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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.6 n.1 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Narrativa de mulheres vítimas de violência: passos do processo

 

Narratives of women victims of abuse: steps in the process

 

 

Maria Renata Coelho Machado

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa a apresentar uma discussão de atendimento em estágio supervisionado de Psicologia Jurídica, e seus resultados, por meio da leitura de narrativas de mulheres atendidas, vítimas de maus tratos, recolhidas em casa-abrigo. O processo de desenvolvimento do modelo de atendimento também é discutido concomitantemente à análise das narrativas. O modelo de acolhimento proposto tem aqui sentido específico relativo à escuta acolhedora e respeitosa, assim como caracteriza trabalho inicial que objetiva primordialmente a postura inclusiva como forma de atendimento. O referencial que norteou o atendimento foi de base construcionista, utilizando aspectos da abordagem narrativa. A ênfase da abordagem narrativa focaliza-se na competência da pessoa para ampliar suas possibilidades existenciais, por meio da revisão de suas idéias sobre si mesma, seus problemas, relacionamentos e possibilidades que a vida oferece.

Palavras-chave: Violência familiar, Mulheres espancadas, Psicologia Jurídica.


ABSTRACT

This article strives to present a discussion on the treatment, which occurred under a supervised internship for Legal Psychology, and its results, of women, victims of abuse and being cared for (residing) in shelters, through reading their narratives. The process of developing the treatment model is concomitantly discussed with analysis of the narratives. The model for providing support to the women has specific meaning related to the posture of receptive and respectful listening, just as the initial approach is characterized by the objective to implement an inclusive posture. The reference that guided the treatment was of systemic theoretical basis, using aspects of the narrative approach. The emphasis of the narrative approach focuses on a personal competence to broaden her existential possibilities through revising the ideas about herself, her problems, relationships and possibilities that life offers.

Keywords: Family violence, Battered females, Legal Psychology.


 

 

Introdução

Conforme documento da União de Mulheres de São Paulo (1999), só em 1993, na Conferência Mundial de Viena, os direitos das mulheres foram reconhecidos como direitos humanos.

O mesmo documento apresenta dados de pesquisa que demonstram que, em cada 10 mulheres assassinadas em 15 estados brasileiros, 8 foram pelos próprios parceiros, maridos ou namorados. No Brasil, a cada 4 minutos uma mulher é espancada por seu parceiro. No final da década de 80 e segundo dados do IBGE, 63% das vítimas de agressões físicas ocorridas no espaço doméstico no Brasil eram mulheres.

Tratada na intimidade, na condição de minoria (que não é), a violência contra as mulheres muitas vezes é vista como fenômeno isolado e restrito a “certas” mulheres. Somam-se à violência aspectos familiares e sociais, mas aí reside o risco do esquecimento de que a discussão fundamental trata da violação dos direitos humanos.

As políticas públicas de forma incipiente se voltam para mulheres vítimas de violência na área policial, que ainda aborda o fenômeno restrito à relação do âmbito do crime e punição, longe de trabalhos em que a identidade feminina possa ser reconstruída. Acredito que, de certa forma, sistemas construídos essencialmente nas características de gênero, como o caso do sistema judiciário e policial, tratam a mulher vítima como exceção à regra e apenas iniciam o treino de um olhar inclusivo.

Não só como uma questão jurídica na violação dos direitos humanos e de cidadania, a violência contra a mulher merece ser também abordada como um problema de saúde. Como saúde, entenda-se saúde integral, incluindo aspectos biopsicossociais na abordagem desse tipo de violência.

Apresenta-se aqui uma discussão a partir de dados de atendimento em estágio supervisionado de Psicologia Jurídica, e seus resultados, por meio da leitura narrativa das mulheres atendidas. As falas são propositalmente, por motivo ético, deslocadas do corpo da fala original e formam um modelo “ficcional”, de uma fala pertencente às pessoas atendidas, mas não referente particularmente a alguma. Os atendimentos individuais e em grupo contemplaram mulheres abrigadas em órgão de proteção e assistência a vítimas de violência doméstica e correndo risco de vida.

O estágio supervisionado de Psicologia Jurídica tem como função o atendimento a pessoas no sistema judiciário, em diferentes condições, tanto em instituições relacionadas à reabilitação quanto nas de acolhimento. Um dos focos privilegiados pelo atendimento foi a atenção à família, que também ocorre da forma possível em diferentes instituições e de distintas formas de atendimento no estágio citado.

Sendo a violência condição de desestruturação da pessoa sob o aspecto físico e emocional, colocada em situação de desamparo e abandono, optou-se pelo acolhimento como característica básica no atendimento. O acolhimento nomeia e caracteriza a fase inicial de atendimento, mas é também condição que perpassa todo o processo, como um conjunto de atitudes requeridas das estagiárias junto à clientela atendida.

Assim, detectada a situação inicial de desamparo e abandono sentido pelas mulheres, optou-se por um modelo que chamamos de “Acolhimento”, caracterizado por uma escuta irrestrita por parte das estagiárias, visando a uma qualifi cação constante dos sentimentos apresentados. A partir do reconhecimento e aceitação de si, esperou-se um fortalecimento das mulheres como pessoas, por meio da possibilidade da apresentação de narrativa atualizada em que a história possa aparecer ampliada em possibilidades.

O referencial que norteou o atendimento foi construcionista, utilizando aspectos da abordagem narrativa.

Pela própria condição do estágio, tratando-se de primeira experiência na temática, optou-se por uma estruturação gradativa dos atendimentos, à medida que as necessidades fossem surgindo.

Assim a primeira função era a escuta continente, que visava a qualifi car o estado de risco e sofrimento das mulheres, como um dado de realidade, a partir do qual se poderia seguir.

Os temas eram livremente acolhidos durante as sessões, mas, a partir da catarse própria dos primeiros atendimentos, seguiu-se a tentativa de fazer progredir o discurso em busca de uma nova narrativa. À medida que havia permissão para ser, inclusive no papel de vítima, abria-se a oportunidade, num ambiente de acolhimento, para que novas histórias pudessem ser ao menos delineadas.

Assim, o atendimento teve um teor organizador, demonstrado na fala dos fatos e sentimentos relacionados dessas mulheres.

 

Revisão teórica

Por certo uma das grandes questões da atuação da psicologia diz respeito às bases epistemológicas de sua ação, que conferem sustentação a um corpo constituído como referencial de dada prática.

O enfoque aqui apresentado é construcionista social, na medida em que entende cada qual como construtor de sua realidade, o que jamais ocorre de forma isolada, mas em uma rede de relações, no contexto social a que se pertence.

Colocado no terreno da psicologia clínica, o construcionismo social é uma das bases epistemológicas para a abordagem sistêmica.

Conforme Grandesso (2000), é por meio da abordagem sistêmica em psicologia que ocorre a mudança de foco do indivíduo para os sistemas humanos, ou seja, do intra-psíquico para o relacional. Inerente à própria prática sistêmica, surge a ênfase nos sistemas humanos como sistemas lingüísticos. A realidade é concebida nessa abordagem como a representação trazida pela pessoa, representação essa comunicada, via de regra, pela fala. Podemos dizer que a realidade construída de cada um é um conjunto de histórias, apresentadas como narrativas, que dão valor e sentido ao existir. Conforme Bruner (1994, p. 53), “as histórias criam uma realidade própria” na vida.

Resumindo, para Grandesso (2000, p. 201), “as histórias representam, assim, o resultado de empenhos para dar um sentido à vida, organizando a experiência em seqüências temporais, confi guradas em relatos coerentes sobre nós mesmos e nosso mundo”.

Para a autora, as narrativas se constroem em uma seqüência linear no tempo, por meio da memória e da prospecção, “brindando a pessoa com um sentido de continuidade da existência” como “um marco referencial para interpretar sua cotidianidade e construir seus futuros possíveis”.

As pessoas organizam-se em um sistema de signifi cados, surgidos, mantidos e modifi - cados na convivência e diálogo com os outros. Os signifi cados apresentam-se por meio da linguagem como narrativas. As narrativas têm então função organizadora da experiência de cada um. As histórias são compreendidas como se “estivessem no tempo gerúndio” (aspas da autora), sempre em movimento e abertas à modificação.

Para Derrida (1973), a realidade se apresenta por meio de uma história única e particular, e a complexidade de seu percurso se apresenta em lacunas, questões e reticências, que tornam necessária e possível sua constante alteração. Para o enfoque construcionista social, realidade é aquela apresentada pela pessoa que conta sua história, por isso cada qual trará sua leitura do mesmo fato.

Conforme Freedmann e Combs (1996), a terapia narrativa é uma abordagem que considera aqueles que buscam por terapia como pessoas lidando com problemas, jamais problemáticas ou identifi cadas com um rótulo relativo ao problema que trazem. Sua ênfase está no conjunto de competências da pessoa para ampliar suas possibilidades existenciais, por meio da revisão de suas idéias sobre si mesma e seu trato com questões cotidianas. Um de seus pressupostos é o de que vivemos e nos construímos como pessoas por meio das histórias, e que estas estão sempre abertas para serem re-autoriadas, re-escritas ou atualizadas. A Terapia Narrativa trabalha de modo a separar a pessoas das narrativas saturadas de problemas, compreendendo a identidade como um projeto sempre em aberto, construído nas relações com redes que compreendem outras pessoas, a família e as instituições.

Compreendida a violência como construção multideterminada e as narrativas pessoais como construídas por meio de crenças e valores, pode-se supor um vasto trabalho a ser abordado de construção narrativa para apreensão do contexto amplo e real do fenômeno e a partir daí o abrir-se para possibilidades outras de desconstrução e abertura de espaços para narrativas libertadoras, re-autoriadas, como já citado.

Aldrighi (2001), em estudo sobre violência no casal que discorre sobre a necessidade de abordar o casal para se entender a violência conjugal, aponta para o risco de que se enfoquem somente os resultados da violência doméstica, mas não o processo.

Pitman (1987) afi rma que é possível compreender a constituição, organização e processo da violência conjugal (no caso enfocando o casal) por meio da seqüência em que os fatos são narrados.

Para Aldrighi (2001, p. 81), corroborando Pitman (1987):

"A desconstrução do momento violento, a partir de novas descrições, fragmentos de antigos e novos conflitos, idéias confusas, memórias dolorosas, todos atuando como explosivos, que fazem parte do ato agressivo, têm a possibilidade de serem rearranjados, redefi nindo outras possibilidades de resolução".

Assim, o enfoque citado possibilita a abordagem narrativa, ou seja, uma forma de atuação que permita à pessoa apresentar uma leitura signifi cativa narrada de sua vida, assim como aponta a direção de saídas, transformação e mudança.

 

Metodologia

Embora num período curto de três meses de atendimentos semanais, foi possível delinear aspectos da vivência de violência das mulheres atendidas, assim como pudemos vislumbrar o início do processo, com as mulheres na condição desorientadora de vítimas, chegando a dados de compreensão de aspectos mais amplos da problemática, em que são menos vítimas e passam a vislumbrar possibilidades de atuação1.

Sendo a violência condição de desestruturação da pessoa sob aspecto físico e emocional, colocada em situação de desamparo e abandono, optou-se pelo Acolhimento como característica básica no atendimento. O Acolhimento nomeia e caracteriza a fase inicial de atendimento, mas é também condição que perpassa todo o processo, como um conjunto de atitudes requeridas das estagiárias junto à clientela atendida.

 

Discussão de resultados

A análise dos relatos que se seguem diz respeito ao atendimento inicialmente individual e depois em grupo.

O modelo de atendimento individual partiu da suposição, alimentada por experiências anteriores, de que o caráter institucional em geral suprime a condição individual das pessoas como sujeitos e cidadãos, na medida em que o atendimento foca populações e clientelas.

Assim, visou-se ao resgate da identidade dessas pessoas, um espaço para que se apresentassem em sua dimensão pessoal.

Depois de fortalecidas como individualidades, algumas mulheres sentiram-se aptas a partilhar em grupo sua problemática similar em busca de soluções aproximadas. A função dos primeiros encontros com as mulheres foi fundamentalmente catártica e teve como objetivo fundamental a escuta compreensiva, compreendendo sua rede de signifi cados, sua verdade construída.

O primeiro momento permitiu que a dor se ampliasse e que os machucados fossem contados e mostrados. Convive-se, nesse primeiro momento, com a angústia de não propor, nem esperar, mas ouvir.

Compreende-se que o efeito de ouvir permita que a dor seja trazida e exposta. Quando exposta, torne-se conhecida e, quando conhecida, passível de ser manejada.

Os primeiros encontros são marcados pela exposição das feridas. As mulheres relatam como eram maltratadas, assim como os maus tratos extensivos às crianças. Mostram os machucados, as marcas no corpo, reportam-se a eventos passados. Contam sua trajetória de idas e vindas, ameaças cumpridas e não cumpridas de ambas as partes no casal, saídas de casa, acolhimentos, abandonos.

Junto à via crucis dos eventos violentos, as mulheres vão expondo seu instrumental de resiliência, vão desenhando sua rede suportiva formada por mães, irmãs e até ex-mulheres do próprio companheiro, também vítimas de violência. Não por acaso, via de regra, a rede é feminina. Apresenta-se aí outra função do início do atendimento. Ao falarem, as mulheres se ouvem e a narrativa se torna aos poucos mais organizada. As estagiárias não “aconselham”, como algumas esperavam, mas ampliam algumas falas, repetindo-as. As falas ampliadas são as que demonstram a potencialidade das narrativas. Mesmo que não fi que claro ainda, as autorias das histórias se iniciam, auxiliadas pelas estagiárias. Às vezes como “boas ouvintes”, tudo o que fazem é permitir a narrativa, não há narrador sem ouvinte. Podemos até supor, no caso, que bons ouvintes acabem por provocar melhores histórias.

Apercebidas de si com mais clareza, as mulheres movem o olhar para o entorno. Vão do estar para o lugar. Um certo apaziguamento interno permite a audição dos ruídos externos. O assunto que vem à baila é a condição de abrigamento. Um dos aspectos abordados é de sentir-se acolhida e protegida, algumas vezes como único destino, compreendido como “um lugar que proporciona paz, tranqüilidade e alívio”.

O sentimento inicial de solidão vai sendo substituído. Aos poucos algumas fazem amizade, “podem conviver com outras mulheres”. A identifi cação passa a ter uma função positiva: agora podem se olhar e trocar sentimentos e informações. O abrigo não oferece atividades além das obrigações de cuidar, abaixo relatadas, mas algumas “se reúnem para rezar à noite”.

A situação de cerceamento da liberdade é o primeiro impacto contraposto ao alívio de estar por certo tempo a salvo e fora do alcance do agressor. Sentem-se “trancadas, como prisioneiras”, sem a liberdade de ir e vir. Paradoxalmente “estão presas” (aspas da autora) enquanto seu agressor goza de liberdade. Também se queixam da convivência imposta: convivem com estranhos, habitam comunalmente um local que lhes é estranho, fazem tarefas que não elegeram. Privadas da liberdade, são privadas da vontade e da escolha na instituição que estabelece regras, que “tem atividades obrigatórias a fazer e “é um local muito fechado”. Esse é um dos aspectos que exacerba a condição de vítima, que fica subordinada ao sistema imposto. O abrigo, por vezes, atua como mais um aspecto somado à condição de subordinação dessas mulheres.

De novo terão de se adaptar ao destino que não escolheram. A condição de abrigar é cumprida, mas o abrigado é compreendido em aspecto estrito, no sentido mais literal como se o cuidado de que necessita o reduzisse à condição da aceitação incondicional da ação do outro.

Essas mulheres são atendidas e tratadas isoladamente e assim atuam, dando continuidade ao exercício de solidão iniciado na vergonha do espancamento e na marginalidade de ser vítima. As mulheres ficam tristes, “tendo que fi car em lugar que não é sua casa”. Desalojadas de seus lares, ficam mais à mercê da sensação de abandono. Às vezes, não se sentem protegidas, mas foragidas. Por certo, o abrigo é um lugar de passagem, “toda hora entra e sai gente”. Mas não parece fácil ser um ser de passagem e, ao mesmo tempo, isolado de contato externo. Como vítimas são pacientes “os que sofrem a ação de algo ou alguém” (aspas da autora) e como pessoas também se mostram inicialmente cordatas e pacientes, como que obedecendo ao que é esperado delas por aqueles que lhes fornecem apoio. Assim como nos hospitais espera-se contar com pacientes, recolhidos ao anonimato e referidos como a doença que portam, nos centros de acolhimento espera-se a paciência própria dos acolhidos e contemplados nos momentos de menos valia, como “um pouco que se dá a quem nada tem”.

Evita-se permitir emergir raiva ou qualquer sentimento correlato à violência, numa visão mágica, em que a violência é colocada como um mal contagioso, em uma visão polarizada em que “os maus agridem e os bons apanham”.

As mulheres queixam-se de se sentirem “humilhadas, mais do que se estivessem fora do abrigo”.

Iniciam-se os atendimentos em grupo à medida que as mulheres parecem ter esgotado a verbalização inicial de dor e reclamações. Conclui-se que já podem dividir informações de forma mais ordenada e que o grupo tornaria mais forte a identificação e mais ricas as discussões. Vai surgindo uma narrativa também coletiva.

Aos poucos as narrativas vão se transformando. É comemorada a permissão para se apresentarem na real dimensão de quem são. A raiva que aparece forte inicialmente pelo agressor, depois pelo abrigo e pelas condições de abrigamento (sem que se retire a legitimidade dos fatos), vai aos poucos dando lugar a possibilidades concretas. As queixas passam também ao caráter da concretude, as abrigadas reclamam da comida e do que falta para as crianças, como fraldas, brinquedos e comida adequada.

Alguns fantasmas de dissipam, não teriam que “dormir nuns colchões no chão”, como previram, também a “comida não era sempre a mesma”. Por outro lado, as expectativas não cumpridas em relação ao abrigo vão gerando tímidos movimentos e novas elaborações.

Nesse momento, as mulheres pedem e pensam junto. Muito pouco de concreto poderá ser feito, além de apontar que já trilharam parte do caminho, estão mais fortes e têm mais clareza do que vêem. O aturdimento da dor presente nos primeiros encontros dissipouse no veio catártico. O resultado do atendimento caracterizado pelo ouvir continente se concretiza: as mulheres puderam falar da dor do espancamento e do incômodo do signifi cado da condição de abrigamento.

Como um caminho do meio, como parte da solução para deixar o abrigo, os parentes são acionados para dar guarida, enquanto não vem o trabalho e uma nova casa para morar, já que um novo endereço é imprescindível para que não sejam localizadas pelo agressor. Querem trabalhar, compreendendo o trabalho como necessidade e fortalecimento, na medida em que muitas fi caram na condição de vítimas por muito tempo por dependência financeira. Independência é compreendida como fator importante contra a ameaça de estar na condição de vítima.

“Ter liberdade ou “ser livre” é “livrar-se do passado” e livrar-se do passado é “sair da antiga condição”.

A busca da rede é condição importante, por intermédio da família, da igreja, de relações de trabalho, incluindo o trabalho informal.

Conseguem pensar no futuro, um tempo que ficou suspenso, quando a presença de dor paralisou o tempo e retirou quaisquer possibilidades de esperança. De sobreviventes, que inicialmente apenas se percebem como tendo saído vivas da violência que sofreram, as mulheres agora vão se apropriando de novo de suas histórias. As narrativas projetam uma história: elas vão viver em paz, os fi lhos retornarão à escola, vão tentar alugar ou até comprar uma casa para viver em segurança, porque vão trabalhar. Aos poucos a realidade eleita vai ampliando a narrativa; para que elas possam trabalhar, seus filhos irão para a creche. Precisam ser alfabetizadas, e se preparar melhor para ter um emprego também melhor, mas o esforço é traço integrante do perfil da sobrevivente, “ter muita força de vontade e ser esforçada” é parte do sucesso na empreitada.

As mulheres descobrem o revés da culpa por terem sido vítimas: o potencial por terem sobrevivido, não só no sentido lato da palavra, mas emocional e psicologicamente. Se ainda podem cuidar de si e dos filhos, então estão, agora, em suas próprias mãos: apropriação.

Outra narrativa aparece, no início, quase sussurrada, como se fosse proibida, as mulheres sentem falta de um companheiro. De certa forma, inicialmente as mulheres ficam contrapostas aos homens numa narrativa inicial, ainda bastante rasa, de que os homens batem e as mulheres apanham, eles são os agressores e elas, as vítimas. Assim, a condição de mulher não aparece nas falas, porque o discurso legitimado pela instituição é de qualificação da vítima e punição do culpado. Aos poucos as mulheres vão ampliando sua visão e reconhecem seus sentimentos. Não aparecem as falas de voltar para o marido agressor, embora algumas voltem. Como mulheres, já podem sonhar com um novo companheiro, um que “trate com carinho”, “que não bata em mulher”, embora a história pessoal lhes tenha ensinado que “é raro um homem que não é bruto com mulher”.

 

Considerações finais

Conforme o esperado, a partir da atitude de acolhimento, mostrou-se o incentivo à construção narrativa, como instrumento facilitador do surgimento de novas autorias, ou seja, de alguns outros caminhos e da possibilidade de escolha, oposta à desorientação da narrativa imobilizante das “vítimas”. A fala das mulheres e o delineamento dos atendimentos progrediram no sentido de gerar o poder e a possibilidade de novas histórias, a partir de novas narrativas. Viu-se também nessa experiência um trato progressivo das expectativas entre atendentes e atendidos, no sentido de gerar a co-construção paulatina do processo diante das possibilidades de ambos os lados.

 

Referências

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UNIÃO DE MULHERES DE SÃO PAULO. Violência contra mulheres, comentários sobre políticas públicas. São Paulo, 1999.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua da Consolação, 896 – Prédio 14 – 1o andar
01302-907, São Paulo, SP, Brasil
E-mail:renapin@uol.com.br

Tramitação
Recebido em fevereiro/2004
Aceito em fevereiro/2004

 

 

1 A autora se responsabiliza pela realização do trabalho dentro das normas éticas exigidas.