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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.25 no.1 São Paulo jan./jun. 2022

http://dx.doi.org/10.57167/Rev-SBPH.v25.035 

PARTE IV- ATUALIDADES EM PSICOLOGIA HOSPITALAR

 

Relato de Experiência do Serviço de Psicologia de um Hospital Oncológico Durante a Pandemia

 

Experience Report of the Psychology Service of an Oncology Hospital During the Pandemic

 

 

Suzane Bandeira de MagalhãesI; Ângela Bandeira de MagalhãesII; Camila Santos de JesusIII; Fernanda Roberta Menezes BrainIV; Raquel de Sousa RibeiroV; Rocío Andrea Cornejo QuintanaVI; Roseani Novaes de SousaVII; Shirley Fernandes CostaVIII; Tatiele Santos dos ReisIX

IHospital Aristides Maltez - Salvador/Bahia - suzanemagalhaes@bahiana.edu.br
IIHospital Aristides Maltez- Salvador/Bahia - angelademagalhaes@gmail.com
IIIHospital Aristides Maltez e Hospital Prohope - camilasantosjj@gmail.com
IVHospital Aristides Maltez- Salvador/Bahia - frmbrain@gmail.com
VHospital Aristides Maltez- Salvador/Bahia - psicologaraqueldesousaribeiro@gmail.com
VIHospital Aristides Maltez- Salvador/Bahia - psi.rquintana@gmail.com
VIIHospital Aristides Maltez- Salvador/Bahia - rosendesousa@gmail.com
VIIIHospital Aristides Maltez- Salvador/Bahia - sfcosta_2@hotmail.com
IXUniversidade do Estado da Bahia - Salvador/ Bahia - tatielesdr_12@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O câncer é uma doença considerada estigmatizante, envolta em representações de dor, sofrimento e morte. A covid-19 compartilha a mesma característica, muito embora tenham-se avançado em seu conhecimento, ainda paira a incerteza de seu desfecho. A instauração da pandemia, impôs à equipe de saúde novas demandas de atuação, com isso, o objetivo deste trabalho é descrever a experiência de um Serviço de Psicologia em um hospital de referência em oncologia na Bahia durante a pandemia. Trata-se de um relato de experiência, ocorrido no período de março de 2020 a julho de 2021. A atuação da Psicologia nos ambulatórios, unidade de terapia intensiva, serviço de atendimento domiciliar, enfermarias adulto e pediátrico foi coletivamente reconfigurada, desde o impacto inicial até a atual possibilidade de trabalho. Conclui-se que durante a pandemia o cenário de sofrimento, perdas e lutos de diversos tipos foram potencializados, tornando o trabalho na oncologia ainda mais desafiador.

Palavras-chave: pandemia; covid-19; câncer; hospital oncológico; psicologia.


ABSTRACT

Cancer is considered a stigmatizing disease, wrapped in representations of pain, suffering and death. Covid-19 shares the same characteristic, although they have advanced in their knowledge, there is still uncertainty about its outcome. The onset of the pandemic imposed new demands on the health team, therefore, the aim of this paper is to describe the experience of a Psychology Service in an oncology reference hospital in the state of Bahia (Brazil), during the pandemic. This is an experience report, taken from March 2020 to July 2021. The role of Psychology in outpatient clinics, intensive care unit, home care service, adult and pediatric wards was collectively reconfigured, since the initial impact to the current possibility of work. It is concluded that, during the pandemic, the scenario of suffering, loss and grief of various types was enhanced, making work in oncology even more challenging.

Keywords: pandemic; covid-19; cancer; oncology hospital; psychology.


 

 

Introdução

O câncer é uma doença ainda considerada estigmatizante, envolta em representações de dor, sofrimento e morte, muito embora valha ressaltar que os avanços no campo da atenção à saúde apresentaram melhora no diagnóstico precoce, tratamentos e consequentemente aumento no índice de cura, porém a taxa de mortalidade ainda se mostra expressiva (Inca, 2020).

A covid-19 compartilha a mesma característica, no que tange a indeterminação da evolução, apresentando comportamento inconstante, muito embora tenham-se avançado em seu conhecimento, ainda paira a incerteza de seu desfecho. A instauração da pandemia do coronavírus (SARS- Cov2) no início do ano de 2020 impôs aos trabalhadores de saúde novas demandas de atuação e de proteções específicas, antes não tão comuns.

A postura negacionista do Governo Federal do Brasil frente à pandemia, contrariando os protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS) e o discurso científico, gerou uma condição de confronto entre a vida e a economia (Birman, 2021). Tudo isso, somado ao número de mortes no Brasil por covid-19, a gestão desorganizada da crise, incluindo trocas de ministros da saúde, acarretou efeitos psíquicos na população em geral.

Segundo Cavalcante, Santos, Bremm, Lobo, Macário, Oliveira, & França, (2020) o Brasil está entre os países com maiores números de casos confirmados de covid-19 e óbitos, demonstrando significativas diferenças regionais, justificada por suas próprias características locais, sociais e demográficas. No contexto da oncologia, o Brasil também tem suas características próprias, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca, 2020).

Os hospitais não covid-19, apesar de não serem "porta aberta" para esses pacientes específicos, se depararam com a demanda de pacientes e funcionários com diagnósticos positivos para a covid-19, e consequentemente uma série de medidas precisaram ser tomadas frente a necessidade de contenção do vírus.

Durante a pandemia se instalou um cenário de sofrimento, perdas e lutos de diversos tipos, dessa forma, conclui-se que a população geral, e mais especificamente os profissionais de saúde, sofreram impactos em sua saúde mental (Birman, 2021). No campo da saúde, estudos (Crepaldi, Schmidt, Noal, Bolze, & Gabarra, 2020) têm observado acerca da sobrecarga emocional de trabalhadores que anteriormente já atuavam com pacientes gravemente enfermos, debilitados e com risco de óbito, com o advento da pandemia esses elementos foram exacerbados, promovendo também a ambivalência de ser treinado para proporcionar cuidados e poder ser vetor da doença ameaçadora e potencialmente fatal.

Diante da nova realidade, na qual se impõe a convivência com o vírus, é importante relatar experiências que descrevem os ajustes e as possibilidades de trabalho. Diante do cenário apresentado, o objetivo deste artigo é descrever a experiência de um Serviço de Psicologia em um hospital de referência em oncologia durante a pandemia.

 

Método

Estudo descritivo do tipo relato de experiência ocorrido em um hospital filantrópico sem fins lucrativos, referência em Oncologia no estado da Bahia, no período de março de 2020 a julho de 2021. A base ética do relato fundamenta-se na Resolução número 510 de 2016 do Conselho Nacional de Saúde, em seu parágrafo único do artigo 1º que dispõe sobre as pesquisas que não precisam ser registradas no sistema (Brasil, 2016).

O contexto do estudo se dá em um hospital filantrópico, sem fins lucrativos, comportando um Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON), atendendo exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A instituição é referência no tratamento oncológico à população carente no estado da Bahia. Contando atualmente com aproximadamente 232 leitos e recebe em média, por dia, mais de 3.500 pacientes de todas as idades. O serviço de Psicologia da referida instituição existe desde 1989 e atua em trabalho conjunto com as demais especialidades nas diversas áreas do hospital.

 

Resultados e Discussão

Pode-se observar que o trabalho da Psicologia envolveu algumas etapas e construções coletivas, de acordo com o curso da pandemia, com isso, o estudo foi segmentado didaticamente em duas categorias que representam as fases do processo: 1) O início: momento de choque e 2) Reconfigurando possibilidades de trabalho até o momento atual.

O Início: Momento de Choque

No início da pandemia, em março de 2020, houve a criação do Comitê de Gerenciamento de Crises no hospital e, apesar da psicologia não fazer parte diretamente do comitê, as propostas e sugestões foram ouvidas e colocadas em prática. A instituição determinou a suspensão de consultas, cirurgias, exames e matrículas de novos pacientes, além dos estágios curriculares.

No primeiro momento, o trabalho das psicólogas foi organizado em escala híbrida (presencial e remota), por meio de teleatendimentos (ligação telefônica e chamadas de vídeo). Sabidamente, com o advento da pandemia, o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2020) através da resolução nº 4, de 26 de março de 2020, promoveu alterações sobre a regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia. A partir da divulgação da supracitada resolução, em que condiciona, para a prestação de serviços psicológicos à realização de cadastro prévio na plataforma e-Psi, todas as psicólogas se organizaram para realizá-lo e posteriormente os atendimentos foram iniciados.

Sobre o perfil dos pacientes aptos para serem contemplados por essa configuração de assistência, acordou-se que seriam os que não estavam em tratamento ativo da doença e os isolados no próprio hospital por suspeita ou confirmação para covid-19. No que se refere aos pacientes em tratamento ativo (quimioterapia, radioterapia, iodoterapia, entre outros) se conservou o acompanhamento presencial, tanto em nível ambulatorial, quanto em unidades de internação (adulto e pediátrico). Apesar do atordoamento frente à situação inédita, foi observado que houve uma boa adesão ao modelo de teleconsultas, pela equipe e pelos pacientes.

As psicólogas das unidades de Terapia Intensiva e Oncopediatria foram convocadas, em momentos de casos expressivos de colaboradores infectados nas determinadas unidades a prestar acolhimento aos mesmos através de teleatendimentos, no início da pandemia. Como também foi criado um grupo de WhatsApp no qual aconteciam conversações mediadas pelas psicólogas.

Um aspecto a se considerar das teleconsultas foi a disponibilização dos números de telefones pessoais das psicólogas, que antes eram preservados e que diante da necessidade, foram compartilhados com a equipe, pacientes e familiares. A exposição na contemporaneidade, com o excesso de redes sociais tem sido uma temática debatida por teóricos (Han, 2018; Han, 2017; Bauman, 2008). Com a pandemia, muito do que estava posto em termos de uma contemporaneidade líquida, transparente e positiva, onde não havia lugar para temas difíceis como a morte e o luto, precisou ser revisto. A morte ficou escancarada diariamente e contabilizada nos meios de comunicação e tudo isso gerou uma sensação de luto coletivo (Franco, 2021).

Para Han (2017), o excesso de informação, de opinião, de trabalho e consequente falta de tempo e narratividade, dificultam que a experiência vivida seja tomada como algo processual. A sociedade pós pandemia começa a falar sobre o luto e assim resgata também seu aspecto de narratividade. A saúde mental das pessoas começa a ser tema relevante nesse cenário. A não escuta de processos de luto pode ser adoecedor. Sem poder narrar, sem tempo para elaborar, sem ter quem consiga escutar, a pessoa enlutada não tem possibilidade de sair do lugar do sofrimento e deslocar-se para o lugar da elaboração, com isso, encontrando sentido. Frente a isso, os espaços de atendimento psicológicos, presenciais ou virtuais, passaram a ser mais demandados e valorizados.

Reconfigurando as Possibilidades de Trabalho até o Momento Atual

Em junho de 2020, as psicólogas retomaram totalmente a escala de trabalho presencial, porém, foram mantidas teleconsultas para pacientes que não estavam em tratamento ativo ou não podiam comparecer às consultas e para familiares impossibilitados de realizar visita. Por se tratar de um hospital referência em oncologia no estado, que atende apenas usuários do SUS, é comum que os pacientes morem em cidades ou povoados distantes, lidando também com dificuldades financeiras, que interferem no deslocamento para a manutenção do tratamento. Somada a estas dificuldades, durante a pandemia algumas cidades fecharam fronteiras e limitaram os transportes públicos e os fornecidos através do Tratamento Fora de Domicílio.

Neste mesmo período, a psicologia entrou no fluxo, junto à Medicina do Trabalho e à Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH), para acolher, através de teleatendimentos, funcionários com suspeita ou diagnóstico confirmado de covid-19 e permanece até então com esta tarefa. Vale ressaltar, que tal tarefa é uma excepcionalidade, face ao contexto atual, uma vez que se trata de um serviço de Psico-oncologia voltado para pacientes e familiares e assim, não contempla atendimentos a funcionários.

No ano passado, houve um número significativo de colaboradores que confirmaram o diagnóstico para covid-19. Todos os que estavam sintomáticos e realizaram o teste (RT-PCR) no próprio hospital receberam acolhimento psicológico por teleatendimento. Após fevereiro de 2021, houve uma queda no número de infectados e a psicologia passou a fazer acolhimento apenas aos que de fato positivassem.

Como se trata de um hospital oncológico, os pacientes suspeitos ou internados que positivaram eram transferidos para hospitais de referência para covid-19. Mesmo assim, alas de enfermarias clínicas e leitos de UTI foram reservados para pacientes cuja regulação não era possível (seja pela gravidade do quadro oncológico ou pela própria falta de vagas no sistema).

A psicologia, no entanto, não fez parte da equipe mínima que entravam nos leitos covid-19, os pacientes internados, infectados pelo novo coronavírus receberam teleatendimento psicológico, assim como seus familiares, que se mostravam angustiados diante da impossibilidade de acompanhar e estar fisicamente perto do paciente. Nesse momento, o hospital adquiriu tablets que passaram a intermediar a comunicação.

Neste segundo momento, foi percebido um aumento no número de funcionários que buscavam avaliação e acompanhamento psicológico. Assim como familiares de pacientes e pacientes livres de tratamento oncológico, por não conseguir absorver essa demanda foi realizada parcerias com duas faculdades particulares do estado para encaminhar esses casos. Após os dados iniciais, esta categoria foi subdividida por áreas de atuação:

Ambulatório e Enfermarias Adulto

A psico-oncologia presta assistência ao paciente oncológico, família e aos trabalhadores de saúde envolvidos com a prevenção, reabilitação e a fase final da vida (Gaspar, 2019). Nas enfermarias da instituição estão internados pacientes cirúrgicos e clínicos, ou sob confirmação diagnóstica. Para ser admitido no serviço de psicologia, é necessário que o paciente seja encaminhado através de solicitação médica formal via sistema, e em casos específicos, sinalizado pela equipe multiprofissional.

Sabe-se que estar na posição de "paciente oncológico" por si só evoca muitos sentimentos, por vezes ambivalentes e de difícil administração, tais como insegurança e o temor da morte, que mostram-se constantemente presentes (Gaspar, 2019). Com o advento da pandemia, foi possível observar que além de lidar com o que era parcialmente conhecido - o câncer - também foi necessário desenvolver estratégias para lidar com o desconhecido - a covid-19.

Diante desse contexto, as demandas apresentadas pelos pacientes e acompanhantes foram variadas, porém compartilharam alguns elementos, tais como o adoecimento oncológico, a hospitalização e como pano de fundo a experiência de uma pandemia.

No cotidiano da assistência em saúde, foi possível observar que a suspensão de visitas e a menor rotatividade das trocas de acompanhantes tem impactado profundamente os pacientes, principalmente no que se refere aos vínculos e contatos para além do contexto hospitalar. Vale ressaltar que a disponibilidade das tecnologias digitais têm auxiliado na manutenção desses contatos.

No acompanhamento ao paciente oncológico hospitalizado, são frequentes as queixas de insônia, temor da contaminação, hipervigilância e relatos dos processos de lutos em consequência da covid-19, no entanto percebe-se a prevalência das demandas inerentes ao processo de adoecimento oncológico. É possível concluir que esse movimento acontece pois, enquanto o câncer é uma realidade concreta, a contaminação mostra-se enquanto uma possibilidade.

Outra frente de atuação são os atendimentos ambulatoriais, da mesma forma os pacientes devem ser encaminhados pelo médico assistente. Os serviços prestados pela equipe de psicologia são realizados, geralmente, de forma individual nos consultórios e quando necessário com um familiar presente ou somente com o familiar. No atendimento ambulatorial, como nas enfermarias, é possível observar que os pacientes têm verbalizado a respeito das repercussões da pandemia como pano de fundo, focalizando as sessões em questões do âmbito oncológico.

Cuidados Paliativos e Serviço de Atendimento Domiciliar

Em relação aos pacientes em situação de doença avançada e terminalidade, o foco demonstra ser a doença oncológica grave e a proximidade da morte, já anunciada no corpo do doente. Nestes pacientes e suas famílias, a pandemia não se mostrava tão presente nos discursos. Com isso, infere-se que a morte já estava ali posta, independente do potencialmente fatal vírus.

Nesse sentido, muitos familiares de pacientes em cuidados paliativos, já vivenciavam um luto antecipatório pela doença oncológica. A diferença é que este luto pessoal foi intensificado pelas características da pandemia. Os cuidados paliativos do referido hospital, iniciou a pandemia com muita precaução diante da fragilidade dos pacientes e dos desconhecimentos acerca do comportamento do vírus. De modo que, as consultas ambulatoriais foram postergadas e a psicologia, além das teleconsultas, mediou diálogos entre pacientes e familiares com a equipe médica.

De agosto de 2020 até o momento atual, as consultas retornaram presencialmente, porém pacientes mais apreensivos com a situação pandêmica, continuam sem comparecer presencialmente, contudo seus familiares frequentam a instituição para tirar dúvidas, renovar receitas, dentre outras particularidades, e quando necessitam de internação seguem o fluxo do internamento, já descrito anteriormente. Esse fluxo inclui, muitas vezes, a liberação de visitas de crianças e adultos para os rituais de despedidas.

Conclui-se, que as teleconsultas continuam, tanto no decorrer da doença, quanto após o óbito, com o objetivo de auxiliar no processo de elaboração do luto pela família do paciente em cuidados paliativos.

O Serviço de Atendimento Domiciliar oferece acompanhamento multiprofissional a pacientes em situação de terminalidade em seus domicílios na região metropolitana de Salvador. Durante a pandemia as visitas foram inicialmente suspensas, assim como a reunião de acolhimento e orientações aos familiares. Após ajustes iniciais, em meados de 2020, as visitas domiciliares foram retomadas, porém sendo apenas uma visita por turno. As famílias também passaram a ser atendidas individualmente e presencialmente no hospital pela equipe. Até o momento, esse formato está mantido.

Unidade de Terapia Intensiva

A Unidade de Terapia Intensiva (UTI) geralmente representa um território de muitos desafios (Lucchesi, Macedo, Costa, & Marco, 2008; Fumis, 2016). Diante da realidade de uma UTI oncológica, a covid-19 somou mais uma fonte de tensão para a tríade paciente, familiares e equipe. Segundo Teixeira et al. (2020), pesquisas realizadas sobre a saúde mental dos profissionais de saúde durante a pandemia constataram que há o acometimento de transtorno de ansiedade generalizada, estresse crônico e esgotamento dos trabalhadores frente à carga de trabalho.

Muitas mudanças de fluxos e instrumentalização da equipe foram necessárias. Inicialmente, um leito de isolamento de cada UTI foi preparado para receber pacientes suspeitos ou confirmados de covid-19. A psicóloga de referência precisou realizar cursos sobre comunicação e protocolos de atendimento ao paciente com covid-19 em UTI. O boletim passou a ser informado por telefone ao familiar responsável e em alguns casos, a comunicação do óbito também. Foram estabelecidos critérios para exceções de liberação de visitas e boletim médico presenciais, que flutuam conforme o momento da unidade e da pandemia.

Em suma, a configuração na pandemia acrescentou as seguintes atividades para a psicóloga de referência: participar das atualizações dos fluxos com as coordenações; atender os familiares, remota ou presencialmente em ambulatório; realizar videochamadas; realizar avaliação e agendamentos de liberação de visita e sugerir e acompanhar reunião com familiares.

Inicialmente somente a psicóloga de referência realizava as videochamadas com o seu aparelho e internet, porém em 2021 foram redefinidas as rotinas, a partir da disponibilização de 2 Tablets da instituição, desse modo, as secretarias da UTI passaram a desempenhar tal função.

Além disso, foi mantido o atendimento psicológico por videochamada nos casos mais complexos, tais como, pacientes traqueostomizados ou com maior mobilização emocional; e as conferências familiares por videochamadas realizadas com a equipe. O contato do Serviço de Psicologia é disponibilizado aos familiares, sendo um importante canal de comunicação entre a família e a equipe, com isso, observou-se a redução da ansiedade dos familiares que aguardavam um único contato médico ao dia.

Oncopediatria

A partir de março de 2020 as psicólogas incluíram nas intervenções psicoeducativas as medidas recomendadas pela OMS (Noal, Passos, & Freitas, 2020) para evitar a disseminação do vírus. Foi constatado que crianças e adolescentes em tratamento oncológico, assim como seus familiares já estavam habituados ao uso de máscaras, lavagem das mãos e distanciamento social anterior ao advento da pandemia.

A necessidade de isolamento social acarretou na interdição de importantes espaços de convivência e ludicidade. Desta forma, os profissionais da assistência, sobrecarregados pelo uso contínuo dos equipamentos de proteção individual, somado à tensão do risco de contrair e/ou ser vetor do vírus, perderam tanto na força-tarefa, quanto na leveza de ações terapêuticas. Deixaram de acontecer os processos grupais e festivos, consequente diminuição de doações, desde brinquedos até alimentos e sangue, tão importantes para um hospital filantrópico. Há mais de um ano não é possível contar com estagiários, professores e voluntários que atuavam nas enfermarias, classe hospitalar e brinquedoteca.

O recurso lúdico é uma ferramenta muito utilizada pelos psicólogos nos atendimentos às crianças, pois resgata algo do seu ambiente familiar, favorece a comunicação inclusive com linguagem não verbal, especialmente na primeira infância, possibilita o senso de controle, proatividade e exercita mecanismos de adaptação (Romano, 2017). Com todo o rigor necessário com assepsia, as psicólogas também tiveram restrições no que se refere à utilização dos brinquedos, além de sentir a demanda represada das crianças hospitalizadas ávidas por brincar. Lápis de cor, massa de modelar e desenhos para colorir foram os mais usados neste período.

Em oncopediatria é preciso também atentar para a saúde mental dos principais cuidadores, que reflete diretamente no paciente. Os familiares sofrem com todo o processo do diagnóstico e repercussões do tratamento, do qual não é possível fornecer garantias (Valle & Ramalho, 2008). Na experiência das psicólogas da unidade, percebe-se que a pandemia aumentou a preocupação dos pais e demais cuidadores, frente à vulnerabilidade dos seus filhos já diagnosticados com câncer.

No tratamento oncológico há um grande rigor para se cumprir os prazos determinados pelos protocolos. Neste contexto, os pais dos pacientes que positivaram para a covid-19, internados junto com seus filhos, precisaram lidar com a insegurança das repercussões do vírus, assim como a expectativa da retomada do tratamento oncológico.

A experiência da oncopediatria do referido hospital mostrou que a evolução dos infectados parece ter sido favorável. Para diversos pacientes com sintomatologia leve o período de quarentena foi cumprido fora do hospital, seja em domicílio ou em hotéis custeados e alocados próximos do hospital, para os que não puderam retornar ao lar.

A psicologia deu continuidade aos atendimentos destes pacientes e familiares que estavam cumprindo a quarentena, através de teleatendimento, muitas vezes com o próprio aparelho de celular. Isso gerou uma demanda de contatos para além dos turnos em que as psicólogas se encontravam na instituição.

 

Considerações Finais

Em fevereiro de 2021, grande parte dos profissionais do hospital já haviam tomado as duas doses da vacina contra a covid-19. A partir daí houve um decréscimo cada vez maior de funcionários infectados. O acolhimento aos funcionários que positivaram segue pela psicologia, porém já começa a se observar um temor diminuído frente ao diagnóstico, justificado em parte, pela predominância de casos leves ou assintomáticos.

Alguns pacientes e familiares seguem em teleatendimento por escolha própria. Observa-se que alguns pacientes livres de tratamento, têm uma preocupação maior com a covid-19. Já os que estão em tratamento ativo, o foco demonstra ser o próprio câncer, dessa forma, o medo do contágio pelo vírus ficou em segundo plano.

Apesar do desafio de lidar com uma doença estigmatizante como o câncer, com pacientes com imunidade comprometida, com famílias e pacientes angustiados com diagnóstico de câncer na pandemia, pode-se perceber que com uma comunicação fluida e um trabalho em equipe coeso e agregador, os desafios puderam ser enfrentados e ajustados mediante o avanço do novo coronavírus. Há, ainda, um longo caminho a ser traçado no que se refere à humanização em saúde, especialmente frente às particularidades do contexto pandêmico.

O presente trabalho não intenta esgotar a discussão sobre o tema em questão, mas oportunizar a apresentação crítica e reflexiva da prática profissional atravessada pela pandemia, desse modo contribuindo para o desenvolvimento e reinvenções necessárias da psico-oncologia no contexto hospitalar durante a pandemia de covid-19.

É importante frisar que, mesmo que a atuação não tenha sido na dita "linha de frente" (também nomeada de equipe mínima covid-19), os hospitais, de forma geral, foram impactados. É inegável que todas essas mudanças repercutiram de forma pessoal e profissional nas próprias psicólogas do Serviço. Porém reconhecemos como facilitador, a abertura da instituição, representada pelo Comitê de Gerenciamento de Crise, para dialogar com o Serviço e acatar as sugestões de ajustes necessários e possíveis diante desse contexto. Desse modo, compreende-se que essa escuta cuidadosa por parte da gestão, se configura também como uma estratégia de cuidado, tão fundamental nesse momento de tantas incertezas, preservando, dessa forma, a autonomia do Serviço de Psicologia.

Ao que se refere às estratégias de autocuidado desenvolvidas pelas psicólogas, destacamos: 1) a psicoterapia individual (com financiamento próprio); 2) as supervisões e discussões internas, que foram utilizadas como espaço de troca de experiências e de afetações, e 3) o grupo online de acolhimento e escuta para psicólogas no contexto hospitalar, promovido por uma faculdade particular de Salvador, com o intuito de dialogar sobre as vivências na pandemia. Todas essas iniciativas trouxeram importantes contribuições para o cuidado e a reflexão crítica sobre o fazer da psicologia hospitalar diante da pandemia, além de servir como sustentáculo para a permanência dessa prática de forma salutar.

Conclui-se que o tema carece de mais estudos, desse modo sugere-se que outras pesquisas sejam realizadas, a partir de outras abordagens metodológicas a fim de aprofundar o tema em questão, para que posteriormente possa refletir diretamente na assistência, de modo que ela seja realizada de forma coerente com as necessidades apresentadas.

 

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Suzane Bandeira de Magalhães - Psicóloga doutora em Medicina e Saúde Humana pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP) e professora adjunta da EBMSP.
Ângela Bandeira de Magalhães - Psicóloga especialista em luto pelo Instituto Quatro Estações.
Camila Santos de Jesus - Psicóloga especialista em Psicologia Hospitalar pela UniRuy Widen. Pós graduação em Cuidados Paliativos pelo Instituto Paliar.
Fernanda Roberta Menezes Brain - Psicóloga especialista em Saúde na Infância pelo Centro Universitário Jorge Amado.
Raquel de Sousa Ribeiro - Psicóloga especialista em Psicologia Clínica pelo Instituto de Desenvolvimento Profissional e em Gestalt-terapia pelo Instituto de Gestalt-terapia da Bahia.
Rocío Andrea Cornejo Quintana - Psicóloga. Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado da Bahia.
Roseani Novaes de Sousa - Psicóloga especialista em Psicologia Analítica pelo Instituto Junguiano da Bahia .
Shirley Fernandes Costa - Psicóloga pós graduada em Cuidados Paliativos pelo instituto Paliar.
Tatiele Santos dos Reis - Residência Multiprofissional em Saúde/ Núcleo Oncologia.

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