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Revista da SBPH

Print version ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.24 no.2 São Paulo July/Dec. 2021

 

Determinantes sociais de saúde e a análise do perfil de internações de uma unidade psiquiátrica do sul do Brasil

 

Social determinants of health and the analysis of the hospitalization characteristics of a psychiatric unit in southern Brazil

 

 

Maria Souza CardosoI; Fernanda Lucia Capitanio BaezaII; Juliana Unis CastanIII

IServiço de Abordagem Social - Porto Alegre/RS - E-mail: sohmariasc@gmail.com
IIHospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) - Porto Alegre/RS - E-mail: fbaeza@hcpa.edu.br
IIIHospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) - Porto Alegre/RS - E-mail: jcastan@hcpa.edu.br

 

 


RESUMO

Internações psiquiátricas são dispositivos utilizados como último recurso para lidar com a sintomática de saúde mental. Objetivou-se analisar aspectos da internação psiquiátrica a partir do perfil dos internados, comparando as internações pelo tipo de convênio utilizado para o seu tratamento, considerando este como um indicativo de Determinantes Sociais de Saúde (DSS). Realizou-se análise descritiva e transversal dos prontuários da internação psiquiátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), nos anos 2016, 2017 e 2018, totalizando 1119 internações. Em torno de metade (53,5%) eram mulheres, que se encontravam na faixa etária entre 30 e 59 anos (52,5%) e possuíam ensino fundamental incompleto (30,3 %). Os diagnósticos mais prevalentes foram transtornos de humor (55,7%) e esquizofrenia (20,2%). Pacientes internados pelo convênio Sistema Único de Saúde (SUS) se concentravam na faixa etária adulto jovem e intermediário, tiveram maior tempo médio de internação (p=0,001) e necessitaram de mais consultorias nas especialidades de Medicina Interna, Infectologia e Psicodiagnóstico (p0,05) do que pacientes internados por convênios privados. Tal estudo aponta para o impacto dos DSS na manifestação e tratamento das doenças e no acesso ao tratamento. O conhecimento do perfil dos pacientes que necessitam internação favorece a formulação de políticas públicas.

Palavras-chave: saúde mental; unidade hospitalar de psiquiatria; determinantes sociais de saúde


ABSTRACT

Psychiatric hospitalizations are one of the last resources to deal with mental health symptoms. The objective of this study was to analyze the profile of the psychiatric inpatients, comparing the hospitalizations by the type of health insurance used at the intake, as an indicator of Social Determinant of Health. It is a descriptive and cross-sectional analysis of electronic records of patients in psychiatric hospitalization at the Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), in 2016, 2017 and 2018, summing up 1119 hospitalizations. About half (53.5%) were women, aged between 30 and 59 years (52.5%) with incomplete elementary school (30.3%). The most prevalent diagnoses were mood disorders (55.7%) and schizophrenia (20,2%). Patients that used the public health insurance were mostly young and intermediate adult, had longer hospitalization (p=0,001) and needed more specialized consultancies on Internal Medicine, Infectious Diseases and Psychological Assessment (p0,05) than the ones who used private health insurance. This study shows the impact of Social Determinants of Health on the manifestation and treatment of the diseases and on access to treatment. Knowing the profile of the patients helps planning of public policies.

Key words: mental health; psychiatric department, hospital; social determinants of health


 

 

Os transtornos psiquiátricos, assim como diversas outras enfermidades, são afetados pelos Determinantes Sociais de Saúde (DSS), um conceito inspirado no modelo de Whitehead e Dahlgren (2006), que analisa as circunstâncias em que as populações crescem, vivem, trabalham e envelhecem, assim como os sistemas para lidar com a doença. Essas circunstâncias são moldadas tanto por forças de ordem política, social e econômica, como pelos indivíduos e populações, através do tempo. Alterações no contexto econômico, social, político, ambiental, cultural ou comportamental afetam as condições de saúde dos indivíduos e das populações (Barreto, 2017).

O tratamento para indivíduos com transtorno mental vem mudando ao longo dos anos, sendo a Reforma Psiquiátrica um marco. A lei 10.216/2001- Lei da Reforma Psiquiátrica (LRP) - redireciona o modelo assistencial por meio da desinstitucionalização, tratamento anti-discriminatório, reinserção social e preservação da cidadania (Brasil, 1990). Institui que as pessoas acometidas por transtornos mentais têm o direito ao melhor tratamento disponível no sistema de saúde, de forma humanitária e respeitosa, no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, o que deve proporcionar sua inserção na família, no trabalho e na comunidade.

Frente às condições desumanas dos manicômios, propõe-se o fechamento dessas instituições, com redução gradativa de leitos e municipalização dos serviços (Aronne & Monteiro, 2018; Bonfada, Guimarães, Miranda & Brito, 2013). Preconiza-se que a internação psiquiátrica ocupe o lugar de um último recurso, utilizado apenas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes ou houver risco à integridade física, à saúde ou à vida do usuário ou de terceiros. Ainda, tais internações devem ocorrer em leitos de saúde mental de hospitais gerais (Moll, Silva, Magalhães & Ventura, 2017).

Apesar de ser a última alternativa, esta pode ser fundamental no tratamento dos usuários, quando em condições adequadas e com objetivos claros. Em pesquisa sobre as hospitalizações psiquiátricas no Rio Grande do Sul, foi constatado um aumento de 159,2 hospitalizações a cada 100 mil habitantes nos anos 2000 para 193,4 hospitalizações por 100 mil habitantes em 2011 (Horta et al., 2015). Entre os anos de 2011 e 2012 houve uma elevação de 8,2% nas internações psiquiátricas de adultos, com aumento principalmente nas admissões por transtornos de humor (2,7%) e esquizofrenia (17%) (Zanardo, Silveira, Rocha & Rocha, 2017).

O conhecimento do perfil de pacientes internados em hospitais psiquiátricos, assim como o papel dos DSS na manifestação e evolução dos transtornos psiquiátricos, é fundamental para a construção e implementação de políticas de cuidado. Considerando o tipo de convênio utilizado (do Sistema Único de Saúde ou de outros convênios privados) um indicador de DDS, analisou-se aspectos da internação psiquiátrica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) considerando tratamentos realizados e consultorias a especialidades. No Brasil, possuir convênio de saúde privado é um indicador de privilégio econômico, relacionando-se assim com os DSS.

 

Método

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo descritivo e retrospectivo, de natureza quantitativa e de delineamento transversal. Seu desenvolvimento ocorreu a partir do mapeamento do perfil de pacientes maiores de 18 anos, internados na Unidade de Internação Psiquiatra do (HCPA), identificando variáveis referentes a dados demográficos e clínicos dos prontuários eletrônicos dos pacientes.

Local do estudo

A Unidade de Internação Psiquiátrica (UIP) do (HCPA), que se localiza na cidade de Porto Alegre, RS, conta com 36 leitos, sendo 26 destinados a usuários do SUS e 10 para clientes de convênios de saúde privados e particular. Os quartos têm modalidade coletiva (com seis leitos), semi privativa (com dois leitos) e privativa. O tratamento é realizado por equipe multiprofissional com núcleos de assistência social, educação física, enfermagem, farmacêuticos, médicos psiquiatras, nutrição e psicologia. Por estar inserida em um hospital escola, a equipe ainda conta com residentes das áreas da enfermagem, educação física, psicologia e psiquiatria, além de estagiários de todas as áreas citadas. Além disso, por fazer parte de um hospital geral de alta complexidade, quando entendido necessário, é possível que outros profissionais, das mais diferentes áreas, realizem atendimento na unidade, através de consultorias.

Procedimentos

Foi realizada consulta junto ao sistema de tecnologia da informação do hospital, na qual especificou-se campos a serem recuperados do prontuário eletrônico dos pacientes. Os dados analisados foram data de nascimento, sexo, escolaridade, procedência, diagnóstico de acordo com a CID-10 no momento da alta, número de internações durante o período do estudo nesta unidade de atendimento, tempo de internação, procedimentos realizados durante a internação e tipo de convênio utilizado.

Os dados enviados em programa Excel foram transpostos para o Statistical Package for Social Science for Windows (SPSS) versão 23.0. Realizou-se análise descritiva dos dados para caracterização da amostra. Utilizou-se o teste qui-quadrado de Pearson, teste exato de Fischer e teste de Yates com correção de continuidade para tendência linear, de acordo com natureza da variável, com nível de significância de α = 0,05.

Aspectos éticos

Foram assegurados os aspectos éticos de pesquisa, obedecendo a Resolução de número 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. As pesquisadoras se comprometeram a preservar a confidencialidade dos pacientes e assinaram o Termo de Compromisso para Utilização de Dados da Instituição. Este projeto teve início após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HCPA (CAEE 71560717.3.0000.5327).

 

Resultados

A amostra foi composta das internações na unidade de psiquiatria dos anos de 2016, 2017 e 2018, de pacientes com 18 anos ou mais, totalizando 1119 internações. Destas, pouco mais de 70% foram provenientes do Sistema Único de Saúde (SUS) e quase 30% utilizaram convênios privados. Cerca de metade (53,5%) eram de pacientes mulheres. A maioria das internações eram de pacientes que se encontravam na faixa etária entre 30 e 59 anos de idade (52,5%) procedentes de Porto Alegre (82,4%). Cerca de 30% possui escolaridade fundamental incompleta e 86,4% tiveram apenas uma internação na unidade psiquiátrica pesquisada durante o período pesquisado. Tais informações podem ser conferidas da Tabela 1. Os diagnósticos de maior prevalência recebidos no momento da alta foram Transtornos do Humor (55,7%), seguido pela Esquizofrenia (20,2%).

Ao comparar os grupos que tiveram internações por convênios privados e pelo convênio SUS houve diferença significativa em relação a idade, tempo de internação, consultorias no geral e consultorias nas áreas da Psicologia, Medicina Interna e Infectologia, considerando p < 0.05, conforme Tabela 2.

Apesar de ambos os grupos apresentarem maior parte de internados na faixa de idade de adultos (52,5%), mais idosos internaram por convênios privados (32,5%) quando comparado aos SUS, o qual apresentou maior número de jovens adultos (24,5%) (vide Tabela 2). Não se constatou diferença entre os CIDs recebidos no momento da alta, sendo os Transtornos do Humor o diagnóstico com maior prevalência (55,7%), nem no nível de escolaridade, sendo Ensino Fundamental Incompleto (30,3%) mais prevalente nos dois grupos. Houve diferença significativa no desfecho Tempo de Internação entre os dois grupos, estando os pacientes do SUS sujeitos a uma internação maior (média 32,97) que os dos convênios privados (média 27,37) (vide Tabela 2).

Sobre a utilização da Eletroconvulsoterapia (ECT) como forma de tratamento, 31,3% dos internados passaram pelo procedimento, sem diferença significativa entre os grupos. Para mais da metade da amostra (56,2%) requisitou-se algum tipo de consultoria especializada, principalmente Neurologia (27,2%), Medicina Interna (24,4%) e Psicologia (17,1%). Houve diferença significativa entre os grupos nas consultorias no geral e nas consultorias nas áreas da Psicologia, Medicina Interna e Infectologia (vide Tabela 2).

 

Discussão

Os dados serão analisados considerando os princípios e teoria dos DSS, sendo o tipo de internação (SUS ou privados) um indicativo deste constructo.

A maioria das pessoas internadas na unidade (52,5 %) estava na faixa etária de adultos intermediários (30 a 59 anos). Houve diferença significativa (p=0,001) entre as médias de idade entre os grupos de pacientes internados pelo SUS e por convênios privados, sendo que no primeiro internaram mais adultos jovens (24,5%) e no segundo mais idosos (32,5%). Considerando os DSS, uma possibilidade de explicação para esse fenômeno é que pessoas expostas a fatores estressores de vulnerabilidade apresentam evolução mais rápida da doença psiquiátrica (Garbois, Sodré & Dalbello-Araujo, 2017). Outra hipótese se dá pela facilidade de acesso a serviços de saúde mental de pessoas com convênios de saúde privados (Garbois et al., 2017). Ao apresentarem os primeiros sintomas, por exemplo, podem procurar diretamente um médico especialista; o que não é necessariamente a realidade dos pacientes que dependem do SUS: geralmente, precisam esperar em uma fila para conseguir atendimento especializado ou passar por avaliação em emergência psiquiátrica para ter acesso à internação. Assim, pessoas com acesso facilitado obteriam tratamento mais rápido, nas fases iniciais da doença, evitando, muitas vezes, hospitalizações.

A maioria da amostra possui escolaridade Fundamental Incompleta (30,3%), não apresentando diferença estatisticamente significativa entre convênios SUS e privados. A saúde mental é impactada diretamente pela educação, pois esta permite que o indivíduo adquira conhecimentos que influenciam em atitudes e comportamentos, além de aumentar autoestima e possibilitar escolhas na vida (Lima, Beria, Tomasi, Conceição & Mari, 1996; Ludermir, 2008), sendo um fator protetivo para o desenvolvimento de enfermidades mentais. Pensando em uma causalidade bidirecional, a enfermidade mental também foi apontada como uma possível causadora do baixo nível educacional de indivíduos (Lopes, Faerstein & Chor, 2003).

No desfecho tempo de internação, ambos os grupos permaneceram mais tempo do que o desejado e orientado pela LRP (Brasil, 2001). Segundo esta lei, a média de dias em que indivíduos devem ficar internados para cuidados em leitos de hospitais gerais deve ser de 21 dias, sendo o cuidado em leitos psiquiátricos focado na estabilização dos sintomas para seguir o acompanhamento terapêutico na RAPS, sendo os Centros de Atenção Psicossociais importantes pontos da rede (Silveira, Rocha, Rocha & Zanardo, 2016). Observou-se diferença significativa entre os dois grupos, estando pessoas que internam pelo SUS sujeitas a permanecerem internadas por períodos maiores. Considerando os DSS, a maior permanência de pessoas com realidades socioeconômicas vulneráveis pode ser explicada pela falta de acesso à saúde desse grupo ao longo de sua história, necessitando maior atenção clínica (Zanardo et al., 2017), facilitada neste momento por estar em um hospital geral, com recursos e acesso a diversas especialidades médicas. Além disso, a dificuldade de articulação com serviços extra-hospitalares da RAPS pode prolongar o período hospitalar (Baeza, Rocha & Fleck, 2018; Vigod et al., 2013).

Esta dificuldade de articulação com a rede no processo de transição de cuidado pode levar a múltiplas reinternações, fenômeno conhecido como porta giratória (Baeza et al., 2018). Em nossa amostra, 13,6% das pessoas internadas no período possuíram mais de uma internação no período e na instituição estudada. Em pesquisa realizada nos Estados Unidos, Schmutte, Dumm e Sledge (2010) encontraram uma taxa de 30% de reinternações frequentes em um ano de estudo, considerando o critério de três ou mais internações em 18 meses. Já em pesquisa realizada em Portugal, foi constatado 10% de usuários da porta giratória na amostra, com ao menos três internações nos cinco anos do estudo, o que representava 29% das admissões nesse período (Graca, Klut, Trancas, Borja-Santos & Cardoso, 2013). Repetidas crises e reinternações aumentam os riscos de deterioro cognitivo e cronicidade da doença, além de estabelecer repetidas quebras dos vínculos dos pacientes com sua família e comunidade (Dimenstein et al., 2012; Ramos, Guimarães & Enders, 2011).

Não houve diferença estatística significativa entre os dois grupos no uso do ECT como forma de tratamento. Tal dado vai de acordo com o artigo 196 da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), o qual estabelece o acesso às ações e serviços de saúde e tratamento igualitário aos indivíduos, e com o disposto no artigo 2º da Lei da Reforma Psiquiátrica - LRP (Brasil, 2001), o qual garante o direito de que as pessoas acometidas por transtorno mental recebam o melhor tratamento disponível pelo sistema de saúde, conforme suas necessidades. Tratamento através de ECT é indicado para pacientes portadores de transtorno depressivo grave, a depender da intensidade, da freqüência e da duração dos sintomas depressivos, pela presença de manifestações psicóticas ou catatônicas, pelo risco de suicídio ou ainda pela necessidade urgente de melhora, diante de rápida deterioração da saúde física (Salleh, Papakostas, Zervas & Christodoulou, 2006). O estudo de revisão do National Institute for Clinical Excellence (2003), com dados de 25 estudos randomizados, indica que a ECT pode ser efetiva no tratamento de episódios agudos de certos tipos de esquizofrenia, reduzindo a ocorrência de recaídas.

Foram requisitadas consultorias externas para oito especialidades diferentes. Tal facilidade de investigação, que vai de acordo com os princípios de cuidado do SUS em atender o paciente em sua integralidade, foi uma possibilidade conquistada com a LRP (Brasil, 2001), a qual promoveu a abertura internações psiquiátricas em hospitais gerais, com gradual diminuição de leitos em hospitais psiquiátricos.

Observou-se diferença significativa entre pacientes internados por convênio SUS e privados para os pedidos de consultoria no geral, sendo estes destinados principalmente para os pacientes do SUS. Atenta-se que as principais especialidades médicas que apresentaram diferenças estatísticas entre os grupos foram Medicina Interna e Infectologia. O foco de tais especialidades são doenças muitas vezes relacionadas às diferenças na exposição e vulnerabilidade a condições comprometedoras da saúde, chamados DSS intermediários (Fiorati, Arcênio & Souza, 2016). Inclui-se condições de vida, condições de trabalho, disponibilidade de alimento, comportamentos da população e barreiras para a adoção de um estilo de vida saudável. Considera-se que pacientes do SUS possivelmente estejam mais expostos negativamente a tais fatores (Silveira et al., 2016), o que levaria a maior necessidade de investigação por sintomas clínicos para além dos psiquiátricos.

Além disso, usuários do SUS estão sujeitos a longas filas de espera para consultas especializadas, diferentemente dos usuários de convênios privados. Dessa forma, quando internam, tem a possibilidade de receber o cuidado que tanto demora através da atenção primária. O SUS, portanto, apresenta obstáculos estruturais que influenciam a utilização e o acesso dos usuários para acompanhamento clínico. De acordo com Travassos e Martins (2004), os principais obstáculos são financeiros, temporais (tempo de espera e distância), organizacionais e aqueles ligados à prática médica.

Outra consultoria que apresentou diferença foi a de Psicologia para psicodiagnóstico, sendo mais frequente para os pacientes oriundos do SUS. A importância deste serviço recai na necessidade de observação do processo histórico, social e psicológico da construção dos sujeitos associado com o adoecimento psiquiátrico (Garbois et al., 2017). Tal dispositivo é utilizado, portanto, para auxiliar a equipe a realizar o diagnóstico diferencial e então escolher a melhor terapêutica para o tratamento tanto hospitalar como extra hospitalar (Castan & Brentano, 2017), considerando encaminhamento para a RAPS. Deve-se atentar que este é um exame de alto custo e dependente do aceite dos convênios particulares para sua aplicação, podendo ser um dos fatores de explicação para a diferença entre os dois grupos.

 

Conclusões

A unidade de internação psiquiátrica do HCPA mostra-se de acordo com o proposto pelo artigo 196 da Constituição Federal do Brasil (Brasil, 1988), visto que fornece tratamento igualitário independente do tipo de convênio utilizado. O perfil dos indivíduos internados no espaço pesquisado foi caracterizado por adultos, com idades entre 30 e 59 anos, com principais diagnósticos de transtornos do humor e esquizofrenias. Para o SUS percebe-se uma maioria de jovens adultos e adultos intermediários. Já nos convênios privados internaram principalmente adultos intermediários e idosos. Como já exposto, não houve diferenças nos tratamentos oferecidos para ambos os grupos; no entanto, houve diferença nas necessidades clínicas, sendo requisitado maior número de consultorias especializadas para pacientes do SUS do que dos convênios particulares. Esse fato pode ser um indicador das diferenças de vulnerabilidades enfrentadas ao longo da vida, muitas vezes marcada por desigualdade social de oportunidades, e reforça a importância de compreender os determinantes sociais de saúde na construção de políticas públicas e na disponibilização de serviços de saúde que cubram as necessidades das pessoas a quem se pretende atender.

Para se pensar em políticas públicas e possibilidades de ação se faz necessário o conhecimento do perfil dos pacientes e dos serviços disponíveis, identificando necessidades e demandas, o que aponta para a importância de estudos como este. Entretanto, ressalta-se que foi realizado em apenas uma instituição no sul do país e, portanto, pode não traduzir a realidade do Brasil. Aponta-se a necessidade de outros estudos como estes, em outros locais e, se possível, a realização de estudos multicêntricos os quais tendem a fornecer uma visão ampliada da questão em estudo.

 

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Maria Souza Cardoso - Psicóloga especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (RIMS HCPA).
Fernanda Lucia Capitanio Baeza - Médica Psiquiatra no HCPA. Doutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS
Juliana Unis Castan - Mestre em Counseling and Personnel Services pela University of Maryland, College Park, EUA. Especialista em Psicologia Hospitalar e em Avaliação Psicológica pelo Conselho Federal de Psicologia.

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