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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.25 no.2 São Paulo jul./dez. 2022

http://dx.doi.org/10.57167/Rev-SBPH.v25.482 

PARTE I PANDEMIA: O CUIDADO E SEUS EFEITOS

 

Fazer viver, deixar morrer: considerações ético-políticas em cuidados paliativos para tempos de covid-19 no Brasil

 

To make live, to let die: ethical-political considerations in palliative care for covid-19's period in Brazil

 

 

Luíza Michelini VilanovaI; Cláudia Bechara FröhlichII; Janniny Gautério KierniewIII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre/RS - luizamv1@hotmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre/RS - claudiafrohlich@hotmail.com
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Porto Alegre/RS - janninyk@gmail.com

 

 


RESUMO

A pandemia de covid-19 tem nos colocado diante da dor e da morte. No Brasil, vemos, por meio de medidas governamentais e da postura de parte da população, a emergência de um discurso que naturaliza a morte. Este artigo é um estudo teórico que partiu de discussões no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/eixo 2) que atuou como pesquisa e extensão, entre 2017 e 2019, no Setor de Dor e Cuidados Paliativos de um hospital geral do Sul do país. A atuação presencial no hospital foi interrompida em março de 2020; contudo, ergueu-se a discussão sobre a distinção entre a significação da morte como processo natural, um dos fundamentos dos cuidados paliativos, e a naturalização de mortes. Neste artigo, daremos contornos teóricos aos princípios que norteiam os cuidados paliativos, articulando-os ao processo de morte no Ocidente, referido por Ariès, ao contexto sociopolítico do Brasil, às noções de fazer viver/deixar morrer, de Foucault, e à necropolítica descrita por Mbembe. Conclui-se que a ética do cuidado, incluída como estratégia em cuidados paliativos, pode contribuir para o contexto pandêmico ao dar ênfase à qualidade do viver e à dignidade do morrer, alargando as condições narrativas diante da morte e do processo de luto.

Palavras-chave: morte; cuidados paliativos; saúde; necropolítica.


ABSTRACT

The covid-19 pandemic has put us in front of death and pain. In Brazil we see, through the government measures and the behavior of part of the population, the emergence of a speech that naturalizes deaths. This article is a theoretical research that started from discussions in the research Group Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/eixo 2) that has worked, between 2017 and 2019, through research and intervention in a general hospital in the south of Brazil. Our presencial work was interrupted in March 2020; however, a discussion about the distinction between the signification of death as a natural process, one of the foundations of palliative care, and the naturalization of certain deaths emerged. In this article, we will approach the theoretical principles that guide the palliative care, articulating them with the Western death process (Ariès), Brazil's social-political context, and the ideas of to make live/to let die (Foucault) and necropolitics (Mbembe). We concluded that the ethics of care, which is part of the strategy of palliative care, can contribute to the pandemic context, since it emphasizes life's qualite and the dignity of death, widening the narrative's conditions in the face of death and grief process.

Keywords: death; palliative care; health; necropolitics.


 

 

Introdução

O presente trabalho parte de interrogações surgidas da vivência no projeto intitulado Narrativas ficcionais e o cuidado à dor crônica (Comitê de Ética nº 72198017.3.0000.5530), desenvolvido por um grupo de pesquisadores que realizam intervenções na interface psicanálise e educação no Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/eixo 2) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e que atuou entre os anos de 2017 e 2019 com dois dispositivos de ensino-pesquisa-extensão num hospital geral no Sul do país, em uma parceria entre a universidade e um coletivo de arte. Realizamos um trabalho com pacientes, seus familiares e trabalhadores da saúde do Setor de Dor e Cuidados Paliativos desse hospital, com o convite para que as/os participantes pudessem fazer um registro singular de suas experiências de vida e morte pelas vias do bordado inventado e das narrativas ficcionais. Com o objetivo de construir condições de possibilidade para que a linguagem produza efeitos subjetivantes, o bordado inventado é uma prática de bordado livre em rodas de conversa que têm inspiração metodológica no projeto Arte na Espera, que acontece no Hospital de Clínicas de Belo Horizonte, e no projeto Armazém de Histórias Ambulantes, que se desdobra nas ruas da cidade de Porto Alegre. Ambos os dispositivos, Ateliê Jardim de Histórias e No Coração da Agulha, criados a partir dos contextos do hospital, trabalhavam na aposta de que as palavras (bordadas ou narradas) pudessem tecer, ao estar-com o outro, outras formas de se narrar, de inscrever a singularidade de uma vida e, nesse trajeto, mesmo que breve, reescrever sua relação com a dor e a morte.

O Setor de Dor e Cuidados Paliativos não corresponde a um lugar que possa ser encontrado por coordenadas cartesianas na geometria do hospital, mas, antes, diz respeito a estratégias de uma equipe multidisciplinar que pensa a saúde como um complexo de tramas que visa acolher pacientes para quem a lógica binária "cura/não cura" não se aplica. As ações da equipe são voltadas para o acolhimento daquilo que é cuidável. A equipe do Setor recebe e acolhe pacientes que se encontram diante de uma dor crônica ou de uma doença incurável, que pode ou não estar relacionada ao término da vida, e trabalha a partir da leitura que realiza em conjunto sobre os princípios que orientam os cuidados paliativos no Brasil (Resolução nº 41, 2018).

O momento do ingresso de alguns bolsistas no grupo de pesquisa e extensão coincidiu com o início da pandemia do coronavírus no Brasil, o que levou à suspensão das atividades presenciais da equipe de pesquisa no hospital. Em meio às notícias sobre as inumeráveis vidas que começavam a ser atravessadas pelas perdas abruptas geradas pela pandemia, passamos a estudar sobre os princípios dos cuidados paliativos e sobre os cuidados da frágil travessia entre vida e morte que neles se realizam. Assim, erguemos uma reflexão sobre as possibilidades de vida diante da dor e da morte. A pandemia de covid-19, ocasionada pelo novo coronavírus (SARS-CoV2), colocou desde o início de 2020 e das mais diversas formas, grande parte da população diante da dor e da morte. Desde o seu início, foram noticiados diversos pronunciamentos do presidente em exercício e de outras autoridades do Estado que minimizaram a gravidade da situação que o país enfrentava e desrespeitaram o luto e a vida de milhares de brasileiras/os. Acompanhamos, assim, por meio de medidas governamentais e da postura de parte da população no combate ao coronavírus, a emergência de um discurso que naturaliza as mortes que estão acontecendo em nosso país.

"Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida, todos nós vamos morrer um dia" (Relembre, 2020), foram frases proferidas pelo chefe de Estado do país em exercício no período de 2019 a 2022, após visita ao comércio em Brasília, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do seu Ministério da Saúde. Esse pronunciamento, dentre tantos outros que vieram ao longo de 2020 e 2021, deixou muitos brasileiros diante de um impasse, nem sempre passível de ser enunciado, mas que talvez possamos colocá-lo da seguinte forma: como entender a morte como um processo natural, de modo semelhante aos princípios que norteiam os cuidados paliativos, quando há um discurso que naturaliza a morte e se utiliza do pensamento de deixar morrer para fazer morrer? Diante desse impasse nas discussões da pesquisa, propomos uma discussão teórica sobre uma diferença entre a significação da morte como um processo natural, um dos fundamentos dos cuidados paliativos, e a naturalização de certas mortes, produzida por uma posição de descaso com a vida. Em face da constatação de que a morte faz parte da vida, o presente artigo procura fazer uma interrogação sobre as diferentes significações da morte e do morrer em nosso tempo e sobre como pensar essa realidade tendo um compromisso ético-político com a vida. Neste sentido, partimos da hipótese de que a lógica do cuidado, que vem sendo construída por equipes multiprofissionais em cuidados paliativos no país, teria muito a contribuir sobre a crise sanitária instaurada pelo tempo pandêmico e o respeito à vida de milhares de pessoas.

 

Fazer Viver e a Tecnologia de Poder

A relação que cada pessoa estabelece com a morte é singular e adquire diferentes nuances de acordo com o contexto familiar, sócio-histórico, cultural e espiritual que acompanha cada um. Ariès (2012) explora algumas variações que a atitude diante da morte foi adquirindo ao longo da história ocidental, mostrando que até a metade do século XIX houveram lentas e importantes modificações na forma como a sociedade a concebe. Para o autor, o advento dos hospitais contribuiu para a modificação do entendimento da morte na cultura, pois aconteceu em consonância com o desenvolvimento da racionalidade técnico-científica, que proporcionou a retirada das pessoas doentes do seu cotidiano habitual para serem levadas a organizações especializadas de tratamento, prolongamento da vida e impedimento da morte (Ariès, 2012). Nesse período, as sociedades ocidentais buscaram, a todo custo, tentar retirar a morte da realidade cotidiana das pessoas. É quando se entende que "o doente não deve saber nunca (salvo em casos excepcionais) que seu fim se aproxima" (Ariès, 2012, p. 42). Assim, "a morte, tão presente no passado, de tão familiar, vai se apagar e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto de interdição" (Ariès, 2012, p. 84).

A partir do século XIX, há um deslocamento no lugar da morte. A morte, de si e dos outros, torna-se interdita (Ariés, 2012). Há um esforço para que as pessoas não precisem se deparar com a finitude. Com o desenvolvimento do capitalismo, o adoecimento passa a ser relacionado a deixar de produzir, significando a vergonha pela inatividade e implicando uma ameaça à subsistência para as classes trabalhadoras (Combinato & Queiroz, 2006). A coexistência entre mortos e vivos passa a ser vista como fonte de contaminação e doença, e as práticas higienistas afastam os mortos dos centros urbanos e do convívio com os vivos. A morte, que antes costumava ocorrer em casa, cercada por familiares e conhecidos, agora ocorre nos hospitais, em um ambiente fechado e controlado, quando as possibilidades de cura já se esgotaram (Ariés, 2012).

Desde a segunda metade do século XVIII, a saúde da população foi tomada como objeto da biopolítica, pois o poder do Estado passou a incidir sobre os processos de natalidade, de mortalidade e de longevidade (Foucault, 1976/1999). Técnicas científicas foram sendo elaboradas com fins de controle social e individual, e a medicina assumiu posição de destaque, como disciplina que intervém na regulação da vida (Birman, 2007). Foucault (1976/1999) relaciona a interdição da morte na sociedade com essas transformações das tecnologias de poder, já que este passa a ser exercido com a intenção de fazer viver e regular as maneiras de como viver. A morte, ao contrário, "é o momento em que o indivíduo escapa a qualquer poder" (Foucault, 1976/1999, p. 296). Desse modo, podemos pensar que a medicina tradicional, enquanto elemento de saber-poder que intervém na regulação da vida, passa a ter como imperativo fazer viver. Nesse caminho, os avanços científicos e tecnológicos que foram alcançados, principalmente a partir da segunda metade do século XX, acompanhados dos progressos das terapêuticas, fizeram com que muitas doenças que antes eram letais pudessem ser transformadas em doenças crônicas. As ciências da saúde conseguiram um maior domínio da mortalidade, e a longevidade das pessoas com doenças que antes seriam mortais teve um aumento expressivo. Isso se desdobrou no aumento de pacientes consideradas/os como "fora da possibilidade de cura" nos hospitais (Matsumoto, 2012).

Nesse contexto, as formações no campo da saúde muitas vezes acabam por priorizar uma lógica pautada no ideal de cura e preservação da vida (Matsumoto, 2012). Os profissionais tendem a ser ensinados apenas para reproduzir um modelo curativo, de maneira que a morte é encarada como fracasso e se apresenta como ameaça a esses ideais. O tratamento se direciona para a preservação da vida a qualquer custo, e a tecnologia tem um papel central para tanto. Todavia, o resultado que as tentativas de cura trazem quando aplicadas a doenças crônicas em fase aguda é praticamente nulo. Ocorre, por vezes, de serem adotados processos terapêuticos que possuem um maior efeito nocivo do que a doença em si ou que não têm nenhum efeito benéfico para a/o paciente, o que pode ser chamado pelos termos "futilidades diagnósticas e terapêuticas" (Resolução nº 41, 2018) e "obstinação terapêutica ou distanásia" (Silva, Quintana & Nietsche, 2012). Assim, o aumento da expectativa de vida da população pode não implicar uma melhora de sua qualidade de vida.

 

Deixar Viver - Deixar Morrer: Frágeis Travessias

Os cuidados paliativos têm operado uma virada do mapa da cura para o cuidado, a partir da proposta de que a oferta de cuidado para pacientes e familiares é possível mesmo quando a cura não é uma possibilidade (D'Alessandro, Pires & Forte, 2020). Na abordagem paliativa, a morte é percebida como um processo natural que faz parte da vida humana (Pereira & Reys, 2021). Esses cuidados destinam-se a pacientes e familiares que se encontram diante de uma doença crônica, progressiva e com risco de ameaça à continuidade da vida, podendo ser ofertados desde o seu diagnóstico, ao longo de todo o curso do adoecimento até o processo do luto (Pereira & Reys, 2021). Nessa abordagem, os cuidados devem se dar de forma integral, contemplando as necessidades físicas, sociais, emocionais e espirituais dos indivíduos e, como o foco do tratamento não é a doença, mas sim o ser humano enquanto um ser biográfico (Oliveira & Silva, 2010), os cuidados paliativos investem em estratégias de cuidado para a pessoa que está adoecida e seus familiares. O acolhimento ao sujeito nos cuidados paliativos acontece por meio do trabalho de uma equipe multiprofissional em ambiente institucional ou domiciliar, em todos os níveis da atenção (Pereira & Reys, 2021). A sua prática está alicerçada nos conhecimentos científicos de diversas especialidades para melhor preconizar os procedimentos, medicamentos e abordagens que serão capazes de proporcionar um maior conforto desde o momento do diagnóstico, ao longo da doença, até os últimos momentos da vida.

Nos cuidados paliativos, há um esforço da equipe multiprofissional em conduzir o tratamento respeitando a busca pela dignidade no processo de morrer, de modo a não acelerar (eutanásia) ou retardar (distanásia) o ato de morrer (Covolan, Corrêa, Hoffmann-Horochovski & Murata, 2010). A concepção da morte como um processo natural da vida não significa que as vidas que puderem ser salvas mediante medicalização não serão salvas e que nada será feito com a/o paciente que se encontra próximo ao fim da vida (Kübler-Ross, 2017). Pelo contrário, os cuidados paliativos visam ofertar o alívio da dor e do sofrimento para que a/o paciente possa viver até o fim com dignidade (Arantes, 2020a), reconhecendo a finitude como um processo natural relativo ao tempo biológico da vida (Pereira & Reys, 2021). Desse modo, percebemos os cuidados paliativos no avesso do que ocorre na morte sociopolítica (mistanásia), em que a reprodução sistêmica de desigualdades e exclusões produz formas de exposição à morte, subtraindo a dignidade tanto da vida quanto da morte (Ricci, 2017). Diante da dor e da morte, os cuidados paliativos dão ênfase para a vida que ainda pode ser vivida (Matsumoto, 2012) e, desse modo, o fazer viver não aparece enquanto imperativo, sendo justamente tensionado por uma reflexão acerca das condições sobre o viver. A compreensão da morte como natural faz um agenciamento do deixar morrer para que se possa viver com dignidade por meio do cuidado com a vida que ainda pode ser vivida.

No Brasil, centros de cuidados paliativos começaram a surgir na década de 1980, vinculados a serviços de oncologia e dor crônica. Ressaltamos que a publicação da Resolução 1995/2012 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) representou uma importante ampliação para a construção da dignidade do morrer, por estabelecer que a/o paciente possa expressar os cuidados e tratamentos que quiser (ou não) receber quando estiver incapacitada/o de expressar sua vontade por meio das diretivas antecipadas de vontade (Franco, 2016). Recentemente, os cuidados paliativos foram transformados em políticas públicas pela Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018, a qual dispõe sobre as diretrizes para a sua implementação no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e resolve que os cuidados paliativos deverão fazer parte dos cuidados integralizados ofertados pelas Redes de Atenção à Saúde (RAS).

Contudo, no atual cenário brasileiro ainda há dificuldades para a implementação dos cuidados paliativos e o seu acesso está restrito a uma pequena parcela da população. Há uma estimativa de que somente 0,3% das/dos pacientes que precisam desses cuidados os recebam (Arantes, 2020b). Há insuficiência de profissionais capacitados para essa abordagem no país, o que aponta para a necessidade de uma formação em saúde que eduque as/os profissionais, desde a graduação, para a sua prática. Existem poucos serviços no país e os existentes distribuem-se de forma desigual nas diferentes regiões do país, havendo maior concentração nas capitais e nas regiões Sul e Sudeste (Silva, 2015). A inserção dos serviços de cuidados paliativos em todo o território nacional exige a elaboração e a efetivação de políticas públicas que possam proporcionar a estruturação, organização e qualificação profissional voltadas a essa abordagem nos serviços do SUS (Patella, Leme & Pinto, 2020).

Trata-se de uma abordagem que convida os trabalhadores em saúde a pensar sobre o processo implicado no cuidar e em toda a complexidade ao seu redor. Assim, ela pode ampliar o próprio cenário do cuidar no contexto da rede de atenção à saúde, para que novos-velhos atores sejam incluídos (Franco, 2016), assim como para que se dê voz aos familiares e aos pacientes, antes emudecidos diante da iniquidade na distribuição de cuidados à saúde e à doença. Diante da ameaça, cada vez mais concreta, de epidemias globais, a lógica do cuidado às frágeis travessias entre a vida e a morte parece ter muito a nos dizer.

 

Pandemia

Em março de 2020, nosso grupo de pesquisa iria começar os encontros do ano com pacientes, familiares e trabalhadores do Setor de Dor e Cuidados Paliativos junto ao Ateliê Jardim de Histórias e ao No Coração da Agulha, grupos de trabalho formalizados como extensão universitária que nomeamos de "dispositivos-oficinas". Em vez disso, as atividades da Universidade foram suspensas e foram estabelecidas restrições de circulação no hospital. A posição do grupo de pesquisa foi a de manter-se com encontros sistemáticos com a equipe multiprofissional, na modalidade virtual, fazendo esforços de leitura do que nos acontecia, ao mesmo tempo que tentávamos elaborar uma forma de contribuir para o Setor.

No momento em que escrevemos, ultrapassamos a marca de 689 mil pessoas que faleceram em decorrência do coronavírus no Brasil. O país, na data de 02 de dezembro de 2022, ocupa a vigésima posição entre as nações com mais mortes por milhão de habitantes e está na segunda posição entre os países do mundo com o maior número absoluto de mortes decorrentes de covid-19 (Corovavirus Statistics, 2022). Essas mortes não são números, mas milhares de histórias, vidas, famílias são inumeráveis. Como expresso na obra Inumeráveis, memorial virtual dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil: "não há quem goste de ser número/gente merece existir em prosa" (Pavoni, 2020). Todas essas mortes são singulares. Como diz a paliativista Ana Claudia Quintana Arantes: "se morre sua mãe, é 100%. Você pode pensar: 1% das mães morreram, 99% delas estão vivas. Acontece que para você é 100%. A experiência da perda é concreta e absoluta" (Arantes, 2020b).

Embora a pandemia atravesse toda população, as condições de enfrentamento a ela não são universais, elas são atravessadas por particularidades sociais, raciais e econômicas. As principais medidas e orientações de enfrentamento à covid-19, tais como intensificação da higienização das mãos com o uso de álcool gel ou água e sabão, uso de máscaras, isolamento social, trabalho remoto, suspensão das atividades escolares etc., são passíveis de serem seguidas por apenas uma parcela da população, majoritariamente branca e de classe média e alta (Milanez & Vida, 2020). Werneck e Carvalho (2020) pensam a pandemia no Brasil como a crônica de uma crise sanitária anunciada. Nos últimos anos, o sistema de saúde já estava passando por um desinvestimento econômico, principalmente após a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, em 2016, que impôs um teto aos gastos públicos nas áreas da saúde, educação e pesquisa. De 2014 a 2020, houve uma diminuição de 28,9% nos gastos com programas sociais, acarretando uma desestruturação das políticas sociais (Teto de gastos, 2020). E é nesse contexto de extrema vulnerabilidade e de expressiva desigualdade social que a pandemia chega ao país.

Foi nesse cenário nacional que o hospital em que realizávamos o trabalho de extensão e pesquisa passou a ser referência, em todo o estado do Rio Grande do Sul, para pacientes com covid-19. E nós, enquanto grupo de pesquisa-intervenção, passamos a nos perguntar sobre o modo como o Setor de Dor e Cuidados Paliativos, "local" onde as fragilidades já se agitavam diante do tema da morte, passou a se reorganizar.

 

Deixar Morrer - Fazer Morrer

Susan Sontag (2003) indaga, em seu livro Diante da dor dos outros, se a expressiva circulação de imagens que representam o horror de forma tão nítida teria algum efeito comotivo e mobilizador. Inumeráveis registros, vídeos e fotografias têm sido produzidos ao redor do mundo denunciando situações de guerra, privação de direitos humanos e calamidades. Contudo, tais registros explícitos de imagens não são suficientes para dar um fim às atrocidades que ocorrem no outro canto do mundo ou na nossa esquina. As pessoas de certa forma habituam-se ao horror da vida real e das imagens, como se fosse uma espécie de olhar sem conseguir enxergar, sem conseguir ler o contexto que nos cerca. A "nitidez terrível das imagens" (Sontag, 2003, p. 55), ao serem vistas pela televisão, ou hão de fazer as pessoas se sentirem seguras e, por isso, indiferentes (porque se trata do outro e não delas) ou irão desencadear nos espectadores poderosos mecanismos de defesa para não inscreverem em si aquilo que acabam de ver, como forma de se protegerem diante de situações extremas.

Durante a escrita deste artigo, não cessamos de tentar escrever os números de pessoas que morrem por conta da covid-19 no Brasil. Especialmente nos anos de 2020 e de 2021, vivenciamos, nas realidades das nossas vidas e por meio de imagens, o horror de uma pandemia que não cessa de matar pessoas em nosso país. Essas inúmeras mortes e sofrimentos irrompem de uma forma traumática - não temos capacidade simbólica para inscrevê-las. Elisabeth Kübler-Ross (2017), psiquiatra que foi pioneira nos estudos psicológicos sobre a morte, lembra a perspectiva freudiana de que em nosso inconsciente não podemos conceber nossa própria morte e acreditamos em nossa imortalidade (Freud, 1915/2010), mas que podemos aceitar a morte dos outros, pois confirma a crença inconsciente da nossa imortalidade (Kübler-Ross, 2017). A autora adverte que: "se um país inteiro, se uma sociedade inteira sofre desse medo e rejeição da morte, deve lançar mão de defesas que só podem ser destrutivas" (Kübler-Ross, 2017, p. 18).

Um episódio, ocorrido em junho de 2020, parece conter a força destrutiva à que se refere Kübler-Ross. É uma cena em que um grupo de homens irrompeu e se atravessou em frente às pessoas num ato que homenageava as vítimas da covid-19 e cobrava ações do governo federal. Esse grupo invadiu o local e derrubou cruzes que foram fincadas na areia, em uma tentativa de representação dos mortos pela pandemia do coronavírus (Alves, 2020). Diante dessa cena, recorremos ao que Chimamanda Ngozi Adichie (2021, p. 23) escreve ao relatar sobre a morte de seu pai, que ocorreu no ano de 2020 em meio à pandemia: "Já estive em luto antes, mas só agora toquei sua essência mais pura. Só agora aprendi, ao tatear em busca de seus limites porosos, que não há travessia possível". Para colocarmos, então, uma questão: como atravessar a nossa incapacidade de inscrição simbólica da morte e do morrer e a nossa impossibilidade de atravessá-la sem nos anestesiarmos, sem banalizar e apagar a dor dos outros?

"Não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal" (Sontag, 2003, p. 104). Essa frase de Sontag, que nos parece tão atual no contexto pandêmico, convida a nos posicionarmos como olheiros da crise que nos toma, advertindo-nos sobre o risco do anestesiamento que pode ser produzido diante de repetidas cenas e notícias de mortes diárias. Pensando nos milhões de brasileiros anestesiados e impotentes diante do crescente número de mortes, lembramos a fala do chefe de Estado do país em exercício em que ele afirma que devemos enfrentar o vírus com a realidade uma vez que todos irão morrer um dia. A fala serve para afirmar que acionar o conformismo da população não é uma medida de enfrentamento à pandemia que seja efetiva, especialmente se nos aproximarmos da diversidade de modos de vida de nosso país. Para enfrentar o coronavírus, no contexto da realidade brasileira, seria imprescindível desenvolver ações de proteção aos grupos em situação de risco ou vulnerabilidade, como pessoas em situação de rua, moradores da periferia, trabalhadores do mercado informal, população indígena, negra e de baixa renda, pois esses grupos costumam ser os mais penalizados (Teto de gastos, 2020). Entretanto, nenhuma política específica e efetiva direcionada a esses grupos foi elaborada pelo governo. Ao contrário, as medidas de combate ao coronavírus, recomendadas por cientistas, foram continuamente desrespeitadas por figuras de autoridade do país e por parte da população no momento mais agudo da crise sanitária. Tais figuras, inclusive, incentivaram a população a não adotar os cuidados indicados. A estratégia nacional para lidar com a pandemia de covid-19, especialmente no período anterior as vacinas, insistiu em priorizar a economia, sem considerar os riscos aos quais parte da população se expunha, o que pareceu incentivar um processo de subjetivação no sentido de naturalização das mortes em prol do retorno a uma suposta normalidade (Lima, Silva, Silva & Franco, 2020).

Aqui se faz necessário colocar como questão: quais são as mortes que passaram a ser naturalizadas? Os dados sobre a taxa de incidência e mortalidade da covid-19 segundo determinantes sociais, como raça/cor/etnia e renda, são essenciais para o monitoramento dos casos, o planejamento e a avaliação da atuação clínica e epidemiológica e a vigilância em saúde para o enfrentamento da pandemia direcionado a toda a população. No Brasil, há insuficiência desses dados, o que pode reafirmar o racismo e outras discriminações, potencializando a vulnerabilidade desses grupos populacionais (Santos et al., 2020).

Tendo isso em vista, é necessário voltar-se para a outra faceta da formulação de Michel Foucault (1976/1999), que se contrapõe ao fazer viver: deixar morrer. Para o autor, há uma divisão na sociedade moderna entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer, e, nesse sentido, ele nos lança uma importante questão: como é possível que um sistema político direcionado ao biopoder, que tem como objetivo fazer viver, possa deixar morrer? Nesse ponto, Foucault (1976/1999) afirma que o racismo é o que faz o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. A morte como imperativo se ampara na noção de que matar visa à eliminação "do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da raça" (Foucault, 1976/1999, p. 306). Cabe ressaltar que por morte se entende não só o assassinato direto, mas também "o fato de expor a morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc." (p. 306).

Ao tomar algumas questões levantadas por Foucault, Achille Mbembe (2018) refere que na contemporaneidade o conceito de biopoder é, de alguma forma, insuficiente, propondo as noções de necropoder e necropolítica para pensar sobre como a vida de determinadas pessoas é subjugada ao poder da morte. Achille Mbembe se detém nas formas de soberania cujo projeto central consiste na "instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações" (Mbembe, 2018, pp. 10-11). Destacamos a compreensão de Mbembe de que na necropolítica a soberania aparece como a "vontade e capacidade de matar a fim de viver" e "a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é 'descartável' e quem não é" (p. 20). Mbembe pensa o necropoder, que não necessariamente é o poder estatal, como uma concatenação entre o biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio. E essa forma de poder produz uma emergência, uma exceção e um inimigo ficcional, e continuamente se refere a essas produções e as invoca. O racismo aparece novamente como ponto central: "a raça é, mais uma vez, crucial para esse encadeamento" (p. 29).

As noções de necropolítica e de necropoder tratam das formas nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de "mortos-vivos" (p. 71). Mbembe aponta que a privação das fontes de renda da população e a destruição de instituições civis locais configuram-se como matanças invisíveis, somando-se às execuções a céu aberto. Nos dizeres de Bensusan (2020, p. 2): "a sociedade que controla como se vive passa, sistematicamente, a controlar também quem pode ser abandonado/a 'à própria (m-s)orte'". Achille Mbembe (2018) demonstra, em seu ensaio intitulado "Necropolítica", que na contemporaneidade a vida é subjugada ao poder da morte. O conceito de necropolítica, desenvolvido pelo autor, fala sobre as "formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de 'mortos-vivos'". A concepção de necropolítica tem sido utilizada com recorrência em leituras sobre o contexto brasileiro e a situação da pandemia no Brasil. É como se a pandemia agravasse e nos permitisse olhar para algo que já está em curso há muito tempo. Nessa direção, Mbembe (2020), em seu texto "O direito universal à respiração", refere que, antes mesmo do coronavírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia:

Se houver guerra, portanto, ela não será contra um vírus em particular, mas contra tudo o que condena a maior parte da humanidade à cessação prematura da respiração, tudo o que ataca sobretudo as vias respiratórias, tudo que, durante a longa duração do capitalismo, terá reservado a segmentos de populações ou raças inteiras, submetidas a uma respiração difícil e ofegante, uma vida penosa. (Mbembe, 2020, p. 9)

Nessa perspectiva, podemos pensar que desde antes da pandemia, com a distribuição desigual de recursos vitais básicos para a população, a regulação do poder tende a determinar quem são as pessoas que vão morrer e que vão viver, sendo uma das formas de exercício do necropoder. No atual cenário brasileiro, as políticas de morte se sobrepõem à pandemia. Torna-se perceptível que as condições de enfrentamento ao vírus, em relação tanto à possibilidade de redução do risco de contágio quanto ao acesso a recursos e tratamentos, são maiores para a população branca e de classe média e alta, de maneira que a mortalidade tem sido primeira para as populações de baixa renda, indígena, negra, em situação de rua e periféricas. Dessa forma, o vírus em nosso país cronifica (Navarro, Silva, Siqueira & Andrade, 2020) a atuação necropolítica do Estado.

Tal situação é agravada por estar em curso no país a expressiva circulação de inúmeras publicações que não encontram lastro na ciência, as já conhecidas fake news, que em sua insistência e repetição automatizada parecem produzir efeito de verdade. Isso vai ao encontro da concepção de necropoder de Mbembe, quando ele refere que:

o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra nas colônias. Lá, o soberano pode matar a qualquer momento ou de qualquer maneira. A guerra colonial não está sujeita a normas legais e institucionais. Não é uma atividade codificada legalmente. Em vez disso, o terror colonial se entrelaça constantemente com um imaginário colonialista, caracterizado por terras selvagens, mortes e ficções que criam o efeito de verdade. (Mbembe, 2018, p. 36)

A constante divulgação de notícias sem respaldo ou comprovação científica teve como um de seus efeitos a criação de ficções em torno do coronavírus e da situação da pandemia no Brasil e ao redor do mundo, tais como a crença na imunidade de rebanho (Lindner, 2021), a afirmação de que não há garantias de que quem for vacinado não será transformado em jacaré (Bolsonaro sobre vacina, 2020), o investimento na compra e divulgação da cloroquina - tratamento comprovado como ineficaz (OMS, Europa e Anvisa, 2021) -, entre outras. Tais ficções contribuíram com o excessivo número de mortes em decorrência da covid-19. Novamente apontamos a atualidade do que foi escrito por Sontag (2007, p. 77), embora em um contexto diferente: "Eu estava convencida de que as metáforas e os mitos podiam matar. (Por exemplo, fazem com que as pessoas tenham um medo irracional de métodos eficientes..., e estimulam a crença em tratamentos absolutamente inúteis)".

 

Considerações Finais: Viver Morrendo - Morrer Vivendo

Enquanto a vida, o trabalho, o cotidiano das pessoas ao redor do mundo parecem ter sido suspensos, adiados, virados do avesso em função da covid-19, o campo empírico de nossa pesquisa e extensão universitária também se interrompeu no hospital. E como modo de resistência a certo empuxo à anestesia do pensamento diante de tantas notícias de mortes e discursos que as agenciam, e que rapidamente chegam às nossas casas pelas imagens insistentes das telas do contemporâneo, erguemos este texto. Enquanto o direito à vida e à respiração passou a ser tema de debate mundial, percorremos os fios teóricos que organizaram, até o momento, as práticas integrais no cuidado ao paciente paliativo, defendendo a hipótese de que a discussão que esse campo iniciou, na década de 1980, poderia colaborar para a construção de outras narrativas sobre modos de ver, pensar e viver os processos de luto atuais. Fazer tensionar esse campo puxando o fio teórico do "deixar morrer/viver com dignidade", em contraste com o "deixar morrer/fazer morrer", ajudados pelas narrativas de Foucault, Mbembe, entre outros, permitiu situar duas diferentes posições éticas diante da morte: a que encontra a vida quando a morte é respeitada como um evento natural e a que produz a morte quando ela é demasiado banalizada.

Diante da pandemia, iniciada na virada de 2019 para 2020, deparamo-nos com o cenário de caos que o vírus instaurou nos sistemas de saúde ao redor do mundo. No Brasil, o cenário foi, e tem sido, bastante mais preocupante. Muitas pessoas contaminadas perderam a vida por falta de leitos, equipamentos ou medicamentos suficientes para o enfrentamento do número de pacientes que necessitaram de cuidados de saúde. A alta transmissibilidade do vírus impôs uma série de medidas de segurança aos hospitais, tais como isolamento da/o paciente, contato limitado e suspensão de ações e projetos eletivos. Essas limitações afetaram a possibilidade de uma melhor promoção de qualidade de vida em todas as áreas do hospital, e, com isso, perceberam-se limitações na elaboração de estratégias e de oferta de cuidados para pacientes, familiares e equipes de saúde.

Em tempos pandêmicos, dar relevo à ética do cuidado integralizado em saúde, que já é prática nos cuidados paliativos, parece colaborar para adensar uma discussão atual, em curso, sobre o direito à vida e à dignidade no processo de morrer. Os princípios dos cuidados paliativos são imprescindíveis nessa situação de crise humanitária, pois defendem que todas/os as/os usuárias/os do sistema de saúde recebam cuidados até o último instante de vida, mesmo em um quadro em que a cura não é possível. A não prestação de tratamentos que possam ser benéficos a pacientes em sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, ou a falta de condições por parte do governo federal para que o tratamento com dignidade ocorra, consistem em mistanásia, sendo eticamente inaceitáveis (Tritany, Souza Filho & Mendonça, 2021). Nessa perspectiva, consideramos que é necessário que tanto o imperativo ético por salvar vidas quanto o compromisso ético por ofertar cuidados integralizados sejam sustentados.

A insuficiência de recursos traz questões bioéticas sobre equidade no acesso e distribuição dos serviços de saúde. A necessidade de alocação de recursos com base em diretrizes para tomada de decisão clínica vai na contramão dos princípios dos cuidados paliativos, pois todas/os deveriam ter a sua autonomia respeitada e acesso a cuidados que promovam níveis adequados de conforto, sem expor pacientes, familiares e equipe de saúde a intenso sofrimento. Nesse sentido, e em consonância com Tritany et al. (2021), sublinhamos a importância de maior esclarecimento sobre a compreensão da morte como um processo natural pelos cuidados paliativos, já que estes poderiam ser entendidos como adiantamento da morte, quando na verdade se busca alargar as condições de vida perante a morte e a dor, sem acelerar ou retardar o processo de cada um/a.

Todos vamos morrer um dia, mas há diferentes posições a partir das quais se situar diante da morte. É de extrema importância ressaltar uma diferença ético-política entre situar a morte como um processo natural da vida, tal como se propõem os cuidados paliativos, ou situar o processo de morrer como uma naturalização, ou mesmo banalização, da morte, tal como temos acompanhado nas narrativas de muitos brasileiros e líderes do governo brasileiro. A naturalização de mortes se situa em uma posição de desumanização, uma posição discursiva que realiza, em ato, um agenciamento necropolítico, do deixar morrer para fazer morrer; enquanto a significação da morte como natural dos cuidados paliativos é enunciada a partir de um lugar de humanização e promoção de vida, narrativa que agencia o deixar morrer como forma de ética de cuidado à vida para possibilitar viver com dignidade.

Em tempos pandêmicos, muito temos a aprender sobre a vida a ser afirmada diante da iminência da morte, ética que os cuidados paliativos já conhecem. "O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você... aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras" (Adichie, 2021, p. 14). Na tentativa de encontrar as palavras para as perdas de nosso tempo, encontramos autores que colaboraram para erguermos uma narrativa que não pode ser neutra, ela se posiciona a favor da vida. Entoar uma luta pela dignidade do morrer é, na verdade, uma luta pela vida. Situar-se em uma posição de vida diante da morte tenta garantir a qualidade do viver e a dignidade no processo de morrer, além de alargar as condições narrativas diante da morte e do processo de luto.

 

Referências

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Luíza Michelini Vilanova - Psicóloga; especialista em Psicologia Hospitalar pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA); bolsista de iniciação científica do NUPPEC/eixo 2 no período de fevereiro de 2020 a maio de 2021. Agência de fomento: Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica BIC UFRGS.
Cláudia Bechara Fröhlich - Professora da área de Psicologia da Educação na Faculdade de Educação da UFRGS; Pesquisadora no NUPPEC/eixo 2.
Janniny Gautério Kierniew - Psicóloga, Doutoranda em Educação (UFRGS); Pesquisadora no NUPPEC/eixo2.

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