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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.5 n.1 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

Um olhar psicológico acerca do desemprego e da precariedade das relações de trabalho

 

A psychological view about the unemployment and the work relationship’s worsening

 

 

Rodrigo Sanches Peres; Juliana Azevedo da Silva; Ana Maria Rodrigues de Carvalho

Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O mundo do trabalho tem passado por intensas metamorfoses nas últimas décadas. A globalização, levada ao extremo na contemporaneidade, e seus subprodutos – elevação das taxas de desemprego e precarização das relações e condições de trabalho – vêm contribuindo para a marginalização dos sujeitos desprovidos de uma ocupação. O presente estudo possui um objetivo duplo, a saber: a) delinear o perfil dos desempregados e das vagas de trabalho disponibilizadas pelo mercado na cidade de Assis (SP) e região; e b) apresentar considerações psicológicas acerca do desemprego e das relações de trabalho no mundo contemporâneo. Os dados necessários para tanto foram coletados no Balcão de Empregos da cidade, e, inicialmente, analisados estatistica e quantitativamente. Posteriormente, tais dados foram interpretados por meio do referencial teórico de autores que propõem uma leitura crítica das transformações da conjuntura econômica moderna.

Palavras-chave: Psicologia organizacional, Psicologia do trabalho, Globalização, Desemprego, Mercado de trabalho.


ABSTRACT

The globalized world has passed to intense metamorphosis’ in the last decades. The globalization, as well as its subproducts – the increase of the unemployment levels and the work relationship’s worsening – has contributed to the unemployees marginalization. The present research purpose is to delineate a profile of the unemployees and vacancies offered by the the market in Assis (SP) town and region, in a psychological perspective over the work and the unemployment. The obtained data, collected in the town Job Agency, was quantitavity analised and interpreted using the theoretical reference of the researchers who deals with the modern economic conjuncture.

Keywords: Organizational psychology, Work psychology, Globalization, Unemployment, Job market.


 

 

Introdução

A conjuntura do trabalho sofreu metamorfoses profundas nas últimas décadas, gerando intricados fenômenos sociais, políticos e econômicos. Nesse ínterim, o crescimento das taxas de desemprego parece, à primeira vista, ser a questão mais preocupante. Uma leitura mais aprofundada acerca dessa questão, entretanto, revela que a diminuição dos postos de trabalho pode ser considerada, na realidade, apenas a ponta do iceberg de uma problemática mais complexa, que possui como característica marcante a precarização das condições e das relações de trabalho, definidas, respectivamente, como o “aumento do caráter precário das condições de trabalho, com a ampliação do trabalho assalariado sem carteira e do trabalho independente” e o “processo de deterioração das relações de trabalho com a ampliação da regulamentação dos contratos temporários, de falsas cooperativas de trabalho, de contratos por empresa ou mesmo unilaterais” (MATTOSO, 1999, p. 8).

Dessa forma, a globalização, por ser essencialmente um “processo de reorganização da divisão internacional do trabalho, acionado em parte pelas diferenças de produtividade e de custos de produção entre países” (SINGER, 1999, p. 21), não só acentuou, consideravelmente, o desemprego, mas também contribuiu para a deterioração das condições de trabalho. Assim sendo, faz-se necessário examinar, pormenorizadamente, essas questões para que se possa entender como o desemprego, a desfiliação e a exclusão social surgem como desdobramentos da vulnerabilidade social, que, por sua vez, pode ser considerada essencialmente decorrente dos novos modos de estruturação de emprego (CASTEL, 1998).

O trabalho, nos dias de hoje, é visivelmente valorizado em demasia pela política neoliberal das sociedades capitalistas. No entanto, como destaca Chauí (1999), o trabalho surgiu, segundo a Bíblia, como uma pena divina imposta a Adão e Eva, no Paraíso, após terem pecado. A partir de então, o ócio – que na sociedade escravista greco-romana era tido como uma precondição para o exercício da política (CHAUÍ, 2000) – passou a ser considerado um pecado capital, e o trabalho, em contrapartida, passou a ser visto como um dever moral. Mas o que outorgou realmente ao trabalho o caráter tão louvável que o acompanha atualmente foi o advento do capitalismo e a construção da racionalidade ocidental moderna, que gerou um campo ideológico que valoriza excessivamente a capacidade produtiva individual (WICKERT, 1999). Desse modo, o trabalho, no mundo contemporâneo, é mais que trabalho, e, assim sendo, o não-trabalho é muito mais que o desemprego.

A ideologia do trabalho, conforme Lafargue (1999), divide a sociedade em duas partes: de um lado os privilegiados e economicamente favorecidos, e de outro os desempregados, vítimas do “flagelo do nosso tempo” (FORRESTER, 1997, p. 106). Essa característica da sociedade capitalista faz com que os sujeitos privados de um trabalho sintam-se inúteis, humilhados e ofendidos, pois o desemprego gera invariavelmente um doloroso processo de dessocialização progressiva que causa sofrimento psíquico (Wickert, 1999). Esse processo pode, em casos extremos, porém não raros, levar “à doença mental ou física, pois ataca os alicerces da identidade” (DEJOURS, 1999, p. 19). Assim, a ausência de emprego, além de inviabilizar economicamente a sobrevivência do sujeito, causa uma sensação de falta de identidade capaz de pôr em risco seu equilíbrio psíquico.

Na realidade, pode-se supor que a “identidade social” de um sujeito – entendida aqui como a inserção consciente em determinado grupo social (CAMINO, 1996) – começa a ser formada a partir de sua iniciação real no mercado e se encontra estreitamente vinculada a seu trabalho, pois, sob a ótica capitalista, ter um emprego, além de ser um dever moral, é também um dever social. Os desempregados, contudo, vivem alheios a esse modelo, não são reconhecidos socialmente e, por isso, são acometidos por um sofrimento psicológico marcante – associado à exclusão e à segregação – que influencia, negativamente, as representações que esses sujeitos fazem de si, uma vez que o trabalho é o principal mediador da realização social do ego e não há, atualmente, nada que possa substituí-lo nessa função (DEJOURS, 1992; 1999). Assim sendo, concomitantemente à diminuição dos postos de trabalho, há um aumento progressivo da intensidade das repercussões psicológicas do desemprego.

A Psicologia, dessa forma, pode e deve, com sua multiplicidade de abordagens e modos de atuação, dedicar cada vez mais atenção a esse fecundo campo de pesquisa e intervenção que é o mundo do trabalho. Nesse sentido, firmou-se de 1996 a 2000 um convênio entre a Associação Comercial e Industrial de Assis (SP) e o Departamento de Psicologia Experimental e do Trabalho da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista (UNESP). Durante esse período, estagiários dos 4º e 5º anos do curso de graduação em Psicologia assumiram, integralmente, as atividades desenvolvidas no Balcão de Empregos, um serviço gratuito de intermediação da colocação da mão-de-obra no mercado de trabalho da cidade e região.

O Balcão de Empregos possuía um banco de dados de candidatos à procura dos mais diversos tipos de trabalho. O serviço possuía 50 cargos catalogados e oferecia aos usuários a possibilidade de preencher duas fichas, desde que para cargos diferentes. Quando havia a disponibilização de vagas por lojas, empresas ou indústrias cadastradas, os estagiários recrutavam os candidatos considerados pertinentes, em função dos requisitos estabelecidos pelo contratante. Em seguida, executavam uma pré-seleção e encaminhavam alguns candidatos para uma entrevista com o requisitante. Devido à rapidez e agilidade necessárias, o processo de pré-seleção desenvolvia-se, basicamente, pela análise da ficha do candidato e de entrevistas. Dispensavam-se, dessa forma, outras técnicas de seleção mais dispendiosas, o que possibilitava a avaliação de um número maior de candidatos e, conseqüentemente, o atendimento de mais solicitações e disponibilizações de emprego.

O presente estudo teve os seguintes objetivos: a) delinear o perfil dos desempregados e das vagas de trabalho disponibilizadas pelo mercado na cidade de Assis (SP) e região, e b) apresentar considerações psicológicas acerca do desemprego e das relações de trabalho no mundo contemporâneo.

 

Metodologia

Tendo em vista o objetivo proposto, optou-se por adotar o referencial metodológico da pesquisa documental, priorizando um caráter descritivo, retrospectivo e com abordagem quanti-qualitativa. Assim sendo, o presente estudo possui um caráter essencialmente naturalístico, uma vez que as investigações científicas desse tipo não têm como propósito principal testar hipóteses, mas, sim, descrever um fenômeno tal como ele naturalmente ocorre e nas circunstâncias que espontaneamente o geram (SELTIZ, WRIGHTSAMN e COOK, 1987).

 

Procedimento para a coleta de dados

A coleta de dados foi realizada por meio de consultas aos cadastros a) dos usuários que recorreram ao Balcão de Empregos de Assis em 1999 e b) das vagas de trabalho oferecidas pelo mercado e captadas pelo serviço no mesmo período. Constavam dos cadas-tros dos candidatos informações, registradas pelo estagiário responsável pelo atendimento, referentes à identificação pessoal (nome, gênero, idade, endereço e telefone) e profissional do sujeito (escolaridade, formação e experiência profissional, número da carteira de trabalho e cargo pretendido). Já o cadastro das vagas era composto por uma breve descrição do cargo e dos requisitos exigidos pelo contratante.

Os dados utilizados no presente estudo foram os seguintes: número total de candidatos cadastrados, cargos mais procurados, idade, gênero e escolaridade dos candidatos, número total de vagas de trabalho disponibilizadas, requisitos solicitados pelo contratante e número total de vagas preenchidas.

 

Procedimento para a análise dos dados

Os dados coletados foram, inicialmente, analisados qualitativamente, de acordo com os princípios da estatística descritiva. Posteriormente, os resultados obtidos foram examinados e interpretados com base no referencial teórico de autores que propõem uma leitura crítica da problemática do trabalho, do desemprego e das transformações da conjuntura econômica na contemporaneidade, tais como Dejours (1992, 1999), Castel (1998), Singer (1999), Antunes (1999) e Forrester (1997).

 

Discussão de resultados

No ano de 1999, o Balcão de Empregos captou 319 vagas com os empregadores, um número desproporcionalmente inferior ao de sujeitos à procura de trabalho, uma vez que 2.050 desempregados recorreram ao serviço no mesmo período, como demonstra a Figura 1. Tais dados podem ser considerados um reflexo da diminuição cada vez mais acentuada de ofertas de trabalho, uma das tendências mais marcantes da atual conjuntura econômica (FORRESTER, 1997; CASTEL, 1998; ANTUNES, 1999; SINGER, 1999; MORAES, 1999).

 

 

A maior parte dos candidatos que procurou o Balcão de Empregos, no ano de 1999, pertencia à faixa etária dos 18 aos 25 anos, conforme se vê na Figura 2. Trata-se de um dado compreensível, levando-se em conta que, nos dias de hoje, a inserção efetiva de um sujeito no mundo do trabalho ocorre, na maioria dos casos, a partir dos 18 anos. Esse mesmo dado, contudo, revela também que o desemprego, que há pouco tempo acometia, principalmente, os indivíduos acima dos 40 ou 50 anos, hoje é um problema que atinge também os jovens. Vale ressaltar ainda que uma parcela significativa dos candidatos encontrava-se na faixa etária dos 26 aos 32 anos. Parece razoável supor que esses candidatos já se iniciaram no mundo do trabalho, passaram por um ou mais empregos e encontravam-se, na época, desprovidos de uma ocupação, o que pode ser entendido como um reflexo da instabilidade que atualmente caracteriza a maioria das modalidades de emprego.

 

 

A Figura 3 revela que os cargos mais procurados pelos usuários do Balcão de Empregos, em 1999, foram aqueles que não exigiam formação e/ou qualificação especializadas, tais como balconista, ajudante geral e recepcionista. Pode-se supor que isso se deve, em parte, a certa defasagem na formação e qualificação dos sujeitos. Por outro lado, esse dado também pode ser um indicativo de que a procura por um emprego tornou-se tão angustiante que os candidatos aceitam qualquer tipo de trabalho que lhes garanta condições mínimas de subsistência, a despeito de não ser condizente com suas capacidades e aspirações.

 

 

A maior parte dos candidatos que se cadastrou no Balcão de Empregos em 1999 possuía o ensino médio completo, como indica a Figura 4. No entanto, como será discutido adiante, a escolaridade não representa mais uma garantia de colocação profissional, como ocorria há uma ou duas décadas. Atualmente, pode-se resumir a relação existente entre escolaridade e colocação profissional em uma regra principal: boa formação escolar não significa certeza de emprego, mas sua ausência torna ainda mais difícil a inserção no mercado de trabalho. A Figura 4 também revela que uma elevada porcentagem de candidatos possuía o ensino fundamental incompleto. Levando-se em conta a influência da escolaridade na colocação profissional, pode-se supor que esses candidatos encontrarão maiores dificuldades para conseguir um emprego.

 

 

Em relação às vagas captadas pelo Balcão de Empregos, a Figura 5 indica que o cargo mais disponibilizado foi o de vendedor externo. Trata-se, teoricamente, de um tipo de vaga que pode ser preenchido com razoável facilidade, uma vez que exige pouca qualificação profissional. No cotidiano das atividades do Balcão, contudo, observou-se que, na maioria das vezes, os candidatos à procura de um emprego não se interessavam por esse cargo, pois geralmente não havia um salário fixo – apenas comissão por vendas – e nem tampouco registro na carteira de trabalho, o que implica perda dos direitos legais. Além disso, era necessário que o candidato possuísse veículo próprio. O caráter incerto e suspeito desse cargo, assim sendo, não atraía os candidatos, que possuíam a expectativa de conseguir um emprego formal e estável.

 

 

A faixa etária dos candidatos, geralmente, é um fator levado em conta pelo empregador que disponibiliza uma vaga. A idade mínima solicitada para as vagas captadas em 1999 situou-se na média dos 18 aos 25 anos, como ilustra a Figura 5, o que parece ser favorável à inserção de jovens no mercado de trabalho. A idade máxima não foi especificada na maioria dos casos, o que, em tese, foi um fator facilitador para a colocação de trabalhadores com idade acima dos 35 anos. Porém, verificou-se que, na prática, os empregadores tendem a dar preferência aos candidatos mais jovens, ainda que inexperientes.

A maioria dos empregadores que utilizou os serviços do Balcão no ano de 1999 exigiu como pré-requisito dos candidatos o ensino médio completo, conforme vê-se na Figura 6. No entanto, a maior parte das vagas disponibilizadas estava relacionada, como discutimos anteriormente, à área de vendas, um segmento do mercado que não exige, teoricamente, a formação escolar solicitada pelos empregadores. Esse fenômeno parece ser mais uma das “ironias” da era globalizada: muitas vezes um sujeito bem qualificado, não conseguindo um cargo compatível com sua formação e experiência, acaba contentando- se com trabalhos que exigem pouca ou nenhuma qualificação. Em contrapartida, os candidatos que poderiam ocupar as vagas que não requerem uma boa escolaridade e/ou qualificação profissional perdem a oportunidade do emprego.

 

 

Não há dúvida de que a globalização gera como subproduto a elevação das taxas de desemprego e contribui, desse modo, para o aumento da desigualdade na distribuição de renda. Singer (1999), contudo, destaca que é preciso certo cuidado para não diagnosticar o aumento da exclusão social dos dias de hoje como um desdobramento direto e imediato da globalização. Segundo o referido autor, a globalização, na realidade, provoca mudanças nas políticas de importação de produtos industriais e faz com que um grande número de trabalhadores das economias subdesenvolvidas, que antes produziam o que agora é importado dos países desenvolvidos, percam seus empregos.

Por outro lado, concomitantemente a esse movimento, muitos postos de trabalho são criados, principalmente, relacionados às atividades de importação. É preciso reconhecer, no entanto, que as maiores vítimas dessas transformações – os trabalhadores que perderam seus empregos – não têm pronto acesso aos novos postos, que exigem, na maioria das vezes, uma qualificação diferenciada. Assim sendo, pode-se concluir que, teoricamente, o chamado “desemprego estrutural”, inerente à globalização, “não aumenta necessariamente o número total de pessoas sem trabalho, mas contribui para deteriorar o mercado para quem precisa vender sua capacidade de produzir” (Singer, 1999, p. 23).

De qualquer forma, essa dialética capitalista gerou no Brasil dos anos 90 mais a eliminação de postos de trabalho do que a criação, o que pôde ser evidenciado por meio da prática do Balcão de Empregos. A elevação dos níveis de desemprego, na realidade, parece ser um movimento inevitável, pois, segundo Castel (1998), há nos dias de hoje um déficit de lugares ocupáveis na estrutura da sociedade. O referido autor toma como base a idéia de integração social proposta por Émile Durkheim – que defende que é integrado aquele indivíduo que faz parte de uma sociedade na qual há uma relação de interdependência entre todos os seus elementos – para afirmar que no mundo globalizado aumenta cada vez mais a quantidade de supranumerários, ou seja, sujeitos não integrados e não integráveis na dinâmica capitalista.

Assim sendo, a marcante desproporção verificada entre o número de candidatos à procura de um emprego e a quantidade de vagas disponibilizadas no Balcão em 1999 pode ser entendida como um reflexo dessa tendência de diminuição dos postos de trabalho. Além disso, considerando-se o número de contratações efetivadas no mesmo ano, tem-se uma idéia ainda mais preocupante dessa situação, pois, das 319 vagas disponibilizadas, foram realizadas apenas 55 contratações. Tal defasagem, contudo, também pode ser parcialmente creditada a outros cinco fatores. Em primeiro lugar, o Balcão de Empregos não era o único serviço de intermediação de colocação da mão-de-obra na cidade. Desse modo, o empregador que disponibilizava uma vaga no Balcão o fazia também em outros serviços de recrutamento ou, informalmente, em sua rede de contatos.

Em segundo lugar, os empregadores muitas vezes disponibilizavam uma vaga e pouco tempo depois a cancelavam, alegando que o quadro de funcionários havia sido remanejado de tal maneira que os trabalhadores que continuaram no emprego passaram a exercer as funções da vaga existente. Em terceiro lugar, em alguns casos, os candidatos não se interessavam pelas vagas, mesmo sendo feito um recrutamento por meio de anúncio em rádios da cidade. Nessas situações – notadamente nas vagas relacionadas a vendas externas – percebia-se que as condições de trabalho eram tão precárias e os cargos disponibilizados possuíam um caráter tão incerto que não despertavam o interesse do candidato, por mais que ele necessitasse do emprego.

Em quarto lugar, em determinados cargos, a contratação dependia de uma formação muito especializada, que não correspondia às qualificações dos candidatos cadastrados e/ou recrutados por anúncio em rádios, o que fazia com que a vaga não se preenchesse. Em quinto lugar, por fim, no ano de 1999 foi cancelada a abertura da filial de uma rede na área de vendas externas que havia disponibilizado dezenas de vagas no Balcão, o que contribuiu para a elevação da defasagem entre o número de vagas oferecidas e o de contratações efetivadas.

Para Antunes (1999), não há, atualmente, no mundo do trabalho uma tendência generalizante, e, sim, uma processualidade contrária e multiforme. De um lado, observa- se o processo de qualificação ou intelectualização do trabalho, decorrente do avanço científico e tecnológico e da modernização das empresas, que faz com que pessoas que executam tarefas repetitivas e rotineiras – que não exigem capacidade de improvisação e nem tampouco um grande repertório de conhecimentos – percam seus empregos. Como conseqüência desse processo de intelectualização do trabalho, são criados novos empregos nas áreas de tecnologia, que exigem, por sua vez, um maior envolvimento do trabalhador com seu ofício.

Por outro lado, percebe-se um movimento intenso de desqualificação do trabalho. O contato mantido com empregadores por meio do Balcão evidenciou essa tendência, que, conforme Pochman (2001), pode se manifestar de diversas formas: desrespeito aos direitos sociais, deterioração das relações de trabalho, baixa remuneração, inexpressividade sindical e desregulamentação das condições de trabalho, dentre outras. Esse fenômeno de “subproletarização do trabalho” (ANTUNES, 1999) é mais visível nos empregos temporários, tercerizados e/ou vinculados à economia informal, mas, infelizmente, a prática indica que se estende também à maioria das modalidades de emprego da contemporaneidade.

Além disso, na atual fase do capitalismo globalizado pode-se observar o ressurgimento de modos de exploração de trabalhadores semelhantes à escravidão de outros tempos. No entanto, o que parece mais preocupante é que a esses antigos modos de exploração associam-se, nos dias de hoje, novas tecnologias que colaboram para a implementação de formas de servidão laboral mais desumanas. As modalidades contemporâneas de exploração do trabalho, assim sendo, instituem de maneira notável a soberania patronal e transformam empregados em sujeitos alienados, que se vêem quase que obrigados a renunciar a seus direitos assegurados – pelo menos em tese – pela regulamentação trabalhista.

Na prática do Balcão de Empregos esse movimento tornou-se evidente, principalmente em relação às vagas de vendedor externo, pois, na maioria das vezes, o empregador exigia muito do candidato – veículo próprio, “boa aparência”, disponibilidade para viagens, experiência etc. – e não oferecia quase nada – não havia salário fixo (apenas comissão por vendas) e nem tampouco registro na carteira de trabalho. A maior parte dos candidatos não se interessava por esse tipo de cargo, mas alguns sujeitos se viam sem outra opção de sobrevivência e acabavam aceitando o emprego. Foi possível notar, assim, que a deterioração das relações de trabalho faz com que um número cada vez maior de sujeitos submeta-se a formas suspeitas de vínculos empregatícios, que excluem a carteira assinada e impõem a abdicação da essência contratual do trabalho livre.

Um dos efeitos da diminuição das oportunidades de emprego decorrente da globalização é, conforme aponta Guimarães (1998), a redução do salário médio dos trabalhadores. Tal fenômeno impulsiona um número elevado de pessoas para a economia informal, o subemprego e o trabalho precário. Um simples exemplo ilustra como essa tendência pôde ser evidenciada na prática no Balcão de Empregos: o candidato, ao cadastrar-se no serviço, podia concorrer a um ou dois cargos, dentre uma lista de 50 opções. Porém, freqüentemente nos deparávamos com sujeitos que manifestavam o desejo de preencher uma ficha para “qualquer coisa” ou “o que tiver”. Nesses casos, o desespero por um trabalho parecia ser tão intenso que o candidato mostrava-se disposto a exercer qualquer tipo de atividade que pudesse lhe render alguma remuneração. Esse fato, além de refletir a angústia que geralmente domina um desempregado, fornece um indício do sofrimento psíquico – associado à segregação e à exclusão – inerente a essa condição.

Outro ponto que merece ser abordado nesta discussão diz respeito aos requisitos exigidos pelos empregadores. A idade dos sujeitos, a qualificação e formação profissional e a escolaridade são fatores relevantes em uma contratação, mas nem sempre são os determinantes. Muitas vezes os empregadores priorizam atributos pessoais dos candidatos, tais como “boa aparência”, “simpatia”, “dinamismo” e “prestatividade”. O termo “empregabilidade”, muito em voga atualmente nos discursos sobre a globalização e o desemprego, diz respeito exatamente a isso: a capacidade do trabalhador de se manter empregado em virtude não apenas de sua capacitação técnica, mas também de uma série de atributos pessoais.

A empregabilidade representa, atualmente, um dos mais poderosos instrumentos reguladores da ordem social e evidencia o imperativo da flexibilização e da competitividade no mundo do trabalho. Fundada nos pressupostos neoliberais de que o desemprego é resultante de baixa qualificação profissional e inadequação diante de um mercado cada vez mais exigente, a noção de empregabilidade, em última instância, desvia a atenção da verdadeira causa das taxas, cada vez mais elevadas, de trabalhadores desempregados: a atual organização do sistema capitalista de produção (WICKERT, 1999; BARBARA, 1999). Os desempregados, assim sendo, são vistos como culpados daquilo que os vitimiza e – o que é mais preocupante – “são os primeiros a se considerar incompatíveis com uma sociedade da qual eles são os produtos mais naturais” (FORRESTER, 1997, p. 11).

Singer (1999) afirma que é necessário problematizar os conceitos de “emprego” e “ocupação” para que seja possível uma leitura crítica acerca da questão do desemprego. Dessa forma, o referido autor assinala que o termo “ocupação” pode ser entendido como toda e qualquer espécie de atividade que proporciona sustento a quem a exerce. O termo “emprego”, por sua vez, implica assalariamento e diz respeito à situação em que o empregador compra a capacidade de produzir de um sujeito. O emprego, de tal modo, é um tipo de ocupação: o mais freqüente em países capitalistas, mas não o único. Nas entrelinhas do discurso dominante, nos dias de hoje, acerca do mundo do trabalho, subentende-se que o desemprego, mais que a falta de emprego, é a falta de uma ocupação, como se a única maneira de um sujeito obter sua subsistência fosse vender sua força de trabalho ao capital. Isso ocorre porque o trabalho assalariado é visto erroneamente como a única forma de ocupação socialmente proveitosa, especialmente por ser uma produção externalizada que confere uma utilidade social geral às atividades privadas (CASTEL, 1998).

Existem, no entanto, outras espécies de ocupação, e as inúmeras formas de atividades autônomas e informais, que crescem em número e importância a cada dia no mundo todo, são o maior exemplo disso. Tais atividades, contudo, ainda são vistas com certo desdém pela sociedade e, principalmente, pelos próprios trabalhadores, que alimentam a expectativa de conseguir um emprego “clássico”. O desinteresse dos candidatos em relação às vagas de vendedor externo captadas pelo Balcão, obviamente, era motivado pelo caráter suspeito desse cargo, mas também revela que os próprios trabalhadores tendem a desvalorizar as modalidades alternativas de emprego.

O mundo globalizado de hoje parece estar passando, em última análise, por um momento crucial em sua história, visto que as metamorfoses do trabalho tornaram praticamente insustentável a sobrevivência de um grande número de desempregados. As medidas paliativas que vêm sendo adotadas – tais como o incentivo a programas de qualificação profissional – não têm alcançado a resolutividade desejada, pois não garantem a colocação do contingente de mão-de-obra disponível no mercado de trabalho. Desse modo, parece mais do que nunca necessário que sejam desenvolvidas políticas alternativas que ultrapassem o modelo clássico do trabalho assalariado e garantam aos desempregados uma possibilidade real de participação na produção da sociedade, pois isto é o que fundamenta, em última instância, a dignidade social de um sujeito.

Para tanto, contudo, faz-se necessário a elaboração de novas propostas dentro do modelo capitalista vigente, pois a inserção social efetiva daqueles que, por não possuírem um emprego, vivem às margens da economia salarial parece incompatível com o atual modo de produção. Ademais, pode-se pensar até mesmo que as repercussões da conjuntura econômica atual já estejam colocando em xeque essa ordem mundial, e demonstrando a necessidade do rompimento com o modo de organização capitalista e neoliberal do mundo contemporâneo.

 

Conclusões

Ao delinear o perfil dos desempregados na cidade de Assis (SP) e região, verificou-se que a maior parte dos candidatos a um trabalho possuía o segundo grau completo de escolaridade, encontrava-se na faixa etária dos 18 aos 25 anos e procurava por cargos que exigem, teoricamente, pouca ou nenhuma qualificação específica, tais como balconista e ajudante geral. Quanto às vagas captadas pelo Balcão de Empregos, a maioria se relacionava ao ramo de vendas – externas, principalmente. Os empregadores, geralmente, estabeleciam como pré-requisitos para os candidatos a idade mínima de 18 anos e o segundo grau completo de escolaridade, e não delimitavam a idade máxima. Outros atributos pessoais dos candidatos, como “boa aparência” e “simpatia”, também foram valorizados, ainda que de uma forma mais velada, pelos empregadores.

Os dados obtidos no presente estudo, aliados à experiência adquirida no Balcão de Empregos, indicam que a elevação das taxas de desemprego e, como conseqüência, o aumento da desigualdade social, encontram-se intrinsecamente vinculados à precarização das condições e das relações de trabalho – que torna os vínculos empregatícios cada vez mais suspeitos e criam novas formas de servidão laboral – e à acentuada diminuição dos postos de trabalho. Verificou-se ainda que o desemprego causa um sofrimento psíquico intenso, associado à segregação e à exclusão – o que de certa forma é reflexo da racionalidade capitalista neoliberal, que valoriza em demasia o trabalho e a capacidade produtiva individual.

O desespero do sujeito sem trabalho se evidenciava no Balcão de Empregos quando os candidatos que recorriam ao serviço aproveitavam a oportunidade do preenchimento do cadastro para relatar aos estagiários diversas queixas e dificuldades de sua situação atual de vida, vinculadas, direta ou indiretamente, ao desemprego. Os estagiários procuravam, na medida do possível, oferecer um acolhimento a essas queixas, trazendo, assim, um certo alívio – ainda que efêmero – às angústias dos desempregados. O Balcão de Empregos, desse modo, representava muitas vezes não apenas um serviço de intermediação da mão-de-obra, mas também um “local de escuta” para os desempregados.

Atualmente os serviços do Balcão de Empregos já não são mais oferecidos, pois, devido a dificuldades de manter um espaço físico apropriado para atender aos candidatos, a Associação Comercial de Assis rompeu, em 2000, o convênio que mantinha com a Universidade Estadual Paulista. De qualquer maneira, a experiência adquirida evidenciou que a Psicologia não pode simplesmente se eximir de seus compromissos sociais, políticos e éticos, e, desse modo, mais do que atuar na intermediação da mão-de-obra e administração de recursos humanos, os profissionais da área organizacional e do trabalho devem problematizar seu papel, buscar novos espaços, repensar o desemprego e contribuir, mais efetivamente, para a construção de modelos alternativos de colocação da mão-de-obra disponível no mercado de trabalho, com o intuito básico de minorar o sofrimento, decorrente do comprometimento psíquico, econômico e social, daqueles desprovidos de uma ocupação (GRISCI, 1999; TRACTEMBERG, 1999; DITTRICH, 1999).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rodrigo Sanches Peres
Rua Jesuíno de Arruda, 2753, Centro
13560-060 São Carlos - SP - Brasil
E-mail:rodrigo_sanches_peres@hotmail.com

Tramitação
Recebido em abril/2003
Aceito em maio/2003