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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.5 n.1 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

A importância da brincadeira: o discurso de crianças trabalhadoras e não trabalhadoras

 

The importance of playing activities: narratives of working and nonworking children

 

 

Indira Caldas Cunha de Oliveira; Rosângela Francischini

Núcleo de Estudos Socioculturais da Infância e Adolescência, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UFRN

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Dentre os vários aspectos ligados à infância, elegemos como objeto deste trabalho o direito da criança brincar, atividade esta considerada importante para seu desenvolvimento, segundo várias perspectivas teóricas em Psicologia, dentre as quais destacamos a sociohistórica. Assim, o objetivo da nossa pesquisa é investigar como grupos de crianças, em condições diferenciadas de desenvolvimento, vivenciam o brincar em seu cotidiano. O corpus do estudo foi construído por meio de entrevista, que adotou a história As aventuras de Pinóquio como recurso desencadeador dos discursos de crianças em situação de trabalho e crianças não trabalhadoras. Procurou-se investigar a presença e a importância de atividades lúdicas no cotidiano dessas crianças. Os resultados apontam formas diferenciadas de como cada grupo de crianças vivencia o brincar: crianças em situação de trabalho, diferentemente das crianças que não trabalham, não apontaram, espontaneamente, o brincar como atividade presente em seu cotidiano. As diferenças entre os dois grupos são interpretadas como decorrentes do contexto sociohistórico em que elas estão inseridas.

Palavras-chave: Brincadeira, Infância, Psicologia sociohistórica, Trabalho infantil, Desenvolvimento.


ABSTRACT

Among several aspects related to childhood we have chosen to study the rights of the children to playing, which is considered an important activity for their development according to several theoretical perspectives in Psychology, among which we highlight the social-historic approach. Yet it is known that the benefits of such a right are not enjoyed by all children. Thus, in our research we intended to investigate how groups of children, who live upon different development conditions, have experienced the playing activities in their current daily life. The corpus of study was built by means of using Pinochio’s story applied to an interview, it is constituted by narratives of working and non-working children. We have investigated the presence and the importance of the playing activities into these children’s daily life. The results show different ways through which each group experienced the playing activities; children who work, unlike those who do not, did not mention spontaneously playing activities as taking part in their daily life. The differences between both groups might be understood as a consequence of the different socio-historical contexts in which they are included.

Keywords: Playing activities, Childhood, Social-historical Psychology, Children’s labor


 

 

Introdução

Infância e brincadeira são termos que dificilmente se apresentam separados. Assim, ao falarmos em infância, várias imagens podem nos ocorrer: a nossa própria infância, um jardim ou parque público povoado por pequenos seres correndo entre os brinquedos, uma escola. No entanto, todas essas imagens são acompanhadas por uma condição muito peculiar, vivenciada quase que exclusivamente nesse período do desenvolvimento, isto é, a de estar exercitando alguma atividade lúdica. Acompanhada de objetos (sucatas, brinquedos industrializados, brinquedos (re)inventados) ou simplesmente exercitada por meio de uma canção ou de brincadeiras que prescindem de objetos para sua realização, a brincadeira tem tido sua importância reconhecida e sinalizada pelas diversas teorias no campo da Psicologia e de outras ciências que se (pre)ocupam com a criança. Do ponto de vista da legislação, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, Lei 8.069/90) considera a atividade lúdica um direito da criança e um dever do Estado, da família e da sociedade proporcionar condições para este exercício.

A lei, no entanto, não é suficiente para garantir que as crianças possam dispor de tempo, local, material e acompanhamento de adultos para se ocuparem com brincadeiras. As diferentes condições socioculturais vivenciadas pelos sujeitos determinam uma diversidade de possibilidades de exercício da atividade lúdica. Tendo em vista essas considerações, esta pesquisa procurou investigar como dois grupos de crianças, em situação de trabalho e alunos de uma creche, vivenciam o brincar.

Para compreendermos a vivência do brincar por essas crianças faz-se necessário discorrer sobre as possibilidades do lúdico, relacionando-as com a transformação do conceito de infância. A revisão bibliográfica a seguir serve a esse propósito.

 

Revisão teórica

Brougerè (1995) afirma que antes do século XIX a brincadeira era considerada, na maioria das vezes, como fútil, servindo apenas como recreação e opondo-se ao trabalho. Esse autor coloca que foi a partir de Rousseau que essa noção começou a ser modificada. Ainda segundo Brougère, duas tentativas de valorização da brincadeira ocorreram, após o Racionalismo das Luzes, A?no período do Romantismo: 1) Fröebel introduz, nos “jardins de infância”, a brincadeira como suporte pedagógico; e 2) no início do século XX, psicólogos (CLAPARÈDE e STANLEY HALL, por exemplo) tentaram fundamentar cientificamente o valor da brincadeira.

Podemos perceber a transformação da concepção de brincadeira e inferir que tal concepção também está inserida em um contexto sociohistóricocultural, não sendo, como afirma Rousseau (apud GHIRALDELLI Jr, 1999), uma atividade natural e espontânea da criança. Um argumento que pode sustentar essa afirmação está em Brougère (1995, p. 98) que diz: a “brincadeira pressupõe uma aprendizagem social”, pois a criança é iniciada nessa atividade por pessoas que cuidam dela, e não por iniciativa própria. Aos poucos, as crianças inserem-se nesse universo, compartilhando de um mesmo código cultural, atribuindo, portanto, significações semelhantes. Brougère (1998, p. 24) fala, ainda, numa cultura lúdica, entendida como “um conjunto de procedimentos que permitem tornar o jogo possível”, anterior à brincadeira (preparação) e construída por meio das interações sociais, com restrições e/ou oposições impostas pelo adulto.

As mudanças sobre a concepção e atendimento à infância, ocorridas na sociedade civil e nos órgãos governamentais, refletem-se na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Infantil cujas orientações pedagógicas destinam-se a crianças de zero a seis anos. Os serviços e as experiências oferecidas devem estar baseados em alguns princípios e, dentre eles, está o direito das crianças a brincar, como forma particular de expressão, pensamento, interação e comunicação infantil (BRASIL, 1998).

Segundo o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998) o brincar é uma atividade considerada como linguagem infantil que ocorre no plano da imaginação. Para a criança poder imaginar é preciso ter o domínio da linguagem simbólica, ou seja, a criança deve apropriar-se de elementos da realidade e atribuir-lhes novos significados. A brincadeira consiste na capacidade das crianças criarem e recriarem o mundo, dando valores e significados diferentes da realidade.

Ainda, nesse documento, a brincadeira tem como função favorecer a auto-estima, possibilitar o desenvolvimento da linguagem oral e gestual, ajudar na elaboração das emoções e sentimentos e na construção de regras sociais. Enquanto as crianças brincam, assumem papéis sociais diferenciados que podem proporcionar o estabelecimento de vínculos, de relações e generalizações para outras situações e internalização de modelos e valores dos adultos. Além disso, a brincadeira possibilita o desenvolvimento da identidade e da autonomia. Ao perceberem as diferentes formas de pensar e de agir, podem comparar aquilo que é seu e aquilo que é do outro, tendo a possibilidade de incluir essas semelhanças e diferenças na construção de sua personalidade.

O brincar de faz-de-conta requer imaginação, criatividade, representação e repetição. O sempre “de novo” da mesma brincadeira favorece o hábito das atividades diárias (comer, vestir, tomar banho, entre ouras coisas), como aponta Benjamin (1984, p. 75): “Todo hábito entra na vida como brincadeira, e mesmo em suas formas mais enrijecidas sobrevive um restinho de jogo até o final”. A repetição também ajuda a internalizar as dualidades: bom/mau, leve/pesado, muito/pouco, triste/alegre.

Na mesma época em que foi elaborado o Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) – referenciais para o ensino fundamental e para o ensino médio – entraram em vigor. Em nenhuma parte da Introdução dos Parâmetros Curriculares Nacionais há referências ao brincar, direito esse assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, está implícita a idéia de que o brincar encerra-se na educação infantil; no ensino fundamental, não há mais espaço para a brincadeira.

O Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (BRASIL, 1998) afirma que o brincar é importante já que possibilita, nas relações entre as crianças, o exercício da autonomia e da cooperação, temas estes abordados, também, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (orientações didáticas). Embora não haja, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, referências sobre a importância da brincadeira no processo ensino-aprendizagem, ambos partem do mesmo referencial teórico: psicologia genética e a perspectiva sociohistórica. Neste trabalho nos deteremos nesta última, mais especificamente nos trabalhos de Vygotsky (1984) e Leontiev (1998). Nessa perspectiva, a brincadeira é vista como uma atividade essencial e, mesmo, principal, no desenvolvimento infantil, tendoem vista que ela prepara o caminho de transição de um estágio para o outro (pré-escolar/ escolar) e que, por meio dela, ocorrem as mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico.

A criança em idade pré-escolar possui desejos, como cozinhar, dirigir carros, cuidar de crianças, que não são passíveis de serem realizados; mesmo assim, permanece a tendência de realização imediata. Desse modo, a solução encontrada por ela é envolver-se num mundo imaginário e ilusório chamado brinquedo, conforme aponta Vygotsky (1984).

Benjamim (1984, p. 69) aponta que, na época do Naturalismo, acreditava-se que o “conteúdo imaginário do brinquedo determinava a brincadeira, quando, na verdade dava-se ao contrário”, ou seja, a ação no brinquedo dá-se pelas idéias, e não pelos objetos em si, visão essa também compartilhada por Vygotsky (1984). Como conseqüência dessa condição, Benjamim ressalta que “quanto mais atraentes forem os brinquedos, mais distantes estarão do seu valor de instrumentos do brincar” (BENJAMIM, 1984, p. 70). Acreditamos que isso ocorra porque os brinquedos industrializados, ou mais atraentes, não despertam a capacidade de simbolizar e representar, uma vez que, na maioria das vezes, estes fazem todas as ações pelas crianças.

O conteúdo imaginário da brincadeira é aquele que está baseado em regras, mesmo que sejam regras de comportamento. O que no dia-a-dia passa desapercebido pela criança, no brinquedo, torna-se foco. Observa-se, freqüentemente, em brincadeiras de crianças, questões ligadas a assuntos familiares, em que estão presentes a estrutura familiar e a de papéis (pai, mãe, filhos). Nessas brincadeiras, as crianças copiam e criam regras de conduta que norteiam a convivência nos diferentes grupos sociais dos quais elas participam.

Leontiev (1988) acrescenta que a ação da criança corresponde ao objeto da brincadeira. Embora algumas condições possam ser modificadas, o conteúdo e a seqüência condizem com a realidade. Assim, uma criança que está brincando de “casinha” pode pegar pedras para dizer que está cozinhando, mas a ordem: preparar os alimentos, colocar no prato e comer não pode, no entanto, ser alterada.

Vygotsky (1984) e Leontiev (1988) concordam que os sentidos vão sendo construídos no decorrer da brincadeira. Muitas vezes, as crianças retêm o significado do objeto (suas propriedades e os modos de uso compartilhados por todos), mas dão um outro sentido, ou vários sentidos durante a brincadeira.

É pelo brinquedo que a criança aprende a agir cognitivamente. A criança, até mais ou menos dois anos de idade, não consegue simbolizar, não separa o significado da ação, da percepção do objeto; depende, assim, das características do brinquedo. Já na criança de idade pré-escolar, começa a existir uma separação entre significado e percepção imediata do objeto, e a ação surge por meio da situação, e não do objeto em si.

Dessa forma, antes dos dois anos, aproximadamente, a criança não consegue brincar de filha se não tiver uma boneca cujos traços assemelhem-se a um bebê, pois está presa a estes traços, e não ao brincar de filha em si. Posteriormente, ela consegue brincar de filha na ausência de um objeto que lhe dê indicativos de humano: um pedaço de madeira pode ser a filha. Assim, o que prevalece é a situação (o brincar de filha), e não o objeto em si (o pedaço de madeira).

A brincadeira proporciona, ainda, às crianças a livre substituição (capacidade de substituir um objeto pelo outro, independentemente da função real do objeto), o que lhes possibilita atingir uma definição funcional de conceitos e objetos, desenvolver o pensamento abstrato, além de aprender regras, valores e modelos dos adultos. Um outro aspecto importante com relação ao brinquedo é que ele permite a criação de uma Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), emergindo, assim, novas ações até então em processos de amadurecimento.

Do que vimos até agora, conforme a Lei brasileira 8.069/90, a brincadeira é tida como um direito essencial à vida da criança, e as teorias psicológicas apontam as contribuições de atividades lúdicas no desenvolvimento infantil. Toda e qualquer criança tem o direito de brincar, mas como crianças em condições diferenciadas de desenvolvimento, por exemplo, meninos(as) em situação de rua, vivenciam esse direito? Poucos estudos exploram essa temática (ALVES, 1998; REPPOLD et al, 1996; PINHEIRO, 2001).

Alves, Koller, Silva, Santos, Reppold e Prade (2001, p. 49) fizeram um estudo exploratório com um grupo de crianças em situação de rua, com o objetivo de discutir o brinquedo e as atividades cotidianas, em Porto Alegre/RS. Para tanto, foi necessário estabelecer uma relação entre o significado do brincar, a valorização da infância e as mudanças ocorridas no significado da rua para a sociedade. Para a coleta dos dados foram realizados: 1) uma entrevista estruturada, abordando dados sociodemográficos; e o Jogo de Sentenças Incompletas sobre Brinquedo dividido em cinco módulos: 1) O brincar e seu significado: 2) Brinquedos – preferências e desejos; 3) Companhias; 4) Espaço; e 5) Trabalho. Com base nos dados sociodemográficos traçou-se o seguinte perfil: a idade média das crianças é de 10 anos; 8 crianças (40%) freqüentam a escola; 15 crianças (75%) trabalham; 15 crianças (75%) moram em casa; 5 crianças (25%) moram nas ruas (ALVES et al, 2001).

Os dados resultantes do Jogo trouxeram importantes contribuições, aliados aos dados sociodemográficos. As crianças, em sua maioria, definem a brincadeira como uma atividade que está associada ao prazer, à alegria, ao bem-estar; por vezes, associam essa atividade ao próprio brinquedo. Em relação ao significado do brincar, o processo de realização dessa atividade é mais significativo que o produto final, conforme apontamos na literatura (VYGOTSKY, 1984; LEONTIEV, 1988; BENJAMIN, 1984). Um outro aspecto, ainda, é ressaltado: a brincadeira contrapõe-se ao trabalho, uma vez que nela o mais relevante é o processo, e, no trabalho, é o seu produto, o dinheiro que recebe dessa atividade.

As crianças desejam os brinquedos conforme o seu sexo: brinquedos de menino ou de menina; além desses, as brincadeiras de movimentação ampla (bola, bicicleta etc) são bastante citadas. Pesquisa realizada por Francischini et al (2001) aponta na mesma direção: as brincadeiras de movimentação – bola, “tica”, esconde-esconde, bola de gude são as preferidas pelas crianças.

No que se refere às companhias, 70% das crianças brincam com os amigos; os irmãos e primos vêm em seguida (43%). O local preferido é perto de casa (44%), seguido da própria casa (22%).

Um outro dado interessante é que apenas 18% das crianças brincam na escola.

No estudo de Porto Alegre foi apontado que as crianças não falam em brincar com adultos. Alves et al (2001) vêem esse dado como preocupante, uma vez que o adulto pode proporcionar troca de gerações – cultura, valores – e fortificar os laços afetivos. Através do referencial teórico vygotskyano, acrescentamos que a interação com o adulto pode proporcionar a intervenção na ZDP, referida anteriormente, considerada importante para o desenvolvimento da criança.

Quanto ao tema trabalho, o estudo de Alves et al (2001) aponta que as crianças relatam sentir prazer ao trabalhar (10 respostas, no total de 18) e ausência de sentimento (4 respostas). As justificativas se concentram no retorno financeiro e na valorização dessa atividade pela sociedade: “afasta da marginalidade”, “enobrece o homem”. Essas respostas refletem a força da ideologia do trabalho, conforme apontado por Campos (2001). Quando questionadas sobre o que pensam quando estão trabalhando, obtevese o seguinte resultado: em brincar (6 respostas), na família (3 respostas). em concentrarse na tarefa (6 respostas). Porém 11 relataram preferir trabalhar a brincar, 6 queriam estar brincando, e uma igualou essas duas atividades em termos de preferência.

Na avaliação da escolarização dessas crianças observa-se que o trabalho infantil traz evidentes implicações. Alves et al (2001) apontam que 40% das crianças estão freqüentando a escola, embora apresentem, no mínimo, dois anos de defasagem entre série e idade. Essa defasagem foi também encontrada na pesquisa desenvolvida em Natal (FRANCISCHINI et al, 2001).

Com essas pesquisas pudemos perceber que todas as crianças brincam. No entanto, é preciso estar atento para os contextos em que a brincadeira se faz presente. Diferentes contextos implicam diferentes tipos, horários, companhias, locais dessa atividade.

 

Metodologia

Participantes

Participaram deste estudo, de caráter exploratório, seis crianças, cinco do sexo masculino e uma do sexo feminino, na faixa etária de 7 a 11 anos, subdividas em dois grupos, compostos por três crianças cada um deles. O primeiro grupo foi composto por crianças que estão inseridas no mercado informal de trabalho – vendedores na praia. Tal grupo tinha como local de trabalho a Praia de Ponta Negra, em Natal, situada no bairro de mesmo nome, lugar de grande fluxo turístico da cidade. Do segundo grupo participaram crianças que freqüentam uma creche pública, com idade-limite de 9 anos, não inseridas no mercado de trabalho. Ambos os grupos são compostos por crianças residentes em Natal, RN. Trabalhamos com esses dois grupos no intuito de compará-los, verificando as similaridades e diferenças entre essas crianças, com relação à concepção de brincadeira.

 

Procedimentos

A constituição do corpus deu-se por entrevista semi-estruturada dividida em dois momentos: o primeiro pela composição dos dados sociodemográficos: identificação do sujeito (idade, sexo, data de nascimento), escolarização, local de moradia. Com as crianças trabalhadoras acrescentamos questões sobre atividades exercidas nas ruas, turno, renda obtida com essas atividades e destino dessa renda; o segundo por meio da história Pinóquio, de Collodi (1992), investigamos aspectos relacionados ao brincar, como: presença dessa atividade em seu cotidiano, “instrumentos” utilizados, tipos de brincadeira, companhia, local, tempo disponível, o significado do brincar e o que essa atividade proporciona. A escolha da referida história deve-se ao fato de que nela são enfocados o brincar, a escola, a família e o trabalho como elementos que determinariam a condição de “menino de verdade”, em oposição à de boneco de madeira.

Com o grupo de participantes inseridos no mercado informal de trabalho, as entrevistas foram realizadas na praia. Com o outro grupo, na creche freqüentada por essas crianças. Foi feito um acordo com as crianças que estavam trabalhando sem a presença dos pais, para que as entrevistas fossem gravadas em áudio. Para as crianças que trabalhavam com os pais, foi pedida permissão a eles. No caso das crianças que freqüentam a creche, as gravações foram permitidas pela Coordenação da instituição.1

 

A entrevista

Em um primeiro momento foram obtidos dados gerais (identificação). Posteriormente, foi contado o início da história de Pinóquio, com a seguinte instrução: “Você conhece a história de Pinóquio, o boneco de madeira que se transformou num ‘menino de verdade’? É assim: um velhinho chamado Gepeto, que gostava de fabricar brinquedos, um dia ganhou um pedaço de madeira e resolveu fazer dele um boneco. Assim o fez, isto é, transformou o pedaço de madeira em um boneco e deu a ele o nome Pinóquio. Quando Pinóquio estava pronto, ele imaginou como seria feliz se ele, ao invés de boneco, fosse um ‘menino de verdade’. Um dia, para a sua surpresa, Pinóquio se transformou em um ‘menino de verdade’. Eu gostaria, agora, que você me dissesse como você imagina que Pinóquio ficou depois de se transformar de boneco de madeira em ‘menino de verdade?”.

Quando a criança, em seu discurso, não citava o brincar, foi incentivada a falar sobre este aspecto, da seguinte forma: Você acha que para Pinóquio ser “menino de verdade” ele precisava brincar?

O recurso à história infantil foi escolhido para facilitar a produção do discurso das crianças e, especificamente, a de Pinóquio, por tratar da questão ser “menino de verdade”, já apontada anteriormente. Além disso, dentre as aventuras de Pinóquio, ele tornase burro (com orelhas e rabo) no País dos Brinquedos. Há, assim, nesse contexto, uma incompatibilidade entre a brincadeira e a escola. Os segmentos a seguir, extraídos do livro de Collodi, ilustram essa afirmação.

Pinóquio descobriu que lhe tinham aparecido orelhas e rabo de burro. Um outro burrinho, anteriormente menino, percebeu as transformações em Pinóquio e fez os seguintes comentários:

Meu querido – replicou Marmota para consolá-lo – vai fazer o quê? Agora não tem mais jeito. Já estava escrito nas leis da sabedoria, que todos aqueles meninos preguiçosos, que não querem saber dos livros, das escolas e dos professores e passam seus dias em brincadeiras, jogos e divertimentos, têm de acabar mais cedo ou mais tarde transformados em pequenos burros (Collodi, 1992, p.135).

Collodi (1992, p.133) descreve, com certa ironia, o País dos Brinquedos da seguinte forma:

Em todas as praças viam-se teatrinhos de bonecos, superlotados de meninos durante o dia inteiro, e sobre todos os muros das casas liam-se escritas com carvão coisas lindíssimas como estas: Viva os binquedos! (em vez de brinquedos); não queremos mais iscolas! (em vez de escolas); abaixo a ritmédica! (em vez de aritmética), e outras preciosidades.

Podemos perceber que há uma associação entre preguiça e brincadeira, como se todas as crianças que brincassem fossem preguiçosas. No segmento acima aparece, ainda, uma relação de causa-efeito entre escrever errado e brincar. Segundo Vygotsky (1984), ao contrário, o brincar ajuda no desenvolvimento e na aprendizagem da criança. Nesse sentido, pode-se contrapor o discurso das crianças com o encontrado no livro, investigando quais são as concepções construídas por elas sobre o brincar.

 

Discussão de resultados

Foram analisadas as produções das crianças enfocando o significado do brincar, com quem brinca, onde brinca, com o que brinca, o que o brincar proporciona.

A opção pela perspectiva sociohistórica, conforme apontado anteriormente, deu-se em decorrência do lugar de destaque atribuído à linguagem, considerada um meio para se entender a ideologia, reveladora de sistemas de valores, normas, crenças, representações de grupos sociais, cultura e condições econômicas (MINAYO, 1993; RIZZINI et al, 1999).

No grupo de crianças em situação de trabalho, foram entrevistados três meninos, um, de 10 anos e dois de 11 anos, na praia. Eles trabalham às sextas-feiras, sábados, domingos e feriados e, nos períodos de alta estação, todos os dias. Todas as crianças freqüentavam, quando da entrevista, a 4a série. Duas dessas crianças trabalham como garçons, ajudando a servir mesas e ganham por dia de R$1,00 a R$2,00, que são utilizados para gastos próprios. A terceira criança vende cartão-postal e recolhe latas de alumínio para venda; ganha por dia de R$5,00 a R$10,00 com o cartão-postal e, com as latas, em torno de R$7,00, por fim de semana. Desse dinheiro, parte é dada à mãe, para comprar comida, e outra, para gasto próprio, principalmente na escola.

O perfil das crianças em situação de trabalho na rua, desta pesquisa, é semelhante ao encontrado em pesquisas realizadas por Rizzini e Rizzini (1992), Francischini et al (2001) mencionadas anteriormente. Chamamos a atenção para o dado que as crianças entrevistadas não estão em defasagem escolar considerável, se compararmos com dados apontados nas pesquisas acima citadas.

No grupo de crianças não trabalhadoras, participaram dois meninos e uma menina, sendo a idade de 7 anos (uma criança) e 8 anos (duas crianças). Essas crianças freqüentam a escola pela manhã, cursando a 1ª, 2ª e 3ª séries. Após a escola vão para uma creche, onde almoçam e desenvolvem uma série de atividades.

O recurso à historia infantil As aventuras de Pinóquio foi um importante facilitador para a produção do discurso das crianças, e trouxe informações relevantes para compreendermos o lugar que o brincar ocupa em suas vidas. Apesar de propormos, na instrução, que se apoiasse no personagem Pinóquio como “menino de verdade”, três crianças se colocaram no papel desse personagem. Essa afirmação pode ser verificada, por exemplo, quando perguntamos onde Pinóquio brincava e, nas respostas, observamos que a criança recorre ao emprego do pronome pessoal na primeira pessoa, ou faz referências ao espaço físico por ela freqüentado.

Exemplo 1 – criança K: Em casa, porque se eu for na rua é muito perigoso.
Exemplo 2 – criança M: ... A gente só brinca aqui... e também no parque.
Exemplo 3 – criança A: Com os meninos perto de (minha) casa (Em todos os exemplos, para identificação dos sujeitos, recorremos ao emprego de letras).

 

O brincar

Nos discursos das crianças que não trabalham, o brincar aparece sem a intervenção direta do pesquisador, como uma das condições para ser “menino de verdade”. Das que estão em situação de trabalho, apenas uma apontou o brincar. Porém, não podemos afirmar que isso ocorreu de forma espontânea, uma vez que, momentos antes da entrevista, uma outra criança foi entrevistada, o pesquisador fez intervenções específicas sobre o brincar e a criança em questão encontrava-se próxima da que estava sendo entrevistada. Assim sendo, contamos com a possibilidade de sua resposta ter sido influenciada por essa condição. As demais crianças apontaram o brincar somente quando houve intervenção do pesquisador, tal como: “Para Pinóquio ser ‘menino de verdade’ ele precisa brincar?”. Essa observação pode demonstrar que a condição de trabalhador pode fazer com que o brincar não ocupe um lugar privilegiado nas atividades das crianças. Confirma, também, o que Vogel e Mello (1992) apontam em suas pesquisas a respeito de que as crianças de classes menos favorecidas logo cedo se enveredam no mundo do trabalho e não têm tempo disponível para brincar. Dessa maneira, as diferenciações na forma como cada criança vivencia a sua infância manifesta-se, também, em relação ao lúdico.

Ao falarem da condição de ser “menino de verdade”, em um primeiro momento, relacionaram essa condição com características físicas:

Exemplo 4 – criança A: Do jeito que eu sou... tem carne e osso.

Em segundo lugar, referem-se a ações, das quais o brincar se inclui, seja espontaneamente (Exemplos 5 e 6), seja com intervenção da pesquisadora (Exemplos 7 e 8):

Exemplo 5 – criança H: Brinca, estuda, faz qualquer coisa que puder (criança não trabalhadora)
Exemplo 6 – criança K: É obedecer ao pai, a mãe, ir à escola, brincar (criança não trabalhadora)
Exemplo 7 – pesquisadora: Ele precisa brincar para ser “menino de verdade”?
Exemplo 7 – resposta da criança: Precisa se divertir (criança em situação de trabalho).
Exemplo 8 – pesquisadora: Era preciso fazer o que para ser “menino de verdade”?
Exemplo 8 – resposta da criança: Brincar... (criança em situação de trabalho).

O exemplo a seguir refere-se igualmente a ações. No entanto, neste caso, específicas, relacionadas à condição de trabalho precoce. Observe-se ainda o fato de que a criança pontua necessidades outras que prevalecem em relação ao brincar.

Exemplo 9 – criança A: Faz desenho, tem uma profissão, faz vassouras.
Exemplo 9 – pesquisadora: Para ser criança de verdade ela precisa brincar?
Exemplo 9 – resposta da criança: Muito não, ela precisa fazer o dever primeiro. Ou então, vai brincar e vem cedo e faz o dever (criança em situação de trabalho).

Procuramos explorar, também, os principais aspectos da brincadeira: tipos, companhias, local, horário disponível, o significado do brincar e o que o brincar proporciona.

Os tipos de brincadeiras mais comuns são as de movimentação (bola, correr, amarelinha, esconde-esconde), como nas pesquisas realizadas por Alves et al (2001) e Francischini et al (2001). Em segundo lugar, foram citados bonecos e carrinhos. Foram citados também balanço, brincar de estudar, com animais e videogame.

As brincadeiras de movimentação pressupõem companhias para serem realizadas, são brincadeiras coletivas. Foram as crianças não trabalhadoras que apontaram mais esse tipo de brincadeira e como companhias estavam amigos e parentes: primos (as), os pais ou a tia. Já as crianças em situação de trabalho referem-se às brincadeiras individuais; mesmo as brincadeiras coletivas são realizadas sem companhia, conforme apontado por duas crianças.

Ainda em relação às crianças em situação de trabalho, observamos que não há presença de adultos em suas brincadeiras. Esse dado merece observação, pois, na situação do brincar, o adulto é um dos mediadores para “perpetuar a cultura e fortalecer os laços afetivos”. Sua ausência “pode privar a criança de um contato mais íntimo com sua própria história e diminuir a possibilidade de aprender através da relação com pessoas mais experientes” (ALVES et al, 2001, p.65). Além disso, o adulto é importante como mediador no processo de desenvolvimento da criança, conforme apontam Alves et al (2001) e Vygotsky (1984).

No que diz respeito ao local das brincadeiras, verificamos que todas as crianças costumam brincar em casa ou nas proximidades. Aquelas que costumam brincar com pouca movimentação (carrinho, videogame, bonecos) referem-se à casa, e as crianças com brincadeiras de ampla movimentação, a terrenos, quintais e parque.

A seguir, apresentamos, de forma mais detalhada, os aspectos relacionados à brincadeira, objetos desta investigação, nos dois grupos de crianças.

 

Crianças em situação de trabalho:

a) Com quem brinca – Para duas crianças, Pinóquio brinca sozinho e isto acontece porque “o pai não deixa brincar com outras crianças”.

Exemplo 10 – pesquisadora: E com quem brinca?
Exemplo 10 – resposta da criança: Só.

b) Local – como o pai não permite brincar com outras crianças, o local disponível é a própria casa e/ou as proximidades.

Exemplo 11 – pesquisadora: Se divertir onde?
Exemplo 11 – resposta da criança: No Jardim... na... no terreno da casa dele.

Quando as crianças eram questionadas se brincavam na escola, respondiam afirmativamente, observando que só era permitido em determinados horários.

c) Horário – a criança tinha horário determinado para brincar, e, para isto, várias restrições eram impostas:

Exemplo 12 – criança A: ... Ele precisa fazer o dever primeiro, ou então, vai brincar e vem cedo para fazer o dever... eu estudo à tarde e brinco de manhã até uma e meia, aí de uma e meia passa para ir para aula. Aí depois, de três e meia, lancha, aí passa um tempinho, toca de novo, aí a gente vai para sala. Aí dá cinco horas e a gente vai para casa.

Verificamos que nenhuma criança em situação de trabalho colocou, espontaneamente, essa atividade como impedimento para brincar, ao contrário dos dados apontados na pesquisa de Alves et al (2001) que enfocou questões específicas com relação ao trabalho, obtendo o seguinte perfil: quando as crianças estão trabalhando pensam em brincar (seis respostas), concentram-se na tarefa realizada (seis resposta) e pensam na família (três respostas). Na questão em que a criança tinha de escolher entre brincar e trabalhar, 11 delas preferiram trabalhar a brincar, seis queriam estar brincando e duas gostariam de poder fazer as duas coisas.

Além das questões apontadas acima, procuramos investigar os sentimentos relacionados à brincadeira. Os exemplos a seguir, dentre outros constantes nos protocolos, ilustram esse aspecto.

Exemplo 13 – pesquisadora: O que você sente quando está brincando?
Exemplo 13 – resposta da criança A: Às vezes eu tenho medo de fazer arte, de cortar o pé quando estou brincando de esconde-esconde.
Pesquisadora: Você sente outra coisa quando está brincando? Resposta da criança A: Nada.
Pesquisadora: Alegria, tristeza?
Resposta da criança A: Alegria sim.
Exemplo 14 – resposta da criança R: Tristeza porque estou brincando sozinho.

Podemos perceber, pelos discursos das crianças que, apesar de não terem um local adequado para brincar (falta de iluminação nas ruas, espaço físico com sujeira, insegurança nas ruas) e de não terem companhia para brincar, quando estão brincando, sentem prazer. A impossibilidade de brincar, ocasionada por doença ou não permissão por parte dos pais, pode provocar sentimentos de tristeza.

 

Crianças não trabalhadoras:

a) Local – as crianças devem brincar em casa ou nas proximidades, com o adulto por perto. A rua que nos séculos XVI ao XVII era vista como espaço de socialização para as crianças, hoje, com as mudanças sociais e históricas e, conseqüentemente, com a transformação do conceito de infância, passa a ser um local de perigo e más companhias para as crianças (ALVES et al, 2001).

Assim, podemos verificar essas transformações no discurso dessas crianças, quando questionadas em relação ao local em que brincam:

Exemplo 15 – criança K: Em casa, porque se for na rua é muito perigoso. Pode vim um carro, pode a gente estar na calçada e um carro vai para cima da calçada e pega a gente ou senão seqüestrar.

b) Horário – as crianças não trabalhadoras sofrem, também, restrições quanto ao horário de brincar. No entanto essas restrições são diferentes daquelas expostas pelas crianças trabalhadoras. Podemos perceber que em nenhum momento referem-se à escola:

Exemplo 16 – pesquisadora: Qual o horário para brincar?
Exemplo 16 – resposta da criança K: De manhã, umas dez horas assim, porque dez horas o pai está acordando e pede permissão aos pais e vai brincar. À noite minha mãe não deixa não, é de noite e o poste fica apagado e minha mãe tem medo.
Exemplo 17 – resposta da criança H: De tarde, assim de manhã, qualquer hora. De noite não, porque tem tiroteio, aí pode se perder e a mãe não se encontrar.

Apesar da falta de segurança e de algumas restrições impostas pelos pais, as crianças referem sentir “muita alegria”, “felicidade” e “muita energia” nessas atividades:

Exemplo 18 – pesquisadora: O que você sente quando está brincando?
Exemplo 18 – resposta da criança H: Muito alegre, feliz.
Exemplo 19 – resposta da criança M: Muita energia.

Quando foi perguntado o que Pinóquio sentiria se não pudesse brincar, houve unanimidade nas respostas das crianças: tristeza.

Por meio da análise dos grupos de crianças, verificamos que existem semelhanças no que se refere aos sentimentos quando estão brincando, ou quando estão impossibilitados de brincar. Nesse sentido, o que as diferencia é a condição de brincar sozinha, o que provoca tristeza, e o local inadequado, que provoca medo para as crianças trabalhadoras.Em relação ao horário, as crianças não trabalhadoras sinalizam que sentem medo e insegurança, o que as impedem de brincar à noite.

Foi percebido, pelo discurso das crianças em situação de trabalho, que o horário para brincar sempre estava oposto ao horário de estudar, perpassando a concepção que “primeiro as obrigações e depois o lazer”, e a incompatibilidade entre essas atividades, reforçando a idéia antiga de que o brincar serve como recreação e opõe-se ao trabalho (BROUGÈRE, 1995). Essas concepções terminam tornando-se naturais, como visto nos discursos das crianças. Conforme aponta Bakhtin (apud FREITAS, 1995; STAM, 1992), todo discurso é ideológico, pressupondo outras vozes, que são vozes da própria classe social a que pertencem. No caso das crianças não trabalhadoras, verificamos que a rua e os seus perigos têm relação direta com a condição de brincar, o que, para as crianças trabalhadoras, possivelmente, esses perigos são naturais, mostrando que as restrições e o valor dado a elas são diferentes para os dois grupos de crianças.

Diante do discurso de uma das crianças – “primeiro as obrigações, depois o lazer” – remetemo-nos à fala de um dos personagens da história de Pinóquio, Marmota (COLLODI, 1992, p. 135):

Meu querido – replicou Marmota para consolá-lo – vai fazer o quê? Agora não tem mais jeito. Já estava escrito nas leis da sabedoria, que todos aqueles meninos preguiçosos, que não querem saber dos livros, das escolas e dos professores e passam seus dias em brincadeiras, jogos e divertimentos, têm de acabar mais cedo ou mais tarde transformados em pequenos burros.

Essa fala do personagem estabelece uma relação que, em nosso entendimento, é inapropriada, entre brincadeira e preguiça. Além disso, associa brincadeiras e jogos somente ao prazer (divertimento). Vygotsky (1984) nos fala que o brinquedo não pode ser definido somente como uma atividade que dá prazer à criança, pois existem atividades que dão prazer mais intenso que o brinquedo e há jogos em que a própria atividade não é agradável. O jogo, principalmente o de regras, dá prazer à criança se o resultado for favorável a ela.

A incompatibilidade entre a escola e o brincar que aparece no discurso das crianças em situação de trabalho pode ser justificada pela condição de trabalhador. Essa condição pode fazer a criança deixar de valorizar a atividade do brincar.

Uma outra aproximação possível diz respeito ao fato de que os Parâmetros Curriculares Nacionais, guia para o desenvolvimento das atividades nas escolas, não fazem referências ao brincar em suas orientações didáticas. Como orientação aos professores, a limitação apontada pode estar reforçando, mais uma vez, a impressão de que o brincar se encerra na educação infantil. Quando a criança passa para o ensino fundamental, é como se não houvesse mais espaço para a brincadeira. No caso das crianças não trabalhadoras, essa incompatibilidade não é apresentada por elas, podendo levantar a hipótese de que, em sua rotina, são distribuídos horários para brincadeiras.

Com base nas considerações realizadas no decorrer deste artigo, pode-se verificar que as brincadeiras e a cultura lúdica são diferenciadas entre as crianças trabalhadoras e não trabalhadoras. Essas observações ilustram a aproximação que vimos fazendo, qual seja, o homem como construção sociohistóricocultural e o brincar, sendo uma atividade desenvolvida por ele, responde ao mesmo princípio. Ressaltamos, mais uma vez, a limitação da amostra trabalhada, cientes de que os aspectos investigados poderiam, em condições diferenciadas, ter sido melhor detalhados. A insuficiência de tempo, natureza do trabalho (especialização) e a nossa condição de pesquisador iniciante são fatores que não podem ser negligenciados. Reafirmamos, assim, nosso propósito de dar continuidade à pesquisa das questões aqui apresentadas.

 

Conclusões

Por meio dos dados anteriores, podemos observar que a vivência do brincar ocorre de forma diferenciada entre as crianças. No discurso daquelas que trabalham na rua não está presente, espontaneamente, o brincar como uma das condições para ser “menino de verdade”. Quando foi realizada uma intervenção por parte da pesquisadora, pudemos perceber que essas crianças:

1) Brincam sozinhas.

2) Brincam de amarelinha, de correr e de esconde-esconde.

3) Costumam brincar em casa e nas suas proximidades.

4) O horário para brincar sempre aparece em oposição ao horário da escola.

5) O sentimento ligado ao brincar envolve alegria, medo e tristeza por brincar sozinho.

6) Doenças e não-permissão, por parte dos pais, são fatores que impedem o brincar.

As crianças não trabalhadoras citam mais o brincar como condição de “ser menino de verdade”. Estas crianças mostraram um perfil diferente do primeiro grupo:

1) Brincam com outras crianças e adultos.

2) Brincam de balanço, de estudar, com bonecos e carrinhos.

3) O local para brincar é a casa e suas proximidades, embora sempre apareça em seus discursos o perigo e a insegurança que a rua proporciona.

4) O horário para brincar é variado. O horário noturno, no entanto, é tido como inapropriado, uma vez que representa situações de perigo.

5) O sentimento provocado pela brincadeira é alegria, felicidade e energia. 6) A impossibilidade de brincar provoca tristeza.

Pelo perfil desses dois grupos, verificamos a semelhança no que se refere aos sentimentos ligados ao brincar e ao não-brincar. Os outros aspectos de diferenciação estão relacionados ao contexto sociohistóricocultural de cada grupo de crianças.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Indira Caldas Cunha de Oliveira
Rua Silvio José dos Santos, 147A – Nova Parnamirim
59150-000 Natal - RN - Brasil
E-mail:indicaldas@zipmail.com.br

Tramitação
Recebido em abril/2003
Aceito em junho/2003

 

 

1 Esclarecemos que o trabalho empírico deu-se no inicio de 2001, período em que não havia constituído, na instituição à qual somos vinculadas (UFRN), o Comitê de Ética que avalia pesquisas que envolvem seres humanos. Esclarecemos, ainda, que foram tomados todos os cuidados para manter o anonimato das pessoas entrevistadas.