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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.5 no.2 São Paulo Dec. 2003

 

ARTIGOS

 

Complexo fraternal: a fonte do ciúme e da inveja

 

Fraternal complex: the primary source of jealousy and envy

 

 

Sebastião Elyseu Júnior

Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, procuramos discutir as dimensões do complexo fraternal e estabelecer os sentimentos, desejos e comportamentos invejosos e ciumentos, como manifestações diretas da vivência da rivalidade fraternal. Para atingirmos esses objetivos, discutimos inicialmente o conceito de energia libidinal, usando alguns conhecimentos sobre o processamento humano de informação, responsável pela geração de afetos e outras manifestações psíquicas. Depois, utilizamos informações que confrontam a dimensão que esse complexo e o complexo de Édipo têm para a psicanálise tradicional. Uma dessas confrontações deriva da existência de um comportamento instintivo de posse, fundamental para a sobrevivência e ao qual estão atrelados os sentimentos, desejos e comportamentos invejosos e ciumentos. Concluímos pela universalidade do complexo fraternal, pelo qual a criança mais nova disputa a sua mãe também com o seu pai, e pela eventualidade do complexo edípico, passível de existir só depois que a criança se torna mais velha.

Palavras-chave: Complexo de Édipo, Ciúme, Inveja.


ABSTRACT

In this paper, we seek to discuss the dimensions of the fraternal complex, and to establish the envious and jealous feelings, wishes and behaviours, as direct manifestations of the fraternal rivalry. To reach these aims we initially discuss the concept of libidinal energy, using some knowledge on human processing of information, responsible for the generation of feelings and other psychic manifestations. Afterwards, we use data, that confronts the dimension that this complex and Oedipus complex have for traditional psychoanalysis. One of these confrontations derives from the existence of an ownership instintive behaviour, fundamental to survival and to which are linked the envious and jealous feelings, wishes and behaviours. We conclude to the universality of the fraternal complex according to which a younger child disputes his/her mother also with the father, and to the eventuality of the Oedipus complex, passible to exist only after the child becomes older.

Keywords: Oedipus complex, Jealousy, Envy.


 

 

Introdução

O complexo de Édipo é um dos temas centrais da Psicanálise, e o complexo fraternal, embora menos relevante, também é um conceito importante nessa teoria.

No entanto, se a nossa observação crítica nos leva a suspeitar de que há um mal dimensionamento desses conceitos, em função do referencial teórico da época em que foram propostos, se justifica a sua releitura em novas bases.

Buscamos, então, não só uma conceituação mais bem sustentada teoricamente, que os torne mais adequados à realidade, mas também a possibilidade de lhes dar um melhor dimensionamento quanto à sua abrangência.

 

Revisão e análise

O complexo de Édipo, citado pela primeira vez em 1897 numa carta de Freud a Fliess e, também, chamado inicialmente de complexo nuclear, é para o criador da Psicanálise (FREUD, 1967a), na sua forma positiva, mas simplificada, o desejo de morte ao rival do mesmo sexo e desejo libidinal à figura do outro sexo.

Laplanche e Pontalis (1970, p. 116) assim o sintetizam: “conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta relativamente aos pais”.

Por sua vez, o complexo fraternal, como passou a ser posteriormente chamado, estranhamente ausente do vocabulário supracitado é, segundo Freud (1976b), a hostilidade que a criança manifesta em relação aos irmãos (rivais) despertada pela ocorrência ou pela possibilidade de perda ou divisão entre si dos carinhos dos pais.

Assim, deduz-se que o complexo fraternal é uma variante do complexo de Édipo, o que se confirma nesta sua afirmação:

“Quando outras crianças aparecem em cena, o complexo de Édipo avoluma-se em um complexo de família. Este, com novo apoio obtido a partir do sentimento egoístico de haver sido prejudicado, dá fundamento a que os novos irmãos e irmãs sejam recebidos com aversão, e faz com que, sem hesitações, sejam, em desejos, eliminados” (FREUD, 1976a, p. 389-390)

Em outras palavras, devemos entender que o fulcro desses dois complexos, nos quais a conduta da criança é basicamente a mesma, a sua sexualidade é dirigida a um dos pais, enquanto a sua hostilidade é dirigida ou ao pai do outro sexo (complexo de Édipo), ou aos irmãos (complexo fraternal).

Tais complexos foram aceitos pelos estudiosos da Psicologia, pela evidência das manifestações agressivas e ‘amorosas’ que comportam; mas, a estas últimas, foi dado um sentido unicamente libidinal (erótico) (FREUD, 1967c), cuja amplitude compromete, a nosso ver, a discriminação desses complexos psíquicos que podem desenvolver-se na infância; além disso, esses conceitos nunca foram especificamente revistos, tendo como referencial a Psicanálise científica.

É certo que a criança, especialmente a pequena, reage instintivamente contra qualquer pessoa que a ameace de lhe tirar a mãe, da qual ela é, em alguns aspectos básicos de sobrevivência, totalmente dependente. Essa reação da criança pequena não seria justamente por causa dessa dependência básica pela mãe, e não por causa de um complexo erótico?

Pelo visto, não para Freud (1976a, p. 388), já que faz a seguinte afirmação:

“[...] haver-se-á de objetar que a conduta do menino origina-se em motivos egoísticos e não oferece base para se postular um complexo erótico: a mãe satisfaz todas as necessidades da criança, de modo que esta tem interesse em evitar que ela venha a dispensar cuidados a uma outra pessoa. Esse fato também é procedente; mas, logo tornar-se-á claro que, nessa situação, como em outras semelhantes, o interesse egoístico simplesmente oferece um ponto de apoio ao qual a tendência erótica se vincula”.

Não podemos continuar nossa discussão sem antes abordarmos a questão da energia libidinal, que permeia esses complexos.

Recorremos, primeiramente, a Bowlby (1984), criador da Psicanálise científica, que não reconhece a existência de uma energia psíquica por falta de comprovação empírica; em seu lugar, admite as explicações biológicas modernas de sistemas (comportamentais ou neuropsíquicos) ativados. Reconhece, como Freud, que algo é responsável pelo funcionamento psíquico, mas que não é essa energia.

Esse conceito freudiano de energia psíquica, a qual pode transformar-se em energia nervosa (mecanismo de conversão) e vice-versa, traz sérios problemas para a Ciência, na medida em que se trata de uma misteriosa transformação não-passível de testagem.

Além disso, Freud (1967b), embora dê uma ampla dimensão ao conceito de pulsão de vida, na prática esta se restringe às manifestações libidinais, as quais, junto com as manifestações agressivas, cobrem grande parte da conduta humana, mas não toda. Melhor seria dimensioná-la aos comportamentos instintivos (filogênicos) e aprendidos, como faz a Psicanálise científica.

Por exemplo, animais e humanos monitoram o ambiente não porque é conduta libidinal, a qual lhes dá prazer (nem porque é conduta agressiva e estão raivosos), mas porque só terão maiores chances de sobrevivência se detectarem preventivamente os seus predadores. A constatação de que não há predadores à vista lhes dá segurança e tranqüilidade; o surgimento do predador gera ansiedade ou medo e provoca o comportamento de alarme, seguido do comportamento de fuga ou de apego etc.

Além disso, os afetos como o de medo, o de ansiedade, o de segurança etc. nem podem ser explicados como derivações da libido ou da agressividade, pois não possuem o mesmo caráter qualitativo. Se isso não tivesse importância, não haveria igualmente a necessidade de distinguir a libido da agressividade, como fez o próprio Freud.

Os conhecimentos neuropsicológicos, segundo Bowlby (1984), dão conta de que o afeto é uma fase do processo de avaliação de informações procedentes do meio, do corpo e da memória. Um afeto só é gerado (afetogênese) e, eventualmente, sentido, quando um sistema neuropsíquico processa a informação que, por sua vez, é qualificada pelo próprio afeto gerado (afetivação). Assim, cada tipo de afeto existe em função de cada tipo de informação processada.

Nesse sentido, parece lícito distinguir o prazer não-erótico do prazer erótico ou libidinal, como derivados do processamento de diferentes informações e não como supostas transformações de energia libidinal (sublimação).

A propósito, Laplanche e Pontalis (1970) entendem que uma das lacunas da Psicanálise é a ausência de uma teoria coerente da sublimação.

Bowlby lamenta o fato de que Freud tenha substituído a sua teoria traumática pela teoria da libido, por centrar a causa da conduta no próprio indivíduo e, com isso, deixar de dar o devido peso aos poderosos efeitos que alguns acontecimentos têm sobre ele, isto é, das marcas deixadas pelas avaliações afetivas das informações processadas.

Nessa perspectiva, as vivências da criança pequena são marcadamente não-eróticas; as eróticas tendem a aparecer mais tardiamente, não necessariamente vinculadas a figuras incestuosas.

Com base nisso, procuraremos argumentar que o complexo edípico, constituído, dentre outros componentes, de rivalidade pela posse da figura sexual incestuosa e de desejos e sentimentos eróticos (libidinais), é apenas uma possibilidade, não uma situação regular no desenvolvimento da personalidade, como é o complexo fraternal.

Para nós, excluída a situação edípica, todas as demais situações de rivalidade estão compreendidas no complexo fraternal, mesmo que envolva a figura do pai rival e mesmo que envolva os desejos e sentimentos eróticos e a disputa pela posse da figura sexual, desde que não incestuosa.

Para Fairbairn (1980), muito antes de estabelecer-se a situação edípica, a criança é marcada psicologicamente pelas vicissitudes das relações com a mãe; esse fato o leva a afirmar que a situação edípica, longe de ser a base de um conceito explicativo, é antes um fenômeno a ser explicado.

Além de concordarmos com essa afirmação, entendemos que eventuais manifestações sexuais, numa criança pequena, como a impulsão pélvica, por exemplo, não justificam a existência de um modelo funcional organizado como é o complexo edípico, já que qualquer padrão motor, como simples fragmento da conduta sexual, é uma coisa, e a ligação a uma figura para a qual ele se dirige, assim como a sua metafixada, ora desconhecida, é outra.

Segundo Bowlby (1984), há estudos que mostram que, em membros imaturos de muitas espécies de primatas e talvez de todas, fragmentos de comportamento sexual, porém não funcionais, são manifestos, ocasional e primeiramente, em relação aos pais. Diz também que não é raro observar, em crianças de 2 ou 3 anos de idade, posições típicas do coito adulto, quando há muita excitação ao brincarem juntas. No entanto, nem o menino nem a menina, ao executarem esse fragmento do comportamento sexual pós-puberal, têm mais que uma vaga idéia da metafixada desse comportamento.

A razão que levou Freud a postular o complexo de Édipo como parte da teoria da sexualidade infantil foi a de explicar a influência do comportamento sexual infantil no comportamento sexual adulto e a ligação entre eles.

No entanto, para Bowlby (1984, p. 246),

“Na teoria psicanalista tradicional, a existência de tal ligação é explicada com base em que as duas formas de comportamento, infantil e adulto, são simplesmente diferentes expressões de uma única força libidinal. De acordo com esse ponto de vista, ligação e influência são consideradas axiomáticas; o que requer explicação são as diferenças entre as duas formas de comportamento. Na nova teoria [de apego], inversamente, são as diferenças entre as duas formas de comportamento que se consideram axiomáticas, e o que precisa de explicação é a ligação entre elas”.

Não é difícil observar o fato de que um padrão comportamental, como o de abraçar, por exemplo, é um componente de diferentes comportamentos instintivos, como o de posse, o de apego, o sexual ou, ainda, como sinal inibidor do comportamento agonístico alheio. Por isso, um sistema ativado, que regula um desses comportamentos, pode ativar outro sistema, que regula outro comportamento, estabelecendo uma ligação entre eles. Além disso, é possível que um mesmo componente, como o que citamos acima, possa participar predominantemente de um tipo de comportamento na infância e predominantemente de outro, posteriormente.

Para Bowlby (1984) há três razões para se manter a distinção entre os comportamentos de apego e o sexual, que são: (1) a ativação dos dois sistemas, que regulam esses comportamentos, varia independentemente um do outro ao longo do ciclo vital: o comportamento de apego plenamente funcional se estabelece bem cedo, atingindo logo sua máxima intensidade para ir declinando até a idade adulta, na qual apresenta-se normalmente em níveis pouco intensos, enquanto o comportamento sexual funcional se estabelece mais tardiamente, estando mais intensamente ativado após o início da puberdade; (2) as classes de objetos para as quais cada um desses comportamentos se dirige podem ser bem diferentes; e, (3) provavelmente, a fase sensível no desenvolvimento desses comportamentos ocorre em idades diferentes.

Embora a configuração do complexo de Édipo não dependa de um comportamento sexual plenamente funcional, mas basicamente da existência de desejos e de sentimentos eróticos (além dos agressivos), organizados em relação a uma figura incestuosa, isso parece não se instalar antes da segunda metade da infância, a menos que tais desejos e sentimentos sejam promovidos pelo ambiente.

Já na segunda metade da infância encontramos vários casos de inequívocos complexos edípicos; alguns com realização de coito. Porém, também nesses casos observamos a participação de outra pessoa, geralmente mais velha, na construção da situação edípica.

Consideramos o complexo de Édipo como uma estruturação psicopatológica quando há conflitos que se repetem cronicamente.

Por outro lado, as pressões socioculturais, desde os primeiros anos de vida, podem canalizar os desejos e sentimentos eróticos a figuras não-incestuosas, não se instalando o referido complexo.

Nessa perspectiva, não há desejos reprimidos, mas tão-somente manifestações eróticas dirigidas a figuras não incestuosas que, enfim, são figuras sexuais reais, capazes, per se, de mobilizar desejos libidinais.

Só deveríamos reconhecer o complexo edípico, segundo a própria definição de Freud, quando, entre os afetos, desejos e comportamentos experimentados em relação à figura parental, existissem os efetivamente sexuais ou libidinais (eróticos) e não os não-eróticos.

Em não se fazendo a distinção, que preconizamos, entre os afetos, desejos e comportamentos sexuais ou libidinais (eróticos) e os não-eróticos, o complexo de Édipo só pode ser considerado universal, “[...] já que toda relação familiar duradoura envolve afetos, desejos e comportamentos em relação a todos e a cada um de seus membros” (ELYSEU JR., 1996, p. 13).

Agora, voltando-nos para outra discussão, que afinal complementará a anterior, devemos entender que os comportamentos instintivos de apego e sexual só podem ser realizados se o indivíduo já dispuser da figura de relação; caso contrário, faz-se necessária a precedência de um comportamento, também instintivo, ao qual chamamos de posse (ELYSEU JR., 1998), para garantir a disponibilidade dessa figura de relação (figura de posse).

Quando estudamos a conduta animal, verificamos que os animais pouco ou nada podem fazer contra os parasitas, os efeitos climáticos e as limitações de espaço e alimento, de sorte que restam, como fatores de resistência ambiental, a predação e a competição intra e interespecífica.

Contra a predação existe o comportamento de fuga, o de congelamento, o de luta em defesa própria ou da prole e, segundo Bowlby (1984), também o comportamento de apego do indivíduo e o comportamento de cuidar da figura de apego. Mas qual tipo de comportamento existe para a realização das competições intra e interespecíficas? Se essas competições existem em função da posse de algo para usufruto próprio ou da prole, o tipo de comportamento é o de posse.

Para nós (ELYSEU JR., 1998), tal tipo de comportamento pode ser manifesto sob qualquer forma de se obter ou conservar o que é necessário à sobrevivência ou ao que dá prazer, inclusive lutando contra rivais, e sobre o qual a Etologia nos dá exemplos cabais: luta pela posse do território, da fêmea, do alimento etc.

Esse comportamento de posse, na forma de luta, faz parte do sistema agonístico que, segundo Vieira (1983, p. 92), “[...] engloba não só os comportamentos de agressão propriamente ditos, mas também todas as sinalizações e movimentos expressivos que passam a significar a agressão prevenindo a passagem ao ato agressivo”.

Por que o comportamento de posse na forma agonística, além de universal, é tão precoce?

Embora a reprodução, realizada pela conduta sexual, seja a única metafixada filogênica do organismo, este só pode realizá-la se estiver vivo.

Então, a conduta pela sobrevivência individual não só precede a conduta pela reprodução, mas também é mais urgente que ela, pois o animal desiste de uma iminente cópula se, no momento, passar a correr maior risco de morte.

A sobrevivência do animal depende de certas funções básicas: a respiração, a alimentação, a proteção, a afeição (basicamente por meio de contato corporal), a defecação e a micção. A primeira e as duas últimas são realizadas independentemente da mãe que, no entanto, é imprescindível para a alimentação, a proteção e a afeição, fatos esses regularmente observados nos mamíferos, especialmente na espécie humana.

A importância da alimentação para a sobrevivência é óbvia, de sorte que procuraremos ressaltar apenas a importância das outras duas.

A importância do fator proteção para a sobrevivência do indivíduo, com base no comportamento de apego dirigido a figuras de apego – que, afinal, são um tipo de figura de posse –, pode ser vista nos resultados dos experimentos realizados por Harlow (1970) com macacos rhesus.

O comportamento do macaco criado com uma “mãe” de tecido felpudo (não lactante), quando alarmado por uma situação que sinaliza grande aumento de risco, é buscar imediatamente essa “mãe” e agarrar-se intensamente a ela, o que não acontece se for criado com uma “mãe” lactante de arame. Quando o macaco é colocado numa sala estranha, com vários objetos desconhecidos, ele corre apavorado de um lado para outro, joga-se no chão de cabeça para baixo, segurando-a fortemente com as mãos e guinchando aflitivamente. Enquanto a presença da “mãe” de arame não o tranqüiliza mais do que sem ela, a “mãe” de tecido felpudo tem efeito tranqüilizante a ponto de permitir que ele apresente comportamentos exploratórios no ambiente, e serve de base segura à qual ele regressa a intervalos de tempo.

Diferentemente das freqüentes e indevidas comparações entre características psíquicas animais e humanas, as condutas de apego e exploratória, o sentimento de segurança e a reação de medo diante de situações que sinalizam aumento de risco são totalmente válidos por serem regularmente verificados, tanto no homem como em outras espécies, sob as mesmas circunstâncias.

A esse respeito, Bowlby (1984, p. 197-198) afirma que “[...] parece hoje indiscutível que o vínculo que liga a criança à mãe é a versão humana do comportamento comumente observado em muitas outras espécies animais”; diz, ainda, que se algo dá errado com crianças de 5 ou 6 anos, brincando entre si, elas se voltam logo para seus pais ou substitutos e procuram o contato imediato, se estiverem um pouco assustadas.

Stern (1991, p. 88) confirma que a tranqüilização da criança é mais fortemente realizada pelo contato corporal; diz ele:

“A mágica suprema do apego é o toque. E esta mágica entra pela pele. Para todos os primatas – chimpanzés, macacos, humanos – a posição final para o estabelecimento e a manutenção do apego é o contato ventral (peito contra peito, cabeça sobre o ombro e pescoço do outro)”.

A importância da afeição para a sobrevivência, dada pelo contato corporal carinhoso, pode ser vista nos resultados de experimentos anteriores de Harlow (1970) e os estudos de Spitz (1972) com crianças institucionalizadas.

Nesses experimentos de Harlow, os filhotes de macacos passavam mais de 60% do dia (24 horas) juntos de uma “mãe” de tecido felpudo, contra apenas 4%, quando a “mãe” era de arame, apesar de ser a única a fornecer alimento e, na estatística de Spitz, 37% (ou mais) das 91 crianças estudadas durante dois anos numa instituição, privadas de atendimento afetivo (carinho, conforto físico), foram levadas ao óbito, contra 0% das 220 crianças observadas durante quatro anos em outra instituição, que receberam esse atendimento.

Outros estudos confirmam a importância da afeição veiculada pelo contato corporal: Vieira (1983, p. 96) afirma que:

“Nos grupos naturais de Primatas, a incidência de comportamentos agressivos está na razão inversa da incidência do contato corporal e dos comportamentos de lustração, os quais são indicadores seguros das redes de afiliação emocional intragrupal e assumem uma função reguladora das tensões agonísticas”.

Estudos realizados por Tronik et al sobre rosto imóvel (apud BRAZELTON e CRAMER, 1992) confirmam as observações de Bowlby com crianças hospitalizadas: protesto inicial, tentativa de desligar-se do ambiente e, finalmente, autoconsolação dentro de um retraimento completo, que lembra o comportamento autista. Nesses experimentos, a mãe, após um minuto de ausência, quebra sua anterior interação com o bebê mantendo seu rosto imóvel; o resultado, ao final de três minutos, é o abatimento e retraimento do bebê.

Não é, então, como figura sexual (libidinal, erótica) que a mãe humana é a principal figura de posse do filho pequeno, mas sim como figura provedora de alimento, proteção e afeição; e é por esse alto valor psicobiológico de sobrevivência que a mãe tem para o filho que a interação com ela é um dos pontos básicos da formação e desenvolvimento da personalidade, normal ou patológica.

Em outras palavras, as tendências instintivas, muito intensas no início da vida (comportamentos filogênicos de posse, de apego, de contato corporal e alimentar muito ativados), não permitem que a figura de relação insatisfatória seja facilmente descartada. A criança fica à mercê do que diz o ditado: ruim com ela, pior sem ela, tanto que, antes de descartar completamente a figura humana, ela tenta substituições intra-específicas para manter a interação com ela. Mas, mesmo quando as figuras substitutas são nãohumanas, as tendências instintivas de afeição e busca de proteção permanecem intactas, como atestam as condutas carinhosas com animais e as condutas de apego dos adultos com os amuletos e, principalmente, das crianças com os objetos “transicionais”, postulados por Winnicott (1975) e referendados como objetos substitutos de apego por Bowlby (1984).

Da mesma forma que disputaram a posse das figuras humanas originais (pais), esses adultos e crianças disputarão a posse das figuras substitutas, caso surjam rivais, novos ou antigos.

Isso nada mais é do que o complexo fraternal, caracterizado como uma disputa entre rivais da mesma espécie, seja um irmão, seja um dos pais, seja outra pessoa, pela detenção de uma figura de posse, qualquer que seja esse bem.

Cabe finalmente observar que, na situação de rivalidade e nos resultados dela decorrentes, existem, entre outros afetos, desejos e comportamentos de ciúme e de inveja, que passamos a tratar.

A inveja e o ciúme foram estudados por Klein, segundo Spillius (1995), dentro de um referencial pulsional-objetal, no qual as pulsões estão intrinsecamente ligadas a objetos. Elas se expressam por meio das phantasias, sendo o fantasiar uma capacidade inata e o conteúdo das fantasias não inteiramente dependente das experiências com objetos externos, embora seja influenciado por elas.

Klein (1974) afirma que a inveja primária, mais antiga que o ciúme, é uma phantasia sádica de impulsos orais e anais dirigidos a um objeto parcial – o seio – que não só fica despojado do que possui de bom, como também recebe toda a maldade. Entende ela que isso se deve ao ego, que a serviço da pulsão de vida desvia a pulsão de morte para o seio externo para livrar-se dessa ameaça interna.

Diz que o ciúme, por sua vez, se baseia no amor que o indivíduo sente que lhe é devido e que foi ou será tirado pelo rival. Diz também que ele pode ser usado, tal como a voracidade, como defesa contra a inveja.

Segal (1966) traduz melhor o pensamento kleiniano dizendo que o ciúme visa à posse do objeto amado e à exclusão do rival; e que a inveja (“má”) visa a estragar a bondade do objeto, quando não consegue tê-la tanto quanto o objeto (inveja “boa”).

Não consideramos a inveja “boa” como inveja, porque não expressa o desejo de destruir, mas apenas o desejo de ter um bem igual ao do outro, sem prejuízo para ele.

Além disso, enquanto, para Klein (1974), a inveja é uma expressão pulsional sádica não dependente da estimulação externa para a sua geração, para nós ela é a expressão de afeto, desejo e comportamento agressivo gerados pelo processamento das informações – o bem do outro que desejo, mas que não tenho ou que é melhor do que aquele que tenho – por sistemas neuropsíquicos. Na medida em que tais sistemas estão sujeitos à ativação e à inativação pelas informações processadas, as manifestações invejosas, assim como as ciumentas, são, normalmente, episódicas, a menos que esses sistemas estejam ativados cronicamente.

Sendo a inveja, para Klein (1974), uma expressão da pulsão de morte, ela é necessariamente má, enquanto, para nós, a inveja, assim como o ciúme, tem valor de sobrevivência, na medida em que, na sua manifestação, está subentendida a competição intraespecífica: a vantagem biológica da tendência ciumenta é manter a posse de um bem para usufruto pessoal ou da prole; a vantagem biológica da tendência invejosa de destruir o bem do outro está no fato de que o sucesso alheio pode implicar até a não-sobrevivência do indivíduo.

Para nós, afinal, o ciúme é um sentimento de detenção pela figura de posse, quando surge um rival ameaçando tomá-la para si; o desejo ciumento é a tendência de manter a posse (metafixada) da figura de posse, na disputa com o rival; e o comportamento ciumento é qualquer conduta no sentido de manter a detenção da figura de posse, quando há rivalidade.

A inveja é o sentimento de ódio ao rival pelo privilégio da posse ou do usufruto da figura de posse ou, ainda, pela perspectiva disso. O desejo invejoso é a tendência de destruição (metafixada), em relação ao rival, do privilégio da posse ou do usufruto da figura de posse ou, ainda, de impedi-lo desses privilégios. O comportamento invejoso é qualquer conduta no sentido de destruir o rival, os seus privilégios ou de impedir que os tenha.

A tendência instintiva de posse, já presente no complexo fraternal original, constitui a fonte primária (motivação) da manifestação do ciúme e da inveja na medida em que, neles, se vivenciam respectivamente as seguintes situações básicas de interação: (1) a ameaça de perda da figura de posse para o outro e (2) a do sucesso alheio ou a perspectiva disso em relação a essa figura.

A predominância dessas situações tende a desenvolver, respectivamente, o padrão de posse ciumenta e outro, de não-posse, o padrão invejoso; mas, mesmo que não se atinjam tais estruturações, muitos padrões de afeto, desejo e comportamento são estabelecidos. Além do ciúme e da inveja, podem existir sentimentos de vitória (alegria) e de autoconfiança ou de derrota (tristeza), de ansiedade etc., e comportamentos de prepotência ou de retraimento ou de fuga etc.

Situações posteriores, equivalentes às do complexo fraternal original, mobilizam a transposição (ELYSEU JR., 1999) desses padrões, que podem explicar claramente a forma, atual e potencializada, da conduta apresentada pelo indivíduo. Segundo Vieira (1983, p. 110-111):

“[...] experiências precoces, sofridas eventualmente durante períodos sensíveis da ontogênese podem decidir dos comportamentos agonísticos futuros do seu protagonista. Tanto os valores éticossociais preponderantes na própria cultura como os sinais agonísticos dos pais face à criança podem desempenhar neste plano um papel influente, e decidir de certos traços de caracter, típicos de uma cultura ou de uma família determinada, e informar os comportamentos agonísticos de que o sujeito em causa vai mais tarde dispôr, em resultado de quase-imprintings, bioculturais e biodinâmicos”.

 

Conclusões

Pelo exposto, o complexo fraternal deve ser o conceito psicanalítico básico para explicar as relações nas quais os rivais disputam, permeados de afetos, desejos e comportamentos ciumentos e invejosos, a detenção de uma figura de posse, pelo valor que ela possa ter para eles.

Assim, esse conceito pode e deve ser usado para explicar também a relação dos rivais pela posse de uma figura sexual, porém não-incestuosa, já que nesse caso caracterizaria o complexo de Édipo.

Evidentemente, pela importância que os pais têm para a criança e pela existência da sanção ao incesto, a situação edípica é muito mais complexa que a situação de rivalidade fraterna, apesar de que os afetos, desejos e comportamentos básicos sejam os mesmos em ambas as situações.

Assim estabelecido em novas bases referenciais, o complexo fraternal é um conceito de grande abrangência na vida humana, na medida em que reflete uma conduta instintiva de posse, contextualizada nas mais diversas situações de disputa em relação a quaisquer bens, o que garante a sua universalidade entre os indivíduos.

Embora o complexo de Édipo, nessa nova visão, se baseie nessa mesma conduta instintiva de posse, ele é um conceito restrito à situação de disputa de uma figura sexual incestuosa. Ademais, a sua ocorrência é não universal, na medida em que a cultura tende a condenar o incesto e a promover as relações não-incestuosas.

Além disso, a manifestação clara e específica dos afetos de ciúme e de inveja nas situações de rivalidade sobre posse/não-posse de um bem, seja ele uma figura humana, seja um privilégio, seja a perspectiva dele, nos permitiu compreender muitas situações que aparentemente nada tinham a ver com o complexo fraternal.

Por exemplo, a exigência de trabalho, de responsabilidade etc. que um indivíduo faz ao outro por ele ser “folgado”, irresponsável etc.

Entendemos que o fato de o outro ser “folgado”, irresponsável etc. aos olhos do indivíduo é um privilégio inacessível a si próprio em função da sua superestruturação mnêmica para ser trabalhador, responsável etc., e, por isso, inveja o outro na forma de exigência de que ele se enquadre na sua “lei”.

Permitiu-nos também compreender os afetos, desejos e comportamentos ciumentos e invejosos como manifestações instintivas (filogênicas) e, portanto, com valor de sobrevivência.

Finalmente, nos levou a delinear, como dito antes, dois dos seis tipos de padrão de posse e de não-posse que estamos estudando atualmente e que temos identificado em muitos dos nossos pacientes, ou seja: o padrão de posse ciumenta e o padrão (de nãoposse) invejoso.

 

Referências

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BRAZELTON, T. B.; CRAMER, B. G. As primeiras relações. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 287 p.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Av. Dr. Moraes Sales, 1610 / 31
13010-002, Cambuí – Campinas – SP
E-mail:elyseu@lexxa.com.br

Tramitação
Recebido em maio/2003
Aceito em outubro/2003