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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.6 no.spe São Paulo  2004

 

ARTIGOS

 

A representação social do trabalho do enfermeiro na programação em saúde

 

Social representation of the nurse’s work in health programme

 

 

Antonio Marcos Tosoli Gomes, Denize Cristina de Oliveira, Sérgio Corrêa Marques

Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem como objeto o trabalho do enfermeiro na programação em saúde; seu objetivo é descrever e analisar a prática profissional dos enfermeiros no interior da programação em saúde. Adotou-se como referencial teórico-metodológico a teoria das representações sociais, segundo Moscovici (1978) e Jodelet (2001). Trata-se de um estudo qualitativo desenvolvido no interior do Rio de Janeiro. Foram realizadas entrevistas em profundidade com 30 enfermeiros da rede básica. Os dados foram analisados por meio da análise lexical pelo software ALCESTE. Os dados revelam a existência de tensão na prática profissional entre ações prescritivas e liberdade de ação, a necessidade do conhecimento científico para o trabalho programático e o atendimento holístico e integral como próprio do enfermeiro. Concluise que o enfermeiro possui um importante papel no trabalho programático, especialmente ao definir e trabalhar com o seu papel próprio, utilizando ações delegadas como instrumentais à sua prática.

Palavras-chave: Enfermagem em saúde pública, Representação social, Planos e programas de saúde.


ABSTRACT

The object of this study is the work of nurses in health program; it aims at describing and analyzing nurses professional praxis inside health program. The theory of social representations, according to Moscovici (1978) and Jodelet (2001), has been adopted as theoretical and methodological referential. It is a qualitative study that had been developed in the inner part of Rio de Janeiro. Deep interviews had been applied to 30 nurses from the basic health system. The data was analyzed through ALCESTE software lexical analysis. The data have shown that there is tension in professional praxis between liberty of action and prescriptive actions, need for scientific knowledge for programmatic work and holistic and full care as nurses self-procedures. It is concluded that nurses have an important role in programmatic work, especially when defining and working their self-roles using delegated actions as tools for their praxis.

Keywords: Public health nursing, Social representation, Health plans and programmes.


 

 

Introdução

A programação em saúde apresenta-se como uma tecnologia de trabalho utilizada pela saúde coletiva para atingir seus objetivos. Nesse cenário, quatro pressupostos básicos tornam-se pertinentes. Primeiro, a saúde entendida como estado vital, setor de produção e campo de saber articulados com a sociedade. Segundo, as ações de saúde que reúnem as noções de promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como reabilitação. Terceiro, a construção do objeto de trabalho da saúde coletiva na interface do biológico com o social. E, por último, a definição de saber e conhecimento como compreensão das leis que determinam a realidade para transformá-la (PAIM; FILHO, 2000).

Nesse contexto e a partir desses pressupostos, as equipes multiprofissionais que desempenham suas atividades nas unidades básicas de saúde se deparam com uma realidade social caótica, com problemas de difícil resolução, que incidem sobre a qualidade de vida e sobre o estado de saúde, com as dificuldades de relacionamento no interior da equipe de saúde e, em algumas situações, com o precário estado institucional, que compromete o desenvolvimento das atividades.

Merhy (1997) refere que, no contexto da saúde coletiva, as ações profissionais se pautam na união de saberes e fazeres para a realização de intervenções específicas tanto nos aspectos individuais quanto coletivos. Entre os profissionais, destaca-se a presença do enfermeiro como integrante da equipe de saúde, sendo este considerado pelo Ministério da Saúde como um dos integrantes fundamentais da equipe do Programa de Saúde da Família, bem como dos demais programas elaborados e implantados pelo Ministério.

Torna-se, então, pertinente estudar o desempenho do enfermeiro no interior da programação em saúde, de modo a explicitar o seu fazer, seus desafios e dilemas, e contribuir com o desenvolvimento da prática profissional.

Nesse sentido, define-se como objetivo deste trabalho descrever e analisar a prática profissional dos enfermeiros no interior da programação em saúde.

 

Referencial teórico

Neste estudo optou-se como referencial teórico-metodológico pela teoria das representações sociais, por permitir analisar as questões que nos incomodam. O termo representação social engloba os fenômenos presentes no cotidiano dos grupos sociais, tem suas raízes nos conceitos elaborados pelo senso comum, nas interações contínuas e na objetivação realizada por cada grupo e se concretiza num campo específico de conhecimento, a partir dos pressupostos teóricos de Serge Moscovici (MOSCOVICI, 1978), no contexto da psicologia social.

Assim, os fenômenos de representação social estão presentes na cultura, nos processos de comunicação e nas práticas sociais e, portanto, são difusos, multifacetados e em constante movimento e interação social (SÁ, 1998). As opiniões verbalizadas, as atitudes e os julgamentos individuais e coletivos são os materiais fundamentais de estudo das representações sociais, portanto, fazem parte de um olhar consensual sobre a realidade (OLIVEIRA, 1996).

As representações sociais têm como fundamento o indivíduo e os grupos sociais e só podem ser construídas a partir dos mesmos, enquanto esses grupos vivenciam a tensão entre sua objetividade e a subjetividade, vivência esta contextualizada num determinado meio histórico e social. Sá (1998, p. 24) destaca que “uma representação social é sempre de alguém (o sujeito) e de alguma coisa (o objeto)”. Conseqüentemente, a teoria não possui como essência a neutralidade, pois considera, em seu contexto, tanto os comportamentos individuais e as motivações subjacentes aos mesmos, quanto o meio social, suas instituições e práticas, inseridos dentro da concretude histórica e da singularidade própria.

O significado de determinado objeto para um indivíduo ou grupo possui uma estrutura complexa, multifacetada, repleta de sentidos interligados com todo o contexto de vida dos sujeitos em questão. O que identifica uma representação não é apenas o fato de o grupo se posicionar quanto a algum objeto. As representações são construídas a partir das articulações e combinações de diferentes questões, objetos e idéias que são formuladas segundo uma lógica própria, dentro de uma estrutura globalizante de implicações, para a qual são fundamentais informações e julgamentos do grupo, seu modelo de comportamento e as experiências pessoais e grupais. Moscovici (1978, p. 50) afirma que as representações sociais são consideradas “ciências coletivas sui generis, destinadas à interpretação e elaboração do real”.

Esse pensar a realidade é conseqüência do complexo processo de interação entre o individual, as instituições estabelecidas socialmente e as crenças e ideologias do grupo social. Apesar da capacidade individual de pensar, esse ato influencia a construção intelectual e simbólica do conjunto social e é influenciado por ela. Moscovici (1978) denomina esse movimento de “sociedade pensante”. No entanto, a estrutura interna desse pensar na sociedade é dividida em dois universos distintos, que não são opostos, mas possuem características próprias e se alimentam mutuamente em suas dimensões, quais sejam, os universos consensual e reificado (SÁ, 1993).

Para Sá (1993), o universo reificado é definido como o conhecimento produzido com o rigor lógico, com a objetividade e com a metodologia característicos do pensamento erudito e da ciência. Já o universo consensual é explicitado pelas atividades intelectuais da interação social cotidiana, e é nesse contexto que são formuladas as representações sociais. Nesse aspecto, cada indivíduo pode se apresentar como pesquisador amador ou como um observador curioso, manifestando suas opiniões, teorias e respostas para os desafios diários. Essa interação entre as pessoas cria núcleos representativos com determinada estabilidade e maneiras comuns de ação e representação e cria, como diz Moscovici (1978), uma comunidade de significados entre aqueles que participam do grupo. Na atualidade, além do senso comum como corpo de conhecimentos produzido espontaneamente por meio da tradição e do consenso do grupo, surge uma nova modalidade do conhecimento popular, que compreende os conhecimentos de segunda mão, ou seja, apropriados dos conhecimentos gerados pela ciência ou, mais explicitamente, do universo reificado.

Para Sá (1993), o processo de representar socialmente, no entanto, emerge da materialização dos conceitos abstratos, comuns ao grupo, o que se denomina de objetivação, ao mesmo tempo em que cria um contexto inteligível ao objeto representado, ou sua integração cognitiva, o que é denominado de ancoragem. Nesse processo, a representação social tem por objetivo transformar em familiar o não-familiar.

 

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo, com o referencial teórico-metodológico, como já ressaltado, baseado na teoria das representações sociais (MOSCOVICI, 1978; JODELET, 2001).

Para a coleta de dados foram realizadas 30 entrevistas em profundidade com enfermeiros em uma cidade do estado do Rio de Janeiro, no período de outubro de 2001 a janeiro de 2002. Os sujeitos são profissionais que trabalham na rede básica de assistência e desenvolvem atividades de atenção direta à criança no contexto do Programa de Atenção Integral à Saúde da Criança (PAISC), ressaltando, entre estas, a consulta de enfermagem.

A análise de dados foi realizada com o software ALCESTE 4.5 pela análise lexical, que recorre a co-ocorrências das palavras nos enunciados que constituem o texto, de forma a organizar e sumariar informações consideradas mais relevantes, e possui como referência, em sua base metodológica, a abordagem conceitual lógica e dos mundos lexicais (CATÃO, 2001).

Este software foi criado na França em 1979 por Max Reinert para ser utilizado no sistema operacional Windows. Ele apresenta uma organização possível dos dados por meio de análises estatísticas e matemáticas, fornecendo o número de classe, as relações existentes entre as mesmas, as divisões realizadas no material analisado até a formação das classes, as formas radicais e palavras associadas com seus respectivos valores de x2, além do contexto semântico de cada classe.

Cabe destacar, ainda, que o ALCESTE segmenta o material a ser analisado em grandes unidades denominadas de unidades de contextos iniciais (UCI), que podem ser entrevistas de diferentes sujeitos reunidas em um mesmo corpus, respostas a perguntas específicas, normalmente abertas, de questionários e textos de jornais e revistas.

O texto completo é, então, reformatado e dividido em segmentos de algumas linhas, respeitando, se possível, os cortes propostos pela pontuação. Esses segmentos são denominados de unidades de contextos elementares (UCE) e correspondem ao material discursivo ou escrito relevante à formação das classes.

Foram obedecidas, nesta pesquisa, as orientações constantes da Resolução 196/96 do Ministério da Saúde, tanto no que concerne aos aspectos éticos com a instituição que autorizou a realização da pesquisa, quanto com os sujeitos que cederam as entrevistas após leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Discussão de resultados

Os resultados observados na análise lexical das 30 entrevistas revelaram a distribuição dos conteúdos em cinco categorias discursivas (classes). Essas classes (Dendograma 1) apontam para os seguintes temas: classe 1: conflitos no perfil profissional – universidade e mercado de trabalho; classe 2: limites da prática profissional nos programas de saúde; classe 3: contornos e especificação do papel próprio do enfermeiro; classe 4: construção e organização do espaço profissional; e classe 5: auto e heteroimagem profissional.

 

 

Observando o dendograma percebe-se que, a partir do conteúdo total analisado, o software ALCESTE dividiu o material discursivo em dois grandes blocos, ocorrendo posteriormente três grandes novas divisões e, finalmente, duas últimas. Assim, as classes 1 e 4 possuem significados comuns que as diferenciam das classes 2, 5 e 3, uma vez que são originadas dos dois grandes grupos resultantes da primeira segmentação das UCE. Ao mesmo tempo, possuem sentidos e idéias específicas que justificam a separação em classes distintas, uma vez que se dividiram em etapas subseqüentes da classificação hierárquica. Processo similar ocorreu com as classes 2, 5 e 3, sendo que, nesse caso, a classe 3 apresenta um sentido de oposição forte em relação ao bloco de significado que gerou tanto a classe 2 quanto a 5.

O ALCESTE, no processo de análise, identificou 30 UCI, o que corresponde ao número de entrevistas incluídas no corpus de análise. O software dividiu o corpus submetido à análise em 3.141 UCE. Contudo, foram classificadas para análise 2.243 UCE, representando 71,41% do material exposto à análise. Desse quantitativo total, as UCE ficaram divididas entre as classes da seguinte maneira: classe 1: 337 UCE, representando 15,03%; classe 2: 409 UCE, significando 18,24%; classe 3: 483 UCE, expressando 21,53%; classe 4: 507 UCE, contabilizando 22,60%; e classe 5: 507 UCE, representando 22,60%.

Para fins desse trabalho serão explorados e discutidos os conteúdos presentes na classe 5, uma vez que o objeto deste estudo é melhor focalizado em seu interior.

Os resultados gerados pelo programa ALCESTE 4.5 (Quadro 1) informam as palavras que possuem maior x2 , ou seja, maior associação estatística à classe, bem como as UCE que mais contribuíram para a formação das mesmas.

 

 

Observa-se no Quadro 1 que a classe possui rotina e liberdade como palavras com maior grau de associação, assim como devem ser destacadas ação, poder, conhecimento, científico, receita de bolo, prescrição, agir e teoria(s) de enfermagem. Essas palavras expressam a tensão vivenciada no cotidiano profissional entre a forma com que o trabalho ocorre e o espaço pretendido pelos enfermeiros.

As variáveis destacadas pelos softwares como associadas à classe de análise são aquelas características dos enfermeiros do sexo masculino, que não possuem pós-graduação, com idade compreendida entre 35-40 anos, tempo de formado entre 6 e 10 anos e tempo de trabalho na programação em saúde estabelecido dentro de um período de 5-10 anos.

A organização e a segmentação dos conteúdos dessa classe podem ser observadas no dendograma da análise hierárquica ascendente abaixo.

 

 

Observa-se no Esquema 1 a relação existente entre os léxicos liberdade, ação, programa, receita de bolo e prescrever, sendo que o termo receita de bolo parece centralizar a conexão entre os outros. Ao mesmo tempo, o termo necessário aglutina outro grupo de palavras, estabelecendo, ainda, ligação com o grupo anteriormente citado. As palavras que possuem correlação com necessário são medicamento, medicação, prescrição e teorias de enfermagem.

Percebe-se, nesse resultado, que os sujeitos destacam a ação do enfermeiro dentro dos programas de saúde, bem como a tensão entre ações prescritivas e liberdade de ação dentro dos mesmos. Nesse sentido, os profissionais revelam a importância do Ministério da Saúde como instância normalizadora da prática profissional e a aderência das rotinas estabelecidas dentro dos programas de saúde. Esse conteúdo representacional pode ser observado na UCE abaixo:

Depois descobri que essas rotinazinhas são feitas por profissionais que, muitas das vezes, se limitam a certos conhecimentos e existe uma coisa maior que é o programa feito pelo Ministério da Saúde, que não diz que o enfermeiro pode isso ou pode aquilo (Entrevistado 2).

Assim, os profissionais conferem um sentido de exterioridade às rotinas, sem adesão completa à sua prática e sem contemplar as necessidades sentidas no relacionamento estabelecido entre o profissional e a clientela. Por outro lado, as rotinas aparecem também com um significado de amparo e segurança à ação profissional. Ou seja, ações como prescrição medicamentosa e solicitação de exames laboratoriais passam a ser não somente legítimas, mas especialmente legais na prática profissional devido ao respaldo fornecido pelas rotinas.

Os profissionais ressaltam a necessidade do conhecimento científico como fundamental para trabalhar dentro dos programas e das rotinas. Observa-se uma tensão nos discursos entre o que se sabe e o que se pode fazer, sendo o saber considerado mais amplo que o fazer, o que gera conflitos e desestímulo na prática dos profissionais. Os enfermeiros afirmam que possuem um saber que, se aplicado, poderia ser proveitoso ao atendimento das necessidades específicas de saúde dos clientes, mas se sentem limitados no cotidiano profissional tanto pela legislação quanto pela instituição, conforme UCE abaixo:

Eu, como enfermeira, não posso ir mais, tenho até conhecimento, mas não vou por causa da implicação legal nisso, e consigo, na maioria das vezes, resolver a situação desse jeito (Entrevistado 2).

Ao lado da representação de limitação, os entrevistados também destacam a necessidade do conhecimento para a realização do trabalho a partir das rotinas programáticas, como destacam as UCE abaixo:

As rotinas são um respaldo para o enfermeiro, mas tem que pensar e ter conhecimento científico para poder tomar as decisões. Senão, o enfermeiro não vai conseguir juntar o que está no manual e aquele caso que está aparecendo (Entrevistado 1).

É importante este respaldo escrito para certas condutas que o enfermeiro tem que ter, é necessário o manual para o aspecto legal, mas ele só vai tomar as decisões se tiver o conhecimento científico (Entrevistado 1).

Ainda cabe ressaltar que os profissionais apresentam um comportamento ambíguo diante das rotinas, pois, ao mesmo tempo em que se sentem limitados em sua ação profissional pelo que está escrito, também apelam para outras leis ou diretrizes programáticas que respaldam uma ação diferenciada, não contemplada pelo protocolo do município, como a lei do exercício profissional, as publicações do Ministério da Saúde, o conhecimento científico e a responsabilidade profissional, conforme apontado na UCE abaixo:

Me sinto mal quando me vejo limitada pela rotina dos programas. Mas sou muito chata também, vale o que está escrito e vale a lei superior, então, se está lá, que posso fazer, tenho feito tudo o que posso, dentro do que eu sei, responsavelmente, e nunca tive problema (Entrevistado 13).

Quanto à liberdade de ação ou limitação na atuação do profissional enfermeiro dentro dos programas, a prescrição medicamentosa é identificada como o limite entre uma e outra, gerando tranqüilidade em alguns profissionais e descontentamento e frustração em outros, conforme destacado nas UCE seguintes:

Às vezes me sinto limitada dentro dos programas. Apesar de ter muitas outras coisas a fazer, o enfermeiro se tolhe um pouquinho, porque sabemos a medicação que temos que dar e não damos porque não está dentro do que a lei permite fazer (Entrevistado 29).

O que acontece mais é uma limitação na parte de conduta medicamentosa, com determinados medicamentos que nós não podemos prescrever (Entrevistado 21).

Outros, ao contrário, não percebem a medicalização como importante nas suas práticas profissionais e ressaltam, ainda, que não precisam de liberdade maior de ação, em função de não saberem fazer mais.

Não concordo com a liberdade de ação em excesso, porque não sei fazer mais nada diferente. Eu não tenho necessidade de ir além, porque as medicações eu tenho dificuldade em fazer, tenho medo do efeito colateral que pode dar em qualquer um, mas qualquer médico prescrevendo, não enfermeiro (Entrevistado 10).

Observa-se, ao mesmo tempo, nas falas dos sujeitos, o estabelecimento de um paralelo de importância entre a prescrição medicamentosa e a execução de “outras coisas”, como referem em seus discursos. Essas “outras coisas” ficam claras nas falas à medida que os entrevistados se referem a elas como sendo atividades não consideradas pertinentes ou relacionadas à classe médica (especialmente as ações de prescrição de medicamentos e de solicitação de exames laboratoriais ou de imagem). Dentro dessas “outras coisas” pode mos destacar as orientações aos clientes, aferição e registro de sinais vitais, mensuração de partes corporais, acompanhamento do crescimento e desenvolvimento das crianças e encaminhamento a profissionais específicos, entre outras.

Além dos exemplos supracitados, os entrevistados ressaltam como importante à sua prática o atendimento integral e holístico à clientela, sendo este representado como característica do profissional e da profissão. Nesse sentido, as “outras coisas” podem também significar o atendimento dos clientes além das exigências e necessidades biomédicas, como destacam as falas destes sujeitos:

No meu dia-a-dia como enfermeiro, procuro estar sensível às necessidades das pessoas, sejam elas de que natureza for, espiritual, social, econômica ou física. Eu procuro estar sensível ao que realmente possa estar acontecendo com elas para eu agir da forma certa e suprir um pouco daquela necessidade (Entrevistado 28).

Cuidar dessa pessoa como um ser humano de maneira integral, olhando para ele, não para a doença que ele tem; a doença que ele tem passa a ser um detalhe, passa a ser uma coisa que temos que observar e que temos que saber como acontece, mas para tentar fazer esse cliente entender isso e ter uma qualidade de vida melhor, não para tratar a doença em si (Entrevistado 7).

Os sujeitos exprimem uma preocupação de forma a não tornar prescritivas as suas ações dentro dos programas. Na linguagem dos mesmos, ações prescritivas podem se tornar “receita de bolo”. Contudo, observa-se que a discussão das ações prescritivas se restringe apenas aos medicamentos padronizados pelos programas, não abarcando as “outras ações”, próprias dos enfermeiros e discutidas anteriormente.

Os entrevistados ainda ressaltam existir limitação à autonomia profissional quando esta é exercida a partir da medicalização da consulta de enfermagem. Nesse sentido, os sujeitos apontam a necessidade de pensar em ações de enfermagem que não incluam a prescrição de medicamentos.

A autonomia profissional ainda tem u??oma certa limitação e o enfermeiro tem que pensar mais nisso, no que se pode fazer sem as prescrições, longe das prescrições (Entrevistado 22).

A programação em saúde é um modelo tecnológico de trabalho que faz parte das estratégias que a saúde coletiva utiliza para atingir seus objetivos. Nesse contexto, as ações dos profissionais são compreendidas como intervenções tecnológicas em saúde, tanto nos aspectos individuais quanto coletivos (MERHY, 1997).

Mendes-Gonçalves et al. (1993, p. 62), trabalhando teoricamente a idéia de programas, referem que

a ação programática deve ser, portanto, um dispositivo de organização tecnológica do trabalho dotado de caráter crítico e de grande flexibilidade técnica e política. Isto se impõe também pelo fato de que a ação programática em saúde não é uma ‘coisa’, mas um modelo.

Schraiber (1993), por sua vez, destaca a programação como uma proposta política que aponta para princípios doutrinários de um planejamento ascendente, gerando atendimento universal de acordo com a complexidade da situação.

Schraiber (1993) ressalta que o diagnóstico médico, dentro da programação em saúde, é apenas um dos passos na intrincada e complexa rede de atendimento previsto, de forma a dar conta das dimensões envolvidas no processo saúde-doença dos clientes. Isso implica, na prática, o atendimento multiprofissional dos mesmos, a realização do trabalho de forma interdisciplinar e a abordagem ao cliente considerando as influências dos fatores biológicos, sociais, culturais, espirituais e psicológicos.

Complementando, Mendes-Gonçalves et al. (1993) referem que a programação em saúde é uma forma de organizar tecnologicamente o trabalho, sendo um recurso de natureza essencialmente epidemiológica. A programação, com o olhar no coletivo e na epidemiologia, também se concretiza na individualidade das necessidades detectadas na intimidade da relação profissional-cliente. Corroborando esse entendimento acerca do trabalho dentro da programação em saúde, Nemes (1993) considera que as características tecnológicas do trabalho na programação em saúde também incluem e comportam a consulta individual, mas com vistas a objetivos maiores, como os epidemiológicos, por exemplo.

A prática do enfermeiro dentro da programação em saúde apresenta-se como um trabalho que possui ambigüidades e tensões entre as exigências legais e institucionais e a percepção dos profissionais acerca das necessidades dos clientes, bem como do papel do enfermeiro na satisfação das mesmas.

Neste sentido, o dilema entre liberdade de ação e ações prescritivas necessita ser analisado de forma a possibilitar a compreensão da atuação do enfermeiro no contexto da programação em saúde. Esta forma de análise permite vislumbrar a tensão entre os objetivos e as propostas de trabalho no interior da programação, concentrados no axioma epide??omiológico do contexto de trabalho na programação em saúde, e as formas e métodos com que esses objetivos e propostas se concretizam na prática institucional, entre eles a consulta individual e a padronização de condutas. Dessa forma, se a consulta de enfermagem é realizada como fim em si mesma, ou seja, se não está inserida visando a objetivos epidemiológicos e programáticos, torna-se reprodutora do modelo biomédico de assistência. Além disso, se essa consulta se centra na medicalização da assistência de enfermagem e do cliente, transforma-se numa pseudo-consulta médica baseada no modelo clínico-curativo de assistência à saúde individual (GOMES, 2002).

Por outro lado, deve-se considerar que o uso de medicamentos não descaracteriza a consulta de enfermagem, se tomado no seu objetivo coletivo e no seu aspecto instrumental à prática profissional, desde que esse procedimento seja dimensionado como prática delegada de outras profissões.

Contudo, os conteúdos representacionais analisados permitem observar que o enfermeiro, por seu perfil e formação, tem uma contribuição singular a oferecer dentro do trabalho organizado de forma programática.

Essa contribuição possui suas raízes, entre outras coisas, na compreensão que o enfermeiro possui do ser humano (não-biologicista), pelo seu entendimento da influência dos fatores sociais e ambientais na determinação da saúde e da doença e pela sua capacidade de prática amalgamadora, coordenando e gerenciando o processo de trabalho da equipe de saúde dentro da unidade.

Um aspecto, no entanto, merece ser ressaltado. Campos (1997) destaca que existe uma valorização da realização de procedimentos técnicos nas unidades de saúde e ainda ressalta que, apesar dos protocolos serem bons e úteis, podem também inibir a criatividade e a liberdade de ação dos profissionais. Os entrevistados destacaram, nesse sentido, uma tensão existente no interior da ação programática, que é a realização de ações prescritivas ou padronizadas e a liberdade de ação. Assim, ações e condutas padronizadas têm sua função e são importantes, se inseridas em um contexto mais amplo da assistência à saúde. Se forem vistas como fim em si mesmo e se a autonomia profissional for considerada sinônimo das mesmas, incorre-se na consideração do instrumental como sendo essencial e, possivelmente, numa liberdade de ação menor do que a desejada e a possível.

 

Considerações finais

Percebe-se que a representação da prática profissional do enfermeiro expressa contradições e tensões na execução diária das atividades. Essa representação apresenta-se tensionada entre as características próprias da profissão, os pressupostos do trabalho na programação em saúde, as necessidades da clientela e a inter-relação entre os diversos profissionais da equipe multiprofissional.

Os resultados deste estudo fazem emergir três pontos organizadores da representação analisada, em função de se constituírem como pontos nevrálgicos para o cotidiano profissional, quais sejam: a medicalização da assistência de enfermagem; a tensão entre ações prescritivas e a liberdade de ação na programação em saúde; e a relação saber / fazer na prática profissional.

Esses pontos ainda geram uma nova discussão acerca dos objetivos que estão sendo constituídos dentro da saúde pública, em função de uma aparente valorização do individual, o que remete as ações de saúde ao estágio pré-programático, enfraquecendo o enfoque epidemiológico, característico desse modelo.

Apesar das dificuldades apontadas e percebidas, destaca-se a importância da enfermagem na programação em saúde, em função de suas contribuições ao desenvolvimento dos programas, na relação direta com a clientela, na organização da unidade de saúde e na preocupação do desenvolvimento da profissão no sentido de contribuir com a melhoria da qualidade de vida e dos índices de saúde da população.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Antonio Marcos Tosoli Gomes
Rua dos Artistas, 225/301 – Tijuca
20511-130, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail:mtosoli@bol.com.br

Tramitação
Recebido em fevereiro/2004
Aceito em março/2004