagem". Kovács (1992/2008) explica que cada sujeito tem internalizado sua própria representação da morte e cada um pode lidar com ela a sua maneira.

Também pode ser identificado como uma forma de negação dos seus sentimentos, o entendimento dos intensivistas da morte apenas como fim ou ausência de vida ou então quando utilizam do saber tecnicista para se defender. Nessas tentativas de negá-la, eles utilizam da racionalização como mecanismo de defesa para entender o que a morte pode representar e evitando possíveis conflitos que podem surgir. Para Freud (1936/2006), a racionalização é justificativa da distorção da realidade ou da verdade, utilizando um raciocínio lógico, tentando explicar sentimentos e emoções que não são controladas, na tentativa de disfarçar para si e para os outros seus conflitos internos. Esse aspecto pode ser notado no discurso de P1 "É não vida. Acho que é isso, ausência de vida, pode ser" e de P6 "Eu enxergo a morte como um fim, um processo natural que vai acontecer com todo mundo". Pode ser observado no relato de três intensivistas (P3, P8 e P10) um distanciamento diante da morte, que procuram evitar um contato direto com seus pacientes no momento do falecimento na tentativa de se protegerem, trata-se também de uma forma de negar a morte e o sofrimento que ela provoca, isso pode ser notado no relato do participante P3, já citado anteriormente. De acordo com Pitta (1990/2003), o homem tenta negar a morte, utilizando o saber técnico para se esconder dos seus sentimentos de impotência, em uma tentativa de evitar o contato com a morte em seu cotidiano.

 

Considerações Finais

A unidade de terapia intensiva que conta com uma equipe especializada, equipamentos e terapias específicas para fornecer recursos para o prolongamento da vida do paciente, ainda representa um cenário que cede espaço para o sofrimento e a terminalidade. Este cenário remete a história do hospital, que em sua constituição configurou-se em determinada época como um local de exclusão e morte. Apesar do desenvolvimento da tecnologia e da evolução das disciplinas cientificas que forcaram mudanças dentro da estrutura hospitalar, o sofrimento e a morte continuam a ocupar espaço e marcar presença no ambiente hospitalar, especialmente nas UTIs.

O sofrimento e a morte na UTI colocam os intensivistas diante de aspectos negativos e ameaçadores, de modo que alguns profissionais apresentam dificuldades para entrar em contato com os conflitos trazidos pela situação de morte simbólica, empregando mecanismos de defesa como repressão e negação para protegerem-se, por terem pouca tolerância ou rejeitarem a ideia de morte, manifestando a tendência a evitá-la. Também foi possível identificar a utilização de racionalização frente aos conflitos provocados pela morte a partir das diferentes formas de entendimento e posicionamento frente à morte que, em geral, tem a ver com a tentativa dos intensivistas de evitar ou amenizar o sofrimento causado por ela.

A preocupação e identificação com a sofrimento dos pacientes, a tarefa de comunicação da morte de um paciente aos familiares, o desgaste emocional causado pelo contato cotidiano com a morte e a inconformidade com a morte do paciente representam as principais dificuldades e conflitos enfrentados pelos intensivistas diante do sofrimento e da morte de seus pacientes. Para esses profissionais, que relatam que não tiveram durante a formação, o conato com disciplinas que abordassem temas relacionados à morte, a formação eficiente e o bom preparo poderiam ter influenciado positivamente na maneira como os intensivistas lidam com a morte de seus pacientes. De modo que se faz necessário que debates e disciplinas sobre a morte e seus vários aspectos sejam incluídos e contemplados de forma mais aprofundada na graduação dos profissionais de saúde.

Todas as dificuldades e conflitos enfrentados pelos intensivistas fazem jus à necessidade de lançar mão de mecanismos de defesa para protegerem-se e manterem o equilíbrio psíquico, mas na contramão dessa proteção necessária, a adoção de uma postura defensiva enrijecida impede que essas experiencias sejam integradas e elaboradas, o que traz repercussões e pode causar impactos negativos na saúde mental dos intensivistas. Diante disso, vê-se como fundamental a disponibilização de espaços de escuta analítica para os intensivistas, para que estes profissionais possam ser acolhidos de forma individual ou em grupo, para compartilhar e elaborar suas vivências e sofrimentos. Essa escuta analítica além de colaborar com a manutenção da saúde mental, fortaleceria seus recursos para lidar com a morte, gerando impactos positivos na maneira como os intensivistas lidam com a morte e o sofrimento de seus pacientes.

Essa pesquisa possui limitações em relação às características dos participantes, por se tratar de uma investigação realizada apenas com profissionais que atuam na UTI de pacientes oncológicos adultos e em um hospital particular. Dessa forma faz-se necessário a existência de pesquisas que busquem investigar e ampliar a compreensão da relação de profissionais de terapia intensiva com a morte, abarcando UTIs de diferentes especialidades e em hospitais públicos e privados.

 

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* Artigo elaborado a partir do Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia dos autores Samuel Fernando Brasil e Juliana Eschiavoni Barboza sob a orientação da Profa. Dra. Danuta Medeiros.
Samuel Fernando Brasil - Psicólogo graduado pela Universidade São Judas Tadeu. Graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Atua como Psicólogo Clínico em consultório particular.
Juliana Eschiavoni Barboza - Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu e Pós-graduada em Neuropsicologia pela Faculdade Metropolitana. Atua como Psicóloga Clínica em consultório particular e como voluntária no Projeto Apoiar da Universidade de São Paulo.
Rodrigo Jorge Salles - Psicólogo, Doutor e Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Docente no Curso de graduação em Psicologia e no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Ciências do Envelhecimento da Universidade São Judas Tadeu.
Danuta Medeiros - Psicóloga, Doutora e Mestre em Ciências/Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, especialista em Psicologia Hospitalar pela Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e em Psicoterapia Psicanalítica pelo CEPSI/UNIP. Docente no curso de graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Extrema, MG - FAEX.

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