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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.6 n.2 São Paulo dez. 2004

 

ARTIGO

A psicanálise interessa ao estudo da cognição?

 

Does psychoanalysis interest to the study of cognition?

 

 

Carla Laino Cândido

Universidade Anhembi Morumbi

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de Freud o corpo assume uma nova configuração e a sexualidade instala um promissor campo teórico de indagação sobre o cérebro. Articulado com a teoria dos sistemas que se auto–organizam, o conceito freudiano de pulsão se constitui numa ferramenta conceitual com poder de auxiliar a Ciência Cognitiva nas pesquisas sobre mente humana e cognição. Nesse artigo, focamos quais são as contribuições do conhecimento  psicanalítico e identificamos os pontos críticos, limites e possibilidades de uma futura interdisciplinariedade no campo da filosofia da mente.

Palavras-chave: Psicanálise, Neurociências, Ciência cognitiva, Cognição, Pulsão.


ABSTRACT

Since Freud, the body assumes a new configuration and sexuality opens up a promising theoretical field of inquiry into the brain. When combined with the theory of self organizing systems, the Freudian concept of drive becomes a useful conceptual tool in Cognitive Science to study the human mind and cognition. This paper focuses on the contributions of the psychoanalytic knowledge and identifies the critical points, limits and possibilities of a potential interdisciplinary in the field of the philosophy of the mind.

Keywords: Psychoanalysis, Neurosciences, Cognitive science, Cognition, Drive.


 

 

Introdução

A experiência cognitiva

Ainda não sabemos ao certo como o cérebro consegue converter padrões neurais em padrões mentais, mas, à semelhança de Damásio (2000), Putnam (1998), Varella, Thompson e Rosh (1993) e Searle (1995), colocamo-nos em acordo com a idéia de que o cérebro não registra o mundo externo como uma fotografia tridimensional, mas constrói uma representação interna dos eventos físicos. Refere Spink (1996) que, quando elaboramos um conhecimento, estamos construindo um objeto original e o mundo surge co–criado na interação com o ambiente, ou, conforme Najmanovich (1997), é um mundo que convocamos a ser em nossa experiência interativa com o que está fora, mas não separado de nós.

Nesse mundo, definido como enactuado, a percepção ocorre como um item intencional que implica a reestruturação de todo o sistema mental (MATURANA; VARELLA, 1987). Daí a representação surge como uma prática. Nesse sentido, qualquer produção de conhecimento ocorre como uma co–emergência do fenômeno estudado e de seu observador. A questão mais premente da ciência neural cognitiva é a de explicar esse processo (KANDEL, SCHWARTZ; JESSEL, 1997).

O fato de o mundo não ser independente de nosso conhecimento permite buscar uma via intermediária entre a cognição como recuperação de um mundo externo já dado (realismo) e como um mundo interno igualmente já dado (idealismo). Esse caminho dribla a lógica de interno–externo: cognição, em vez de uma recuperação ou projeção, surge como uma ação corporizada (NAJMANOVICH, 1997). A complexidade de padrões observados que resulta dessa experiência altera não apenas a força das conexões preexistentes no cérebro, mas constrói a própria arquitetura da rede neuronial (BEER, 1995).

Nosso objetivo consiste em esclarecer dois pontos sobre essa concepção de cognição: primeiro, mostrar que a Ciência Cognitiva ainda descarta a cognição como experiência, e segundo, por meio do diálogo com o conhecimento psicanalítico, apontar a importância dessa dimensão nas pesquisas sobre a mente humana. Naturalmente, as diferenças entre as concepções psicanalíticas e as da Ciência Cognitiva sobre o assunto serão pontuadas.

 

Revisão teórica

Cognição na Ciência Cognitiva

O modo específico de viver a experiência subjetiva é caracterizado, atualmente, pela consciência psicológica do “eu” (BEZERRA, 1989). A concepção de sujeito cognoscente capaz de encontrar e de dizer a verdade sintetiza o apogeu do pensamento neopragmático atual (ROUDINESCO, 2000). Essa idéia está na base de um forte conjunto de crenças que os indivíduos têm sobre si próprios e funciona como uma espécie de matriz de sentido à qual o homem moderno refere seus atos, sentimentos, angústias e suas ciências.

A perspectiva da Ciência Cognitiva está, a nosso ver, apoiada sobre essas duas certezas: a visão materialista do fazer científico e o “eu consciente” como centro da produção intelectual. Em função disso, a cognição vem sendo pensada como o conjunto de propriedades de uma rede de neurônios interconectados, sem diferença de essência entre essas propriedades e as de qualquer sistema de quaisquer elementos interconectados de maneira similar (ZIGMOND, 1999). Termos como “intenções"” e “crenças” tornam-se desnecessários ao estudo científico da cognição; os processos mentais são estudados em nível das estruturas cerebrais, dispensando a construção de modelos de representação mental (COELHO, 1993).

Entretanto, mesmo que limitemos a cognição humana ao processamento de informações, como faz o conexionismo (IMBASCIATI, 1998), ainda nos resta um problema: mostramos a capacidade que uma rede tem de produzir lógica, mas não conseguimos demonstrar como uma codificação pode receber uma significação em termos de representação (TUCKER & LUU, 1998). Ou seja, a dificuldade central da Ciência Cognitiva reside em explicar como um sinal enviado por um neurônio pode representar uma proposição sobre o mundo.

E é nesse momento que não podemos prescindir da idéia de cognição como uma ação corporizada, pois estaremos descartando elementos teóricos fundamentais na compreensão dos processos cognitivos: o qualia e a intencionalidade.

Com o conceito de sensível do corpo, a Psicanálise instala um novo campo de indagação sobre a cognição, enfatizando que a constituição de uma realidade psíquica não pode ser reduzida ao nível neurofisiológico que a originou, nem tampouco ser limitada a um lugar – o cérebro. Vejamos como surge esse “abalo paradigmático” (CÂNDIDO, 2002) no estudo da cognição.

 

Corpo e cognição na Psicanálise

O binômio “codificação–significação”, do ponto de vista psicanalítico, é considerado um problema-chave na compreensão da cognição e não deve ser reduzido ao trabalho cerebral, mas, sim, remetido à desnaturalização do corpo biológico operada pela pulsão (BROOK, 1998). Estabelecer o sensível do corpo como novo lócus conceitual (BEIVIDAS, 1996) ajuda-nos a esclarecer essa questão.

Segundo Laplanche (1992), podemos buscar a origem do sensível do corpo na relação mãe–bebê, pois o seio inunda o recém-nascido com uma energia não-qualificada e proporciona uma segunda satisfação que é de natureza sexual (GARCIA–ROZA, 1995). Nesse primeiro momento, o bebê, desprovido de linguagem, fracassa parcialmente ao tentar simbolizar a excitação “não–qualificada”. Esse remanescente excitatório (BLEICHMAR, 1993), que nomeamos de pulsão, funciona como um “campo de força”, que não pode ser evacuado pelo corpo em virtude de não pertencer exclusivamente ao registro somático, e gera uma excitação que constituirá o id, pólo energético do inconsciente (GARCIA–ROZA, 1995). Chamamos a esse processo de recalcamento.

Logo, como conseqüência do recalcamento, temos a constituição do id. O termo “pulsão” (Trieb) aparece em Freud, pela primeira vez, no Projeto de 1895, propondo a idéia de que o sistema psi está exposto a quantidades de excitação provenientes do interior do corpo (os estímulos endógenos) e nisto, referiu Freud, encontra-se a mola pulsional (Triebfeder) do mecanismo psíquico. A pulsão, que tem como fonte uma excitação proveniente do corpo (a excitação não-qualificada proveniente do contato com o seio materno), manifesta-se no aparelho psíquico como uma pressão que busca descarga, o que a leva a investir na representação de um objeto para poder realizar, junto a este objeto, o alvo que proporcionará uma satisfação.

As fontes de pulsão, denominadas representantes-coisa (elementos sensoriais não-icônicos que vão se constituir na matéria-prima das representações), impedidas de fazer o enlace com a representação–palavra (imagem acústica e motora da palavra), pois ainda não podem ser traduzidas em linguagem, exercem estimulação interna constante (GARCIA-ROZA, 1995). No processo de recalcamento, refere o autor, embora a representação fique recalcada, o afeto (expressão qualitativa da quantidade de excitação proveniente da fonte pulsional) é compelido a ligar-se a outra representação. Portanto, a representação ideativa original divorcia-se de sua dimensão intensiva, mas esta continua existindo no inconsciente, organizando-se, estabelecendo conexões e formando derivados. Esse pedacinho do real (LO BIANCO, 1996), porque resiste à significação, é que desencadeia o trabalho semântico interminável.

No livro Além do princípio do prazer, de 1920, o conceito de pulsão torna-se muito mais amplo. Em vez de uma exigência de trabalho feita pela soma ao aparelho psíquico, temos duas tendências gerais que se aplicam a toda a matéria viva. A pulsão de vida é concebida como a tendência à formação de unidades maiores, à aproximação e à unificação entre as partes dos seres vivos. A pulsão de morte, ao contrário, é vista como a tendência à separação, à destruição e, em última análise, à volta ao estado inorgânico. Tanto na primeira quanto na segunda teoria, as pulsões constituem, para Freud, o alimento do psiquismo, e, podemos dizer, dos processos cognitivos.

O homem, constituído pelas pulsões, também experimenta alguns momentos cruciais que são organizadores para sua realidade psíquica e, portanto, para sua dimensão cognitiva. São eles:

1. Metaforização:

Ao reproduzir o mundo dos objetos, o homem reencontra-se não com o objeto em si, mas com um signo do objeto perdido. Para não confundir imaginação com realidade, o indivíduo desenvolve o juízo atribuitivo e de existência. Essa elaboração psíquica dá-se por meio do processo de substituição ou de metaforização (BLEICHMAR, 1993), e constitui-se como matéria-prima dos processos cognitivos.

2. Negatividade:

A demanda por simbolização, cada vez mais intensa, exige que a criança, por volta dos dois anos de idade, ultrapasse o universo mítico e crie representações categorizantes. Quando surge a ordem objetiva da realidade – Logos –, a criança isola um objeto de seu contexto e insere-o em outro pela abstração. Essa capacidade, chamada de negatividade, configura-se como um mecanismo cognitivo que tem como resultado a produção de um mundo cultural (CASIRRER, 1997).

3. Simbólico:

A relação intersubjetiva triangular edípica institui, segundo Lacan (1987), a função paterna, isto é, coloca o objeto do desejo como significante primordial, abrindo a possibilidade da criança significá-lo pela linguagem. Esse processo, que reside no poder do simbólico sobre o imaginário, regula a maneira do funcionamento do aparato psíquico e introduz uma polissemia que se instaura como uma nova maneira de cognição. Daí que Lacan elabora a noção de coisa: exterioridade radical que funda o homem em sua interioridade.

Tanto o conceito freudiano de pulsão como força motriz do humano, quanto esses três momentos descritos acima caracterizam a Psicanálise como um conhecimento que leva a desconstrução de um tipo de cognição exclusivamente ligada ao processamento de informações pelo cérebro e limitada à mente consciente comandada por um sujeito único. Com isso, a Psicanálise desnuda o caráter auto-organizativo do psiquismo, pois assumir o corpo como tendo a unidade de um sentido que se vive (GIL, 1997) equivale a considerar o corpo como auto-significado, como devir sensitivo e afetivo. A experiência do corpo humano não é redutível, portanto, nem mesmo ao desenvolvimento da linguagem, na medida em que existe a individualidade do vivido, inclusive a partir da carne (OLIEVENSTEIN,1989).

E mediante o processo auto-organizativo de dar corpo ao corpo e de reconstruir-se perante o outro Freud encontrou condições ímpares para falar na constituição de uma realidade psíquica como uma atividade não reprodutível que um agente exerce sobre ele mesmo e que não pode ser efetivada de igual maneira por mais ninguém. Concluímos que as idéias sobre o sensível do corpo podem ser melhor aproveitadas no estudo da cognição se as articularmos às pesquisas filosóficas de Debrun (1997) sobre auto-organização, pois trazem a noção de emergência de propriedades a partir da organização interna de um sistema que se estabelece sem um controle central ou externo e que se desenvolve junto com o próprio processo (experiência) (CÂNDIDO, 2002).

É notável como, a partir de Freud, o corpo assume essa nova configuração: a sexualidade instala um novo campo teórico de indagação sobre o cérebro, capaz de superar a oposição cartesiana entre os registros do corpo e do psiquismo (BIRMAN, 1989). Com a perspectiva dos sistemas que se auto-organizam, temos uma ferramenta conceitual – a propriedade que os sistemas complexos têm de evoluir para um ponto em que, espontaneamente, emergem propriedades que não podem ser explicadas pelo somatório das ações individuais dos elementos (PERBAK, 1997) – o que pode nos auxiliar a explicar como o sensível do corpo faz-se presente no psiquismo de forma diferenciada, como afeto e como representação, isto é, como saímos do corpo e chegamos à cognição (CÂNDIDO, 2003).

Tem-se presente que, ao explorarmos a cognição, afirmando a existência de uma outra dimensão – o sensível do corpo – estamos problematizando tanto a visão materialista do fazer científico quanto a produção discursiva sobre a natureza humana, e, mais além, a própria forma de estruturação da sociedade. É por isso que nosso esforço deve residir na busca de paradigmas  que sejam mais adequados à investigação desse processo e na adoção de procedimentos epistemologicamente bem elaborados. 

 

Discussão de resultados

Cognição: Ciência Cognitiva versus Psicanálise

Tendo em vista o que foi dito, identificamos diversas oposições entre a Ciência Cognitiva e Psicanálise na compreensão do que é, como se constitui e como se procede na pesquisa da cognição. Vamos sintetizar as divergências teóricas e metodológicas exploradas nesse artigo no quadro abaixo:

QUADRO 1: Oposições entre a Ciência Cognitiva e a Psicanálise em relação à pesquisa da cognição. São Paulo, 2004.

Tanto a teoria freudiana da pulsão, anterior a 1920, como aquela elaborada a partir da obra Além do princípio do prazer são dualistas, no sentido de que Freud sempre opõe dois grupos de pulsões e tenta ver o conflito psíquico como resultante dessa oposição. Na primeira teoria, a oposição central é entre pulsões sexuais e do eu, e na segunda, entre pulsões de vida (englobando essas duas categorias) e pulsão de morte. Quanto à relação com o biológico, ambas vêem as pulsões como fortemente alicerçadas no nível orgânico da vida. Na primeira teoria, refere Gomes (2001), a fonte somática e o alvo último da satisfação mostram as pulsões, tanto de autoconservação quanto sexuais, como profundamente dependentes de fenômenos biológicos. Na segunda, as pulsões são tendências gerais da própria matéria orgânica, que se refletem na vida psíquica.

Na linguagem corrente, o radical “Trieb” e o verbo “treiben” são usados em referência a algo que impulsiona ou puxa alguém ou alguma coisa. Um veículo, por exemplo, é “angetrieben” por seu motor. “Triebwagen” significa locomotiva. Na Física e na Engenharia, Trieb é usado no termo Triebkraft, que significa a força motriz que impulsiona uma máquina ou sistema.

Freud, incorporando de maneira precoce a descoberta da Termodinâmica de que se algo acontece é preciso que a energia usada nesse sistema tenha vindo de alguma fonte, aponta a Trieb como aquilo que impulsiona a constituição da mente complexa (CÂNDIDO, 2001):

“Os objetos-fonte de pulsão são a condição de partida de um processo auto-organizativo que nos leva do corpo à cognição; com a pulsão, a unidade somática é desfeita e surge a “natureza” humana, que transforma, pela cognição, um real que poderia subjugar-nos em base da criação de um mundo mental”.

O que há de emergente na cognição e que a constitui deve suas origens ao próprio processo do corpo sensível (CÂNDIDO & PIQUEIRA, 2002). A ordem sexual-afetiva, a partir da ordem biológica, opera transformações no corpo (DEJOURS, 1997), de onde emerge o sistema psíquico. Em conseqüência, as conexões cerebrais passam a se auto–organizar de acordo com valores relacionados às qualidades desse corpo sexualizado (TUCKER & LUU, 1998). Tal movimento do afeto, como expressão qualitativa da excitabilidade, gera formas individuais de existir no mundo, abre lugar para a diferença individual e garante que o auto–organizado não se transforme em hetero-organizado.

Se esse corpo sensível é um corpo aberto, isto é, seduz e se deixa seduzir em seu sentido de relação para ser vivido com os outros (COELHO JR., 1997) e tem um papel importante ao valorar os elementos da cadeia associativa nas sucessivas experiências, a cognição pode ser compreendida como algo que ultrapassa o processamento de informações, o nível puramente neurofisiológico, o corpo biológico–anatômico e se inscreve na dimensão da realidade psíquica, que tem o desejo como fundamento e a experiência (corpo vivido) como eixo. Concordamos com Merleau–Ponty (1996): o que é dado não é somente o real, mas a experiência do real.

Interessa, portanto, ao se pesquisar a cognição, o acesso à experiência (VARELLA; THOMPSON; ROSH, 1993). Embora a questão fenomenológica da existência humana venha sendo colocada como um aspecto que deve integrar a pesquisa científica, quando a Psicanálise conceitualiza o sujeito (e a mente cognitiva) como um movimento ou um ato da ordem do devir (WINE, 1992), cria problemas metodológicos que entravam a construção de uma futura ciência interdisciplinar sobre cognição, pois a pesquisa neurocientífica, cuja abordagem é materialista–experimental, fica parcialmente inviabilizada; afinal, não é fácil verificar e demonstrar objetivamente processos subjetivos únicos.

Assumindo a cognição como um fenômeno que não se contenta com sistemas simbólicos vazios e, portanto, relacionado à qualidade sensível, a Psicanálise ressuscita o antigo problema dos qualia. Assim, embora tratemos o problema mente/corpo como se ele fosse essencialmente científico, na verdade, sua natureza é filosófica (MORIN, 1990). É por isso que a Psicanálise levanta um problema epistemológico fundamental: se a cognição consiste, inclusive, em qualia, como se pode pesquisá–la desconsiderando esse conceito, como fazem a Ciência Cognitiva e as Neurociências?

Ao se aprofundar no estudo das pulsões, a teoria freudiana coloca-se na fronteira de outros campos do conhecimento. Freud, aliás, expressou mais de uma vez a esperança de que uma contribuição maior para o conhecimento das pulsões pudesse vir de outras áreas do conhecimento e, especificamente, das ciências biológicas. Uma vez que pesquisar sobre o corpo vivido é diferente de pesquisar sobre o corpo no registro anatômico, como fazer ciência sem objetivar, ou seja, sem “coisificar” o fenômeno?

 

Considerações finais

Resta–nos o desafio de descobrir como os processos cognitivos podem ser abordados cientificamente sem que se perca a riqueza fenomenológica da experiência (JONHSON & REEDER, 1997). Esse fato remete-nos a algumas reflexões:

1. O conceito do sensível do corpo freudiano pode (e deve) ser tratado experimentalmente? 

2. Qual o lugar da metapsicologia freudiana ou da pesquisa filosófica nas Neurociências e na Ciência Cognitiva? Existe uma metapsicologia científica?

3. O que identifica a mente cognitiva como um processo auto-organizado?

Diferentes disciplinas deverão confrontar suas concepções, técnicas e problemas, buscando soluções mais satisfatórias para essas questões, sem que haja uma fusão indiferenciada, nem uma costura arbitrária de proposições (COELHO, 1993). Nosso intuito foi demonstrar que a Psicanálise e o conceito de pulsão como um tipo de mantenedora de um espaço potencial de significação e, portanto, de cognição, estão ativamente produzindo contribuições importantes para aqueles que estudam a mente.

Tendo em vista que a cientificidade está mudando de feição ao incorporar o preceito da complexidade ao seu discurso e à sua própria construção (LEAL, 1998), sugerimos que o conceito de emergência (CÂNDIDO, 2002), presente tanto na Física, quanto na Filosofia, pode ser usado como uma solução para essas questões, na medida em que funciona como um ponto de articulação entre diferentes ciências e conceitos e por permitir que desenvolvamos uma compreensão sobre como nós experimentamos o aqui e o agora.

 

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Tramitação
Recebido em novembro 2003
Aceito em maio 2004