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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.4 n.1 São Paulo jun. 2002

 

ARTIGOS

 

Cegueira inatencional e percepção pré-consciente

 

Inattentional blindness and preconscious perception

 

 

Rafael Raffaelli

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os estudos experimentais em percepção pré-consciente possuem uma conexão com os estudos cognitivos em cegueira inatencional. Alguns dos experimentos desenvolvidos para estudar a percepção préconsciente são baseados na Psicanálise, seguindo os escritos de Freud sobre interpretação dos sonhos. Alguns aspectos da teoria psicanalítica sobre a cognição são analisados numa perspectiva metapsicológica.Nos anos 70 os estudos experimentais sobre percepção consciente em Psicologia Cognitiva descreveram o efeito de cegueira de mudança devido ao movimento ocular. Os estudos em cegueira inatencional baseiam-se na pesquisa de Neisser sobre olhar seletivo e dizem respeito ao fenômeno de anulação perceptiva temporária de determinados objetos por falta de atenção. Analisam-se brevemente a metodologia e as implicações práticas desses estudos.

Palavras-Chave: Atenção; Percepção pré-consciente; Cegueira inatencional; Cognição; Psicanálise.


ABSTRACT

The experimental studies on preconscious perception have a link with the cognitive studies on inattentional blindness. Some of the experiments developed to study the preconscious perception are based on Psychoanalysis, following the writtings of Freud about dream interpretation. Some aspects of the psychoanalytical theory on cognition are analyzed in a metapsychological point of view. In the 70’s the experimental studies on conscious perception described the change blindness effect due to ocular movement. The studies on inattentional blindness are based on Neisser’s research about selective looking and deal with the phenomenon of temporary perceptive annulment of certain objects by lacking of attention. The methodology and practical implications of those studies are analysed in brief.

Keywords: Attention; Preconscious perception; Inattentional blindness; Cognition; Psychoanalysis.


 

 

O estudo da atenção já está presente desde os primórdios da Psicologia e no seu sentido mais amplo foi assim definida por William James:

It is the taking possession of the mind, in clear and vivid form, of one out of what seem several simultaneously possible objects or trains of thought. Focalization, concentration of consciousness are of its essence (James, 1890/1981, p. 381).

Por outro lado, a Psicanálise sempre foi reconhecida como uma teoria geral do desenvolvimento infantil e da personalidade humana, eminentemente voltada para a prática clínica, e não como uma teoria cognitiva.

Entretanto, na obra central do pensamento freudiano - A Interpretação dos Sonhos - encontramos uma análise acurada dos aspectos cognitivos envolvidos no fenômeno onírico, que pode ser entendida como um tratado sobre a percepção inconsciente (vide Raffaelli, 1997).

Entre os aspectos cognitivos analisados por Freud podem ser listados: a natureza da representação mental, a distinção entre o pensamento consciente e inconsciente, as diferenças entre processos primário e secundário, os mecanismos da atenção e os aspectos cognitivos dos estados alterados de consciência.

Muitos desses aspectos foram contemplados nas páginas do Projeto para uma Psicologia Cient ífica (1895) e desenvolvidos posteriormente no Capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (1900). Os conceitos de pensamento primário e secundário são relacionados com o desejo alucinatório, os mecanismos de condensação, deslocamento e simbolização são explicitados e realiza-se a distinção entre representações objetais e representações de palavra. Textos posteriores de Freud, como Uma nota sobre o Bloco Mágico (1925), teorizam sobre as capacidades cognitivas humanas, postulando a existência de sensores inconscientes que ordenariam os estímulos percebidos. Em termos metapsicológicos, esse processo se localizaria nas instâncias narcisistas (ego, ego ideal, superego, ideal do ego), constituindose no seu conteúdo representacional. As representações inconscientes são advindas das experiências somáticas do ego primitivo, formando o eu-pele (cf. Anzieu, 1989). A assimilação dos padrões de percepção pelo ego ocorre devido à associação com as imagens vinculadas a uma relação objetal específica. A relação entre nutriz e infante é a gênese do padrã pelo qual os perceptos se estruturam, transformando o contato corporal em representação como objeto imaginário.

A idéia de juízo ou pensamento judicativo, assimilada da filosofia iluminista e de Kant em particular, se traduz nessa parada do processo primário na encruzilhada da satisfação, sem saber em que direção investir, dependente de sua imagem-guia. A análise da função do julgamento nos permite compreender a gênese do intelectual a partir do conflito pulsional, pois sem a denegação (Verneinung), representante da pulsão de morte, não teria sido possível a suspensão temporária do recalque que liberta o aparelho psíquico da compulsividade do princípio do prazer; além disso, talvez possamos aproximar o conceito de denegação da idéia do “proton pseudos” (mentira original) – tal como apresentada no Projeto - como o momento inicial do descolamento entre necessidade e desejo.

O ego está vinculado com a realidade e com a consciência, envolvendo nessa relação todas suas “faculdades intelectuais”, o que acarreta um superinvestimento (Überbesetzung) e a erotização do pensamento. Essa ligação do ego com a realidade se manifesta pela função de julgar, que é gerada pela angústia (Angst) perante uma ameaça interna ou externa. Dessa forma, o ego é o lugar em que se localiza a angústia, que funcionaria como uma espécie de “gatilho” do pensamento. Essa é a segunda teoria da angústia em Freud, exposta em sua obra Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926), que se contrapõe à noção anterior de angústia enquanto um processo automático de sinalização para a descarga de quantidades excessivas de excitação, semelhante a um “termostato” (Freud, 1926/1987, p. 113).

A base dessa argumentação é que a angústia é um estado afetivo e, sendo assim, só pode ser sentido pelo ego. O id, por não se constituir em uma organização, não pode avaliar situações de ameaça e, assim, não sente angústia.

Freud admite uma inequívoca relação da angústia com a expectativa, atribuindo-lhe as qualidades de indefinição e falta de objeto. Devido a isso existe a necessidade da internalização da sensação ameaçadora, para que ela possa tornar-se um objeto de percepção para o ego, isto é, uma representação associada a um traço mnêmico permanente, já que “criancinhas estão constantemente fazendo coisas que põem em risco suas vidas” (Freud, 1926/1987, p. 196).

Entretanto, se determinados parâmetros advindos da estruturação do ego provocam angústia, por outro lado é uma classificação de sensações que permite identificar esses parâmetros. Se a classificação de sensações pode ser entendida como fundamento de uma atividade seletiva inconsciente, em que o julgar (pensamento judicativo) está presente, e sendo a angústia a base dos pensamentos, podemos supor, então, que foi a necessidade de encontrar uma resposta aos sinais de angústia que motivou essa atividade seletiva. Assim, da angústia primitivamente descarregada pela atividade motora, parte foi conservada como investimento vinculado a uma rede associativa, tendo como sustentação as imagens inconscientes, e essa estrutura desenvolveu um mecanismo de filtragem de sensações segundo critérios de evitação da angústia. Isso significa que sem angústia não há pensamento e sem pensamento não há como classificar e selecionar sensações, isto é, sem a vinculação do investimento móvel da angústia inexiste base econômica para a sustentação do processo seletivo. E como a sede da angústia é o ego, e como esse processo seletivo tem nele sua gênese e seu motor, poderíamos denominá-lo narcisista.

Em Moisés e o Monoteísmo (1939), Freud supõe que a origem da consciência está vinculada à percepção, especialme inconsciente (sensação ou registro inconsciente), a segunda na direção inconsciente - préconsciente (percepção ou registro pré-consciente) e a terceira na direção pré-consciente - consciente (percepção consciente).

O advento da fala tornou exeqüíveis as percepções conscientes de eventos internos, tais como idéias e processos de pensamento, exigindo-se, porém, a intermediação de um julgamento que as separe das percepções do mundo externo: a prova de realidade. Tal julgamento é realizado pelo ego, que cont ém em si os processos de pensamento conscientes. Como o ego também se utiliza das sensações de angústia para despertar esses processos, pela vinculação com traços mnêmicos, é possível uma confusão entre as percepções que se originam de dentro das que se originam de fora. Contudo, não se pode supor que essa prova de realidade conduziria à percepção real ou última das coisas, pois, como já afirma o próprio agnosticismo freudiano, o real não é passível de cognição.

Esse pensamento observador pode se sobrepor ao próprio processo primário e sua função é estabelecer um discernimento básico das vias de realização do desejo, sempre parciais. Desse modo, representa a maneira mais acabada de incorporação das pulsões de vida pela estrutura psíquica, a verdadeira fonte da vontade de viver e que zela pela integridade do corpo.

A esse núcleo primitivo do ego compete, então, o estabelecimento de perceptos adequados a partir de sensações corporais, por meio da integração das imagens captadas dentro de quadros mnêmicos comparativos, utilizando como instrumentos de verificação a similaridade, a proximidade e o seqüenciamento, e tendo como critério de seleção o prazer/desprazer.

Tais quadros mnêmicos vão se complexificando, pelo acúmulo de experiências, no interior do ego primitivo, e sua solidificação acontece com o advento do ego ideal no estádio do espelho. O processo se completa com a cristalização do superego ao final do Édipo e sua separação do ideal do ego.

Assim, o núcleo representacional primitivo responsável pela percepção inconsciente passa a ter uma atividade orientada pela prevalência de uma das instâncias narcisistas num determinado momento, de acordo com as associações de imagens provocadas por uma sensação específica.

No dizer de Freud: “os exemplos que submetemos à análise realmente não nos autorizam a supor que tenha havido uma redução quantitativa da atenção; encontramos algo que talvez não seja exatamente a mesma coisa: uma perturbação da atenção por um pensamento que se impõe e demanda consideração” (Freud, 1926/1987, p. 124).

Um desses exemplos citados por Freud – retirado de um relato de Otto Rank - demonstra a importância do processo de atenção seletiva inconsciente:

Uma jovem que dependia materialmente de seus pais queria comprar uma jóia barata. Na loja, perguntou o preço do objeto de seu agrado, mas ficou desapontada ao descobrir que custava mais do que a soma de suas economias. E no entanto apenas a falta de duas coroas a separava desse pequeno prazer. Com o ânimo abatido, começou a perambular em direção a casa pelas ruas da cidade, repletas das multidões ao entardecer. Num dos lugares mais movimentados, chamou-lhe de repente a atenção -muito embora, por seu depoimento, ela estivesse profundamente imersa em pensamentos - um pedacinho de papel caído no chão, pelo qual ela acabara de passar sem reparar nele. Ela se voltou, apanhou-o e ficou atônita ao constatar que era uma nota de duas coroas, dobrada. Pensou consigo mesma: “Isto me foi enviado pelo destino para que eu possa comprar a jóia”, e retomou alegremente o caminho de volta, pensando em aproveitar esse sinal. No mesmo instante, porém, disse a si mesma que não deveria fazê-lo, pois dinheiro achado é dinheiro da sorte e não deve ser gasto. [...] Seu inconsciente (ou seu pré-conscien-te), portanto, estava predisposto a “achar”, muito embora, por causa de outras demandas feitas a sua atenção (“imersa em pensamentos”), essa idéia não se tornasse inteiramente consciente. Podemos ir mais além e, com base em casos semelhantes já analisados, afirmar inclusive que a “disposição de busca” inconsciente tem muito mais probabilidade de êxito do que a atenção conscientemente dirigida. De outro modo, seria quase impossível explicar como foi que justamente essa pessoa, dentre as muitas centenas de transeuntes, e ainda sob as condições agravantes da iluminação crepuscular deficiente e da densa multidão, pôde fazer o achado surpreendente para ela mesma. A grande amplitude dessa disposição inconsciente ou pré-consciente é realmente indicada pelo fato notável de que, depois desse achado - isto é, num momento em que essa atitude já se tornara supérflua e certamente já escapara da atenção consciente -, a moça encontrou um lenço mais adiante a caminho de casa, num trecho escuro e solitário de uma rua de subúrbio (Rank, 1915 apud Freud, 1926/1987, p. 185).

O processo de percepção inconsciente e pré-consciente pode ser rastreado por meio da interpretação dos sonhos e dos atos falhos, como ficou experimentalmente comprovado por Pötzl e outros. Aquilo que foi descrito por Freud como o processo de elaboração onírica - condensação, deslocamento, simbolização, elaboração secundária - e a relação do pensamento com os desejos e seus afetos podem bem ser entendido como a descrição do processo perceptivo inconsciente.

Em 1917, o neurologista Otto Pötzl publicou um estudo - A relação entre imagens oníricas experimentalmente induzidas e a visão indireta - versando sobre os mecanismo pré-conscientes descobertos pelo emprego do taquistoscópio - instrumento que permite a apresentação de estímulos visuais em velocidade muito rápida. Esses experimentos foram conduzidos com pacientes portadores de disfunções visuais derivadas de distúrbios neurológicos, buscando relacionar campo visual e consciência, sendo que seu principal objetivo era demonstrar experimentalmente a ocorrência da percepção pré-consciente e suas vinculações com os sonhos, tendo por base a teoria psicanalítica sobre a função dos res íduos diurnos na elaboração onírica.

Basicamente, Pötzl estabeleceu uma “lei de exclusão” segundo a qual a elaboração onírica incorpora em seu trabalho as imagens oriundas da percepção pré-consciente, em detrimento daquelas obtidas pela via consciente, o que é coerente com a hipótese psicanalítica sobre os res íduos diurnos, como o próprio Freud reconheceu numa nota de 1919 adicionada ao texto de A Interpretação dos Sonhos (1900).

Posteriormente, Allers & Teler (1924) e Malamud & Linder (1931) também empregaram o método experimental para corroborar aspectos da teoria psicanalítica, notadamente a vinculação entre percepção e os mecanismos inconscientes do sonho.

O estudo do “fenômeno de Pötzl” foi retomado sob a denominação de percepção préconsciente ou percepção subliminar (subception) ou mesmo nos estudos correlatos sobre hipermnésia e alucinações negativas. Nessa linha se incluem as pesquisas de Luborsky & Shevrin (1956, 1958), Eriksen (1951), Eriksen & Johnson (1961), Klein (1959) e Fisher (1954, 1957, 1959, 1960).

A percepção é então teorizada como um processo que parte do registro sensorial inconsciente (subliminal registration) e sofre uma elaboração inconsciente, na qual o registro sensorial é pareado com traços de memória semelhantes. Só depois de cumprida essa etapa é que o percepto surge como imagem, podendo ser reproduzida verbalmente. A lei de exclusão de Pötzl é entendida como uma função pré-consciente vinculada ao sentido das imagens percebidas, relacionando-se com a atenção.

Estudos das décadas de 70 e 80 (Becker & Erdelyi, 1974; Erdelyi, 1970, 1972; Erdelyi & Stein, 1981; Kepecs & Wolman, 1972; Masling, 1983; Whitehouse et al., 1988) enfatizam o vínculo entre percepção pré-consciente e atenção. Outros autores, como Brakel (1989), propõem uma revisão da teoria psicanalítica tendo em conta seus aspectos cognitivos.

Na década de 90, vários pesquisadores (Bootzin, Kihlstrom & Schacter, 1990; Barron, Eagle & Wolitzky, 1992 e Bornstein & Masling, 1998, entre outros) desenvolveram métodos experimentais para testar alguns conceitos psicanalíticos, revelando a identidade de interesses entre a Psicologia Cognitiva e a Psicanálise, em especial quanto à análise da vinculação entre percepção pré-consciente e atenção.

Outra linha de pesquisa, originada na Psicologia Cognitiva, que também caminha na mesma direção - só que em sentido inverso - é aquela associada aos estudos da cegueira inatencional (inattentional blindness), que engloba o mesmo grupo de fenômenos descritos pelo conceito de alucinação negativa (vide Brakel, 1989).

O conceito de cegueira inatencional diz respeito ao fenômeno de anulação temporária da percepção de determinados objetos por falta de atenção, mesmo quando claramente observáveis e estando no foco central da visão ocular. Esse fenômeno, facilmente notado no dia-a-dia, como já postulava Freud no seu Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), decorre de uma insuficiência atencional motivada por processos inconscientes, conduzindo a ações equivocadas (Vergreifen). Essas deficiências do funcionamento psíquico “e certos desempenhos aparentemente inatencionais revelam, quando a eles se aplicam os métodos da investigação psicanalítica, ter motivos válidos e ser determinados por motivo desconhecidos pela consciência” (Freud, 1901/1987, p. 208).

Na paranóia, por exemplo, ocorre uma exacerbação do limiar perceptivo, notando-se sinais no comportamento social que normalmente são irrelevantes. No dizer de Freud, há “algo de verdadeiro” nessa percepção - o fundo de verdade da paranóia - que capta os adarmes de agressividade presente em todos os relacionamentos (cf. Freud,1901/1987, p. 221).

A partir de 1970 os pesquisadores em Psicologia Cognitiva começaram a reconhecer o fenômeno denominado cegueira de mudança ( change blindness), no qual os sujeitos experimentais mostravam-se incapazes de observar alterações no seu campo visual enquanto movimentavam os olhos (Posner, 1978; Treisman, 1985, 1986, 1988; Theeuwes, 1991). Paulatinamente, o interesse dos pesquisadores dirigiu-se para o estudo da atenção, gerando o conceito de cegueira inatencional.

Essa terminologia torna-se reconhecida quando da publicação do trabalho de Mack & Rock (1998), mas remete às idéias e metodologia de olhar seletivo (selective looking) desenvolvidas por Ulric Neisser – autor da denominação Psicologia Cognitiva - na década de 70, na Universidade de Cornell, Estados Unidos.

O trabalho de Mack & Rock buscou estabelecer a relação entre atenção e percepção por meio de um procedimento padrão, no qual o estímulo se constituía numa cruz na tela de um monitor de vídeo localizado a 76 cm do rosto do observador. Os sujeitos eram apresentados ao estímulo em exposições breves e solicitados a observar qual dos braços da cruz era maior. Enquanto os sujeitos estavam com sua atenção voltada para a execução da tarefa proposta era apresentado um objeto inesperado, na forma de um pequeno retângulo colorido definido como estímulo crítico (critical stimulus), que invadia um dos quadrantes da cruz. Imediatamente após a apresentação do estímulo crítico os sujeitos eram inquiridos sobre se haviam observado algo na tela além da cruz. Se os sujeitos reportassem ter visto algo, eralhes solicitada a identificação da imagem, descrevendo-a ou selecionando-a de um conjunto de imagens previamente preparadas. Cerca de cinco mil sujeitos foram testados dessa maneira, com visão normal e idade oscilando entre 17 e 35 anos, mantendo-se a equivalência entre os sexos. Os resultados apontaram que aproximadamente 25% dos sujeitos da amostra não perceberam conscientemente o estímulo crítico, confirmando a ocorrência do fenômeno da cegueira inatencional em tarefas que exigem atenção concentrada.

Esses resultados contradizem a crença do senso comum de que percebemos tudo o que se apresenta no campo visual e que a atenção somente age na busca dos detalhes que diferenciam os objetos. Entretanto, é absolutamente normal a experiência de não vermos certos objetos que estão bem na nossa frente, experiência essa facilitada pela concentração da atenção em alguma tarefa ou pelo afloramento de emoções. Mesmo com os olhos abertos e o objeto claramente refletido na retina, nesses casos nada parece ser integrado à consciência.

Por outro lado, se a atenção está consciente ou inconscientemente focalizada na busca de certos sinais carregados de ansiedade - como um telefonema, uma pessoa que chega, o ruído do motor de um carro, uma sombra que pode ocultar um ladrão - certos perceptos são mal-interpretados ou distorcidos de forma a atender esses anseios. A expectativa distorce a percepção pela focalização da atenção em determinados padrões e esse processo transcorre na sua maior parte de forma inconsciente.

Na atualidade, a extensa literatura sobre atenção demonstra a variedade de interpretações desse conceito básico (Jonides & Yantis, 1988; LaBerge & Brown, 1989; Searle, 1992; Folk, Remington & Wright, 1994; Rensik, O’Regan & Clark, 1997). Nesta pesquisa o termo atenção será empregado para se referir ao processo que permite a conscientização do estímulo, pressupondo que a focalização da atenção é a condição sine qua non para se perceber algo de modo consciente.

O que distingue a percepção pré-consciente ou inconsciente da percepção consciente é a focalização da atenção. O estímulo é inicialmente percebido de forma pré-consciente e só será conscientizado pela cooptação da atenção, de forma voluntária ou involuntária, como no caso do arco-reflexo e da dor. Dado a percepção consciente depender da atenção, o seu desvio gera um campo perceptivo deficiente, com imagens visuais não conscientizadas. Em termos psicanalíticos, a estimulação captada no processo perceptivo é só parcialmente conscientizável, dentro da dinâmica do processo primário. O processo secundário perceptivo é conduzido pelas instâncias narcisistas, que estabelecem o vínculo dessas imagens com as estruturas mnêmicas pré-existentes.

Os objetivos gerais desse campo de pesquisa seriam estabelecer quanta informação visual pode ser decodificada pela mente humana, de forma consciente ou inconsciente, e quais as razões para que certos objetos sejam imediatamente conscientizáveis, enquanto outros não. Isso envolve elucidar as estruturas e dinâmicas envolvidas na percepção préconsciente e inconsciente e determinar seus efeitos sobre o desempenho de atividades profissionais dependentes da acuidade visual.

Assim formulados, esses objetivos possuem relevância teórica para a compreensão do processo perceptivo e implicações práticas no que se refere à performance humana em atividades como a aviação e a direção de veículos de tração mecânica (automobilismo).

Atualmente vários pesquisadores dedicam-se a essa temática, buscando metodologias mais sofisticadas para a análise desse fenômeno, utilizando animações em vídeo com o emprego de atores. Em um desses experimentos o estímulo usado se constituiu em um vídeo apresentando um jogo entre dois times de basquete - um trajando branco e o outro trajando preto - que faziam passes de bola aos quais o sujeito devia atentar. Durante essa tarefa era apresentado o estímulo crítico: uma mulher com um guarda-chuva cruzava a imagem por alguns segundos. Também nesse caso foram obtidos resultados próximos aos de Mack & Rock, com mais de um quarto da amostra relatando não haver observado o estímulo crítico (Chabris & Scholl apud Carpenter, 2001).

Os estudos nessa linha de pesquisa têm se atido aos aspectos básicos do fenômeno, buscando demonstrar sua ocorrência de modo inequívoco e postular teorias explicativas para o mesmo (cf. Mack & Rock, 1998). Mas existe consenso quanto ao fato da import ância prática desses estudos (cf. Carpenter, 2001), para avaliar esse fenômeno do ponto de vista da ciência aplicada, analisando suas implicações nessas atividades humanas corriqueiras.

Desse modo, a pesquisa em cegueira inatencional possui diversas implicações sérias para a direção de automóveis. Muitos acidentes automobilísticos podem ser imputados a essa falha atencional, motivada pelo desvio da atenção para outra atividade ao dirigir. Ao se estabelecer o automatismo inerente à ação de conduzir um ve ículo, cria-se também a possibilidade de dispersar a atenção em atividades paralelas, tais como ouvir música, falar ao telefone celular, ou mesmo fumar ou conversar. Dada a velocidade que podem atingir os veículos atuais, especialmente em pistas expressas, essas distrações momentâneas podem se constituir num sério risco para a segurança do trânsito. Mesmo pequenos desvios da atenção, como olhar as placas indicativas, podem causar acidentes graves. O índice brasileiro de acidentes de trânsito, incluindo os atropelamentos, é terrificante. Milhares de pes soas anualmente perdem a vida ou sofrem algum tipo de seqüela devido a acidentes de trânsito. E a falta de atenção, junto com o álcool e o excesso de velocidade, é uma das causas mais freqüentes de acidentes.

 

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Endereço para correspondência
Universidade Federal de Santa Catarina
Caixa Postal 815 – Florianópolis – SC
e-mail:raraffa@aol.com

Tramitação
Recebido em novembro/2001
Aceito em fevereiro/2002