SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número1Entre a saudade e o aconchego: Memory Box como apoio no processo de lutoImpactos psíquicos nas vivências de mães de bebê com extremo baixo peso internado em UTI Neonatal índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Revista da SBPH

versión impresa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.25 no.1 São Paulo ene./jun. 2022

http://dx.doi.org/10.57167/Rev-SBPH.v25.029 

PARTE III - LUTO E MORTE

 

Ficcionalidade das narrativas parentais e a ética do cuidar em pediatria

 

Fictionality of parental narratives and the ethics of pediatric care

 

 

Gláucia Faria da Silva

São Paulo - SP - E-mail: glaufaria@live.com

 

 


RESUMO

Sustentado pela premissa psicanalítica de uma subjetividade aberta (Silva Junior, 1998/2019), esse artigo abordará a linguagem, a fala e teoria narrativa, ressaltando o aspecto narrativo, dinâmico, intersubjetivo e essencialmente ficcional de toda subjetividade. Abordaremos, especificamente, a narrativa parental sobre o adoecimento de um filho durante a internação em um hospital pediátrico, quando o terror da perda e da morte da criança se torna ponto de fratura das narrativas parentais, fazendo ruir toda ficcionalidade. Desta perspectiva, a experiência hospitalar é didática: da fenda aberta pelo adoecimento ressurge, em plena ebulição subjetiva, a potência do encontro, fonte de possíveis traumas e possíveis curas (Silva, 2007). Esse é um trabalho teórico-clínico, iluminado pela prática clínica hospitalar, que tem por objetivo favorecer que os profissionais de saúde reconheçam não apenas a potência ficcional das narrativas, mas a específica potência subjetiva das palavras que brotam ou se desfazem no encontro entre equipe de saúde, o paciente e a família e que, cientes dessa potência ontológica, se posicionem eticamente, atentos aos desdobramentos presentes e futuros de seus atos e palavras.

Palavras-chave: psicologia hospitalar; psicanálise; pediatria; narrativas; luto.


ABSTRACT

Grounded on the psychoanalytic premise of an open subjectivity (Silva Junior, 1998/2019), this article will address language, speech, and narrative theory, emphasising the dynamic, narrative, intersubjective, and essentially fictional aspect of all subjectivity. We will specifically address the parental narratives about a child's illness during the period of pediatric hospitalisation, when the terror of the child's loss and death becomes the breaking point in parental narratives, causing the collapse of fictionality. In this perspective, the hospital experience is didactic: from the arising cleft opened by illness, the potency of the encounter, as possible source of traumas and cures, reappears in full simmering subjectivity (Silva, 2007). This is a theoretical-clinical work, anchored on hospital practice, which aims to encourage health professionals to recognise not only the fictional power of narratives, but also the specific subjective power of the words that emerge or fade in the encounters between the health team, the patient and the family so that, being aware of this ontological power, they take an ethical position, attentive to the present and future unfolding of their acts and words.

Keywords: hospital psychology; psychoanalysis; pediatric; narratives; grief.


 

 

Introdução

Seja feita a Vossa vontade

A morte de um bebê é sempre comovente, mas exponencialmente mais tocante para os pais de crianças hospitalizadas, que sentem na própria pele a angústia e o terror das experiências de uma UTI pediátrica de alta complexidade. Assim, em uma reunião de pais após a morte de um bebê tão sem prognóstico que os pais tiveram opção de desligar as máquinas, uma mãe disse: "Eu rezo sempre, muito, mas não ouso rezar o Pai-nosso..." O que essa mãe não podia pronunciar? O impronunciável era a frase: Seja feita a Vossa vontade...

Diante do terror, o psiquismo sofre um abalo sísmico. Há uma regressão no funcionamento psíquico e as palavras lentamente perdem seu estatuto simbólico e se tornam concretas, palpáveis, vaticínios. Os pensamentos se tornam perigosos e os olhares, salvadores. O que acontece? Algumas fronteiras psíquicas então estabelecidas (eu/outro, real/imaginado) se dissolvem a ponto de reaparecer o pensamento mágico da infância. Esse movimento psíquico regressivo se mostra na e pela linguagem (Silva, 2007).

No começo de meu trabalho em hospital, eu dizia que aprendi a ver deus nascer todos os dias. Ele brota nos corredores de um hospital... Hoje, eu diria que vi palavras nascerem e morrerem todos os dias. O modo como alguém contava sua história, apresentava seu cotidiano, falava sobre o filho, desaparece, às vezes devagar, às vezes rapidamente. Deixar de narrar, de falar, de contar, significa que o eixo de organização de uma pessoa foi atingido (Decat de Moura, 1999). A família vive a oscilação do modelo dual do luto (Stroebe, Schut, Stroebe, 1999) até que vislumbre, encontre e crie um novo lugar para habitar. Que novo lugar é esse?

Observa-se que, habitantes que somos de nossas narrativas (Ricoeur, 2014), quando falamos não apenas nos comunicamos: ao falar, talvez estejamos pela primeira vez nomeando algo que não existia! Aquele filho não existia, aquela mãe não existia, aquele sentimento, aquela experiência temporal, o abismo, a fraternidade - tanto se inaugura em um hospital! Na UTI pediátrica, quando as equipes de cuidado falam, possivelmente criam novas realidades ou semeiam novos sentidos para as novas realidades. As equipes têm o privilégio de participar do nascimento e da morte de realidades. Esse lugar exige nova ética no cuidar.

Na alma da psicanálise habita a certeza de que a subjetividade é aberta, passível de mudança a partir do encontro com o outro (Silva Junior, 1998/2019). A psicanálise, em suas várias vertentes, se dedica especificamente a entender a dinâmica da constituição subjetiva e as consequências das relações estabelecidas pelo sujeito com o Outro1 e os outros. Assim, nos interessa não apenas a potência ficcional das narrativas, mas a específica potência subjetiva das palavras que brotam ou se desfazem no encontro entre equipe de saúde, o paciente e a família. Em poucos momentos da vida fica tão claro o aspecto de co-construção de sentido. Nossa hipótese é que, se um diagnóstico na infância é capaz de abalar as estruturas narrativas que acolhem os esboços identitários de uma família, também é verdade que, nesse estado mais fluido, as palavras da equipe de cuidado poderão compor novas experiências desde o adoecimento. Desta perspectiva, a experiência hospitalar é didática: da fenda aberta pelo adoecimento ressurge, em plena ebulição subjetiva, a potência do encontro, fonte de possíveis traumas e possíveis curas (Silva, 2007). Desse encontro poderá emergir uma nova organização narrativa para a família que terá efeitos subjetivos.

Nesse artigo abordaremos aspectos da linguagem, da fala e da narrativa, especificamente, a narrativa parental sobre o adoecimento de um filho quando internado em um hospital pediátrico. Essa narrativa inicial servirá de guia dos pontos de fratura, dos apoios necessários e, sobretudo, da efetiva participação das equipes na reconstrução de perspectivas para o sujeito se reposicionar após o processo de adoecimento.

Esse é um trabalho teórico-clínico, iluminado pela prática clínica hospitalar. Ele visa as equipes de cuidado e tem por objetivo favorecer que os profissionais reconheçam o aspecto discursivo e dinâmico de toda subjetividade, confiem na verdade ficcional e, sobretudo, cientes da potência ontológica de suas narrativas, se posicionem eticamente, atentos aos desdobramentos presentes e futuros de seus atos e palavras.

Como psicanalista, poderia talvez me abster de utilizar a ideia de narrativa, contudo, tenho a intenção de argumentar a importância do conceito para a compreensão da dinâmica de cuidado hospitalar e sua participação na potente estratégia de construção de uma nova perspectiva de onde olhar, escutar e intervir, construção feita a infinitas mãos, olhares e vozes.

 

Fala e Linguagem

O que busco na palavra é a resposta do outro. O que me constitui como sujeito é minha pergunta. Para fazer-me reconhecer pelo outro, não profiro o que se foi senão com vistas ao que será. Para encontrá-lo, chamo-o por um nome que ele deve assumir ou recusar para me responder (Lacan, 1953/1992, PP. 300).

Todo arcabouço teórico-clínico da psicanálise se debruçará com riqueza e desdobramentos profícuos sobre a constituição do sujeito, as linhas de fratura do adoecimento e cura e suas relações com o outro e com a linguagem. Para a teoria psicanalítica, e como veremos para toda uma corrente da filosofia (Gagnebin, 2009), a experiência intersubjetiva é determinante para a constituição do psiquismo. Essa marca constitutiva se torna foco de reflexão sobre a linguagem e as manifestações subjetivas em sua função de estabelecer laço ou, ao contrário, em todas as variações em que se encontram silêncio, negação, recusa e desligamento. Contudo, este artigo não tem a linguagem como eixo. Nosso objetivo é sublinhar a natureza essencialmente dinâmica e constitutiva da linguagem quando, organizada em uma narrativa, se torna capaz de reavivar a potência do encontro. Só então se revelará seu aspecto ficcional, sua porosidade intersubjetiva e a potência subjetiva.

Monique Schneider e as Relações entre Linguagem, Afeto e o Outro

De onde nasce a linguagem, qual sua função para o psiquismo, quais as relações entre afeto e linguagem? Schneider (1993) pesquisa com detalhes os escritos freudianos do final do século XIX, dos relatos do desaparecimento dos sintomas histéricos aos postulados teóricos iniciais, adentra os pormenores das relações entre afeto e linguagem, quando o sintoma seria o representante deformado de uma lembrança esquecida e o afeto um excesso a ser descarregado.

Retomando o tratamento de Anna O., a histérica mais conhecida da história da psicanálise, a autora avança sobre a importância da dramaticidade e teatralização, não de Anna, mas de certa qualidade da linguagem quando dirigida a um interlocutor específico e defende, então, que a linguagem tem seu nascimento "na vontade do ser afetado em afetar o outro" (Schneider, 1993). Inspirada na psicanálise e valendo-se da leitura das Evocações de Rousseau (1756/1993), Schneider nomeia de linguagem apaixonada aquela que simultaneamente sente e faz sentir, arrancando do interlocutor movimentos de sensibilidade, forma de expressão que "acumularia o registro da excitação e sua exteriorização, a coincidência de ritmos entre esses dois movimentos fazendo bascular o espectador fora de sua posição de pura testemunha" (Schneider, 1993, PP.40). É preciso comover o outro, isto é, é mover o outro conjuntamente, retirá-lo de seu estado natural. Apenas quando isso acontece algo essencial é compartilhado, a saber, o afeto deixa de ser apenas de um e passa a ser dos dois ou de todos. "Efetuar-se-ia, neste nível, o equivalente a uma reflexão sensível, pela qual a sensibilidade reaparece sobre o experimentado para conseguir as entonações, em uma contradança constante entre a emoção que assalta o sujeito do discurso e a emoção que assalta a testemunha" (Schneider, 1993, PP.45).

O ponto chave da pesquisa da autora não é, contudo, essa espécie de reflexividade do afeto que se dá na e pela linguagem, mas a implicação entre linguagem e trauma. Em sua leitura, ela descontrói a ideia de que um excesso do afeto causaria do trauma. Um afeto, excessivo ou não, compreende uma experiência subjetiva, vivida enquanto tal pelo sujeito. Para que esta se dê, é necessária e imprescindível a passagem do afeto pelo outro para completar o "movimento de volta e de emergência que vem aprofundar o (movimento vivido pelo sujeito) de imersão no afeto vivido como transbordante" (Schneider, 1993, PP.44). Conclusão significativa: a potência traumática reside na impossibilidade da legitimação do afeto na passagem pelo outro.

Afeto

Aprofundando a função do afeto na origem do trauma, Schneider (1993) retoma o modelo catártico freudiano do final do século XIX, em que, referindo-se à característica dramática da linguagem, lembra que: é crucial vibrar para curar. No entanto, diz a autora, quando o outro não se presta a funcionar como caixa de ressonância, quando não participa desse encontro na linguagem, o psiquismo do sujeito pode ser invadido por um afeto excessivo sem mediação. Para se proteger, o sujeito pode entrar em um estado que Freud chama de estupor, ou seja, um estado mental em que se experimenta algo no escuro, tanto afetivo como representacional. O escuro seria o entrave da exigência dramática do afeto, quando o afeto seria reduzido ao silêncio e privado de desenvolvimento e do poder de crescer que lhe permite prender-se e prender o outro (Schneider, 1993).

O Outro

Como vimos, para Rousseau (1756), assim como para Freud, a linguagem não tem por função designar. Se tomarmos, por exemplo, o grito do bebê, ele nasce de uma necessidade de descarga, que, interpretada como mensagem pelo adulto, marcará para sempre sua expressão. A suposição de demanda do bebê por parte do adulto torna-se marco da participação do Outro na constituição subjetiva, metáfora desse processo fundante de enlace do organismo do infans à sua antecipação como corpo do bebê: "todo fenômeno da descarga emocional se acha anexado ao circuito da comunicação, conferindo uma finalidade significante a uma conduta que era apenas involuntariamente expressiva" (Schneider, 1993, PP.47).

Esta presença constitutiva do outro, seu olhar ou opinião, será para sempre incontornável para o sujeito. Compreende-se por que na primeira infância toda expressão física ou emocional da criança está direcionada e dependente do adulto que a acompanha.

No hospital, diante das cenas por vezes ruidosas que crianças e famílias vivem, a interpretação de que a criança quer chamar a atenção ou manipular o ambiente pode ganhar complexidade e abandonar a suposição de falseamento. "Cai o mito da inocência infantil (...), haveria em todo afeto um elemento explorável em consequência de sua encenação sempre possível e dependente da atitude do meio" (Schneider, 1993, PP.48). Contudo, a cena banal é ainda mais complexa. O meio, ou seja, o adulto que recebe e responde ao grito, não apenas exerce ação decisiva no que diz respeito ao destino quantitativo do afeto (sua expressão ou entrave), mas exerce uma ação qualitativa. Sobre este aspecto, Schneider compara a profunda diferença do relato de Anna O. quando endereçado para Freud ou para Breuer e diz:

Apenas na presença do médico familiar (Breuer), a paciente sentia-se apoiada por essa escuta que daria realidade às suas evocações, assim como a criança fica, ou não, triste ao se levantar depois de uma queda de acordo com a expressão que espera encontrar inscrita no olhar dos seus. Há, aí, não um simples desvelamento de um afeto escondido, mas elaboração progressiva de um afeto repercutido por isto que em torno do sujeito faz o papel de caixa de ressonância. Se nada repercute, não há apenas um afeto cercado de silêncio; trata-se antes de um processo entravado, inacabado, que deixa o sujeito desconcertado sobre o que acabou de viver. (Schneider, 1993, PP.49).

Assim, não apenas a intensidade da manifestação da criança depende do adulto, mas a nomeação do que é vivido, sendo sua resposta determinante para a legitimação da experiência que está se constituindo para a criança naquele encontro.

Eis o ponto crucial: a relação que se estabelece entre sujeito e aquele que acolhe seu relato importa e modifica a legitimidade e coesão da sensação de realidade vivida pelo sujeito. Quantas consequências práticas podem decorrer dessa compreensão? O olhar dos pais pode modificar como uma criança sente seu corpo, personalidade e história. De maneira semelhante, o olhar das equipes pode modificar como os pais se sentem frente às decisões aparentemente banais que acontecem diariamente no hospital.

Do trajeto por Schneider, portanto, resumiríamos assim o relevo da força da linguagem para exercer toda sua potência transformadora de ato e de marca constituinte da subjetividade:

1.A linguagem veicula, informa e formata as intensidades emocionais vividas pelo sujeito, intensidades que se realizam quantitativa e qualitativamente como afeto no momento da fala. A linguagem apaixonada atravessa o sujeito e o interlocutor retornando para aquele que a enuncia com efeitos de legitimação ou deslegitimação do vivido.

2.Na fala está sempre um elemento explorável de encenação que visa atingir o meio que a recebe, provocar uma reação, reação que comporá precocemente os modos de ser do sujeito.

3.A experiência de um sujeito é constituída de maneira interdependente de seu interlocutor. O modo como contamos uma mesma história se modifica a depender de quem nos escuta e como escuta.

 

Narrativas

Uma vida não é mais do que um fenômeno biológico se não for interpretada (Ricoeur, 2006).

Nós nos apoiamos em Schneider para refletir como um sujeito organiza suas experiências e é organizado pelo modo como as conta e as compartilha. A aquisição da linguagem é o sinal de que a constituição do sujeito produziu a marca que funda o eu e a alteridade. As narrativas, por sua vez, são uma conquista posterior ao surgimento desse sujeito já alienado no laço social na/através da linguagem.

Para falar de narrativas hospitalares a obra de Paul Ricoeur (2006; 2014) foi incontornável. Em um texto conciso e interessante, o autor discutirá a noção de que a vida é vivida e as histórias são narradas. Em que medida o relato da vida difere da vida vivida? Em que medida nele se ancora? Para Ricoeur, entre as histórias narradas e a vida vivida existem relações complexas de ancoragem, memória, construção e interpretação, espaços que pertencem ao heterogêneo campo da ficção, mas que não podem ser separados. Diz ele: "a vida é uma seletiva conquista narrativa da memória" (Ricoeur, 2006, PP. 12).

Sua obra inspirou a escolha pelo termo narrativa (e não fala ou linguagem) visto que este pareceu um conceito capaz de retratar a tensão, a desconstrução e a criação de narrativas em meio a uma dinâmica intersubjetiva única criada pela situação hospitalar, necessária diante de um novo e inesperado enredo: o adoecimento de um filho.

Há outra razão: no processo de diagnóstico e de tratamento de uma criança, a diferença entre vivido pela criança/família antes e depois dos sintomas iniciais e o que é narrado /assimilado durante uma internação pode se tornar abissal. Quem somos? Quem nos tornamos? Os modos de enfrentamento desse horror são infinitos, mas a observação das narrativas parentais são fonte e instrumento para compreender a travessia do abismo e perceber o que favorece a tecitura de pontes entre o ontem, o hoje e o amanhã.

Pensar narrativamente é estratégia transdisciplinar. As equipes de psicologia hospitalar, independentemente de sua orientação teórica, têm instrumentos para cumprir a função de intervir sobre os modos como uma família viverá a experiência do adoecimento. Contudo, as equipes assistenciais podem se servir dessa perspectiva para orientar sua reflexão e planejamento. A seguir, abordaremos a narrativa como conceito teórico para, então, refletir sobre três decorrências clínicas antes de concluir o artigo.

Narrativas: conceituação

Ricoeur (2014) é um filósofo contemporâneo que trata hermenêutica do si pelo desvio necessário dos signos da cultura. Segundo uma comentadora, sua filosofia é a do cogito ferido, "combatente das versões mais exacerbadas do idealismo e, em particular, da pretensão de autossuficiência da consciência de si" (Gagnebin, 2009, PP.171). Outro comentador acrescenta: Ricoeur pensa a "condição humana a partir do sujeito que age, pertence ao mundo e à história" (Gentil, 2015, PP. 170). Da ontologia ricoeuriana, nos interessa a defesa do caráter fundamentalmente linguístico (e, portanto, intersubjetivo), dinâmico e temporal da experiência individual e coletiva (tal como Hegel e Freud), os caminhos para a compreensão de si e as possibilidades de transformação de si e do mundo (Gagnebin, 2009).

Narrativas são constitutivas da existência humana. Investigá-las implica investigar o homem em sua relação com o tempo e a atribuição de sentido quando este se vê confrontado à ação e ao sofrimento, parte da própria trama da vida.

Ricoeur (2014) propõe que, para narrar, um sujeito sempre precisará construir a trama, encadear quem fez o que, por que e como, sintetizar acontecimentos múltiplos em uma história completa, estendendo no tempo a conexão entre esses pontos de vista. Tal organização, longe de ser o relato de uma memória, é um processo integrador, um trabalho de composição que dota a história narrada de uma identidade dinâmica e singular. Dinamismo é elemento crucial na leitura ricoeuriana: a narração se dá enquanto se assimila o tempo, a si e ao outro.

O tempo, por sua vez, é essa espécie de apreensão que se dá na relação com o espaço e o movimento, em um intervalo entre um começo e um fim. Ao tecer um conteúdo nesse entre, o sujeito estabelece necessariamente relações causais e sentidos que organizarão o vivido em experiência narrativa singular, ocupando funções de mediação entre o homem e o mundo (referencialidade), entre o homem e o homem (comunicabilidade) e entre o homem e si mesmo (compreensão de si) (Ricoeur, 2006, PP.16).

A concepção ricoeuriana da narrativa se apoia em Aristóteles, nos conceitos de mimesis e de trama. Sobre a mimesis, Ricoeur a aproxima da ideia de representação, etimologicamente ligada a presentificar, a atualizar o que está distante no passado em outro espaço e outro tempo. Assim, a atualização implica uma necessária transposição espacial e temporal, em que a narrativa oscila entre a busca de fidelidade e o risco de traição/ocultamento. Para o autor, a narrativa é sempre uma elaboração, uma construção que contém a tensão de exprimir uma verdade inevitavelmente parcial.

O conceito de trama ou mythos, por sua vez, é composto do elemento imaginativo de fábula e do elemento de construção de história. Em uma narrativa, a trama poderia ser definida como uma síntese de elementos heterogêneos que envolve quatro processos:

1.Uma narrativa procede à síntese de acontecimentos múltiplos em uma história, completa e singular, não enumerações, mas uma organização inteligível e dinâmica.

2.Narrativa organiza e sintetiza elementos discordantes e concordantes em uma totalidade, traça uma rede de relações que seleciona, recorta e recompõe o vivido, revelando um sentido único para a heterogeneidade das circunstâncias, das personagens, dos encontros, conflitos e seus resultados.

3.A compreensão dessa composição não depende daquele que elabora a narrativa. Compreender é um processo guiado pelas expectativas do interlocutor relativas ao curso da história que se corrigem pouco a pouco até a conclusão.

4.A narrativa procede à síntese do heterogêneo também no que diz respeito ao tempo. Para nós, o tempo passa e escapa, como também dura e permanece. Em toda história encontram-se essas duas classes de tempo: uma sucessão discreta e teoricamente indefinida de acontecimentos e, simultaneamente, uma temporalidade caracterizada pela integração total da trama, graças à qual a história recebe uma configuração.

A seguir, nos deteremos em três características narrativas que ganham relevo no cotidiano hospitalar: o aspecto dinâmico das narrativas pessoais, o paradoxo entre dinamismo e rigidez de narrativas parentais e, por fim, a desconstrução das narrativas durante a internação da criança. Cada um desses aspectos ampliará a possibilidade de compreender o vivido no hospital e instrumentalizar as equipes na descoberta de uma nova janela de reflexão e intervenção.

Dinamismo narrativo

Apreender, selecionar e tecer relações e hierarquias interpretativas de modo a instalar-se subjetivamente na apreensão do cotidiano. Ao narrar, o sujeito será impelido a uma espécie de posicionamento e nesse processo um esboço de si será delineado. Eis os primeiros passos para perceber por que à narrativa é atribuído um papel central. Essa construção de si por meio de narrativas é um desafio complexo que envolve uma busca entre dois polos opostos.

Para Ricoeur, a identidade só faz sentido se compreendida como movimento constante do sujeito entre elementos de mesmidade e de ipseidade. O pólo do mesmo é composto por elementos que visam a manutenção do si, a relação com o idêntico e a noção de permanência no tempo. Hábito e caráter são elementos do idem, sedimentações que se oporiam ao que o autor chama ipse. O polo ipse implica a não asserção a um pretenso núcleo imutável da personalidade e contém modalidades de identidade que incluem o mutável, o instável e o variável (Ricoeur, 2014, PP. XIII). Da oscilação entre esses polos, surge uma identidade dinâmica e em constante tensão se esboça e a ela Ricoeur chama de identidade narrativa.

Como se dá esse processo em um hospital? Em um hospital pediátrico, o que acontece com a identidade de uma mãe ou pai que, na oscilação benfazeja entre traços reconhecíveis e diferentes, se depara com a imensa crise do adoecimento da criança? Quando o que pensaram, construíram, sonharam não existe mais? Quando suas respostas não se aplicam mais ao que vivem? Mergulhados na impotência radical do adoecimento, uma família pode ser tracionada para a desconstrução da compreensão de si e essa fragmentação poderá ser observada nas narrativas desses adultos. As equipes de saúde serão os interlocutores de um discurso em pedaços e ocuparão um papel importante nessa nova história que precisará ser narrada.

Ricoeur (2014) segue detalhando a complexidade das relações entre narrativa e identidade e propõe uma análise mais profunda: um sujeito não apenas transparece nas narrativas que formula, um sujeito é um emaranhado de histórias. Cada um de nós, na medida em que reconta os fatos, revela versões possíveis de si e do outro. Quando transparece a verdade? Quem somos de verdade, em essência? Quem somos além do que se conta e reconta sobre nós? A verdade do sujeito sobre si próprio não está dada nem mesmo quando ele afirma algo a seu respeito. Ela pode ser modificada a partir da reconstrução de fragmentos, sonhos, memórias junto a esse outro especial que o escuta. Seja na dimensão individual, seja na dimensão coletiva, nosso eu é uma incessante negociação ficcional: a ficção prevalece como dimensão irredutível na compreensão de si (Ricoeur, 2006, p.20).

Paradoxo das narrativas

A man is always a teller of stories, he lives surrounded by his own stories and those of other people, he sees everything that happens to him in terms of these stories and he tries to live his life as if he were recounting them (Sartre, 1964).2

A frase em epígrafe aparentemente confronta a perspectiva dinâmica da ontologia ricoeuriana defendida até o momento. Até que ponto a proposta de fixidez das estruturas narrativas fragilizam nosso argumento?

Bruner (2004) não apenas comprova a veemência ontológica das narrativas, como mostra sua inescapável fixidez atingindo a vida, a compreensão de si e as escolhas futuras quando se trata de uma família (Bruner, 2004). Ele entrevista um casal e seus dois filhos adultos e constata que nas narrativas individuais persiste um traço identitário que funciona como uma espécie de digital nos discursos e na vida cotidiana de cada membro da família, determinando inclusive seus modos de inserção social. Bruner afirma, então, que a estruturação da experiência de uma família adquire a potência de uma estrutura formal: "these formal structures may get laid down early in the discourse of family life and persist stubbornly in spite of changed conditions" (Bruner, 2004, PP. 709).3

Estamos diante de nova complexidade. Segundo o autor, também é verdade que os caminhos para contar uma história podem se tornar modos de cravar rotas na memória, não apenas para guiar a narrativa no presente, mas para direcioná-la no futuro. Elas podem se tornar um mapa em direção ao futuro, eixo a partir do qual miramos nós mesmos e nosso entorno.

Eis o paradoxo. O paradoxo a ser enfrentado é a coexistência da fixidez de algumas narrativas parentais junto da desconstrução e porosidade de outras. Confrontado por um momento de crise, um pai pode tanto se abrigar no polo da mesmidade (como visto acima), quanto se desorganizar no polo da ipseidade radical do adoecimento. Entre um e outro, infinitas posições são possíveis. O que nos interessa não é prever, mas compreender os movimentos possíveis. A experiência mostra que quando a compreensão de si é obrigada a fazer o détour pelo corpo adoecido do filho, as intrusões, o risco constante da morte, a pequena responsividade da criança grave, a degeneração independente de qualquer ação, é comum nos deparamos com pontos de severa rigidez discursiva, quase como defesa do último bastião antes da capitulação. Não há nada mais concreto e irrefutável que um corpo doente. O grito do corpo apaga tudo à volta. Se instala um inverno: inverno do corpo-órgão, corpo-potássio, corpo-diálise, corpo-genética, corpo-cérebro que paralisa o humano, seus desdobramentos, suas relações.

Por outro lado, é preciso sustentar a certeza de que o que acontece ali (a relação entre os pais, pais-criança, pais-equipe, equipe-criança) não é uma sedimentação do real, um filme do que criança e família vivem, mas, ao contrário, apresenta as forças que se opõem em pleno dinamismo de um reestabelecimento. Durante a hospitalização da criança, as narrativas dos pais podem se mostrar rígidas e porosas, móveis e fixas, elas se constituem e se desorganizam, ora sobrevivem e ordenam o caos do real, ora resistem à sua imprevisível dinâmica.

Toda narrativa parental, toda narrativa do discurso médico (entendendo o diagnóstico como narrativa) condensa os espectros que a habitam, possibilidades e impossibilidades de ser. Mais ou menos porosos em seu adensamento, mais ou menos permeáveis às trocas intersubjetivas, esses espectros são como esboços identitários que precisarão passar por um processo de assimilação e/ou negação para então ganhar sentido, direção e estatuto de realidade.

Durante a internação, o adoecimento da criança se torna, com imensa frequência, ponto de fratura (Decat de Moura, 1996; Mohallem, 2003), pedra incontornável que perpassará a desconstrução das narrativas biográficas. As narrativas que uma família seleciona para falar de si e do sintoma da criança estarão permeadas de hipóteses, explicações, defesas, aspirações, perguntas, atribuições de causas e os culpados, elementos que fazem ruir toda ficcionalidade. O adoecimento crava em sua sombra perda e morte e esse horizonte coloca em xeque as narrativas anteriores.

Até que esse movimento se dê, é preciso olhar a desorganização do discurso parental a partir de Ricoeur e entender o enredo criado pelos pais como um modo específico de conexão entre acontecimentos, capaz de sustentar, na permanência do tempo, a diversidade, a variabilidade, a descontinuidade e a instabilidade instaurada pelo adoecimento.

As narrativas sobre o sintoma da criança em um hospital pediátrico

(...) our autobiographies are constructed, they had better be viewed not as a record of what happened but rather as a continuing interpretation and reinterpretation of our experience (Bruner, 2004, p.692).4

Como apontou Schneider (1993), transformar-se diante de um interlocutor é um fato da linguagem pelo qual o sujeito busca legitimação de suas condutas e escolhas, que tem impacto sobre diagnóstico e conduta médica. Uma hierarquia imaginária (algo consciente e em grande parte inconsciente) determinará o que deve ser dito para quem. No hospital não é incomum reputar tal diferença narrativa sobre os sintomas à manipulação, à desconfiança, à desorganização do acompanhante. Claro que esses também são fatos possíveis.

Do ponto de vista parental, incontáveis vezes, em incontáveis versões, um casal contará sua história visando abarcar o continuum da experiência de adoecimento do filho atribuindo responsabilidades, em um encadeamento temporal dotado de passado, presente e futuro.

Passaremos por três cenas do cotidiano que visam vivificar a teoria, aprofundar a reflexão, e não traçar caminhos de ação. Se toda a defesa teórica visa a importância do encontro e o dinamismo das narrativas, seria um contrassenso buscar indicar saídas. Veremos que as vozes que narram o sintoma de uma criança estão longe de se manifestar em uníssono. As vozes da equipe de cuidado tampouco! Essa multiplicidade tem um dinamismo inenarrável, mas, como as narrativas individuais, no espaço institucional de cuidado essas vozes tendem a ganhar ares de veracidade e terão incidência no cotidiano do cuidado de cada um dos envolvidos.

É preciso que fique claro que não temos o objetivo de transformar médicos e enfermeiros em psicanalistas, mas argumentar que nos reposicionarmos diante da experiência narrativa de alguém (Charon, 2001) pode ter consequências terapêuticas e éticas insuspeitadas.

Os pais narram o sintoma do filho

Algumas narrativas adentram o território corporal e precisam ser distinguidas de sintomas corporais.

Cena 1: Uma garotinha de 7 anos passou por duas internações com o intervalo de 10 dias. Uma dor nas pernas intolerável a impedia de andar. Sem dados laboratoriais consistentes, a hipótese de doença de Lyme foi aventada, organizou-se a alta, mas a criança retornou em uma semana. No retorno, o pai estava furioso por nada sabermos sobre sua "princesa". Em avaliação pela equipe de Psicologia hospitalar nesse segundo momento, a criança desenha, com grande desenvoltura e autonomia, uma princesa com olhos de anjo e conta: "toda princesa anda em nuvens". Não é preciso conhecer a história da família para perceber a complexa construção de lugares que a narrativa do pai aponta e enreda a criança.

Absolutamente ficcional, a narrativa do pai apresenta um enredo, um cenário, estados intencionais, organizados em um script (Bruner, 1991) que abarca toda a família. Como vimos, ele não descreve fatos, mas condensa uma interpretação quase geográfica que ilumina o lugar de cada personagem e atinge o modo como a criança experimenta seu corpo e como este é interpretado no discurso familiar.

Do ponto de vista psíquico, observa-se que desses lugares emanam potências reveladoras da dor e da delícia de participar dessa dinâmica. Esse caso não é uma exceção, é uma regra em que transparece de forma cristalina o aspecto corporal da assunção de lugares sempre presente na constituição subjetiva de uma criança no seio de sua família.

Esse recorte revela o outro corpo que se apresenta ao saber médico, corpo que não pode ser diagnosticado, mas apenas escutado na narrativa parental. Trata-se de um corpo literalmente constituído no amálgama singular de marcas do vivido e da linguagem, o soma construído por memórias, desejos, encontros e desencontros. Se, por um lado, o revestimento narrativo confunde, por outro, escutá-lo torna possível intervenções e o reestabelecimento de toda uma conjuntura familiar. Desta perspectiva, a experiência hospitalar é didática: no espaço cirúrgico da internação, grita a experiência narrativa do adoecimento.

Do ponto de vista das equipes, a narrativa parental desenha também os lugares para aquele que a escuta, convocando-o para olhar de certa perspectiva. Por ser ficcional, ela é necessariamente passível de transformação. O que dizem os pais, interpretando sinais ou construindo sentidos para os sintomas de seus filhos, enreda e desafia as equipes de saúde em sua tarefa diagnóstica, de tratamento e de cuidado.

A equipe narra o diagnóstico da criança

Em um hospital pediátrico não é incomum escutar a exigência desesperada de um pai que "quer de volta o filho que nos entregou". A frase tem uma coerência erigida de impossíveis. Não apenas porque sua demanda é impossível, mas por condensar, na catástrofe concreta do adoecimento grave, a impossibilidade de assimilação, a incoerência do vivido e a necessária cisão do sujeito que fala diante da ficção do adoecimento, ficção tragicamente ancorada no real. (Silva, 2021)

Por vezes incapaz de escutar, como no caso descrito acima, por vezes incapaz de sustentar a singularidade diante do diagnóstico, não raro se assiste a cenas como esta.

Cena 2: Uma mãe e seu filhinho de 20 meses ocupam um leito da UTI. Ele tem um problema renal crônico e precisa há algum tempo de diálise peritoneal. Seus dois irmãos, pouco mais velhos, estão com o pai. A visita multidisciplinar aponta para um bebê que parece deprimido e a consulta com a psicóloga aponta para uma mãe que não vê nada além de um tratamento aprisionante. Ela não vê como pode ser mãe desse caçula tão doente, não vê a criança saudável para além do rim e sonha apenas em estar com as outras crianças. Ela nada tem para dizer para a psicóloga: o bebê fica deitado, irritado e gemente, e ela no celular.

Todas as vezes que se fecha um diagnóstico, pode-se fechar ou abrir para uma criança e sua família perspectivas inóspitas, vidas que ninguém quer habitar. Um diagnóstico na infância narra cientificamente o que acontece ao corpo de um filho, narra um corpo objetivado que a família pode levar anos para ver. Quais aspectos dessa experiência complexa serão assimilados pela família? Quais serão incorporados a uma narrativa biográfica?

O que dizem as equipes em um hospital, interpretando sinais presentes nos sintomas das crianças, desafia as famílias em sua tarefa de construção de sentidos individuais, em apostar (Silva, 2019) e sonhar. Assim, não são incomuns construções em que, apoiada no diagnóstico (obviamente benéfico e necessário) e na rede de significações transmitida por ele, a família se perca nessa travessia rumo à cura.

Muitos podem ser os destinos quando uma família é atingida em seu ponto de fratura. As narrativas podem se estruturar de tal maneira aderidas ao discurso médico que a criança desaparece enquanto sujeito singular. As narrativas podem se desordenar, as palavras sumirem, o tempo se contrair alcançando uma suspensão do é preciso viver um dia de cada vez e aguardar o próximo boletim médico. O possível, então, é tomar cada exame, cada conversa, como novo elemento a ser assimilado ao enredo geral para, em algum momento, se reacomodar.

A participação das equipes

Cena 3: Um jovem casal, que já tinha vivido a dor de um aborto espontâneo, acompanha o imenso trabalho da equipe e, com ele, a imensa invasão dos procedimentos que mantêm viva a filhinha de 15 dias. A cena é inimaginável. Impossível pensar no que está sendo vivido pela bebê. Impossível não pensar. O que pensam não pode nem mesmo ser dito em voz alta, mas o casal decide compartilhar. Poucas pessoas da equipe sabem, o pastor sabe, a família do casal não pode saber: eles decidiram desligar as máquinas que mantém a filha viva. A decisão tem imenso impacto sobre a equipe, que se identifica, sofre, se posiciona. É possível imaginar a entrada de cada profissional no quarto depois dessa decisão? O que o corpo, o olhar, o tom de voz de cada um, comunicará para o casal sobre seu papel, sobre a decisão que tomaram? Em quais se sentirão representados, apoiados, julgados? Como poderão conviver com as imagens de si recolhidas, interpretadas, selecionadas a cada passo do luto que virá?

Para o casal qualquer gesto os atingirá em mil lugares, como estilhaços de um vidro partido dentro do portal para outras dimensões. Atingirá várias vidas, várias dimensões do que poderia acontecer nos inúmeros agoras, uma condensação que se desdobrará para além dos muros do hospital por muitos anos. As equipes, de alguma forma, fazem parte desse filme.

Nesse cenário, longe da persistência obstinada das narrativas parentais, restamos todos submersos na fratura do acontecimento que recoloca a família à mercê do olhar do outro, novamente permeáveis às vozes incandescidas pela potência do afeto ou do saber. Em momentos como esse, o dinamismo intersubjetivo da narrativa volta a pulsar. Tal porosidade, seja advinda da linguagem, do afeto da relação transferencial, da angústia diante do surgimento da finitude no horizonte da vida ou característica intrínseca da construção de sentido, abre para as equipes de saúde um universo privilegiado de intervenção.

Ao escutar a espécie de script que se desenha nas narrativas parentais, a tarefa da equipe será a de alargar os certos e errados para acolher, na densidade das palavras cotidianas, as experiências profundamente ambivalentes, as imagens incrivelmente complexas de si e do filho que aparecerão. Frágil e forte, coitado e imperativo, manhoso e chantagista, bonzinho e impermeável, dançarão imagens do filho e dos pais a cada dia. Sustentar essa multiplicidade significa permitir a coexistência de imagens vivas em que pais e criança possam se abrigar até a nova pele surgir, quando 'voltarem a habitar novos lugares'.

Na imprevisibilidade radical da hospitalização, a memória dos gestos e palavras das equipes pode se tornar lugar de encontro para a alma voltar a habitar a história. As equipes sabem a dor e o privilégio desse atravessamento junto das famílias, mas o que talvez não saibam é que são convocadas, pela natureza de seu trabalho, à falsa dicotomia entre certos e errados. Certamente não sabem o alcance terapêutico escondido na banalidade das tarefas cotidianas. O que nos interessa é quando, da fenda aberta pelo adoecimento, ressurge, em plena ebulição subjetiva, a potência do encontro, fonte de possíveis traumas e possíveis curas (Silva, 2007).

 

Conclusão

I believe that the ways of telling and the ways of conceptualizing that go with them become so habitual that they finally become recipes for structuring experience itself, laying down routes into memory, for not only guiding the life narrative up to the present but directing it to the future. I have argued that a life as led is inseparable from a life as told (): Freud's psychic reality (Bruner, 2004, PP.708).5

Imersos na ebulição das narrativas dos pais de crianças internadas em um hospital pediátrico, buscamos oferecer elementos de reflexão teórica para instrumentalizar as equipes na compreensão da ficcionalidade de toda construção narrativa, seu dinamismo e a abertura que ela comporta quando é possível, nos encontros cotidianos, reavivar a potência intersubjetiva das narrativas na reconstrução de si e do outro.

Do estudo sobre a linguagem e a narratividade emerge uma abordagem diversa do conceito de humanização. De nossa perspectiva, a humanização está no reconhecimento de que os cuidados em saúde são capazes de "criar outros modos de estar nos verbos da vida" (Política Nacional de Humanização, 2010, PP. 47) e subsiste enquanto tomada de posição em defesa e respeito aos valores (Gracia, 2010, PP. 110), crenças e narrativas do paciente ou da família, participando sem ingenuidade e sem heroísmo desse processo aberto, contínuo, essencialmente relacional, em que o sujeito se constitui e reconstitui.

Por outro lado, dimensionar o poder que as equipes de cuidado têm nas mãos implica necessariamente em assumir outra ética no cuidado em pediatria: implica em considerar os pais diante da suspensão dos sentidos construídos, da frágil demanda de palavras, de eco, reverberação e espelho e, assim, assumir a responsabilidade de ocupar esse lugar delicado, a partir do qual se pode fazer novas marcas, inscrever fragmentos e reconectar outros fios.

Sustentado pelo saber das equipes do hospital, novas palavras poderão recompor o corpo da criança, a imagem de pai e de mãe. Instala-se uma transferência única, estruturada na necessidade de resgate/sutura da experiência do tempo e do sentido que se romperam diante dos sintomas da criança. Narrar o corpo e esta narrativa ganhar ares de realidade a ponto de mudar destinos, isso só é possível porque o corpo é uma construção de linguagem.

Encontrar um "novo lugar para onde voltar" seria mera ficção poética? Para onde retornar depois de um período de diagnóstico e de tratamento complexos? Depois de olhar a própria vida sob a lupa da finitude, que apequena qualquer esforço e construção? Para onde retornar após o terremoto do adoecimento de um filho?

Comumente dizemos que alguém se restabeleceu após um período de tratamento. Restabelecer-se implica em voltar a se estabelecer, ideia que liga o adoecer com a experiência de perda de lugar. Agora, se retirarmos a ideia de retorno ao estado anterior, restabelecer-se indica a retomada ou apropriação de um lugar: o lugar ao qual se acrescentou a própria experiência de cura. A ideia de cura assim delineada sugere que é possível voltar a amar, viver e trabalhar desde que uma nova forma de estar no mundo, que convida à invenção de outras maneiras de satisfação, seja vislumbrada (Dunker, 2011. PP. 24-25).

Durante a hospitalização de crianças, recorte desse artigo, o restabelecimento parece para os pais uma experiência longínqua. O hospital é um espaço intermediário, portanto fundamental, para se pontilhar trilhas que apontem para um retorno a um novo lugar. O percurso será pavimentado nos detalhes dos encontros intersubjetivos e seus elementos narrativos.

A integridade possível no adoecimento - a volta para a sensação de integridade, ultrapassando a experiência de ruptura - depende de muitos fatores. Às equipes cabe atentar para a qualidade da sua presença junto da criança e da família. Quem sabe aprenderemos a desenvolver um estado de alma líquido, sensível como a superfície de um lago, quando nos tornamos capazes de reverberar fragmentos de vida que ecoam palavras não ditas e enlaçam gestos interrompidos.

As equipes atravessarão, muitas vezes sem palavras, territórios de vida tênue. Nessa espécie de espaço, um familiar pode encontrar na equipe um anteparo vivo que lhe ofereça um retorno modificado. Pais e crianças podem ser fisgados para a vida através de um simples até amanhã (que indica que em alguma dimensão haverá amanhã!), pelo pega rapaz feito na hora do banho daquele bebê todo invadido. Anzóis amorosos são feitos de vida possível. A pulsação da banalidade e o improviso dependem dos encontros cotidianos. Em muitos momentos a equipe se torna a garantia da banalidade segura do cotidiano e poderá vir a ser o ninho onde a família encontrará guarida para se rever, aprumar, perdoar-se, refletir e seguir.

A banalidade é muitas vezes o único lugar que se tem para voltar. Desde esse abrigo será possível pensar estrategicamente intervenções junto a famílias de pacientes pediátricos, ampliar o terreno do que ainda não se sabe, dos eus que não existem, abrir chance para o deslocamento do sentido de cada decisão, de cada ação, determinantes, em sua banalidade radical, pelo curso da história dessas pessoas.

 

Referências bibliográficas

Bruner, J. (1991) A construção narrativa da realidade. Critical Inquiry. 18 (1). PP 1-21. Recuperado em novembro, 2018, de https://www.academia.edu/4598706/BRUNER_Jerome_A_constru%C3%A7%C3%A3o_narrativa_da_realidade        [ Links ]

Bruner, J. (2004). Life as Narrative. Social Research: An International Quaterly, 71(3), PP 691-710. Recuperado em março, 2019, de https://muse.jhu.edu/article/527352        [ Links ]

Charon, R. (2001) Narrative Medicine: A Model for Empathy, Reflection, Profession, and Trust. JAMA. 286(15). PP 1897-1902. Recuperado em março, 2019, de http://jama.ama-assn.org/cgi/content/full/286/15/1897        [ Links ]

Decat de Moura, M. (1996) Psicanálise e urgência subjetiva in Decat de Moura (org.) Psicanálise e Hospital. Rio de Janeiro: Livraria e Editora RevinteR Ltda.         [ Links ]

Decat de Moura, M (1999). A criança: do mito à estrutura, in Decat de Moura (org), Psicanálise e Hospital: a criança e sua dor (PP.147-160). Rio de Janeiro: Livraria e Editora RevinteR Ltda.         [ Links ]

Dunker, C.I.L. (2011). Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica: Uma Arqueologia das Práticas de cura, Psicoterapia e Tratamento. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Gagnebin, J-M. (2009). Lembrar, Escrever, Esquecer. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Gentil, H.S. (2015). Narrativas de Ficção e Existência: Contribuições de Paul Ricoeur in Viso: Cadernos de Estética Aplicada. V. IX, n. 17. PP. 166-178.         [ Links ]

Gracia, D. (2010). Pensar a Bioética: Metas e Desafios. Trad. Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, Edições Loyola.         [ Links ]

Lacan, J. (1953/1992). Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise in Escritos. 3ª edição. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Ministério da Saúde (2010). Política Nacional de Humanização. Cadernos. HumanizaSUS. Volume 1. Formação e intervenção. Série B. Textos Básicos de Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde Política Nacional de Humanização. Brasília - DF. Recuperado em março, 2018, de https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_humanizaSUS.pdf        [ Links ]

Mohallem, L.N. (2003) Psicanálise e Hospital: Um Espaço de Criação in Decat de Moura (org) Psicanálise e Hospital 3. Tempo e morte: da urgência ao ato analítico. Rio de Janeiro: Livraria e Editora RevinteR Ltda. P.27.         [ Links ]

Ricoeur, P. (2006). La Vida: Un Relato en Busca de Narrador. Ágora: Papeles de Filosofía. (Trad. José Luis Pastoriza Rozas). 25 (2). PP 9-22. Recuperado em março, 2021, de https://minerva.usc.es/xmlui/bitstream/handle/10347/1316/Ricoeur.pdf?sequence=1        [ Links ]

Ricoeur, P (2014). O Si-Mesmo Como Outro. (Trad. Ivone Benedetti). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Rousseau, J.J. (1756). Ensaio sobre a Origem das Línguas in Schneider M. Afeto e Linguagem nos Primeiros Escritos de Freud. (tradução Mônica Seincman). São Paulo: Ed. Escuta, 1993. PP. 40.         [ Links ]

Sartre, J-P. (1964) in Bruner, J. (2004). Life as Narrative. Social Research: An International Quaterly, 71(3), PP 691-710. Recuperado em março, 2019, de https://muse.jhu.edu/article/527352        [ Links ]

Schneider, M. (1993). Afeto e Linguagem nos Primeiros Escritos de Freud. (Tradução Mônica Seincman). São Paulo: Editora Escuta.         [ Links ]

Silva, G.F. (2007). Gravidez: Regressão e Movimentos Representacionais na Perspectiva de Freud e Winnicott. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Silva, G.F. (2019). O Luto e as Dimensões Temporais do Sofrimento no Hospital Pediátrico in Silva, G.F. e Mutarelli, A. (orgs) Luto em Pediatria: Reflexões da Equipe Multidisciplinar do Sabará Hospital Infantil. Barueri: Editora Manole. PP 24-53.         [ Links ]

Silva, G.F. (2021). Cuidados com crianças no processo de hospitalização. Aula proferida no XIII da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar. SBPH, 03/09/2021.         [ Links ]

Silva Junior, N. (2019). Modelos de Subjetividade em Fernando Pessoa e Freud: da catarse à abertura de um passado imprevisível in Silva Junior Fernando Pessoa e Freud: Diálogos Inquietantes. São Paulo: Editora Edgard Blucher Ltda. (Trabalho original publicado em 1998).         [ Links ]

Stroebe M, Shut H, Strobe W (1999). The dual process model of coping with bereavement: rationale and description. In Death Studies (PP 197-224). 23 (3). Recuperado em dezembro, 2020, de https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10848151/        [ Links ]

 

 

Gláucia Faria da Silva - Psicanalista, mestre e doutora pelo Departamento de Psicologia Social do IP-USP. Coordenadora do Serviço de Psicologia Hospitalar do Sabará Hospital Infantil entre 2012-2021. Organizadora do livro: Luto em Pediatria: Reflexões da Equipe Multidisciplinar do Sabará Hospital Infantil, Manole Editora, 2019.
1 O 'Outro', leia-se 'Grande Outro', é um conceito da psicanálise lacaniana, assim grafado para se contrapor ao 'pequeno outro', elemento que se refere ao vínculo imaginário de um outro como semelhante ao eu. Lacan parte da aproximação entre inconsciente e Linguagem, propondo o 'Outro' como lugar simbólico que tem a função de alteridade radical, diferença pura, o tesouro dos significantes. O 'Outro' tem por figuras a Cultura, a Linguagem, o Outro parental, a Morte, o Sexo. O 'Grande Outro' marca o eu com um traço de identificação que inicialmente o aliena, para só depois, a partir dos efeitos do significante, se tornar sujeito dividido e entrar na dialética do laço social. (Agradeço as cuidadosas sugestões de Denise Arduim).
1 "Um homem é sempre um contador de histórias, ele vive imerso em suas próprias histórias e nas de outras pessoas, ele vê tudo o que acontece a ele em função dessas histórias e tenta viver sua vida como se estivesse a recontá-las" (Sartre, 1964). Tradução nossa, com as preciosas sugestões das profs. Maria Cecília Fraga e Érica Brasil.
2 "Essas estruturas formais podem ser estabelecidas precocemente no discurso da vida familiar e persistir teimosamente a despeito de as condições terem mudado." (Bruner, 2004). Tradução nossa, com as preciosas sugestões das profs. Maria Cecília Fraga e Érica Brasil.
4 "Nossas autobiografias são construídas, elas devem ser vistas não como um registro do que aconteceu, mas como uma contínua interpretação e reinterpretação de nossa experiência" (Bruner, 2004, p.692). Tradução nossa, com as preciosas sugestões das profs. Maria Cecília Fraga e Érica Brasil.
5 "Eu acredito que os modos de narrar e os modos de conceitualizar que as narrativas pressupõem tornam-se tão habituais que acabam por se tornar roteiros pré-definidos para a estruturação da experiência em si, estabelecendo rotas na memória, que não apenas guiam a narrativa de vida para o presente, mas a direcionam para o futuro. Eu defendo que a vida vivida é inseparável da vida narrada (...): a realidade psíquica de Freud" (Bruner, 2004). Tradução nossa, com as preciosas sugestões das profs. Maria Cecília Fraga e Érica Brasil.

Creative Commons License